Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3782/11.0TBLLE-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Data do Acordão: 07/17/2018
Votação: DECISÃO DO RELATOR
Texto Integral: S
Sumário: A eficácia de uma declaração receptícia não exige o efectivo conhecimento desta pelo destinatário, bastando a sua cognoscibilidade, traduzida na circunstância de lhe ser possível apreender o conteúdo da declaração, por haver ela chegado à sua esfera de conhecimento ou de controlo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 3782/11.0TBLLE-B.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Olhão – J1
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Decisão nos termos dos artigos 652º, nº 1, al. c) e 656º do Código de Processo Civil:
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I – Relatório:

(…) intentou Acção de Impugnação da Resolução de Contratos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 125º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, por apenso aos autos principais em que foi declarada insolvente a Sociedade “(…) – Sociedade Bombagem e Transporte de Betão, Lda.”, representada pelo administrador judicial. Proferida a sentença, o requerente não se conformou com a mesma.
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Citada, a massa insolvente apresentou contestação invocando a caducidade da acção.
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Realizado o julgamento, o Tribunal de Comércio de Olhão decidiu julgar procedente:
i) a exceção perentória da caducidade do direito do Autor a intentar a presente acção de impugnação da resolução do negócio em benefício da massa insolvente.
ii) a resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
«I. Atendendo aos depoimentos das testemunhas na audiência de julgamento está cabalmente provado que o Requerente reside no Canadá, tendo uma moradia em Portugal, moradia essa que administra com toda a diligência, tendo para isso terceiros capazes, que lhe dão conta de tudo o que se passa.
II. Apenas vem a Portugal em amiúde, passando cá férias de Verão, não dispensando em Portugal mais tempo.
III. O Autor não recebeu a carta que lhe foi dirigida dando conta da resolução do negócio, a 03 de Julho de 2013.
IV. Prova disso é que esta carta foi devolvida com a menção "Devolvida ao remetente", com a data de 08 de Julho de 2013.
V. O Autor apenas tomou conhecimento de que tinha sido enviada uma carta e o qual o seu teor, com uma comunicação feita por email do Senhor Administrador, a 3 de Março de 2014, à qual prontamente respondeu.
VI. Por todas estas razões o direito do Autor ainda está em tempo para interpor ação, não tendo assim caducado o seu direito.
VII. Quanto à validade do negócio, este não padece de nenhum dos vícios que o Senhor Administrador aponta na sua carta.
VIII. Aquando da celebração do negócio, o Recorrente desconhecia que o Réu estivesse em situação de insolvência.
IX. Posto isto, a resolução do negócio deve ser julgada improcedente, e não deve produzir quaisquer efeitos.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável, sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ª, deve ser dado provimento a presente recurso sendo declarada por provada a não caducidade do direito e declarada nula a resolução do negócio.
Assim se fazendo a costumada Justiça».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) erro na avaliação da matéria de facto.
ii) erro de direito (questão da caducidade da instauração de acção e da nulidade do negócio).
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Com relevância para o conhecimento do mérito da causa, foi considerada provada a seguinte factualidade:
1 – Por sentença datada de 25/06/2012 foi declarada a insolvência da sociedade “(…) – Sociedade Bombagem e Transporte de Betão, Lda.”, transitada em julgado.
2 – O processo de insolvência foi instaurado a 02/12/2011. 3 – Por carta registada com aviso de recepção, datada de 3 de Julho de 2013, o Administrador da Insolvência comunicou ao Autor a resolução do acordo denominado "Contrato de compra de venda" relativa aos veículos.
4 – A missiva referida em 3 dirigida ao Autor (…) foi devolvida com a menção "Devolvido ao remetente", com carimbo datado 08/07/2013.
5 – A missiva referida em 3 dirigida ao Autor (…) tem o seguinte teor ''Assunto: Resolução em benefício da massa insolvente.
Nos termos do disposto nos artigos 120º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE:
1. Conforme resulta dos autos de insolvência, a sociedade supra referenciada foi declarada como insolvente, em 25/06/2012.
2. No dia 30/03/2012, a sociedade insolvente alienou a V. Exª. as viaturas com as matrículas 19-47-(…) e 98-56-(…), pelo preço de € 2.500,00 (...), a que acresceu o valor 23% de IVA.
3. Pese embora as viaturas em causa, alegadamente, tenham sido vendidas como sucata, a verdade é que o preço da alienação foi, em muito, inferior ao valor real de mercado.
(…)
5. O negócio efectuado entre V. Exª e a sociedade insolvente, data de 30/03/2012, sendo que o processo de insolvência, data de 30/11/2011, ou seja a venda ocorre 4 meses após a entrada do processo.
(…)
6. Tendo por referência o arquétipo legal do "bom pai de família", aplicável ao caso na forma do gerente normalmente diligente, em face das circunstâncias que aqui se referem, é incontestável que sendo a venda "interessante por preço" para o comprador, tal acto teria um caracter prejudicial para o vendedor, o aqui insolvente.
7. Dada a notoriedade da empresa insolvente, bem como das outras empresas com os mesmos sócios, os mesmos negócios e com os mesmos gerentes, com forte implantação na zona geográfica onde foi realizado o negócio, tem de ser afastada a hipótese de Vexa. desconhecer os problemas que as empresas enfrentavam para, de forma algo precipitada, venderem os veículos em apreço.
8. Aliás, todo o parque de veículos que não se encontrava em leasing.
9. É vítreo que, tal negócio foi prejudicial à massa por diminuir, senão frustrar, a satisfação dos credores da insolvência. Acresce que,
10. Depois de muito instado por este Administrador da Insolvência, V. Exª, fez prova, porém parcial, do pagamento dos veículos.
11. Atento o facto de que a gerência da insolvente e V. Exª, cometeram, de forma conluiada, actos prejudiciais à massa insolvente e consequentemente aos credores, em data posterior à entrada do pedido de insolvência, quando a insolvência era iminente, encontram-se preenchidos os requisitos da resolução em benefício da massa insolvente.
12. Nestes termos, e dando cumprimento ao imposto no artigo 1230º também do CIRE, declara-se resolvida e ineficaz a venda das viaturas, 19-47-(…) e 98-56-(…), bem como se declara resolvido e ineficaz o registo em nome do comprador.
13. Devendo as mesmas serem entregues no prazo máximo de 15 (quinze) dias a este Administrador da Insolvência (…).
6 – Posteriormente foi enviada nova carta por correio simples e um email.
7 – As missivas foram enviadas para a morada indicada pelo Autor ao Administrador da insolvência, na qual este assumiu perante o Sr. Administrador receber toda a correspondência que lhe fosse remetida: Rua (…), 68, 3º, esquerdo, 8100-542 Loulé.
8 – O Autor contatou o Administrador da Insolvência – Dr. António Joaquim Cardoso Taveira – por telefone tendo-lhe este comunicado o envio das cartas.
9 – Em 23/04/2013 o Administrador da Insolvência – Dr. António Joaquim Cardoso Taveira – enviou um email ao Autor com o seguinte teor "Exmo. Senhor (…). Na sequência do email infra, somos a informar que, atenta a falta de resposta ao mesmo e anteriores, iremos resolver os contratos de compra e venda das diversas empresas em benefício da massa insolvente (…)".
10 – A presente acção foi instaurada a 29/05/2014.
11 – O domicílio fiscal do Autor é em (…), 8100-000 Querença.
12 – Em 3 de Março de 2014, o Autor tomou conhecimento do teor da carta de resolução em benefício de massa insolvente[1] por email, por mensagem foi enviada para o Autor por um colaborador do Administrador de Insolvência.
13 – O Autor celebrou com a insolvente um acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda" dos veículos de matrícula 19-47-(…) e 98-56-(…), em 28 de Novembro de 2011.
14 – Nos termos do acordo referido em 13 o Autor obrigou-se a entregar pelos veículos com as matrículas constantes do anexo do acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda", a quantia de € 3.075,00 euros (três mil e setenta e cinco euros), com IVA incluído até 27 de Março de 2012.
15 – Os veículos de matrícula 19-47-(…) e 98-56-(…) foram adquiridos por um preço inferior ao preço de mercado.
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3.2 – Factos não provados:
Com relevância para a decisão da causa, não resultou demonstrado:
1) Só com o email datado de 3 de Março de 2014, o Autor tomou conhecimento de que o administrador da massa insolvente tinha resolvido o contrato de compra e venda, anteriormente outorgado.
2) O Autor desenvolve actividade no Canadá.
3) O Autor procedeu à entrega da totalidade do valor por conta do acordo denominado "Contrato de compra e venda" relativo aos 2 veículos objecto do acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda".
4) O Autor entregou às sociedades do grupo em que se incluíam as vendedoras o montante suficiente para saldar todas as facturas que titularam todas as transmissões resolvidas pelo senhor administrador judicial.
5) A sociedade insolvente emitiu facturas referentes à entrega da totalidade do valor por conta do acordo denominado "Contrato de compra e venda" relativo aos 2 veículos objecto do acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda" em 30 de Março de 2012.
6) Os veículos foram transmitidos pelo preço justo, tendo em conta o estado de conservação e anos de utilização dos mesmos.
7) O Autor desconhecia que a insolvente pudesse estar em situação de insolvência, na altura da celebração do acordo denominado "Contrato de compra e venda".
8) O Autor procedeu à entrega de valores por conta do veículo com a matrícula constante do anexo do acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda", em vários blocos.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Erro sobre a matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de Primeira Instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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O recorrente pretende que se considerem provados determinados factos associados ao não conhecimento da resolução do contrato[2] e ao local onde está sediada sua actividade profissional[3], alterando-se assim as respostas aos pontos 1 e 2 dos factos não provados. Esta pretensão funda-se no testemunho prestado por (…).
Na fundamentação da matéria de facto provada o julgador «a quo» afirma que o facto descrito em 1 não resultou demonstrado por ter sido provado o seu contrário, atentas as declarações prestadas pelo Administrador da Insolvência. E, na verdade, ouvida toda a prova, as declarações tomadas a (…) assumem uma consistência mais sólida e a explicação dada a respeito da resolução do contrato e do conhecimento que o Autor tinha da situação é perfeitamente aceitável. Em função dessa fidedignidade acrescida, as declarações do administrador judicial devem prevalecer sobre o teor da prova colhida à testemunha agora arregimentada pelo recorrente.
Quanto ao facto não provado indicado em 2), na óptica da Primeira Instância, o mesmo resultou indemonstrado por falta de prova suficiente. Efectivamente, ainda que se provasse que o Autor prestava a sua actividade do Canadá, isso não era susceptível de contrariar aquilo que consta dos pontos 7, 8, 9 e 12 dos factos provados, carecendo assim de qualquer pertinência a fixação do facto nos termos propostos.
E a ser viabilizado o entendimento que a notificação teria de ser efectuada no estrangeiro, após o Autor ter fornecido voluntariamente a morada para a sua notificação, o Tribunal estaria a validar um comportamento contrário à boa-fé, na modalidade de venire contra factum proprium. Há "venire contra factum proprium" quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente.
Nesta ordem de ideias, a prova produzida não impõe decisão diversa (artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil) e que, assim sendo, os pontos relacionados com a impugnação promovida pelo recorrente não merece acolhimento e a decisão de facto corresponde à realidade processualmente adquirida.
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4.2 – Do erro de direito:
4.2.1 – Da caducidade da impugnação da resolução do contrato:
A resolução em benefício da massa insolvente reclama a chamada à colação das normas inscritas nos artigos 120º[4], 121º[5], 123º[6] e 125º[7] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
No plano da sua execução prática, a resolução tanto pode ter lugar por via judicial, por via de acção ou de excepção, como por via extrajudicial, através do envio de carta registada com aviso de recepção.
A resolução pode ser impugnada pela outra parte no acto resolvido ou por terceiro afectado pela resolução, a quem incumbe o ónus de intentar a acção correspondente, que corre por dependência do processo de insolvência.
Sobre o regime da resolução em benefício da massa insolvente podem ser consultados Carvalho Fernandes e João Labareda[8], Gravato Morais[9], Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões[10], Maria do Rosário Epifânio[11], Menezes Leitão[12] e Catarina Serra[13], entre outros.
Fernando Gravato Morais sublinha que «os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos, como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja sob o prisma substancial, atendendo, naturalmente, à inexistência de vícios que os afectem.
Do que se trata aqui é de, em razão dos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os de que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência.
A finalidade é, pois, a da reintegração no património do devedor (ou melhor da massa insolvente) para efeito de satisfazer os direitos do credor»[14].
Na leitura integrada das disposições acima convocadas o Administrador da Insolvência pode resolver em benefício da massa os actos prejudiciais à massa que tiverem sido praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, de acordo com determinados pressupostos e nas circunstâncias de modo explicitadas na lei.
Deve entender-se que o «conhecimento do acto» a que alude o artigo 123º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não se basta com o mero conhecimento do acto ou negócio, implicando também o conhecimento dos pressupostos necessários para a existência do direito de resolução[15].
A tendência consolidada na doutrina e na jurisprudência aponta no sentido interpretativo de que a carta resolutiva deverá conter, ainda que sinteticamente, a motivação fáctica específica que origina a resolução do acto em benefício da massa insolvente, pois, para exercer o direito de impugnar o acto, através da acção prevista no artigo 125º do CIRE, o terceiro afectado tem de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são invocados.
Aquilo que constitui o objecto decisivo do recurso é apurar se a declaração de recepção necessária foi perfectibilizada[16] [17] e avaliar assim do acerto da decisão que considerou caduca a possibilidade de impugnação da resolução.
Da interpretação integrada das regras relativas à perfeição da manifestação negocial, a declaração recipienda torna-se apta a produzir os efeitos intencionados pelo emissor (i) logo que é efectivamente conhecida pelo destinatário (ou seja, logo que este toma conhecimento do respectivo conteúdo), (ii) quando chega ao poder do destinatário em condições de ser por ele conhecida ou (iii) a partir do momento em que, normalmente, teria sido recebida pelo destinatário, caso este não tivesse obstado, com culpa, à sua oportuna recepção.
Se a declaração negocial for efectivamente conhecida, nada mais se torna necessário averiguar – impõe-se a teoria do conhecimento ou da percepção, aquela que, como regra, se afigura mais justa, dado ser a que melhor salvaguarda o destinatário de uma declaração: esta só produzirá efeitos quando a pessoa a quem vai endereçada acede ao respectivo conteúdo. Para a lei, basta, no entanto, que a declaração chegue ao poder do destinatário, em condições de ser por ele conhecida, para se tornar eficaz, revelando-se indiferente que tome ou não efectivo conhecimento do respectivo conteúdo. Consagra-se, portanto, um desvio a favor da teoria da recepção, que se mostra totalmente razoável: trata-se de considerar a declaração eficaz a partir do momento em que, segundo as regras da experiência comum e os usos do tráfego, fique apenas a depender de acto do destinatário entrar no seu conhecimento.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela «basta que a declaração tenha chegado ao seu poder. O conhecimento presume-se neste caso, juris et de jure».
Isto é, conforme resulta do disposto no nº 2 do artigo 224º do Código Civil, a eficácia de uma declaração receptícia não exige o efectivo conhecimento desta pelo destinatário, bastando a sua cognoscibilidade, traduzida na circunstância de lhe ser possível apreender o conteúdo da declaração, por haver ela chegado à sua esfera de conhecimento ou de controlo.
O Juízo de Comércio de Olhão entende que «a carta de resolução se tornou eficaz no momento em que o aviso de recepção foi colocado na caixa do correio do Autor. Assim, o facto de este não ter procedido ao levantamento da missiva, constitui uma situação que pode enquadrar-se no nº 2, do artigo 224º do Código Civil, considerando-se que a notificação é eficaz».
No entanto, este juízo prudencial tem de ser completado com o recurso ao suporte factual descrito nos pontos 7)[18], 8)[19], 9)[20] e 12)[21] dos factos provados. E deste acervo factual ressalta inequivocamente que o Autor teve conhecimento da resolução efectuada pelo administrador de justiça, independentemente da recepção concreta da carta que lhe foi enviada com esse objectivo.
E mesmo que se apurasse que o Autor exercia então a sua actividade profissional no Canadá, nos autos encontra-se demonstrado que o domicílio fiscal da parte activa não se mostra actualizado. Na realidade, como já se deixou expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/10/2016, in www.dgsi.pt, por regra, nenhuma parte pode invocar o não conhecimento de um acto processual ou negocial quando não actualiza a mudança de residência junto dos serviços de identificação civil, da segurança social, da fazenda pública e de outros serviços estaduais.
Se tivesse feito essa actualização, então sim poderia invocar que o seu domicílio não se situava na residência para onde foi remetida a carta, designadamente se esse domicílio se situasse no estrangeiro, conforme apregoa. Todavia, em acréscimo, na situação concreta, essa conclusão é reforçada porquanto a carta foi enviada para a morada voluntariamente fornecida pelo agora impugnante, que funciona assim como domicílio voluntário geral.
Em síntese intercalar, pode concluir-se que, no caso de resolução em benefício da massa insolvente, se o autor não recebe em mão a comunicação de resolução na morada por si indicada para efeitos de recepção de correio, por não a mesma ter sido devolvida ao remetente por falta de levantamento, apesar da existência de aviso específico que lhe foi dirigido pelo administrador judicial sobre a respectiva remessa, a situação fica abrangida pela esfera de protecção do número 2 do artigo 224º do Código Civil e o prazo inicial para recurso aos Tribunais conta-se a partir do dia seguinte ao da devolução da carta registada.
O exercício previsto no artigo 125º do Código da Insolvência e da Recuperação de empresas corresponde a um prazo de caducidade[22] [23] [24], pois o que está em causa um prazo para exercício de um direito potestativo e os direitos potestativos caducam no fim do respectivo prazo, de harmonia com a disciplina precipitada no artigo 298º, nº 2, do Código Civil.
Está demonstrado nos autos que o Administrador Judicial procedeu à resolução do contrato de compra e venda dos dois veículos, por carta registada com aviso de recepção, enviada no dia 03/07/2013 e devolvida com carimbo datado de 08/07/2013.
A presente acção foi proposta no 29/05/2014 e, assim, tal como decidiu a Meritíssima Juíza, «é assim evidente que o prazo de que o Autor dispunha para intentar acção de impugnação da referida resolução se iniciou em 9 de Julho de 2013 (…) e o respectivo direito do autor a propor a acção de impugnação dessa resolução caducou no dia 26/11/2013».
Desta forma, não merece censura o decidido a propósito da procedência da excepção peremptória da caducidade do direito do autor a intentar a presente acção de impugnação da resolução do negócio em benefício da massa insolvente.
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De harmonia com a jurisprudência maioritária, a acção de impugnação da resolução prevista no artigo 125º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é uma acção de simples apreciação negativa, visando a demonstração da inexistência ou a não verificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo administrador judicial na carta resolutiva, cabendo, por isso, à massa insolvente o ónus da prova da verificação dos pressupostos da resolução operada pelo dito administrador e não ao impugnante a demonstração de que tais pressupostos não se verificam, em consonância com plasmado no nº 1 do artigo 343º do Código Civil[25].
Ao impugnante assiste o direito a conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são desferidos de forma a poder evidenciar a insubsistência do acto resolutivo, com vista a demonstrar que o mesmo não foi prejudicial para os interesses em disputa.
Em termos casuísticos, quanto à validade da resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência, face aos dados factuais presentes na decisão recorrida, a mesma é substantivamente operativa por via do desajuste do preço acordado na relação com o valor de mercado das viaturas negociadas [26] [27], atendendo ainda ao tempo de celebração do negócio e aos demais termos acordados.
Os fundamentos invocados pelo administrador judicial são atendíveis para alcançar a desejada destruição condicionada do negócio jurídico. E, consequentemente, na situação vertente, ao contrário do propugnado pelo recorrente, estamos perante um conjunto de actos prejudiciais ao património da massa insolvente e não é nula a decisão que determinou que a reintegração os bens na titularidade da massa insolvente.
Ao estarem assim preenchidos os requisitos necessários à existência do direito de resolução do acto em causa em benefício da massa insolvente, mantém-se a decisão recorrida.
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V – Sumário:
1. A resolução em benefício da massa insolvente visa a reconstituição do património do devedor, permitindo a destruição de actos prejudiciais a este património e o direito de impugnar o acto resolutivo caduca no prazo de três meses.
2. A eficácia de uma declaração receptícia não exige o efectivo conhecimento desta pelo destinatário, bastando a sua cognoscibilidade, traduzida na circunstância de lhe ser possível apreender o conteúdo da declaração, por haver ela chegado à sua esfera de conhecimento ou de controlo.
3. No caso de resolução em benefício da massa insolvente, se o autor não recebe em mão a comunicação de resolução na morada por si indicada para efeitos de recepção de correio, por não a mesma ter sido devolvida ao remetente por falta de levantamento, apesar da existência de aviso específico que lhe foi dirigido pelo administrador judicial sobre a respectiva remessa, a situação fica abrangida pela esfera de protecção do número 2 do artigo 224º do Código Civil e o prazo inicial para recurso aos Tribunais conta-se a partir do dia seguinte ao da devolução da carta registada.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 17/07/2018 (em turno)

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

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[1] A decisão fazia referência a “(…), Lda.” mas, certamente, tal deve-se à sobreposição de dados informáticos.
[2] (1) Só com email datado de 3 de Março de 2014, o Autor tomou conhecimento de que o administrador da massa insolvente tinha resolvido o contrato de compra e venda, anteriormente outorgado (artigo 1º da Petição Inicial – ponto 1 dos factos não provados).
[3] (2) O Autor desenvolve a sua actividade no Canadá (artigo 7º da Petição Inicial – ponto 2 dos factos não provados).
[4] Resolução em benefício da massa insolvente
Artigo 120º (Princípios gerais):
1 - Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
2 - Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.
3 - Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má-fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.
5 - Entende-se por má-fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
c) Do início do processo de insolvência.
6 - São insuscetíveis de resolução por aplicação das regras previstas no presente capítulo os negócios jurídicos celebrados no âmbito de processo especial de revitalização ou de processo especial para acordo de pagamento regulados no presente diploma, de providência de recuperação ou saneamento, ou de adoção de medidas de resolução previstas no título VIII do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, bem como os realizados no âmbito do Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas ou de outro procedimento equivalente previsto em legislação especial, cuja finalidade seja prover o devedor com meios de financiamento suficientes para viabilizar a sua recuperação.
[5] Artigo 121º (Resolução incondicional):
1 - São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos:
a) Partilha celebrada menos de um ano antes da data do início do processo de insolvência em que o quinhão do insolvente haja sido essencialmente preenchido com bens de fácil sonegação, cabendo aos co-interessados a generalidade dos imóveis e dos valores nominativos;
b) Actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais;
c) Constituição pelo devedor de garantias reais relativas a obrigações preexistentes ou de outras que as substituam, nos seis meses anteriores à data de início do processo de insolvência;
d) Fiança, subfiança, aval e mandatos de crédito, em que o insolvente haja outorgado no período referido na alínea anterior e que não respeitem a operações negociais com real interesse para ele;
e) Constituição pelo devedor de garantias reais em simultâneo com a criação das obrigações garantidas, dentro dos 60 dias anteriores à data do início do processo de insolvência;
f) Pagamento ou outros actos de extinção de obrigações cujo vencimento fosse posterior à data do início do processo de insolvência, ocorridos nos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência, ou depois desta mas anteriormente ao vencimento;
g) Pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir;
h) Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte;
i) Reembolso de suprimentos, quando tenha lugar dentro do mesmo período referido na alínea anterior.
2 - O disposto no número anterior cede perante normas legais que excepcionalmente exijam sempre a má-fé ou a verificação de outros requisitos.
[6] Artigo 123º (Forma de resolução e prescrição do direito):
1 - A resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.
2 - Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a resolução ser declarada, sem dependência de prazo, por via de excepção.
[7] Artigo 125º (Impugnação da resolução):
O direito de impugnar a resolução caduca no prazo de três meses, correndo a ação correspondente, proposta contra a massa insolvente, como dependência do processo de insolvência.
[8] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 3ª edição, págs. 498-518.
[9] Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, Coimbra, 2008.
[10] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 354 e seguintes.
[11] Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 210-222.
[12] Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 212 e seguintes
[13] Lições de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 245 e ss, 461, 463, 469, 523 e 590 e ss.
[14] Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 47.
[15] De acordo com o sentido decisório do acórdão do Supremo tribunal de justiça de 27/10/2016, in www.dgsi.pt, «a adoptar-se a contagem do prazo, seu termo inicial, a partir do conhecimento do acto, o AI, por cautela, será tentado a resolver todo os actos do devedor enquadrados no “período suspeito” o que levará as declarações resolutivas cegas quanto à existência, ou consistente conhecimento de fundamento resolutivo – a prejudicialidade ou nocividade do negócio em relação à Massa – o que, além de colocar graves problemas aos visados, não deixa de colocar não menos graves dificuldades ao AI, sobretudo, se se entender, como parece ser comum, que sendo a acção de impugnação da resolução uma acção de simples apreciação negativa, não pode o AI, na contestação dessa acção, aduzir outros novos fundamentos tendentes ao preenchimento do requisito “prejudicialidade».
[16] O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Maio de 2011, in www.dgsi.pt, afirma que «por se tratar de declaração receptícia e por estarem em causa factos constitutivos do direito que o administrador da insolvência exercita, a missiva pela qual ele procede à resolução em beneficio da massa deve conter a fundamentação factual que a determina, ou seja, em atenção ao prescrito nos nºs 1, 2, 4 e 5 do citado artº 120°, a enumeração dos factos que traduzem a prejudicialidade para a massa mesmo quando haja presunção dessa prejudicialidade, nos termos do nº 3 daquele preceito e do artº 121, o AI deve indicar o acto em causa, o prazo em que foi outorgado, a data de início do processo de insolvência e a circunstância de não respeitar a uma operação com real interesse para o insolvente) e os que caracterizam a má-fé do adquirente (…)».
[17] A natureza receptícia também é reconhecida nos acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2009 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Abril de 2010, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[18] (7) As missivas foram enviadas para a morada indicada pelo Autor ao Administrador da insolvência, na qual este assumiu perante o Sr. Administrador receber toda a correspondência que lhe fosse remetida: Rua (…), 68, 3º, esquerdo, 8100-542 Loulé.
[19] (8) O Autor contatou o Administrador da Insolvência – Dr. António Joaquim Cardoso Taveira – por telefone tendo-lhe este comunicado o envio das cartas.
[20] (9) Em 23/04/2013 o Administrador da Insolvência – Dr. António Joaquim Cardoso Taveira – enviou um email ao Autor com o seguinte teor "Exmo. Senhor (…). Na sequência do email infra, somos a informar que, atenta a falta de resposta ao mesmo e anteriores, iremos resolver os contratos de compra e venda das diversas empresas em benefício da massa insolvente (…)".
[21] (12) Em 3 de Março de 2014, o Autor tomou conhecimento do teor da carta de resolução em benefício de massa insolvente de (…), Lda. por email, por mensagem foi enviada para o Autor por um colaborador do Administrador de Insolvência.
[22] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 513-514.
[23] Meneses Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 3ª edição, pág. 230.
[24] Na defesa de que se trata de um prazo de prescrição, a propósito do disposto no artigo 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, pode ser consultado Fernando de Gravato Morais, em Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, pág. 161.
[25] Neste sentido podem ser lidos os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/2012 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/05/2013, in www.dgsi.pt.
[26] (14) Nos termos do acordo referido em 13 o Autor obrigou-se a entregar pelos veículos com as matrículas constantes do anexo do acordo denominado "Contrato-promessa de compra e venda", a quantia de 3.075,00 euros (três mil e setenta e cinco euros), com IVA incluído até 27 de Março de 2012.
[27] (15) Os veículos de matrícula 19-47-(…) e 98-56-(…) foram adquiridos por um preço inferior ao preço de mercado.