Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1664/18.4T8BJA-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
FALTA DE TÍTULO
SANAÇÃO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Se o título que por lapso foi junto com o requerimento executivo se refere a outra dívida dos executados perante o exequente, verifica-se uma situação passível de sanação que poderia ter dado lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento de acordo com o disposto no art.º726.º, n.º 4 do CPC, despacho esse que é passível de ser oficiosamente proferido até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados, como resulta do art.º734.º, do CPC.

II- Tal despacho não careceu sequer de ser proferido porque a exequente, sponte sua – dez dias após ter entregue o requerimento inicial – entregou o competente título em substituição do erroneamente apresentado;

III- É que se ainda poderia ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento para junção do competente título, por maioria de razão se teria de admitir e considerar a sua junção espontânea. (sumário da relatora)

Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I – RELATÓRIO
1. M…, embargante nos autos à margem identificados nos quais figura como embargada Caixa … S.A, veio recorrer do despacho saneador/ sentença nos mesmos proferido que decidiu julgar totalmente improcedente a oposição à execução.

2. A recorrente formulou as seguintes conclusões:
I – O título executivo levado à execução e ao conhecimento da executada/recorrente não titula a quantia exequenda;
II- Não estando fundamentada no título executivo, a quantia exequenda é inexigível;
III – Ao dar como provado que a execução se fundamenta num título executivo que não foi levado ao conhecimento da executada/embargante, a Mª Juiz de Direito do Tribunal a Quo violou o disposto no artº 703º do CPC.
IV – Face à prova documental levada aos embargos, consubstanciada na citação para os termos do processo executivo, nomeadamente do requerimento executivo e título executivo, não pode deixar de ser dado como provado que tal título não titula a quantia exequenda e, por isso, esta é inexigível.
V – Alterando-se a matéria de facto dada como provada, no sentido de o título de crédito levado à execução e ao conhecimento da executada não titular a dívida,
Deve a douta sentença em recurso ser revogada, ao abrigo do disposto no artº 662º nº 1 do CPC, substituindo-a por outra que, dando-o como provado, decida pelo procedimento dos embargos.
VI – Mesmo que assim se não entenda, a douta sentença em recurso ao dar como provado o constante da matéria de facto, nos termos constantes dos pontos 1 ), 2 ) e 3) da fundamentação de facto, não se pronuncia sobre questões que devia conhecer, nomeadamente quanto à contradição entre o título executivo levado à execução e ao conhecimento da executada e o requerimento executivo, assim como conhece de factos de que não poderia conhecer, nomeadamente quando dá como provado que “ os mutuários interromperam o pagamento das prestações do contrato de 21/11/201, nada mais tendo pago por conta dos mesmos “, porquanto não foi levado nem à PI dos embargos, nem à contestação, ferindo de nulidade a douta sentença, por aplicação do disposto no art.º 615º nº 1 d) do CPC.
VII - Nulidade que deve ser conhecida e declarada,
Assim se fazendo JUSTIÇA”.

2. Contra-alegou a exequente defendendo a manutenção do decidido.

3. Dispensaram-se os vistos.

4. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:
- Se a circunstância de o requerimento inicial não vir acompanhado do título executivo respeitante à obrigação exequenda obstaculiza ao prosseguimento da execução;
- Se a sentença enferma de nulidade por omissão e excesso de pronúncia.

II- FUNDAMENTAÇÃO
1. Emerge dos autos de execução e embargos que consultámos o seguinte:

1.1. A exequente C…, em 13.11.2018, deduziu execução para pagamento de quantia certa contra M…, A…, M…, D…, Ma…- estes três últimos na qualidade de fiadores e “ principais pagadores” – alegando, para tanto e em síntese, no requerimento executivo que: “Por escritura pública lavrada a 10/08/2001, o Banco Exequente emprestou aos executados A… e M… a importância de 79.807,66€, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do referido título e alterações que juntam e aqui se dão como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais como doc 1;

A taxa de juro contratada foi à taxa Euribor a 3 meses, acrescida de um spread ao ano, atualizável.

Em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada de 4%. Cfr. Doc. nº 1. 4.

A quantia emprestada, referida no aludido título, foram efetivamente entregues aos mutuários mediante créditos processados na sua Conta de Depósitos à Ordem, domiciliada na agência do Banco Exequente.

Que a movimentaram e utilizaram em proveito próprio os valores resultantes daqueles créditos,

Confessando-se devedores da quantia recebida perante o Banco Exequente.

Para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações emergentes do contrato a que se vem fazendo referência, em ato simultâneo à respetiva celebração, o mutuário constituiu hipoteca a favor do Exequente sobre o seguinte imóvel:

a) prédio urbano sito na freguesia de Pias , descrito na Conservatória do Registo Predial de Serpa com o nº…

A hipoteca encontra-se registada a título definitivo a favor do Banco Exequente pela AP. 7 de 2001/07/16- conforme se alcança da certidão predial que ora se junta como Doc. nº 2

Os executados M… e D… constituíram-se fiadores e principais pagadores, renunciando ao beneficio da excussão prévia de bens.

Acontece que, os mutuários interromperam o pagamento das prestações do contrato em 21/11/2011.

Nada mais tendo pago por conta dos mesmos,

Apesar das diversas diligências suasórias desenvolvidas pelo Banco Exequente.

A situação descrita determinou, nos termos legais e contratuais, o direito de considerar vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga, e, vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga, e, consequentemente, exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquela última prestação paga. (…) “;

1.2. O exequente fez anexar ao requerimento executivo um outro contrato de empréstimo celebrado com os mesmos executados à excepção da ora embargante M…;

1.3. Mediante requerimento de 23.11.2018, a exequente alegando a ocorrência de um lapso, juntou a escritura a que se alude supra em 1.1. requerendo que o mesmo substituísse o indevidamente junto.

1.4. Os executados foram citados e sem que se tivesse tido em consideração o requerimento antecedente;

1.5. A ora recorrente deduziu embargos em 17.2.2019 suscitando a desconformidade entre o título e o requerimento executivo;

1.6. Foi novamente citada em 7.5.2019, tendo, desta feita, sido anexada a escritura referida em 1.1.

2. Do mérito do recurso

2.1 Consequências de o requerimento inicial não vir acompanhado do título executivo respeitante à obrigação exequenda.

Entende a embargante que não deveria ser admissível a substituição do título executivo porque se reconduz a uma indevida alteração da causa de pedir.

Vejamos.

Comungamos do raciocínio perfeitamente expresso no Acórdão do STJ de 15.5.2003 [1] de que o “fundamento substantivo da acção executiva é a própria obrigação exequenda e não o próprio título executivo e de que este é o seu instrumento documental legal de demonstração.

Mas a acção executiva não visa a definição do direito violado, porque se destina providenciar quanto à sua reparação efectiva, surgindo o título executivo como sua condição suficiente” (artigo 10º, n.º 4 e nº5, do C.P.C).

(…) É certo que os factos integrantes da causa de pedir e os documentos que visam demonstrá-la são realidades diversas. Mas como o título executivo assume a particularidade de demonstração legal bastante do direito a uma prestação, segue-se a dispensa na acção executiva de qualquer indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito substantivo a que se reporta.”


A lei exige que o exequente apresente o título executivo com o requerimento executivo – Cfr. art.º 724.º, nº 4, alínea a), do CPC – prevendo que “a falta ou insuficiência do título” seja fundamento de indeferimento liminar do requerimento – Cfr. artº 726.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

No caso, foi apresentado um título – não demonstrativo da obrigação exequenda, é certo - mas em todo o caso um documento que revestia a natureza de título executivo.

Por conseguinte, temos de concluir que esta situação não se inclui linearmente na previsão do art.º 726.º, n.º 2 a) do CPC que pressupõe uma “manifesta falta ou insuficiência do título”.

E verificando-se, em contrapartida, uma situação passível de sanação, poderia ter dado lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento de acordo com o disposto no art.º726.º, n.º 4 do CPC, despacho esse que é passível de ser oficiosamente proferido até ao primeiro acto de transmissão de bens penhorados, como resulta do art.º734.º, do CPC.

Tal despacho não careceu sequer de ser proferido porque a exequente, sponte sua – dez dias após ter entregue o requerimento inicial – entregou o competente título em substituição do erroneamente apresentado.

O que sucedeu é que quando se procedeu à citação da executada/embargante se omitiu a substituição efectuada, fazendo acompanhar o requerimento inicial do primitivo título.

Por conseguinte, a dedução dos embargos fundou-se num pressuposto que entretanto se havia alterado: o de que o título era o contrato de empréstimo.

Enveredou-se por isso, por citar de novo a ora executada/embargante salvaguardando o princípio do contraditório e por consequência o seu direito de defesa.

Em suma: Não ocorreu qualquer alteração da causa de pedir – uma vez que esta se manteve incólume –mas sim a sanação voluntária e tempestiva de uma desconformidade por parte da exequente, o que não poderia deixar de ter sido atendido pelo Tribunal.

É que se ainda poderia ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento para junção do competente título por maioria de razão se teria de admitir e considerar a sua junção espontânea.

Esta solução foi, aliás, seguida num caso idêntico pelo STJ no seu acórdão de 10.12.2009 - cuja doutrina mantém plena actualidade apesar de prolatado no domínio do anterior CPC - e que se mostra sumariado como segue:
“ I- O princípio contido no art.º 667.º do CPC[2] (rectificação de erros materiais), embora se refira a actos do juiz é extensivo aos actos praticados pelas partes; o essencial é que se trate de um erro ou lapso manifesto e ostensivo que resulte evidente de todo o contexto da situação.
II - Se a certidão junta com o requerimento executivo não tem a ver, de forma óbvia e clara, com a dívida exequenda, referindo-se a outra dívida de que a executada será responsável perante o Estado, juntamente com outro ou outros devedores, está-se perante um mero lapso material, que, embora não detectado, podia (e devia) sê-lo com toda a facilidade por qualquer interveniente judicial e, como tal, podia ser corrigido logo que detectado.
III - O que se imporia, quer por força do princípio inquisitório, previsto no art. 265[3].º, quer por força do princípio da cooperação, quer por força do disposto directamente no n.º 4 do art. 812-E[4]º, todos do CPC, era convidar o exequente a esclarecer a desconformidade existente e saná-la, querendo, pela junção da certidão de dívida pertinente (cf., também, o art. 820.[5]º, n.º 1).”.

Termos em que, sem necessidade de ulteriores considerações, improcede o primeiro fundamento recursório.


2.2. Da imputada nulidade da sentença por omissão e excesso de pronúncia.

Refere a embargante que a sentença recorrida “ao dar como provado o constante da matéria de facto, nos termos constantes dos pontos 1 ), 2 ) e 3) da fundamentação de facto, não se pronuncia sobre questões que devia conhecer, nomeadamente quanto à contradição entre o título executivo levado à execução e ao conhecimento da executada e o requerimento executivo”.

É a seguinte a factualidade dada como assente na sentença:
1) Em 10.08.2001 a Embargada celebrou com A… E M… um contrato de mútuo no valor de € 79.807,66, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor;
2) A Embargante constituiu-se fiadora e principal pagadora de tudo o que seja devido em consequência do referido empréstimo.
3) Os mutuários interromperam o pagamento das prestações do contrato em 21/11/201, nada mais tendo pago por conta dos mesmos.

O afirmado pela recorrente não é correcto já que o Tribunal ponderou ter havido uma junção subsequente de documento que atestava o alegado no requerimento inicial.

Pode ler-se na sentença o seguinte: A factualidade provada resulta inequivocamente da documentação junta á execução em 23.11.2018, qual seja a escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança e o respectivo documento complementar. Note-se que ainda que os documentos que acompanharam inicialmente o requerimento executivo não atestassem os factos acima indicados, o certo é que a documentação a que agora nos referimos, junta em 23.11.2018, não deixa qualquer dúvida quanto à respectiva verificação.
Por outro lado o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo não é posta em causa pela embargante.

Refere igualmente a embargante que o Tribunal conheceu de “factos de que não poderia conhecer, nomeadamente quando dá como provado que “ os mutuários interromperam o pagamento das prestações do contrato de 21/11/201, nada mais tendo pago por conta dos mesmos “, porquanto não foi levado nem à PI dos embargos, nem à contestação”.

Também não é correcto: Tal facto foi expressamente alegado no requerimento inicial que supra transcrevemos e não foi posto em crise pela única embargante, a ora recorrente, pelo que não se poderia deixar de considerar admitido por acordo.

É que a petição de embargos define as questões dentro das quais a lide respectiva pode desenvolver-se , ficando com elas delimitado o âmbito da discussão.[6]

Basta lê-la para se atentar os fundamentos da controvérsia, sendo que o alegado incumprimento do contrato de mútuo não era um deles.

Não enferma, pois, a sentença de qualquer nulidade.

III- DECISÃO

Por todo o exposto acorda-se em julgar a apelação totalmente improcedente e em manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 10 de Setembro de 2020

Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
_____________________________________________
[1] Relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa e consultável na Base de Dados do IGFEJ.
[2] Correspondente no novo CPC ao art.º 614º.
[3] Correspondente, no novo CPC, ao art.6º.
[4] Correspondente, no novo CPC, ao art. 726º
[5] Correspondente, no novo CPC, ao art.734º
[6] Assim, Acórdão do STJ de 5.3.2002.