Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2279/15.4T8EVR-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A legislação processual vigente permite deduzir um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida, ao abrigo da disciplina prevista no artigo 39º do Código de Processo Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 2279/15.4T8EVR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora – Juízo Central de Competência Cível de Évora – J3
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por “(…) (…) (Suva)” contra “(…) – Companhia de Seguros, SA, (…) e outros, a parte activa veio apresentar recurso da decisão que julgou verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial, absolvendo os Réus da instância.
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A sociedade "(…) (…)" demandou, a título principal, a sociedade "(…) – Companhia de Seguros, SA" e (…) e, a título subsidiário, a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), representada por 3 herdeiros, (…), (…), (…), (…), (...) e respectivas entidades seguradoras, pedindo que:
a) os Réus fossem condenados a pagar à Autora a quantia de € 157.688,45 (cento e cinquenta e sete mil seiscentos e oitenta e oito euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação.
b) bem como danos futuros nos quais a Autora venha a incorrer decorrentes do acidente objecto destes autos, e mais concretamente a condenação da Ré a indemnizar e reembolsar nos termos do artigo 495º do Código Civil todos os gastos desembolsados pela Autora em virtude do acidente, acrescidos dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
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Como fundamento do pedido, a parte activa alega que o senhor (…) foi vítima de um acidente de caça e que a sociedade Autora prestou assistência médica e medicamentosa ao sinistrado e foi forçado a suportar despesas relacionada com a incapacidade clínica por este sofrida.
A Autora indica que, na eventualidade de por falta de prova ser afastada a imputação com base na culpa, serão sempre os danos imputáveis a título de responsabilidade pelo risco.
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Devidamente citados, os Réus deduziram contestação, invocando quer as excepções de ineptidão da petição inicial[1] e de ilegitimidade[2] [3] [4], quer apresentando defesa por impugnação, negando a factualidade invocada[5] [6] [7] [8] [9] [10].
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Foi declarada extinta a instância contra os Réus subsidiários (…) e (…) e respectivas seguradoras, por desistência da instância (fls. 376-377).
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O Réu (…) pronunciou-se sobre a contestação junta pela “(…)” (fls. 497-499).
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Foi ordenada a apensação da acção registada sob o nº 2396/15.0T8EVR (fls. 570-574).
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Por despacho proferido a fls. 704 as partes foram convidadas a pronunciar-se sobre a eventual ineptidão da petição inicial.
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Responderam ao convite formulado (…) e (…) (fls. 707-708), (…) (fls. 712), “(…) Portugal – Companhia de Seguros, SA” (fls. 720-721), (…), (…) e (…) (fls. 725), “Companhia de Seguros (…), SA” (fls. 729-730), (…) (fls. 734), “(…) – Companhia de Seguros, SA” (fls. 738), “(…) Seguros Gerais, SA” (fls. 742) e, bem assim, a própria Autora (fls. 746-748).
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Por decisão datada de 22/01/2018, o Tribunal «a quo» decidiu «ser manifesta a inexistência de causa de pedir e de pedido quanto aos Réus principais, ao que acresce a ininteligibilidade e contradição da causa de pedir e o pedido formulado pela Autora, o que, nos termos sobreditos, gera a ineptidão da PI, conforme previsto als. a) e b), do nº 2, do artº 186º, do C.P. Civil e, consequentemente, a nulidade de todo o processo, nos termos previstos no nº 1, do mesmo preceito legal. (…)
Por todo o exposto, o Tribunal julga verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da PI e, em consequência, absolve os Réus da presente instância».
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e na peça de recurso apresentou as seguintes conclusões:
«1. Na nossa opinião, e depois de ler o presente sentença parece-nos que houve uma errada aplicação do CPC.
2. Houve figuras que o Tribunal Recorrido misturou.
3. O Tribunal recorrido não compreendeu a dedução de um (1) único pedido contra Réus principais e Réus subsidiários.
4. Esta situação está prevista na letra e no espírito do artigo 39º do CPC, que sublinhamos: Artigo 39º Pluralidade subjectiva subsidiária - " É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, (…) contra réu diverso do é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida".
5. Há situações dúbias e nem a Autora, nem o mandatário podem e devem "inventar" factos para imputar a responsabilidade a A, B ou C... antes aplicando o artigo 39º devem deduzir o pedido contra todos.
6. O Tribunal recorrido entendeu que o pedido da Autora era um pedido subsidiário.
7. Citamos:"
8. Dispõe, porém, o nº 1, do artigo 554º, do C.P. Civil que: «(…) Podem formular-se pedidos subsidiários. Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (…)».
9. Acrescenta o artº 5º, nº 1, do mesmo diploma legal, que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, o que exige que na petição inicial devam constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito. Isto é, o autor está obrigado à alegação e prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido e a formular um pedido em conformidade com tal pretensão.
10. De acordo com Alberto dos Reis, in "Comentário ao Código de Processo Civil", vol. 3º, págs. 137 e 138: "(…) nos pedidos subsidiários a alternativa é meramente formal, aparente; na realidade não há alternativa, porque falta a característica essencial da obrigação alternativa: a equivalência das prestações...
11. Outra diferença fundamental. Nos pedidos alternativos o réu tem a faculdade de escolher uma das prestações ou um dos pedidos; nos pedidos subsidiários não depende da vontade do réu a procedência duma ou doutra pretensão: o pedido subsidiário é formulado somente para a hipótese de o tribunal não acolher o pedido principal".
12. Ora, o pedido dos presentes autos consiste no seguinte: que após a produção de prova e a verificação dos danos o Tribunal condena os responsáveis a indemnizar a Autora.
13. No presente processo não há dois pedidos (principal e subsidiário), nem uma pluralidade de pedidos, nem qualquer relação de alternatividade e de subsidiariedade entre os pedidos.
14. Há um único pedido de indemnização.
15. Parece-nos, que o Tribunal recorrido confundiu partes subsidiárias com pedidos subsidiários.
16. O Tribunal recorrido fundamenta a ineptidão da petição inicial no não cumprimento das normas referentes a pedido subsidiário.
17. Com o maior respeito, parece-mos que o Tribunal errou ao aplicar o artigo nº 554º do CPC à situação dos autos.
18. De facto, por haver um único pedido e não existirem vários pedidos, não tinha a autora que cumprir o citado artigo, nem o mesmo era aplicável.
19. De facto a sentença recorrida insiste que o autor devia ter alegado factos referentes ao pedido principal RR principais e factos referentes ao pedido subsidiário RR subsidiários, bem como um silogismo ou nexo lógico entre os factos e os pedidos.
20. Citamos a sentença: "Analisado o alegado pela Autora, vejamos agora o pedido que esta formulou a fim de verificar desde logo, da sua existência e, bem assim, se o referido silogismo ou nexo lógico se evidencia".
21. Com maior respeito, parece-nos que o tribunal recorrido confundiu a figura jurídica dos réus subsidiários com a figura jurídica dos pedidos alternativos e subsidiários, exigindo autora que indicasse factos distintos para fundamentar pedidos distintos, artigo 554º ex vi 186º.
22. Como é bom de ver pelos exemplos acima indicados, na presente acção há um único pedido e uma pluralidade de réus, aplicando-se o artigo 39º do CPC.
Em suma, à situação dos autos aplica-se o artigo 39º do CPC e não o artigo 554º ex vi 186º, devendo prosseguir os autos com um único pedido contra uma pluralidade de RR.
Assim, deve ser dado provimento ao recurso sendo revogada a Sentença».
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Foram apresentadas contra-alegações em que se pugna pela manutenção do decidido.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência de um quadro de ineptidão da petição inicial.
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III – Matéria de facto:
A factualidade com interesse para a decisão da presente questão é aquela que consta do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
Nos termos do nº 4 do indicado artigo 581º do Código de Processo Civil a causa de pedir é definida como o facto jurídico de que o autor faz proceder o efeito pretendido.
É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial (artigo 186º, nº 1, do Código de Código Civil).
Nos termos do número do artigo acima transcrito, «diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis».
A ineptidão da petição inicial, embora seja uma excepção dilatória, gera a anulação de todo o processado. De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica[11].
A causa de pedir desdobra-se, analiticamente, em duas vertentes: a) uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota; b) uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1ª parte do artigo 664.º do CPC [a que corresponde o actual artigo 5º do NCPC]; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta[12].
Relativamente à falta de causa de pedir o vício em discussão apenas ocorre quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer[13].
A ineptidão da petição inicial fundada na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir poderá ocorrer, na visão de Remédio Marques[14], quando «o autor substancia e não identifica em concreto os factos que servem de fundamento ao pedido de condenação».
A ineptidão ocorre quando não pode saber-se «qual a causa de pedir, ou, por outras palavras, qual o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido»[15].
Alberto dos Reis sublinha ainda que «o que interessa, no ponto de vista da apresentação da causa de pedir, é que o acto ou facto de que o autor quere derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição»[16], adiantando ainda que «a petição pode ser redundante e difusa, pode conter factos e razões de direito impertinentes e desnecessários para o conhecimento da acção, sem que isso resvale na ineptidão»[17].
Quanto à ininteligibilidade, escreve Rodrigues Bastos «é necessário, porém, ter sempre presente que não é a obscuridade, a imperfeição ou equivocidade da indicação do pedido ou da causa de pedir que aquele preceito (al. a) do artigo 193º)[18] contempla, como bem se vê da redacção do nº 3 do mesmo artigo»[19].
Em sentido idêntico se pronuncia Abílio Neto que avaliza a tese que só a omissão total do pedido ou da causa de pedir ou a sua formulação em termos de tal modo obscuros que não se compreenda qual a tutela jurídica pretendida pelo autor ou o facto jurídico em que alicerça o pedido, que não a mera imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, constitui vício gerador de ineptidão[20].
A jurisprudência nacional afirma consensualmente que a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa petendi apenas sobrevém quando os factos sejam expostos de modo tal, que seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o núcleo e sentido essencial da causa de pedir[21].
De acordo com o ensino de Anselmo de Castro para que «a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, nº 2, al. a)[22] – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento»[23].
Da conjugação dos contributos atrás assinalados pode formar-se a ideia que a petição é inepta por ininteligibilidade quando os factos e a conclusão são nela expostos em termos de tal modo confusos, obscuros ou ambíguos que não possa apreender-se qual é a causa de pedir.
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É consensual a nível jurisprudencial e doutrinário que é por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada.
No caso de acidentes surgidos no exercício da prática de actividade venatória, a causa de pedir é complexa, integrada não só pelo evento naturalístico e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados.
Cabe assim na modalidade de ilicitude a que se reporta o nº 1 do artigo 483º do Código Civil – violação (mediata) de direito subjectivo alheio – a que resulta da inobservância dos denominados deveres de prevenção do perigo de dano, como são os deveres impostos a quem lida com armas[24].
Para além da responsabilidade civil baseada por factos ilícitos presente no artigo 483º do Código Civil, no domínio do exercício da actividade venatória, a Lei da Caça (Lei nº173/99, de 21/09), no nº 1 do artigo 37º[25] da Lei 173/99, de 21/09, estabelece a aplicabilidade da disciplina presente no nº 2 do artigo 493º[26] do Código Civil[27] [28].
Efectivamente, seguindo de perto jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, em acção de indemnização fundada num acidente de caça, a questão de responsabilidade civil extracontratual (delitual ou aquiliana) ajuizada resolve-se com referência ao nº 1 dos artigos 342º, 483º e 487º e, em último termo, ao nº 2 do artigo 493º, quando a alegada conduta culposa do demandado por violação dos deveres mínimos de cuidado que se impõem a quem faz uso desportivo de arma de fogo, tal não se prove, operando nesse caso a presunção de culpa estabelecida no preceito mencionado em último lugar, se não infirmada pela prova produzida[29]. E também é dogmaticamente admissível a integração do direito no domínio da responsabilidade pelo risco.
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Na situação concreta, a sociedade Autora invoca que, no dia 12 de Dezembro de 2012, na “Zona de Caça Turística da Quinta dos (…)”, no exercício da actividade venatória, quando estava integrado num grupo de 6 (seis) caçadores, a vítima (…) foi atingido por um tiro proveniente da arma de (…). No entanto, caso se entenda que assim não foi, a responsabilidade deve ser imputada a qualquer um dos outros caçadores que exerciam naquele momento a actividade venatória, por ser possível que qualquer um deles tivesse atingido o lesado.
Em abono desta tese, a parte activa transporta para a petição inicial elementos que permitem ao decisor optar sucessivamente pela existência de um quadro susceptível de ser integrado na responsabilidade por facto ilícito precipitada no artigo 483º do Código Civil, na responsabilidade presumida presente no artigo 493º do mesmo diploma e, por último, no instituto da responsabilidade pelo risco regulada no artigo 499º do Código Civil.
Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o Tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu[30].
Esquematicamente e por ordem sucessiva, a pretensão da parte activa pode ser reconstituída nos seguintes termos:
1) A responsabilidade pelo acidente e a ocorrência dos danos descritos pertence a (…), por ter sido o autor do tiro que atingiu a vítima (e, por força, do contrato de seguro à “… – Companhia de Seguros, SA”), a título de culpa, ainda que a mesma possa ser presumida por se tratar de uma actividade considerada perigosa.
2) Caso não exista este quadro de culpa, se se demonstrar que o autor do disparo é o (…), a reparação do dano deve ser conseguida à custa do património deste e da respectiva seguradora, a título de risco.
3) Caso não se demonstre que o (…) foi o autor do disparo, a responsabilidade pelo acidente ocorrido deve ser atribuída a qualquer um dos outros caçadores ali presentes, caso se demonstre que algum deles proferiu o disparo causador dos danos (e às seguradoras para quem foi transferida a responsabilidade civil dos caçadores por força do seguro de responsabilidade civil celebrado entre os outorgantes), sucessivamente a título de culpa ou de risco, nos termos já avançados em 1) e 2).
4) Paralelamente, com base noutra fonte de responsabilização, a Autora pretende a responsabilização civil do organizador da caçada, no caso a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…).
Com base nisto, o Juízo Central do Tribunal da Comarca de Évora entendeu que existia uma situação de ininteligibilidade e de contradição da causa de pedir com o pedido formulado pela Autora. Todavia, como já vimos, a causa de pedir em causa admite que a pretensão seja deferida com base em institutos de responsabilidade civil alternativos (culpa, culpa presumida ou risco).
Em adição, na decisão recorrida é dito que «relativamente ao Réu demandado a título principal, a Autora não descreveu os factos constitutivos do direito de que se arroga, na certeza de que uma coisa são as percepções da direcção do disparo ou até a assunção da sua autoria num primeiro momento e a sua posterior negação, outra, bem distinta, são os factos objectivos imputados ao agente dos quais se possam inferir todos os pressupostos em que assenta a responsabilidade que se lhe imputa, os quais, neste caso, não foram alegados».
Porém, mesmo que não fosse de forma expressa, é absolutamente claro e transparente que a parte activa imputa a este primeiro Réu a deflagração do tiro. E o mesmo se pode dizer da responsabilidade subsidiária dos restantes Réus[31], porquanto, a ideia base da petição inicial é que, caso não se demonstre que o réu principal foi o autor do disparo, o evento terá de se repercutir na esfera de imputação dos outros intervenientes que se dedicavam ao exercício da actividade venatória.
Na defesa da posição tomada, o decisor «a quo» faz apelo à disciplina do pedido subsidiário presente no artigo 554º[32] do Código de Processo Civil. Contudo, é indiscutível que não se está perante um cenário de pedido subsidiário. A pretensão é objectivamente una, unitária e singular e apenas existe uma pluralidade subjectiva subsidiária admitida pelo artigo 39º[33] do Código de Processo Civil.
A legislação processual permite deduzir um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida.
Há litisconsórcio subsidiário quando o mesmo pedido é deduzido por ou contra uma parte a título principal e por ou contra outra a título subsidiário. Na opinião de Remédio Marques «trata-se de situações em que, por um lado, (1) o credor da pretensão ignora, sem culpa, a que título ou em que qualidade o devedor interveio no acto ou no facto que serve de causa de pedir; e, por outro, de eventualidades em que o (2) o credor da pretensão ignora se é titular activo dela ou se é o único titular activo»[34].
Um acidente de caça em que é desconhecido o responsável pela autoria de um tiro causador da produção de danos configura um exemplo clássico e paradigmático de uma indefinição do titular passivo da relação material controvertida, por desconhecimento, sem culpa do credor, da identidade do lesante.
A este respeito, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre afiançam que «na base do litisconsórcio subsidiário pode estar a necessidade de apurar quem disparou o tiro ou atropelou o autor (dúvida sobre factos, se o autor ou o réu principal interveio em certo contrato em nome próprio ou em nome alheio (dúvida sobre factos ou sobre a interpretação da norma aplicável) ou se a cessão de crédito do autor principal em data em que ainda não se constituíra»[35].
Em remate final, é lícito concluir que a causa de pedir apresentada contém a factualidade essencial ao nível do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil (evento, ilicitude, culpa, prejuízo e nexo de causalidade). Em adição, o direito interno possibilita o recurso a fontes distintas da responsabilidade civil extracontratual relativamente aos caçadores que participaram no exercício da actividade venatória e respectivas seguradoras. E, por último, a indefinição sobre o titular activo ou passivo da relação material controvertida está salvaguardada no ordenamento jurídico nacional através do recurso ao mecanismo processual previsto no artigo 39º do Código de Processo Civil. Tudo isto, como é óbvio, sem prejuízo da efectiva imputação concreta do comportamento delitual a qualquer dos demandados, pois esta é a premissa que, para lá da descrição factual, permite julgar procedente a acção.
Sem conceder, até porque não constitui o objecto do recurso em apreciação, aquilo que poderá existir é uma deficiente ou incompleta descrição da factualidade de suporte e não a ausência ou a contradição da causa de pedir no confronto com o pedido formulado ou outro qualquer vício do mesmo tipo.
Todavia, neste parâmetro, é de ter em atenção a disciplina inscrita no artigo 5º[36] do Código de Processo Civil, que actualmente apenas exige que sejam alegados os factos essenciais[37] e, se assim fosse, a eventual incompletude ou imperfeição dos articulados seria susceptível de ser aperfeiçoada ao abrigo da disciplina presente na al. b) do nºs 2 e 4 do artigo 590º[38] do Código de Processo Civil.
Deste modo, em conclusão, existe motivo para julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos para efeito de gestão inicial do processo de harmonia com as diversas modalidades admissíveis nos artigos 590º e seguintes do Código de Processo Civil.
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V – Sumário:
1 – É por referência aos factos, independentemente da qualificação jurídica que deles hajam feito as partes, que haverá de indagar-se da concordância prática entre tais factos, enquanto causa de pedir, e a concreta pretensão jurídica formulada.
2 – A legislação processual vigente permite deduzir um mesmo pedido por autor ou contra réu diverso do que aquele que demanda ou é demandado a título principal, nos casos em que exista dúvida fundada sobre os sujeitos que são titulares da relação material controvertida, ao abrigo da disciplina prevista no artigo 39º do Código de Processo Civil.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos nos termos referidos nos artigos 590º e seguintes do Código de Processo Civil.
Custas a cargo dos recorridos que apresentaram contra-alegações, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 07/06/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário

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[1] Contestação formulada por (…) – fls. 68-72.
[2] Contestação deduzida por (…) e (…) – fls. 130-137.
[3] Contestação apresentada por (…) – fls. 332-341.
[4] Contestação de (…) incorporada a fls. 353-362.
[5] Contestações subscritas pela “(…) – Companhia de Seguros, SA” – fls. 81-86 e 481-484.
[6] Contestação firmada por (…), (…) e (…) – fls. 170-184.
[7] Contestação na defesa dos interesses de (…) – fls. 193-200.
[8] A fls. 387-389 está incorporada a contestação da “(…) Seguros Gerais, SA”.
[9] Está presente a fls. 429-433 a contestação da “… Portugal, Companhia de Seguros, SA” (actualmente denominada “… Portugal – Companhia de Seguros, SA”). [10] As contestações da “Companhia de Seguros …, SA” estão presentes a fls. 504-522 e 597-615.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a teoria do Processo Declarativo, 1980, págs. 158.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2010, in www.dgsi.pt.
[13] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/1974, BMJ, 235-310, de 26/02/1992, in www.dgsi.pt e do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/06/1985, in BMJ 348-479 e de 01/10/1991, in BMJ 410-893.
[14] Acção Declarativa à luz do Código revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 276.
[15] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pág. 309.
[16] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 371.
[17] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 369.
[18] A que corresponde o actual artigo 186º do Novo Código de Processo Civil.
[19] Notas ao Código Processo Civil, vol. I, pág. 253.
[20] Breves Notas ao Código de Processo Civil, 2005, pág. 61.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/06/2009, in www.dgsi.pt.
[22] A que corresponde o actual artigo 186º do Novo Código de Processo Civil.
[23] Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 221.
[24] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2016, in www.dgsi.pt.
[25] Artigo 37º (Responsabilidade civil):
1 - É aplicável aos danos causados no exercício da caça o disposto no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil.
2 - As entidades gestoras de zonas de caça, de instalações de espécies cinegéticas em cativeiro ou de campos de treino são obrigadas a indemnizar os danos que o exercício daquelas actividades cause nos respectivos terrenos e terrenos vizinhos.
3 - O disposto no número anterior aplica-se, com as devidas adaptações, às zonas de não caça.
[26] Artigo 493º (Danos causados por coisas, animais ou actividades):
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
[27] A este respeito, a propósito do ressarcimento de danos no exercício de actividade perigosa, assume pertinência a consulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2013, que aponta que «nos termos do artigo 493º do Código Civil, parece ser estabelecida a um nível mais objetivo do que o que resulta das disposições anteriores, uma vez que, além de não se prever a elisão da responsabilidade com a demonstração da relevância negativa da causa virtual, parece-se exigir ainda a demonstração de um grau de diligência superior à das disposições anteriores, uma vez que em lugar de simples prova da ausência de culpa (apreciada nos termos do artigo 487º, nº 2) o legislador exige a demonstração de que o agente “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir” os danos, o que parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa».
[28] Menezes Leitão, em Direito de Obrigações, volume I, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 324-325, quando refere que a responsabilização de quem causar danos no exercício de uma actividade perigosa «parece ser estabelecida a um nível mais objetivo do que o que resulta das disposições anteriores, uma vez que, além de não se prever a elisão da responsabilidade com a demonstração da relevância negativa da causa virtual, parece-se exigir ainda a demonstração de um grau de diligência superior à das disposições anteriores, uma vez que em lugar de simples prova da ausência de culpa (apreciada nos termos do artigo 487º, nº 2) o legislador exige a demonstração de que o agente “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, o que parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa».
[29] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/09/2006, disponível em www.dgsi.pt.
[30] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2017, in www.dgsi.pt.
[31] O Tribunal de Primeira Instância afirma que «se assim é quanto aos primeiros Réus, relativamente aos Réus demandados a título subsidiário, limita-se a autora a formular juízos conclusivos, como são bons exemplos. «(…) o acidente deu-se por falta de organização e porque alguém disparou de forma inadvertida e irresponsável (…) o organizador da caçada não cumpriu a tramitação regular e com esta atitude violou dolosa, culposa e ilicitamente normas das Leis da caça destinadas a proteger os interesses de terceiros (…), na organização da caça não foram tomadas os devidos cuidados (…) alguém deu um tiro ao sinistrado (…), má organização da caçada, mau alinhamento dos caçadores (…)», para logo depois referir «(…) caso não se apure quem deu o tiro, o que terá acontecido no processo crime, deverão todos os RR ser condenados solidariamente (…)», assumindo, de seguida, que «(…) De facto, há dúvidas sobre quem, como e de que maneira atirou, sendo que foi decerto um caçador desatento, que sabia que este procedimento era proibido, tendo com esta conduta causado o acidente em causa (…)».
[32] Artigo 554º (Pedidos subsidiários):
1 - Podem formular-se pedidos subsidiários. Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior.
2 - A oposição entre os pedidos não impede que sejam deduzidos nos termos do número anterior; mas obstam a isso as circunstâncias que impedem a coligação de autores e réus.
[33] Artigo 39º [a que correspondia o artigo 31-Bº do CPC de 1961] (Pluralidade subjectiva subsidiária):
É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida.
[34] Acção Declarativa à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 240.
[35] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 90.
[36] Artigo 5º (Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal):
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
[37] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 14, adiantam que cabe «às partes alegar os factos principais (“essenciais”) da causa, isto é, todos aqueles sem os quais a acção ou a excepção não pode proceder (nº 1; arts. 62-b, 552-1-d, 572-c, 574-1); se os efectivamente alegados ficarem além do acervo desses factos, os que faltem para completar esse acervo podem resultar da instrução da causa e integrarão a matéria de facto do processo se alguma das partes nele pretender ainda introduzi-los».
[38] Artigo 590º (Gestão inicial do processo):
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.