Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | EDGAR VALENTE | ||
| Descritores: | ABERTURA DE INSTRUÇÃO REJEIÇÃO POR INADMISSIBILIDADE LEGAL OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO | ||
| Data do Acordão: | 11/25/2025 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | A ação livre e consciente e o conhecimento da proibição e punição da conduta pela lei são elementos de facto que não preenchem o elemento volitivo do dolo, em qualquer das modalidades acima mencionadas. Esse elemento não pode deduzir-se de outros nem preencher-se de forma meramente implícita: é preciso descrevê-lo com precisão. Falhando a narração de um dos elementos essenciais à estrutura subjetiva típica do crime em causa, ou seja, concretamente, os factos que integram o elemento volitivo do dolo, ao não descrever tais factos não pode deixar de concluir-se pela inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. No Juízo de Instrução Criminal de …(J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 56/23.8GDABT, no qual, mediante despacho judicial, foi decidido não admitir o requerimento para abertura da instrução1 apresentado pela assistente AA, por inadmissibilidade legal. Inconformada com essa decisão, recorreu tal assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição): “1 - Foi a Assistente, aqui Recorrente, notificada do arquivamento dos autos. Inconformada requereu a abertura de instrução com os fundamentos aí indicados. Concluindo no sentido de que deveria a final ser “o Arguido BB pronunciado nos termos acima requeridos”. Veio o douto Tribunal “a quo” a indeferir liminarmente o requerimento de abertura de instrução, em suma, por entender que o mesmo incumpria os requisitos legais de admissibilidade. 2 - Nos termos do disposto no artigo 287.º do CPP o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado (n.º 3 do citado preceito legal): “(3 - O requerimento só pode ser rejeitado) por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.” 3 - O douto despacho ora recorrido rejeita o requerimento para abertura de instrução por “inadmissibilidade legal”. 4 - Dispõe o artigo 287.º do CPP no seu número 1 que “1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (…) b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.” E, adiante no seu n.º 2 refere que: “2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.” (sublinhado nosso). 5 - O requerimento para abertura de instrução deve conter (artigo 283.º, n.º 3 als. b) e d): “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;” e “d) A indicação das disposições legais aplicáveis.” 6 - O requerimento apresentado cumpriu os requisitos devidos porque, relativamente ao disposto no artigo 287.º do CPP, ainda que cumpridos os deveres aí descritos, são apenas deveres e não há qualquer sanção para a omissão destes que não seja a dificuldade de entendimento do pedido e causa. Relativamente ao disposto no artigo 283.º do CPP parece-nos que não restam dúvidas que além de ter indicado as disposições legais aplicáveis, os factos foram descritos, de forma sintética e havendo indícios dos mesmos deveria vir a ser proferido douto despacho de pronúncia do Arguido pelos factos que a Recorrente indicou no seu Requerimento para abertura de instrução e que se transcreveu supra. 7 - O Tribunal “a quo” não ajuizou de forma adequada a questão, e mal andou ao indeferir liminarmente o requerimento da Assistente, aqui Recorrente, o que fundamenta o presente recurso. 8 - Inexistindo, porque não existem motivos para o indeferimento do requerimento de abertura de instrução (acolhidas que sejam as razões e fundamentos aqui expostos) deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos do processo, sendo feita a costumada Justiça.” Pugnando, em síntese, pelo seguinte: “NESTES TERMOS (…) deve o douto despacho ora recorrido ser revogada e substituído por outro que declare aberta a instrução, seguindo-se os ulteriores termos do processo.” Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição): “1 - A questão suscitada pela ora recorrente, cinge-se a saber se o RAI que apresentou está estruturado de acordo com as exigências legais aplicáveis à acusação, em obediência ao disposto no n.º 2, do artigo 287.º, do Código Processo Penal, nomeadamente por conter a narração dos elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensa à integridade física, p.p. pelo artº 143º, nº 1, do Código Penal; 2 - Entende a recorrente que o RAI contém a narração sintética dos factos e as disposições legais aplicáveis, sem, no entanto, dizer quais os factos cuja narração preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito que imputa ao arguido; 3 - E não o faz pela simples razão de não existir tal narração, porquanto a mesma se cinge à seguinte descrição: “BB (…) alcançando a requerente, desferiu-lhe duas bofetadas de mão aberta na face direita da requerente.”. 4 - O RAI não contém qualquer narração referente ao resultado que a conduta do arguido teve para a ofendida, limitando-se a referir que “A requerente deslocou-se ao hospital na sequência da agressão.”; 5 - Considerando que o crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, a descrição do mesmo deve abranger um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, exigindo, ainda que se faça uma “imputação objetiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais.”; 6 - É certo que a nível jurisprudencial, não existe uniformidade de decisões, existindo jurisprudência que considerada suficiente para preenchimento do tipo objetivo de ofensa à integridade física simples, a simples descrição da conduta do agente e outra que exige a descrição do resultado, como é o caso do Ac. TRPorto de 04.05.2022 e existindo jurisprudência que defende que o tipo objetivo do crime de ofensa à integridade física só fica preenchido com a verificação do resultado; 7 - Quanto a nós, tendemos a concordar com a posição do TRCoimbra em tudo semelhante à posição sufragada pelo Mmo Juiz do Tribunal “ a quo”. 8 - Com efeito, tratando-se de um crime material e de dano, a acusação deve conter a narração da conduta bem como o resultado da mesma. 9 - Já ao nível do tipo subjetivo, o crime de ofensa à integridade física exige o dolo em qualquer das suas modalidades de direto, necessário ou eventual. 10 - Ora, o RAI da recorrente descreve o dolo da seguinte forma: “o comportamento do arguido veio na sequência de discussão com a requerente, tendo este agido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”, numa narrativa que nos parece ser demasiado vaga e genérica; 11 - Não nos parece que tal alegação descreva o elemento cognitivo (ou intelectual) e volitivo do dolo, ainda que se refira que o arguido agiu “de forma livre e consciente”. 12 - Com efeito, o RAI não menciona que o arguido representou as circunstâncias de facto que integram o elemento objetivo do tipo, omitindo, igualmente que o arguido, representou aquela factualidade, atuando com a vontade de a realizar. 13 - Segundo se refere, entre outros, no Ac. TRÉvora de 05.12.2023 “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes dessa natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)”; 14 - É que, uma coisa é a descrição do dolo e outra, distinta, é a descrição de elementos atinentes à consciência da ilicitude (“sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” ou expressão equivalente); 15 - Porém, previa à consciência da ilicitude está o dolo uma vez que “ a consciência da ilicitude não faz parte do dolo, tal como o mesmo se prevê no artº 14º do Cód. Penal, onde se referem apenas os elementos cognitivo (saber) e volitivo (querer) do mesmo”; 16 - Nos termos do disposto no nº 3 do artº 287º do CPPenal, o RAI apenas pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução, cabendo nesta última causa “a situação em que a instrução é requerida pelo assistente, como impugnação de despacho de arquivamento do inquérito, quando o RAI não contém a narração dos factos atribuídos ao arguido e respetiva incriminação (…)” 17 - Conforme se referiu, o RAI é omisso quanto a descrição do resultado causado pela conduta do arguido bem como a “imputação objetiva desse resultado à conduta”, sendo, ainda, omisso a descrição do mesmo deve abranger um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, exigindo, ainda que se faça uma “imputação objetiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais.”; 18 - Pelo que bem andou o Mmo Juiz do Tribunal “a quo” em rejeitar o RAI da ora recorrente.” Pugnando, em síntese: “Termos em que, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.” A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que não deve o recurso obter provimento. Procedeu-se a exame preliminar. Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal2, sem resposta. Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “Vem a assistente, requerer a abertura da instrução. No entanto, como se verá, o seu requerimento não contém todos os elementos de facto necessários para ser apto à abertura desta fase processual. Resulta do teor do artigo 287º, n.º 2, do CPP que o requerimento de abertura da instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve conter as menções previstas no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo código. Por outras palavras, deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”. Conforme tem vindo a ser unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência, esta exigência corresponde à materialização de um imperativo constitucional, sendo uma decorrência da estrutura acusatória do processo prevista no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa. Isto porque o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter os seus elementos essenciais acima discriminados, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 138-147. De resto, como se extrai do artigo 309º, n.º 1, “a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução.”. Daqui se extrai a relevância desta peça processual no âmbito da fase equiparada, portanto à acusação do MºPº. É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objetivo e subjetivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido. Vem-se entendendo assim que a falta de enunciação de factos suficientes para integrar o tipo objetivo e subjetivo de crime no RAI do assistente configura uma causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por “inadmissibilidade legal” desta fase, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do CPP [Neste sentido, entre muitos outros, cfr. Ac. da Rel. do Porto de 14-07-2010, proc. n.º 579/08.9GDVFR-A.P1; Ac. da Rel. do Porto de 20-01-2010, proc. n.º 361/08.3PAPVZ.P1; Ac. da Rel. de Évora de 19-03-2013, proc. n.º 590/11.2TDEVR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt] Noto que na minha experiência como Juiz de Instrução Criminal (que já vai sendo larga) cada vez mais me frustra a inabilidade demonstrada por uma parte substancial dos I. causídicos que se apresentam a requerer a abertura de instrução por assistentes para narrar factos como se de uma acusação se tratasse. Seguramente tais Advogados já viram inúmeras acusações por magistrados do MºPº em toda uma série de crimes e bastaria utilizar as mesmas como guia para alegar os factos necessários. De igual modo as normas do código penal e o recurso aos conhecimentos “de escola” sobre a dogmática penal também bastariam para o efeito. Atentando no teor do RAI, no segmento em que respeita à imputação dos factos ao arguido, devemos, pois, ter em conta o que aí vem alegado e confrontar tais alegações com as disposições incriminadoras em causa, nomeadamente com o artigo 143º, n.º 1, do Código Penal, que prevê o crime de ofensa à integridade física simples. Tal norma define este crime como a conduta de “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa…”. Já ao nível subjetivo estamos perante um crime doloso, devendo verifica-se o dolo, nos seus elementos cognitivo, volitivo e emocional. O dolo está previsto no artigo 14º, do Código Penal, que tem a seguinte redação: (…) Nos crimes de resultado, o dolo deve não só abranger a conduta (ativa ou omissiva) do arguido mas também o próprio resultado, no caso a ofensa ao corpo ou saúde de terceiro. No RAI apenas se refere que o arguido “desferiu(…) duas bofetadas de mão aberta na face direita da Requerente.” e que “o comportamento do Arguido veio na sequência de discussão com a Requerente, tendo este agido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”. Nota-se assim que não é narrativamente descrito: - o resultado da conduta do arguido para a ofendida/assistente (se teve dores ou outras lesões); - se o arguido agiu deliberada/voluntariamente (elemento volitivo do dolo quanto à ação); - se o arguido: i. quis e conseguiu causar dores e/ou lesões na ofendida (dolo direto); ii. sabia que a sua conduta causaria necessariamente tais dores e/ou lesões na ofendida e ainda assim quis praticá-la (dolo necessário); ou iii. sabia que tal conduta poderia causar na ofendida dores e/ou lesões a agiu indiferente a este resultado com o qual se conformou (dolo eventual). Só destes modos poderia ser alegado o dolo do arguido (nos seus elementos cognitivo e volitivo) quanto ao resultado previsto no tipo de crime. Aderindo pois aqui à formulação adotada no AUJ 1/2015 [publicado no DR, I SÉRIE, Nº 18, 27 DE JANEIRO DE 2015, P. 582 - 597], diremos que tal como a acusação, o RAI do assistente deve conter os “…elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.”. Notamos que nada na lei exige que o elemento subjetivo do tipo de crime seja alegado recorrendo às expressões tabelares vulgarmente utilizadas [Cfr. Ac. da Rel. de Évora de 07-05-2013 proc. n.º 124/11.9 GAGLG.E1, in www.dgsi.pt], mas deve ser alegado, por ser elemento essencial do tipo de crime. A lei não faz qualquer distinção entre os factos objetivos e subjetivos do tipo de crime, quando exige a sua narração nestas peças processuais, nem faz qualquer distinção entre o RAI e a acusação, antes mandando aplicar ao RAI do assistente a norma do artigo 283º, n.º 3, als. b) e c), aplicável à acusação. Não existem assim, na formulação de um libelo acusatório, “factos implícitos”, nem é exigível ao arguido que “leia nas entrelinhas” da acusação para detetar aquilo que nela é omisso. Entendemos pois que a falta de alegação expressa do elemento subjetivo do tipo legal de crime no RAI do assistente, implica a rejeição dessa peça processual e a não realização da fase da instrução que se tornaria vazia de conteúdo pois só por via de um despacho ferido de nulidade se poderia pronunciar o arguido [Neste sentido cfr. entre outros Ac. da Rel. do Porto de 6-6-2012, proc. n.º 414/09.0PAMAI-B.P1, Ac. da Rel. do Porto de 03-02-2010, proc. n.º 7/08.0TAMUR.P1, Ac. da Rel. de Évora de 20-09-2011, proc. n.º 704/09.2GDSTB-A.E1, Ac. da Rel. de Coimbra de 22-05-2013, proc. n.º 22/10.3TACBR.C1.].” 2 - Fundamentação. A. Delimitação do objecto do recurso. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso. A questão única a decidir no presente recurso reside na verificação ou não de fundamento legal de rejeição do RAI. B. Decidindo. Segundo a recorrente, “os factos foram descritos, de forma sintética […] havendo indícios dos mesmos”. Vejamos. Atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.°, ou seja, o RAI deve conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. Consta do RAI (transcrição, na parte que interessa à decisão aqui a proferir): “[…] b) Dos factos 9.º No dia e hora dos factos, a Requerente encontrava-se em casa com o seu marido – CC – quando ouviu um ruído no exterior. 10.º Nessa altura foi à janela e deparou-se com o Denunciado/arguido BB e com DD, tendo entre os 3 sido iniciada uma discussão. 11.º Na sequência da discussão, o Arguido BB subiu a um muro e depois a um tanque adjacente à casa e alcançando a Requerente, desferiu-lhe duas bofetadas de mão aberta na face direita da Requerente. 12.º A Requerente deslocou-se ao hospital na sequência da agressão. […] 24.º Por outro lado, o comportamento do Arguido veio na sequência de discussão com a Requerente, tendo este agido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, praticando os factos em autoria material e na forma consumada. […].” O objecto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa3 que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, na indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal4 que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respetivo objeto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz. Na decisão recorrida afirma-se que no RAI não é narrativamente descrito (i) o resultado da conduta do arguido para a ofendida/assistente (se teve dores ou outras lesões); (ii) se o arguido agiu deliberada/voluntariamente (elemento volitivo do dolo quanto à ação); (iii) se o arguido: i. quis e conseguiu causar dores e/ou lesões na ofendida (dolo direto); ii. sabia que a sua conduta causaria necessariamente tais dores e/ou lesões na ofendida e ainda assim quis praticá-la (dolo necessário); ou iii. sabia que tal conduta poderia causar na ofendida dores e/ou lesões a agiu indiferente a este resultado com o qual se conformou (dolo eventual). Quanto à necessidade de descrição do resultado da conduta do arguido para a assistente, entendemos que ainda mantém atualidade o assento do STJ de 28/11/19915, onde se decidiu que integra o crime do art.º 143.º do C. Penal “a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, de lesão ou incapacidade para o trabalho”, pois o tipo abarca “não apenas as lesões com marca exterior como as que têm a ver tão só com a saúde (…), não se podendo olvidar “as consequências psíquicas que certas lesões do corpo ou da saúde acarretam necessariamente, e o abalo psicológico de certa gravidade como lesão da saúde.”6 No entanto, mesmo que se pudesse prescindir da descrição do concreto do resultado da conduta do arguido para a assistente, ainda assim, até na economia do mencionado assento, importava que tivesse sido efetuada no RAI a descrição dos elementos intelectual (conhecimento de todas as circunstâncias de facto – e de direito – que constituem o tipo de ilícito objetivo) e volitivo (podendo assumir as três modalidades vertidas no art.º 14.º do C. Penal, ou seja, o dolo direto, necessário e eventual) do dolo, ou seja, o conhecimento e vontade de realização da ação típica.7 A ação livre e consciente e o conhecimento da proibição e punição da conduta pela lei são elementos de facto que não preenchem o elemento volitivo do dolo, em qualquer das modalidades acima mencionadas. Esse elemento não pode deduzir-se de outros nem preencher-se de forma meramente implícita: é preciso descrevê-lo com precisão. Considerando o disposto no art.º 283.º8, constitui menção obrigatória do RAI a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Como também se menciona na decisão recorrida, não está, assim, descrito no RAI um elemento estruturalmente integrante do crime imputado. Recorde-se que o “princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.”9 É indiscutível que o RAI deve conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal imputado. A recorrente persiste, nesta sede, em afirmar que os factos alegados constituem o crime que pretende ver imputado ao arguido. Porém, como vimos, falha a narração de um dos elementos essenciais à estrutura subjetiva típica do crime em causa, ou seja, concretamente, os factos que integram o elemento volitivo do dolo. Consequentemente, “[o] não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais. Com diversas nuances, o RAI do assistente que não narra os factos é rejeitado por inadmissibilidade legal.10” Assim, entendemos que no despacho recorrido se efetuou uma correta interpretação do art.º 287.º, n.º 2, improcedendo a pretensão recursória da assistente. 3 - Dispositivo. Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais) (Processado em computador e revisto pelo relator) Évora, 25/11/2025 Edgar Valente (relator) Manuel Soares (1.º adjunto, com declaração de voto infra)) Mafalda Sequinho dos Santos (2.º adjunta) “Declaração de voto Votei vencido, essencialmente pelas seguintes razões: A alegação da existência de lesões em resultado de bofetadas não é necessária para preencher o tipo legal. Concordo, por isso, com o sentido do acórdão, que afastou este fundamento de rejeição da acusação. Contudo, não estou de acordo quanto à rejeição da acusação por omissão de uma alegação como: “agiu deliberadamente”. A lei impõe que a acusação narre a sequência dos acontecimentos históricos da ação humana em que se traduziu o crime imputado, sem que existam fórmulas pré-determinadas obrigatórias e sem que tenha de ser uma peça processual tecnicamente exemplar. É verdade que, por mimetismo e facilitação, as acusações recorrem a modelos tradicionais de narração dos factos, repetindo as mesmas frases para imputar o dolo, muitas vezes independentemente dos contornos do caso. Mas daí não resulta que seja razoável impor que a acusação se contenha dentro de apertados formalismos, que não têm substância nem, na verdade, muitas vezes, sequer autonomia probatória. Se a narração dos factos estiver redigida de forma a permitir a transmissão do respetivo conteúdo de maneira percetível para o recetor e operativa para os fins a que se destina, a acusação é viável para ser submetida a julgamento. Ora, quando se afirma que o arguido, «desferiu-lhe duas bofetadas na face» a seguir a uma discussão e que agiu «de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», isso só pode significar que se imputa ao arguido uma atuação intencional. Nenhum destinatário lê aquilo de outra maneira. Uma ação livre é necessariamente voluntária. Quem desfere duas bofetadas livremente, desfere-as intencionalmente. Desferir bofetadas significa aplicar golpes com a mão na cara com intenção. Se fosse uma ação involuntária (por qualquer razão que a narração dos factos nem consente) não seria descrita com a palavra “desferir”, que seria incompatível, mas sim com as palavras “tocar”, “acertar” ou outra semelhante. Pondo à prova as consequências da tese que fez vencimento, seria rejeitada, por exemplo, uma acusação por crime de homicídio em que o Ministério Público alegasse que o arguido desferiu duas facadas no peito da vítima de forma livre e consciente, quando, na minha opinião, a expressão “desferir livremente duas facadas” contem em si mesma a alegação de uma atuação intencional. E mesmo que, no limite, se considerasse que a acusação é nula por falta daquele elemento, penso que seria então caso para que a mesma fosse mandada aperfeiçoar – ver a propósito desta possibilidade o acórdão TRE, de 10fev2009, no processo 17/07.4GBORQ.E1, em www.dgsi.pt. Manuel Soares” .............................................................................................................. 1 Doravante RAI. 2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa. 3 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objeto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”. 4 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP. 5 DR I Série-A, de 08/02/1992. 6 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Código Penal Anotado, Parte Especial, II volume, 2023, 5.ª edição, Rei dos Livros, páginas 214 e 215. 7 Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, páginas 159 e 160. 8 Artigo 283.º Acusação pelo Ministério Público 1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele. 2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…) 9 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 2007, 4.ª edição, página 522. 10 Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris, 2020, página 639, que faz um historial da evolução histórica do entendimento doutrinário e jurisprudencial do conceito, remetendo-se para a numerosa jurisprudência aí referida no apontado sentido. |