Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | CARLOS BERGUETE COELHO | ||
| Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL | ||
| Data do Acordão: | 10/18/2018 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSOS PENAIS | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDOS | ||
| Sumário: | I – A intervenção em processo penal como assistente está sujeita a despacho judicial, que a admita, não se adquirindo, quer através do requerimento para o efeito, quer mediante a alegação de que se intervém nessa qualidade. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1. RELATÓRIO Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, que correu termos no Juízo Local Criminal de Tomar do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BC, imputando-lhe a prática, em autoria material: de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, alínea b), e 148.º, n.º 1, ambos do Código Penal (CP), ex vi arts. 3.º, alíneas c) e f), 11.º e 34.º do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07; de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2, do CP; de uma contraordenação, por falta de licença válida, p. e p. pelos arts. 3.º, alíneas c) e f), 5.º, n.ºs 1 e 2, 6.º, n.º 1, 6.º-A, n.º 1, e 38.º, n.º 1, alínea a), todos do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07 e Portaria n.º 422/2004, de 24.04; de uma contraordenação, por falta de seguro de responsabilidade civil válido, p. e p. pelos arts. 3.º, alíneas c) e f), 10.º e 38.º, n.º 1, alínea b), todos do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07 e Portaria n.º 422/2004, de 24.04; e de uma contraordenação, por falta de vacina antirrábica válida, p. e p. pelo art. 14.º, n.º 3, alínea a), do Dec. Lei n.º 314/2003, de 17.12; mais requerendo a aplicação da pena acessória de privação do direito de detenção de cães perigosos ou potencialmente perigosos, ao abrigo do art. 30.º-A, n.º 1, alínea b), do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07 e Portaria n.º 422/2004, de 24.04. A ofendida CL deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e contra ECC, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 1.136,20, sendo € 336,20, a título de indemnização por danos patrimoniais e € 800,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal em vigor desde a notificação e até efectivo e integral pagamento. Esse pedido de indemnização civil foi admitido. O arguido apresentou contestação, pugnando pela sua absolvição, quer da acusação, quer do pedido cível. Realizado o julgamento e proferida sentença, decidiu-se: a) absolver o arguido da prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200.º, n.ºs 1 e 2, do CP; b) condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos arts. 15.º, alínea b), e 148.º, n.º 1, ambos do CP, ex vi arts. 3.º, alíneas c) e f), 11.º e 34.º do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros), perfazendo o montante de 400€; c) julgar parcialmente procedente o pedido civil deduzido e, em consequência, condenar o arguido no pagamento à demandante da quantia de 186,20€ (cento e oitenta e seis euros e vinte cêntimos), a título de danos patrimoniais e de 800€ (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-se o arguido do restante peticionado e a demandada ECC de todo o pedido; d) condenar o arguido pela prática de uma contraordenação, por falta de licença válida, p. e p. pelos arts. 3.º, alíneas c) e f), 5.º, n.ºs 1 e 2, 6.º, n.º 1, 6.º-A, n.º 1, e 38.º, n.º 1, alínea a), todos do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07 e Portaria n.º 422/2004, de 24.04, na coima de 750€ (setecentos e cinquenta euros); e) condenar o arguido pela prática de uma contraordenação, por falta de seguro de responsabilidade civil válido, p. e p. pelos arts. 3.º, alíneas c) e f), 10.º e 38.º, n.º 1, alínea b), todos do Dec. Lei n.º 315/2009, de 29.10, alterado pela Lei n.º 46/2013, de 04.07 e Portaria n.º 422/2004, de 24.04, na coima de 750€ (setecentos e cinquenta euros); f ) condenar o arguido pela prática de uma contraordenação, por falta de vacina antirrábica válida, p. e p. pelo art. 14.º, n.º 3, alínea a), do Dec. Lei n.º 314/2003, de 17.12, na coima de 50€ (cinquenta e uros); g) procedendo ao cúmulo jurídico das coimas, condenar o arguido na coima única de 800€ (oitocentos euros). Inconformado com despacho que admitiu o pedido de indemnização civil, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões: I - A ofendida CL foi notificada do Douto Despacho de Acusação nos presentes autos em 24 de Março de 2017, data da prova de depósito da carta, considerando-se pois a mesma notificada no quinto dia seguinte, ou seja, em 29 de Março de 2017 (artº. 113º. nº. 3 do C.P.P.); II - Foi-lhe então dado o prazo de vinte dias, enquanto ofendida, para deduzir, querendo, pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artº. 77º. nº. 2 do C.P.P (não obstante a mesma não ter, até aí, vindo manifestar sequer a sua intenção de vir a deduzir pedido de indemnização civil nos autos); III - Em 24 de Abril de 2017, por via de dois requerimentos independentes, a mesma ofendida veio aos autos dizer que pretendia vir a deduzir pedido de indemnização civil e requerer a sua constituição como assistente (juntando procuração e comprovativo da concessão de Apoio Judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo), num dos requerimentos, e deduzir o pedido de indemnização civil, no outro; IV - Em todo o articulado do pedido, refere-se a si própria como "assistente", assumindo tal estatuto, o que, como bem descreve o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/06/2015, proferido no Processo nº. 868/11.5TABJA.E1, acessível em www.dgsi.com. (o pedido de constituição de assistente) tem efeito imediato no prazo, desde que a parte reúna todos os requisitos para adquirir tal condição, como aqui acontecia. V - Ora, quando adquire o estatuto de assistente, o ofendido aceita o Processo no estado em que se encontrar – artº. 68º. nº. 3 do C.P.P. -, inclusivamente os prazos que, quanto a si, tenham já decorrido - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Junho de 2012, disponível na Anotação nº. 24 ao artº. 68º. do C.P.P. no site da PGDL: "1. O assistente pode participar nos actos processuais que decorram após ter sido admitido a intervir nos autos, não lhe sendo lícito questionar os actos anteriores à sua intervenção. É esse o sentido útil do segmento do nº. 3, do artº. 68º., do Código de Processo Penal, na parte em que dispõe que «os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar (...)»". VI - Estando devidamente representada por advogada e tendo junto o documento de concessão de Apoio Judiciário, a assistente não podia ignorar que o prazo de dez dias previsto nos artºs. 77º. nº. 1 e 284º. nº. 1 do C.P.P. já havia decorrido, aceitando esse facto; VI - O Tribunal recorrido fez tábua rasa do disposto nestes dois artigos, ou seja, admitiu o pedido formulado em 24 de Abril, quando já há muito haviam decorrido os dez dias para a assistente deduzir o pedido, que terminaram em 18 de Abril, pelo que o mesmo é extemporâneo, VII - E o Douto Despacho, que é ilegal por violação do disposto nos artºs. 68º. nº. 3, 49º., 284º. nº. 1 e 77º. nº. 1 do C.P.P., deve pois ser revogado e substituído por outro, em que se declare que não se admite o pedido de indemnização civil formulado pela assistente, por o mesmo ser extemporâneo, pelo que precludiu, nos termos legais. Por seu lado, inconformado com a sentença, interpôs recurso, extraindo as conclusões: 1-Ao condenar o recorrente pela prática de um crime de ofensa à integridade fisica por negligência, a meritissima Juiz a quo violou os arts. 15º al.b) e 148º n.1 CP ex.vi arts. 3ºal.c e f) e 34º do Dec-Lei 315/2009 alterado pela Lei 46/2013 de 4 de Julho, a contrario, porquanto condenou o recorrente sem estarem provados e consequentemente preenchidos factos que consubstanciem os elementos objectivos e subjectivos do crime. 2-Mesmo que assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocinio se concede, foi violado o princípio básico em Direito Penal do in dubio pro reo consagrado no art. 32º CRP. 3-Deve em consequência ser o recorrente absolvido da decisão em que foi condenado no pedido de indemnização cível por danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo nessa medida, e dada a falta de fundamento da condenação, desrespeitado o insito no art. 377ºCPP. Termos em que deve o presente recurso ser procedente e o recorrente absolvido, assim se fazendo, Justiça! Os recursos foram admitidos. A ofendida, entretanto admitida a intervir como assistente, apresentou resposta a ambos os recursos, concluindo: - relativamente ao recurso do despacho: a) A Ofendida CL foi notificada do Douto Despacho de Acusação nos presentes Autos em 24 de Março de 2017, data da prova de depósito da carta, considerando-se a mesma notificada no 5.º dia seguinte, ou seja, no dia 29 de Março. b) A Lei concede-lhe 20 dias, enquanto Ofendida, para deduzir, querendo, pedido de indemnização cível, que foi, 're vera, o que fez. c) Todavia, decidiu, também, nesta altura, constituir-se Assistente, sendo que para tal, dispõe do prazo constante do Art.º 68.º, n.º 3, alínea a), do mesmo Diploma Legal. d) Estamos assim em crer, salvo Douto e melhor entendimento, que não é ilegal como o Recorrente alega, o Douto Despacho do Tribunal 'a quo que admitiu o pedido de indemnização cível a 22.05.2017 e admitiu a intervenção processual de CL na qualidade de Assistente nos Autos em causa a 21.06.2017. Assim, por todo o explanado antes, deve por a decisão do Tribunal 'a quo ser mantida, admitindo quer o pedido de indemnização cível, quer a admissão de intervenção nos Autos como Assistente, por os mesmos terem sido apresentados tempestivamente, fazendo-se assim, a tão acostumada JUSTIÇA. - quanto ao recurso da sentença: 1. O Arguido / Recorrente sabia que por ser possuidor de cão raça potencialmente perigosa, está legalmente obrigado a uma série de deveres que, em consciência e livre vontade negligenciou. 2. Como é já detetor de registo criminal com diversos averbamentos e a Lei nem sequer autoriza a deter animais desta natureza pessoas com averbamentos no C.RC., ao ir registar a cadela "Rottweiler" na Junta de Freguesia, ser-lhe ia pedido cópia do C.R.C. para os devidos efeitos e, ser-lhe-ia comunicada a não autorização de detenção de tal animal, razão pela qual, nossa dedução, nunca o fez. 3. Não podia desconhecer, também, as restrições que recaem sobre estes animais (raças potencialmente perigosas), nomeadamente, no que concerne ao dever de vigilância e modo de circulação destes em espaços públicos, como era o caso, tornando impossíveis potenciais ataques e lesões provocadas por estes a pessoas e outros animais. 4. De facto ao permitir que a sua cadela, de raça potencialmente perigosa, passível de poder atacar qualquer pessoa ou outro animal que estivesse naquele espaço público (muito procurado para lazer e pratica de desporto), circulasse sozinha, sem qualquer sistema de segurança (açaimo e/ou trela curta - como a Lei prevê), o Recorrente agiu sem qualquer cuidado, zelo, ou sequer respeito pelos demais, quando estava obrigado a tal, para evitar o sucedido, sendo que o deveria ter previsto. 5. O Recorrente sabia ainda que tinha o dever de vigiar a sua cadela (por muito treinada que alegasse estar), e, não o tendo feito, demitiu-se dos mais elementares deveres de precaução, prudência e vigilância que lhe era exigidos. 6. Da factualidade provada resulta 'mui claramente que o Recorrente detinha o canídeo raça considerada potencialmente perigosa, em situação de flagrante violação das regras plasmadas no Decreto- Lei n.º 315/2009, de 29.10; o Decreto Lei 276/01, de 17.10; o Decreto-Lei 312/2003, 17.12. 7. Sendo que, somos a concluir que a Douta Sentença recorrida fez apreciação correcta e segundo aquela que foi a sua convicção da prova suficiente para a matéria de facto dada como provada. 8. Dessa prova produzida não resulta qualquer dúvida séria e razoável que devesse ser apreciada a favor do Arguido/Recorrente passível de aplicação do Princípio 'In Dubio Pro Reo. 9. Os factos dados como provados e de acordo com a Motivação que levou à condenação do Arguido/Recorrente não poderia ter outro desfecho este Processo que não resultasse na condenação deste nos termos exactos e, que o foi. Assim, Termos em que deve, pois, ser negado provimento a Recurso apresentado pelo Arguido/Recorrente, mantendo-se a Douta Sentença recorrida nos seus precisos termos e preceitos, como é da mais elementar JUSTIÇA. O Ministério Público apresentou resposta, no que concerne ao recurso da sentença, concluindo: - a douta sentença recorrida fez correcta apreciação da prova produzida mostrando essa prova suficiente para a matéria de facto dada como provada. - da prova produzida não resulta qualquer dúvida séria e razoável que tenha que ser apreciada a favor do arguido/recorrente por aplicação do princípio in dubio pro reo. - os factos dados como provados integram a prática pelo ora recorrente do crime de ofensa à integridade física simples por negligência pelo qual foi condenado. Deve, pois, ser negado provimento ao recurso e manter-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos. Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso da sentença. Foi observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP) e nada foi apresentado. Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO O objecto de cada recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação respectiva, de harmonia com o art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995, Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48, e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321. Assim, delimitando-o, reside em apreciar: - quanto ao recurso do despacho: da alegada intempestividade do pedido de indemnização civil deduzido; - acerca do recurso da sentença: da impugnação da matéria de facto e eventuais consequências. Apreciando: - recurso do despacho: Com interesse para a questão colocada, resulta dos autos: No auto de denúncia dos factos, consignou-se que a lesada refere que pretende ser indemnizada pelas suas despesas, tendo sido notificada nos termos dos arts. 75.º, 76.º e 77.º do CPP (fls. 2 e 3). Inquirida, no inquérito, a lesada, CL, declarou que deseja ser ressarcida das despesas que teve (fls. 68 e verso). Encerrado o inquérito e formulada acusação, o Ministério Público determinou se notificasse a ofendida, nos termos do artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, para, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias (fls. 141). Essa notificação ocorreu em 24.03.2017, conforme prova de depósito de fls. 153 verso, pelo que se considera efectuada no 5.º dia posterior a essa data (art. 113.º, n.º 3, do CPP), ou seja, em 29.03.2017. Em 24.04.2017, a ofendida apresentou o pedido de indemnização civil contra o aqui recorrente (fls. 166 a 174). Nessa mesma data, requereu a sua constituição como assistente, juntando procuração forense e deferimento de dispensa de taxa de justiça (fls. 194 a 197). Observado o n.º 4 do art. 68.º do CPP, admitiu-se a requerida intervenção como assistente (fls. 205). Por despacho anterior, de fls. 200, decidiu-se: Por ser admissível, estar em tempo, ter legitimidade para o efeito e encontrar-se a demandante representada por advogada, admite-se o pedido cível formulado. É contra este despacho, porque admitiu esse pedido, que o recorrente se insurge. Vejamos. O recorrente invoca que a ofendida, no articulado que apresentou, refere-se a si própria como assistente, por isso que aceita o Processo no estado em que se encontrar, inclusivamente os prazos que quanto a si, tenham já decorrido e, assim, que não podia ignorar que o prazo de dez dias previsto nos artºs. 77º. nº. 1 e 284º. nº. 1 do C.P.P já havia decorrido. Preconiza, pois, que, aquando da apresentação do pedido de indemnização civil (em 24.04.2017), o prazo de vinte dias para o qual fora notificada terminava nessa data, mas, na sua perspectiva, o prazo aplicável à situação era de dez dias e até 18.04.2017, concluindo pela extemporaneidade do mesmo pedido. Ora, não se suscita dúvida que à ofendida assistia o direito de deduzir pedido de indemnização civil fundado na prática dos factos relativamente aos quais foi formulada acusação (arts. 71.º e 74.º, n.º 1, do CPP), aliás, na sequência de notificação para o efeito (art. 75.º, n.º 1, do CPP) e em sintonia com o que já declarara quando inquirida no inquérito. Até ao momento em que apresentou o pedido, a ofendida, não obstante pudesse ter-se constituído como assistente (art. 68.º, n.º 1, do CPP), não o fez, sendo que, como o recorrente reconhece, e bem, os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram atempadamente (n.º 3 do mesmo preceito legal), o que, relativamente à ofendida, se mostra ter sucedido. O sentido útil do n.º 3 do art. 68.º reconduz-se a que lhe não é lícito questionar os actos anteriores a essa intervenção (sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.06.2012, no proc. n.º 375/10.3TAACB-A.C1, in www.dgsi.pt, citado pelo recorrente). E essa intervenção está sujeita a despacho judicial, que a admita (n.º 4 do mesmo art. 68.º), não se adquirindo, quer através do requerimento para o efeito, quer mediante a alegação de que se intervém nessa qualidade. Isto para dizer que a circunstância da ofendida, no pedido de indemnização que deduziu, ter mencionado que o fazia na qualidade de Assistente e Ofendida nos Autos (fls. 166), não poder significar que, nesse momento, já detinha essa posição de assistente, contrariamente ao que o recorrente aparentemente vem defender, como se as referidas qualidades não se distinguissem. Se bem que esse reparo atinja, também, a ofendida, pela forma como se expressou, afigura-se que não impõe diferente interpretação e, até, se compreende em razão de que apresentou esse pedido na mesma data em que formulou o pedido de intervenção como assistente. De qualquer modo, é manifesto que, tendo em conta o processado, nunca o prazo em causa para dedução do pedido caberia no n.º 1 do art. 77.º do CPP (Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada), sendo certo que, no caso, não se está perante crime de natureza particular, a que fosse aplicável o disposto nos arts. 246.º, n.º 4, e 285.º, n.º 1, CPP. Na circunstância, a ofendida, como lesada, deduziu o pedido, e no prazo de 20 dias a contar da notificação que lhe foi efectuada para os efeitos do n.º 2 desse art. 77.º (O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias), não se descortinando, pois, que não tenha sido respeitado o prazo legal. Aliás, note-se, ainda que alguma dúvida se suscitasse, o que não se aceita, sempre haveria de atentar em que a ofendida foi notificada como se referiu e, de acordo com a implícita lealdade de que se devem revestir os actos processuais, não implicaria, antes pelo contrário, que outro fosse o entendimento. O recorrente não apresenta, de modo algum, argumentação que pudesse proceder, sendo que a referência ao acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 16.06.2015, no proc. n.º 868/11.5TABJA.E1, in www.dgsi.pt, tratou questão diversa da que ficou analisada. Basta constatar o seu sumário: Deve entender-se que requereu, ainda que implicitamente, a sua constituição como assistente o queixoso, com obrigatoriedade de se constituir como assistente que, no decurso do prazo estabelecido para a prática de ato processual previsto no artigo 285º do C. P. Penal, deduziu acusação particular, e, não tendo embora pedido no mesmo, formal e expressamente, a sua constituição como assistente, invocou nele, sempre, esse estatuto, e juntou prova documental que havia pago a taxa de justiça devida, encontrando-se devidamente representado por advogado, assim demonstrando, portanto, que reunia todos os requisitos de que dependia a sua admissão nessa qualidade. Na verdade, se bem que se tivesse, ali, considerado como implícito o pedido de intervenção como assistente, e em caso de crime de natureza particular, para concluir que foi respeitado o prazo e para o efeito de não ficar precludido o direito a essa intervenção, a situação aqui tratada não se assemelha. Claramente, nenhuma razão assiste ao recorrente. O despacho de admissão do pedido não merece, pois, censura. - recurso da sentença: Suscitada impugnação da matéria de facto, importa constatar o que ficou consignado na sentença ao nível dessa matéria. Consta, então, da sentença recorrida: Factos provados: Encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa: 1. O arguido BC é detentor de um canídeo de grande porte, de raça: "Rottweiler", fêmea, nascida a 04-12-2013, cor preto afogueado, pelagem curta e lisa, possuidor de identificação eletrónica n.º 900026000205533. 2. O referido animal vive na residência do arguido, sita na Rua Dr…., Madalena, nesta cidade de Tomar. 3. No dia 14 de Agosto de 2016, pelas 09h e 15m, na Mata Nacional dos Sete Montes, sita na Praceta Infante D. Henrique, nesta cidade de Tomar, o arguido soltou a referida "Rottweiler", deixando-a em liberdade, sem trela e sem açaimo. 4. A dado momento, a referida "Rottweiler" correu na direção da ofendida CL que também se encontrava no local a passear o seu cão de pequeno porte. 5. Por temer que a referida "Rottweiler" agredisse o seu cão, a ofendida agarrou-o e ficou com o mesmo ao colo. 6. A referida "Rottweiler" começou a correr em volta da ofendida, dando saltos na direção do cão desta. 7. A dado momento, a zona do antebraço esquerdo da ofendida foi atingida pelos dentes da referida "Rottweiler". 8. A ofendida teve necessidade de receber assistência médica no Hospital de Tomar, tendo levado três pontos na zona atingida. 9. Como consequência direta e necessária da actuação da referida "Rottweiler", resultaram para a ofendida, para além de dor física na zona atingida, lesões no membro superior esquerdo, mais concretamente: ferida com crosta cicatricial pelo terço superior da face posterior do antebraço, discretamente oblíqua ínfero medialmente medindo 6 mm X 2 mm; ferida com crosta cicatricial e vestígios de 3 pontos, sensivelmente transversal, pelo terço médio da porção medial da face anterior medindo 17x0,2 mm, vestígio cicatricial milimétrico ligeiramente inferior e lateral à primeira sequela descrita; vestígio cicatricial pelo terço inferior da face posterior do antebraço sensivelmente transversal medindo 2 mm; vestígio com crosta cicatricial pelo terço médio da face postero medial 0,7x0,3mm; encontrando-se rodeadas por halo equimótico esverdeado, as quais lhe demandaram 15 dias para a cura, com 15 dias de afetação da capacidade de trabalho geral e 15 dias de afetação da capacidade de trabalho profissional, sem consequências permanentes, excepto cicatrizes que não desfiguram de maneira grave a ofendida. 10. Ao permitir que a referida "Rottweiler" circulasse sozinha no referido local, sem açaimo, trela ou qualquer vigilância, o arguido agiu sem os cuidados que devia e podia ter adoptado para evitar aquele resultado, que igualmente podia e devia prever, mas que não previu, sabendo que o referido canídeo é de raça potencialmente perigosa e que por isso poderia desferir agressões em qualquer pessoa que circulasse no referido local. 11. Mais sabia o arguido que tinha o dever de vigiar a referida "Rottweiler". 12. O arguido ao atuar do modo como atuou, demitiu-se dos mais elementares deveres de precaução, prudência e vigilância exigíveis a quem é detentor de canídeos, inobservando as cautelas de vigilância que se lhe impunham para evitar que o referido canídeo atacasse quem circulasse no referido local público, possibilitando, dessa forma, que lhes pudessem ser provocadas lesões, como efetivamente ocorreram. 13. Na data dos factos, o arguido não possuía um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados pela aludida "Rottweiler", nem era possuidor de licença válida emitida pela Junta de Freguesia da sua área de residência que o autorize a detê-la. 14. Para além disso, a aludida "Rottweiler" apresentava a vacinação antirrábica com o lote L394858, administrada a 10-05-2014, com validade de um ano, caducada. 15. O arguido bem sabia que sendo detentor da "Rottweiler" supra mencionada e não sendo titular de licença válida emitida pela Junta de Freguesia da sua área de residência, agia contra o direito, o que representou mentalmente e quis realizar. 16. Mais sabia que ao agir da forma descrita e não possuir um seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir os danos causados pela aludida "Rottweiler", agia contra o direito, o que representou mentalmente e quis realizar. 17. Mais sabia que a aludida "Rottweiler" apresentava a vacinação antirrábica caducada, sendo por isso inválida e que dessa forma agia contra o direito, o que representou mentalmente e quis realizar. 18. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Do pedido cível, provou-se, com interesse para a decisão, que: 19. A demandante teve de recorrer à urgência do Hospital de Tomar, a fim de receber tratamento, pagando o valor de 15,20€ (quinze euros e vinte cêntimos). 20. Teve, ainda, que comprar medicamentos que lhe foram prescritos no episódio de urgência, no valor de 8,23€ (oito euros e vinte e três cêntimos). 21. Teve que fazer penso quatro vezes, tenho pago, por cada um, o valor de 1,20€ (um euro e vinte cêntimos) e ir a uma consulta, para controlo do estado da ferida, pelo que pagou 4,50€ (quatro euros e cinquenta cêntimos). 22. Nessa consulta, o médico de família entendeu necessário pedir consulta de psicologia para a demandante, tendo feito duas consultas, cada uma no valor de 20€ (vinte euros). 23. Esteve sete dias de baixa médica, tendo recebido, de subsídio de doença, o valor de 38,64€ (trinta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos). 24. A demandante aufere salário no valor de 652,03€ (seiscentos e cinquenta e dois euros e três cêntimos) mensais, correspondente a 21,73€ (vinte e um euros e setenta e três cêntimos) diários. 25. Finda a baixa médica, a demandante regressou ao trabalho mas não conseguiu efectuar as tarefas laborais, ficando a assegurar tarefas menores. 26. Deixou de conseguir passear os seus cães, devido às dores no braço. 27. Sofreu, ainda, desfiguração da tatuagem que tem no ante-braço esquerdo. 28. A demandante passou a ter receio de animais de grande porte. 29. A demandante é voluntária na APAT (Associação Protectora dos Animais de Tomar) e deixou de lá ir prestar ajuda durante algum tempo. 30. Por receio e insegurança deixou de passear os cães no espaço público. 31. Passou noites sobressaltada e teve de tomar medicação para dormir. 32. Ver a tatuagem do antebraço desfigurada causou-lhe tristeza e revolta. Da discussão da causa, mais se provou, com interesse para a decisão, que: 33. O agregado familiar de BC é constituído pela esposa de 34 anos e pela filha do casal de 18 meses. 34. O referido agregado reside num imóvel sito na periferia de Tomar que reúne adequadas condições de habitabilidade. 35. A habitação é propriedade da família de BC, nomeadamente da irmã, não representando qualquer encargo para o arguido à excepção da água, luz e gás. 36. A esposa é Técnica Oficial de Contas, mas actualmente encontra-se em situação de desemprego, pelo que o enquadramento socioeconómico do agregado é essencialmente consubstanciado pela reforma por invalidez do arguido que ronda os €280. 37. Neste contexto, os familiares têm prestado um grande apoio a nível económico, nomeadamente os sogros que residem em Lisboa, localidade onde se deslocam com regularidade. 38. A nível do percurso escolar, o arguido abandonou os estudos após concluir o 9º ano de escolaridade para ingressar no contexto laboral. 39. Desenvolveu diversas actividades na área da construção civil, na empresa do pai, tendo de um modo geral, registado desempenhos satisfatórios. 40. Após o cumprimento do serviço militar a sua situação laboral estabilizou, enveredando pela área da segurança. 41. Ficou impossibilitado de manter a sua atividade profissional devido a um problema de saúde que implicou a sua reforma por invalidez que ocorreu há 4 anos. 42. Por sentença proferida em 23.11.2011, transitada em julgado no dia 31.01.2012, proferida no âmbito do processo comum singular n.º --/09.7PBCTB, que correu termos no extinto 3.º juízo do Tribunal de Castelo Branco, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de um crime de introdução em lugar vedado ao público na pena de 115 dias de multa à taxa diária de 6€. 43. Por sentença proferida em 21.11.2014, transitada em julgado no dia 05.01.2015, proferida no âmbito do processo comum singular n.º --/14.0PBTMR, que correu termos no juízo local criminal e Tomar, o arguido foi condenado pela prática de dois crimes ofensa à integridade física simples na pena de quatro meses de prisão, suspensa pelo período de um ano, com regime de prova. Factos não provados: Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa, designadamente que: I. A referida "Rottweiler" mordeu o corpo da ofendida, na zona do antebraço esquerdo. II. Cerca de três minutos depois, o arguido surgiu junto da ofendida, verificou que esta apresentava ferimentos no antebraço e não lhe prestou qualquer ajuda, nem providenciou pela sua obtenção. III. O arguido abandou o local juntamente com a referida "Rottweiler". IV. Apesar de ser notório a qualquer cidadão médio e comum, como o foi ao arguido, que a ofendida na sequência da agressão de que foi vítima necessitaria de cuidados médicos urgentes, o arguido desinteressou-se da ofendida, que assim se encontrava devido ao comportamento do arguido, abandonando o local, sem prestar socorro, sem providenciar pelo chamamento de auxílio médico ou verificar se alguém o fazia, deixando a ofendida entregue à sua sorte, o que quis. V. O arguido, não obstante saber que a ofendida tinha sofrido ferimentos no antebraço, que a sua integridade física estava em perigo e que necessitaria de socorro médico, o que era notório para qualquer cidadão médio, quis e conseguiu deixar, contudo, a ofendida sem ajuda, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-a abandonada à sua sorte, abandonando o local indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda. VI. A recuperação da tatuagem da demandante, que ficou danificada, fica em pelo menos 150€ (cento e cinquenta euros). Motivação: O Tribunal firmou a sua convicção quanto à matéria de facto com base no teor das próprias declarações do arguido e da assistente, no depoimento da testemunha PC, agente da PSP, nos esclarecimentos do sr. perito veterinário e nos documentos juntos aos autos, tudo conjugado com as regras da lógica e da experiência comum. Com efeito, o próprio arguido assumiu o descrito de 1 a 5, que foi confirmado pela assistente, as duas únicas pessoas presentes. Quanto aos pontos 6 e 7, divergem as versões, sendo que a assistente afirma o que consta dos factos provados, dizendo, o arguido, por seu lado, que foi o próprio cão da assistente que a terá mordido. Ora, não obstante algum "empolamento" da gravidade dos factos por parte da assistente, esta versão do arguido não logrou colher a credibilidade do Tribunal, desde logo por não ser de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. De facto, pese embora o sr. perito veterinário não tenha podido concluir, com segurança, qual dos canídeos causou as lesões verificadas no corpo da assistente (relatório médico veterinário de fls. 108 e esclarecimentos prestados em audiência), o que é facto é que, tendo a assistente pegado no seu cão ao colo - "como se de um bébé se tratasse" - ou seja, com a cabeça no ombro da assistente, que tinha o antebraço por baixo, a ampará-lo, e de costas para a cadela do arguido (como também confirma o próprio arguido), não era possível ter mordido no local em que as lesões se verificaram. Acresce que as declarações da assistente - e como se disse desvalorizando o "exagero" quanto à gravidade dos factos (decorrente, julgamos, do susto que terá sofrido) - no que respeita ao modo como a cadela do arguido atingiu o seu braço, acabam por ser coincidentes com as lesões verificadas e confirmadas pelos relatórios de exame pericial de avaliação de dano corporal de fls. 21/22 e 27/28. Ora, assim, resulta não ser de atribuir qualquer credibilidade à versão apresentada pelo arguido, que pelos motivos expostos, não é de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, pelo que não foram valoradas, confirmando-se, antes a versão da assistente. Os pontos 8, 9, 19 a 24 resultam do relatório médico-legal e dos documentos juntos pela assistente, que o comprovam. Os factos 10 a 12 e 18, por serem subjectivos, resultam dos restantes factos provados. O vertido de 13 a 17 decorre da própria confissão do arguido, que assumiu não ter regularizado a situação por dificuldades económicas e desconhecimento dos prazos de revalidação. O estado emocional da assistente decorre das suas próprias declarações e do depoimento das testemunhas BV e TV, padrasto e mãe da assistente, que com esta acompanharam após os factos e com esta convivem e depuseram de forma credível e objectiva. Quanto às condições económicas e sociais do arguido, levou-se em conta o teor das suas próprias declarações, que se consideraram merecedoras de crédito, assim como o relatório social elaborado pela DGRSP. A comprovação dos antecedentes criminais do arguido resulta do teor do certificado de registo criminal, junto aos autos. Os factos não provados resultam da ausência de prova, já que a própria ofendida negou os mesmos, o que foi corroborado pelo arguido e pela testemunha agente da PSP. Sobre o valor da recuperação da tatuagem, nenhuma prova foi feita. * Analisando: Constituindo princípio geral que as relações conhecem de facto, nos termos do art. 428.º do CPP, a impugnação da matéria de facto, independentemente da susceptibilidade de sindicância, aliás, oficiosa, de vícios da decisão (art. 410.º, n.º 2, do CPP), tem de obedecer às condições exigidas pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O cumprimento das mesmas reputa-se como perfeitamente justificado e para a finalidade visada, de modificação nesse âmbito (art. 431.º, alínea b), do CPP). Tanto mais quando, como é sabido, o recurso em matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas apenas um remédio para os erros de julgamento, através da reapreciação da prova, que não se destina, porém, a limitar (ou arredar) o princípio da livre apreciação consagrado no art. 127.º do CPP, nem pode suprir a imediação e a oralidade de que o tribunal que julgou dispôs. Como acentuou Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo (…) Assim, ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória. A interpretação do adequado cumprimento dessas legais exigências ficou bem reflectida no acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03, publicado in D.R. I Série, de 18.04.2012, cuja fundamentação é esclarecedora. Em concreto, o recorrente não levou às conclusões do recurso essas impostas indicações, apesar de, na fundamentação que apresentou, se reportar a factos provados e passagens da prova, com menção à localização destas no suporte de gravação, ainda que sem especificá-las relativamente a cada um desses factos, invocando que não se fez prova bastante. A situação aconselhava a que o recorrente fosse convidado a completar essas conclusões, ao abrigo do art. 417.º, n.º 3, do CPP. Contudo, dada a pouca extensão da motivação e a sua inteligibilidade quanto ao pretendido, prescindiu-se desse convite, afigurando-se, então, apreciar a impugnação dentro dos limites consentidos pela mesma. Assim, os factos alegadamente incorrectamente julgados são os que se deram como provados em 4 a 7 e as provas convocadas para os infirmar são passagens das declarações do recorrente, da assistente e do perito NP e do depoimento de PC. Procedeu-se à audição integral dessa prova. Ora, relativamente ao provado em 4 e 5, não se descortina, pela prova convocada, que outra pudesse ser a versão apurada, a qual, conforme motivado pelo tribunal, se estribou, aliás, quer nas declarações do recorrente, quer nas declarações da assistente, consonantes nesse âmbito. Acresce que as passagens trazidas ao recurso em nada infirmam esses factos e, bem pelo contrário, estão em sintonia com a circunstância de que, na situação, a assistente se viu, efectivamente, confrontada com a possibilidade que se lhe deparou de que o animal detido pelo recorrente atingisse o seu cão de pequeno porte, que protegeu, em atitude que transparece como normal perante animal de raça potencialmente perigosa. Quanto ao provado em 6, apoiou-se nas declarações da assistente, que denotou afirmar com certeza que a “Rottweiler” correu e saltou, visando o cão daquela, o que não tem nada de estranho em sede de regras da experiência, ainda que tratando-se, reconhecidamente, de animal de dimensão e peso consideráveis. Neste aspecto, o declarado pelo recorrente (embora aqui não invocado no recurso) afigurou-se despojado de credibilidade, uma vez que pretendeu transmitir a ideia de que, perante esse peso (referindo cerca de 50 quilogramas), a cadela não poderia ter saltado, o que não se aceita, se bem que se admita que não se trate propriamente de animal com essa propensão, mas, de todo o modo, normalmente capaz de saltar, por maioria de razão, quando no encalço de outro animal e em situação em que o mesmo estava a ser protegido. A propósito do provado em 7, o recorrente, nas suas declarações, reconduziu-se a dizer que as lesões da assistente teriam sido provocadas pelo cão desta, no que designou de um “esgatafunhar”, quando estava ao colo, tendente às “arranhadelas” detectadas. Não obstante, ainda, as explicações que pretendeu salientar, relativamente ao tipo de mordedura própria de uma “Rottweiler”, que necessariamente redundaria em diferentes lesões, de diversa gravidade, não apresentou concreto substrato que lograsse alicerçar, minimamente, essa visão de mero afastamento da sua cadela relativamente ao desenrolar da situação, fosse para atingir a assistente, fosse para atingir o cão desta. Note-se que não se provou que a “Rottweiler” mordeu a ofendida (facto não provado em I) e, afinal, o apurado no facto provado em causa apoiou-se, não só nas declarações da assistente, como também nos esclarecimentos de NP (perito veterinário), sendo que este admitiu plenamente a hipótese das lesões terem decorrido de um “raspar” dos dentes da cadela, mesmo que tivesse afastado, como sucedeu, a existência de lesões compatíveis com uma mordedura. Deste modo, contrariamente ao alegado, esses esclarecimentos foram devidamente valorados, apesar de, como o tribunal sublinhou, o sr. perito veterinário não tenha podido concluir, com segurança, qual dos canídeos causou as lesões, mas, ainda, assim, não tendo excluído que tivesse sido a “Rottweiler” e, por isso, permitindo que se enveredasse por afastar a possibilidade, como também o tribunal motivou, de ter sido o cão da ofendida o causador das mesmas. Ainda, se é certo que, nesse âmbito, o tribunal a afastou relativamente a ter mordido no local em que as lesões se verificaram, o que não excluiria eventual acção de raspar, designadamente, com as unhas, não é menos verdade que, analisadas as declarações da assistente, a que se junta o exame pericial, acabam por sustentar que essas feridas perfurantes, embora de pequena monta, mas, ainda assim, com necessidade de sujeição a suturação, se harmonizem não apenas com esse “raspar” de cão de pequeno porte, mas sim com a acção dada por provada. Por seu lado, as referências de NP, bem como de PC (agente da PSP), à circunstância da cadela não ter denotado comportamento agressivo, consubstanciam opinião sobre o que lhes foi dado observar já depois da ocorrência dos factos e, assim, sem interesse para a análise em vista. As reservas trazidas pelo recorrente para a alegada incerteza sobre a acção da “Rottweiler” não têm suporte bastante para infirmar a convicção do tribunal; esta baseou-se no conjunto da prova produzida e examinada, fundada em juízo lógico e coerente, que se conteve nos limites legais da valoração probatória e respeitou as regras da experiência e normalidade. E se assim acontece relativamente aos factos impugnados, o mesmo se diga quanto aos restantes, mormente, os que reflectiram a acção negligente do recorrente, por não ter efectuado a imposta vigilância ao animal, deixando-o em liberdade, sem trela e sem açaimo, indiferente ao perigo que isso comportava, dadas as características da raça, que bem conhecia. Não se aceita, pois, perante a prova, que se devesse ter enveredado pela dúvida, que favorecesse o recorrente, sendo que a mesma, para relevar, teria de ser positiva, racional e inultrapassável. Com efeito, o invocado princípio in dubio pro reo, que decorre, como corolário, da presunção da inocência, consagrada no art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pode ter repercussões ao nível da prova, mas essa dúvida não haverá de ser, para o efeito, meramente ligeira ou subjectiva. Afinal, o recorrente pretenderia suportá-la em diferente convicção, o que não é, de modo algum, justificado à luz do que se deixou apreciado. O tribunal recorrido fundamentou, até onde lhe era exigível, a posição que assumiu perante a prova, com ponderação bastante, nada obstando a que, como sucede na generalidade dos casos, tenha reconhecido credibilidade a uns meios de prova e não a outros, uma vez que, criticamente, explicitou as razões por que assim procedeu. Se é certo que a liberdade de apreciação não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação (Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, 1967/68, pág. 53) e, por isso, não deve, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão (Germano Marques da Silva, ob. cit., Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 111), não é menos real que a convicção extraída pelo tribunal está fundamentada, sem insuficiência, contradição ou incongruência. Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 205, a convicção judicial deverá ser objectivável e motivável e tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana - o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse. Norteada por tais parâmetros, a fundamentação da sentença é esclarecedora do sentido de como a prova conduziu à matéria de facto fixada e não suscitou qualquer dúvida. Os factos impugnados não merecem, pois, qualquer modificação. Também, como já se assinalou, a restante factualidade deve persistir, já que nenhum vício decisório é assacado, porquanto não se divisa que o tribunal haja deixado de investigar toda a matéria relevante, que exista alguma incompatibilidade entre os factos dados por provados e não provados e, no tocante à fundamentação probatória respectiva, esta revele falha ou incongruência no percurso racional que à mesma presidiu. Outras considerações são desnecessárias para concluir que a matéria de facto se tem por assente - com excepção do que ficou vertido em 44, que é eliminado, por se tratar de repetição do referido em 43 e, por isso, impondo a correcção -, motivo por que a preconizada absolvição do crime de ofensa à integridade física por negligência se revela afastada. Do mesmo modo, na vertente cível, a absolvição só poderia redundar de consequência imposta por modificação da matéria de facto, uma vez que, atento o valor do pedido, a decisão, nessa parte, nem seria recorrível (cfr. art. 400.º, n.º 2, do CPP). 3. DECISÃO Em face do exposto, decide-se: - negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido e, em consequência, - sem prejuízo da operada correcção, manter, quer o despacho, quer a sentença, recorridos. Custas a cargo do recorrente, com taxa de justiça de 4 UC. Processado e revisto pelo relator. 18.Outubro.2018 (Carlos Jorge Berguete) (João Gomes de Sousa) |