Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
34305/15.1YIPRT.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: DÍVIDAS HOSPITALARES
RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A inversão do ónus de prova prevista no artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99 traduz-se num simples critério de averiguação da prova que não afasta a subsequente aplicação do regime substantivo da responsabilidade civil – e do qual resulta que, em caso de colisão de veículos e quando seja possível concluir que o condutor do veículo segurado pela seguradora demandada não é, pelo menos, exclusivo culpado da produção do acidente, não está vedado aplicar o regime de repartição proporcional na contribuição para os danos e na contribuição de culpas previsto no art.º 506º do C. Civil.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção – iniciada como processo de injunção, e que passou a ser tramitada como acção de processo comum –, actualmente a correr termos em Secção Cível da Instância Central, instaurada por «AA, EPE» contra «BB – Companhia de Seguros, SA», foi pela A., na sua qualidade de instituição integrada no SNS, invocada a prestação de cuidados de saúde a sinistrado vítima de acidente de viação, em que esteve envolvida viatura segurada pela R., e, nessa base, pedida a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 135.178,85 €, correspondente ao valor daqueles serviços hospitalares, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.

Na contestação, a R. impugnou o pedido, suscitando excepção de erro na forma de processo e alegando, no essencial, que o acidente eventualmente causador das lesões do sinistrado que determinaram a alegada assistência hospitalar por parte da A. consistiu numa colisão entre dois veículos, em que apenas um destes se encontrava segurado na R., sem que a produção do acidente seja imputável a culpa do condutor desse veículo, o qual antes se deverá a culpa do outro condutor.

Após o saneamento do processo – em que foi julgada improcedente a excepção de erro na forma de processo – e a prolação de despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, teve lugar o julgamento, na sequência do qual foi lavrada sentença (a fls. 126-146), em que se decidiu julgar parcialmente procedente a acção, condenando a R. a pagar à A. a quantia de 67.426,57 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros civis, desde a citação até integral pagamento.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, no essencial, o seguinte: no regime legal respeitante à cobrança de dívidas por prestação de cuidados de saúde (Decreto-Lei nº 218/99, de 15/6), prevê-se, no seu artº 5º, que ao credor incumbe apenas a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, sendo que a entidade prestadora fica dispensada de alegar e provar como se deu o acidente, pelo que, no caso de acidente de viação, passa a caber às seguradoras o ónus de provar que o condutor do veículo nelas segurado não foi culpado do acidente; a R. imputou ao condutor do outro veículo a responsabilidade na produção do acidente, pelo que importa averiguar se estão verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar da R. seguradora; da matéria de facto resulta a impossibilidade de imputar o embate entre os veículos em causa à culpa de qualquer dos condutores, pelo que é de considerar o regime da responsabilidade pelo risco; a prova da propriedade das viaturas envolvidas por parte dos respectivos condutores no momento do embate permite presumir que estes tinham a direcção efectiva dos veículos e que os conduziam no seu próprio interesse; por aplicação dos artos 503º e 506º do C.Civil, haverá uma presunção de culpa por parte de ambos os proprietários/condutores e, na dúvida sobre a medida da contribuição de cada veículo e da culpa de cada condutor para o acidente, deverá considerar-se tal contribuição como de igual medida; daí decorre que, estando em causa uma colisão entre dois veículos ligeiros de passageiros, a responsabilidade deve ser repartida na proporção de 50% para cada veículo; estando provada a prestação de cuidados de saúde a sinistrado desse acidente no valor de 134.853,13 €, e atenta essa proporção, deve a R. ser condenada no pagamento de metade desse valor, i.e. na quantia de 67.426,57 € (a que acrescem juros nos termos supra indicados).

Inconformada com tal decisão, dela apelou a A., formulando as seguintes conclusões:

«1. Salvo o devido respeito, a sentença ora posta em crise aplicou erradamente o direito aos factos provados e não provados, violando de forma flagrante o preceituado no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, maxime o artigo 5º.

2. Sem nunca quebrar o devido respeito, a decisão propalada pelo Tribunal a quo é nula por ofensa ao disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC e deverá ser alterada.

3. De resto, os vícios que enfermam esta sentença resultam do próprio texto da decisão, porquanto bastaria que à factualidade dada como provada tivesse sido aplicado o normativo vigente e que não foi.

4. Isto porque o aqui recorrente alegou a existência de um sinistro automóvel e efetuou prova das despesas hospitalares que prestou a uma vítima desse acidente de viação.

5. Com efeito, o Tribunal a quo deu como provado que no dia 16 de Julho de 2013 pelas 14h10m na IC1 ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo 00-IV-00, segurado na demandada e agora recorrida (cfr. Apólice nº 751994242), e o veículo 00-00-BE, onde circulava o socorrido CC.

6. Mais se demonstrou que, na sequência deste concreto sinistro, o ora Recorrente prestou objetivamente múltiplos cuidados de saúde ao aludido sinistrado CC, in casu efetuou tratamentos hospitalares entre 16-07-2013 e 16-10-2015, tendo o assistido CC estado internado nos nossos cuidados intensivos com oxigenação por membrana extracorporal, traqueostomia com ventilação mecânica> 96h ou traqueostomia com outro diagnóstico principal, exceto da face, boca ou do pescoço com procedimentos major em BO entre 16-07-2015 e 15-08-2015 e tendo estado internado nos cuidados Intermédios do Serviço de Urgência e no Serviço de Fisiatria entre 16-08-2015 e 16-10-2015 (cfr. pontos 1º a 7º dos factos provados).

7. Acresce ainda dizer que o Tribunal a quo não deu como provado aquilo que foi temerariamente alegado pela recorrida no art. 27º da sua contestação, a saber, a Companhia de Seguros demandada não logrou provar que o veículo onde seguia o assistido (o veículo de matrícula 00-IV-00) tenha invadido a faixa de rodagem reservada à circulação em sentido contrário no momento do embate.

8. Realçamos até que esta recorrida seguradora, que até indemnizou os intervenientes deste sinistro como bem se alcança da sentença propalada, optou por efetuar uma contestação, na qual, atribuía a total responsabilidade pela ocorrência do sinistro em apreço ao veículo onde seguia o assistido, sendo totalmente certo e assaz seguro que tal factualidade foi considerada não provada pelo Tribunal a quo.

9. De resto, não se apurou um qualquer desconforme comportamento estradal por parte do veículo onde seguia o assistido com as consequências daí resultantes.

10. Ademais, a Companhia demandada não só não provou a culpa do condutor do outro veículo onde seguia o assistido, como também foi incapaz de provar como lhe competia que este sinistro automóvel não é imputável ao seu próprio segurado.

11. Logo, alcançamos que o AA cumpriu justamente o seu ónus da prova quanto aos cuidados de saúde ministrados ao sinistrado como lhe competia e a seguradora demandada não logrou provar sequer que a culpa do acidente não seria atribuída ao seu segurado com os efeitos daí decorrentes.

12. Defronte os factos dados como provados e factos dados como não provados e que resultam do texto da própria decisão teriam que ser retiradas as devidas consequências jurídicas, mormente ao nível da inversão do ónus da prova, o que infelizmente não aconteceu.

13. Ao invés, a Senhora Juiz a quo resolveu chamar e erradamente à colação o disposto no art. 506º do Código Civil e, como a Ré não logrou provar que o veículo por si seguro não era responsável pelo sinistro, com base no risco, foi a seguradora condenada no pagamento da proporção de 50% das despesas de saúde provadas.

14. Ora, esta é uma visão destorcida da realidade e do regime jurídico vigente e que não poderá ser conservada na nossa rica Ordem Jurídica.

15. Necessariamente, terá que se concluir que o montante das despesas de saúde que foram dadas como provadas na sentença, e que são no montante de € 134.853,13 (centro e trinta e quatro mil oitocentos e cinquenta e três euros e treze cêntimos), terão que ser liquidadas pela recorrida como será de Direito.

16. Sendo absolutamente contrária ao direito a decisão de condenar a recorrida apenas em metade do valor supra indicado a este estabelecimento do SNS.

17. Insistimos que ficou patente que a ré não provou que o condutor do veículo nela seguro não teve culpa na produção do acidente como lhe cabia e com as consequências daí resultantes.

18. Em rigor, a recorrida não só não efetuou a prova da violação das regras estradais por parte do veículo onde seguia o assistido, como lhe competia, como foi incapaz de provar que o condutor segurado não teve qualquer responsabilidade no acidente, como também lhe cabia.

19. Tudo isto seguindo de mui perto que, “Nas ações para cobrança das dívidas de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, devendo ainda, se for caso disso, indicar o número da apólice de seguro”.

20. Há, portanto, uma inversão do ónus da prova, incumbindo à ré provar que o seu segurado não foi culpado pela produção do acidente (cfr. artigo 344, nº 1, do Código Civil), o que não aconteceu nesta lide.»

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações de recurso da A. resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar da ocorrência de nulidade de sentença, por alegada falta de fundamentação, com referência ao artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, e, no plano substantivo, do acerto da sentença recorrida, quanto ao entendimento adoptado pelo tribunal de 1ª instância, e em que se sustenta essa decisão, de que o artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99, ao determinar uma inversão do ónus da prova da culpa, faz impender sobre a seguradora demandada a prova de que o condutor do veículo nela segurado não teve culpa no acidente, mas sem que tal inversão, no caso de colisão entre dois veículos (e não se apurando qual dos condutores actuou com culpa), impeça a subsequente aplicação da solução do regime da responsabilidade pelo risco prevista no artº 506º do C.Civil (que, em caso de dúvida, se traduz numa imputação de contribuição de culpa a cada condutor em igual medida, i.e., na proporção de 50%) – sendo que é pretensão da A. recorrente o acolhimento da tese de que essa inversão do ónus da prova da culpa obriga a seguradora demandada a provar que a culpa é integralmente do condutor do outro veículo, o que, não sendo alcançado, determina a responsabilidade daquela pela totalidade da dívida (e não apenas por metade), com o que obterá a plena procedência do pedido por si formulado na acção.

Cumpre apreciar e decidir.

*


II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, não sujeitos a impugnação, que aqui se aceitam (cfr. artº 663º, nº 6, do NCPC) e que, para melhor análise, se passam a reproduzir:

«1. No dia 16 de Julho de 2013, pelas 14.10 horas, na IC1, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de matrícula 00-IV-00, propriedade de DD e por si conduzido e o veículo de matrícula 00-00-BE propriedade de EE e por si conduzido, ambos ligeiros de passageiros (artigo 23º da contestação).

2. O local do sinistro referido em 1) apresenta-se como uma recta, em patamar, com duas vias de circulação, uma para cada sentido, sendo de boa visibilidade (artigo 25º da contestação).

3. Na zona do embate existe linha longitudinal dupla contínua a dividir os sentidos de marcha, sendo que o sentido de marcha do veículo de matrícula 00-00-BE (norte-sul) tem uma via de desaceleração, sendo a largura da faixa na sua totalidade de 9,90 m, encontrando-se o piso em bom estado de conservação, seco no dia e com bom tempo (artigo 26º da contestação).

4. O veículo de matrícula 00-IV-00 encontrava-se a circular no sentido sul-norte e o veículo de matrícula 00-00-BE circulava no sentido norte-sul e embateram entre si em local não concretamente apurado junto ao eixo da via, tendo sido embatidos a roda da frente esquerda do veículo de matrícula 00-IV-00 e a lateral frente esquerda do veículo de matrícula 00-00-BE (artigo 27º da contestação-parte).

5. CC sofreu ferimentos em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 16 de Julho de 2013, pelas 14.10 horas, na IC1, circulando como passageiro no veículo de matrícula 00-00-BE (requerimento de injunção).

6. O Autor AA, E.P.E., prestou cuidados de saúde a CC, em consequência do sinistro referido em 1), entre 16-07-2013 e 16-19-2013, tendo CC estado internado nos cuidados intensivos com oxigenação por membrana extracorporal, traqueostomia com ventilação mecânica >96h ou traqueostomia com outro diagnóstico principal, excepto da face, boca ou do pescoço com procedimentos major em BO entre 16-07-2015 e 15-08-2015 e tendo estado internado nos Cuidados Intermédios do Serviço de Urgência e no Serviço de Fisiatria entre 16-08-2015 e 16-10-2015 (requerimento de injunção e prova produzida em audiência final).

7. O veículo automóvel de matrícula 00-00-BE tem a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergente de acidente de viação transferida para a Ré “BB – Companhia de Seguros, SA”, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº 751994242 (requerimento de injunção e artigo 23º da contestação).»


B) DE DIREITO:

1. Comece-se por apreciar, atenta a sua precedência lógica, a nulidade da sentença, por alegada falta de fundamentação, suscitada pela A. apelante.

Sobre essa nulidade por falta de fundamentação, dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Quanto à sentença em apreço, se atentarmos na argumentação nela expendida quanto ao objecto do processo (e supra sucintamente enunciada), vista à luz da descrita caracterização conceptual da nulidade arguida, afigura-se manifesto que não ocorre uma absoluta omissão de motivação. Muito pelo contrário: é amplamente evidente a apresentação de uma perceptível argumentação, de que a recorrente pode discordar, mas que foi produzida. O tribunal a quo sustentou a aplicação do artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99, reconhecendo que dele resulta uma inversão do ónus da prova que favorece a posição processual da A. (como esta, aliás, defende), enquanto prestadora de cuidados de saúde e credora de dívida decorrente dessa prestação. Porém, faz daquela norma uma interpretação integrada, em articulação com o regime geral da responsabilidade civil, que em seguida desenvolve e explicita – e que se apresenta de sentido divergente relativamente à interpretação proposta pela A.. Tanto basta para dizer que há uma fundamentação, pelo que estará arredada aquela específica nulidade.

Questão diversa será a parte discordar da argumentação enunciada pelo tribunal a quo – mas aí a divergência já não se resolve no plano da nulidade da sentença, mas no da procedência ou improcedência da acção.

É certo que a recorrente acaba por expressar, nas alegações de recurso, uma discordância quanto à decisão jurídica do caso. Mas, havendo essa discordância, é óbvio que a questão, quando colocada no plano da nulidade da sentença, se mostra suscitada de forma desfocada: discordância quanto a solução de questão de direito situa-se num plano meramente substantivo, que se projecta na procedência ou improcedência da pretensão apresentada ao tribunal – e não como nulidade de sentença.

Resta, por ora, concluir pela improcedência da arguição de nulidade da sentença fundada no artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, passando a apreciar a substância da impugnação ínsita no presente recurso.

2. Como se disse, a apelante, discordando da decisão de procedência apenas parcial (por metade) do seu pedido, pretende que o tribunal a quo deveria ter entendido que a redacção do artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99 imporia a plena responsabilidade da R. seguradora pela peticionada dívida hospitalar, na medida em que não teria cumprido o ónus de prova da culpa do condutor da outra viatura interveniente no acidente causador das lesões sofridas pelo sinistrado a quem a A. prestou cuidados de saúde, e na medida em que não afastou integralmente a culpa do condutor da viatura segurada pela R..

O mencionado Decreto-Lei nº 218/99, que «estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados» (artº 1º), substituindo o anterior diploma sobre essa matéria (Decreto-Lei nº 194/92, de 8/9), dispõe no seu artº 5º, sob a epígrafe «Alegação e prova», o seguinte: «Nas acções para cobrança das dívidas de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, devendo ainda, se for caso disso, indicar o número da apólice de seguro». Esta norma inscreve-se no espírito do diploma, que, segundo a sua nota preambular, aderindo à «perspectiva de simplificar os procedimentos, mas sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos, entendeu proceder à alteração das regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares». E, na mesma linha se deve entender uma subsequente afirmação desse preâmbulo: «Com o objectivo de tornar mais célere o pagamento das dívidas às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, estabelecem-se regras especiais no âmbito dos acidentes de viação abrangidos pelo seguro de responsabilidade civil automóvel, independentemente do apuramento de responsabilidade».

Dessa disposição legal vem a jurisprudência extraindo, pacificamente, o entendimento de que, como se diz no aresto citado pela sentença recorrida (Ac. STJ de 15/10/2013, Proc. nº 1382/11.4TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt), «No âmbito das acções de dívidas hospitalares, previstas no DL nº 218/99, de 15-06, cabe ao autor a prova da prestação dos cuidados de saúde e a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos, incumbindo à parte contrária a prova de que não foi culpada», uma vez que, «nos termos do art. 5º do citado DL nº 218/99, há uma inversão do ónus da prova da culpa, pelo que incumbe à ré, de acordo com o art. 344º, nº 1, do CC, a prova de que o condutor do veículo nela seguro não foi culpado do acidente que motivou as lesões do assistido.

Aplicando esse entendimento ao caso presente, não oferece, pois, dúvidas que a R. seguradora teria de demonstrar que o condutor do veículo por si segurado não foi culpado do acidente.

A questão que subsiste (e que a mencionada jurisprudência não esclarece com a mesma certeza) é a de saber se, nesses casos de acidente de viação e em que seja demandada uma seguradora, esta só afasta a sua responsabilidade pela totalidade do pagamento se fizer a prova de que o condutor do veículo por si segurado não tem qualquer culpa na produção do acidente – ou se é permitida a demonstração de que há culpas repartidas (do condutor do veículo segurado pela demandada e de qualquer outro interveniente ou intervenientes do acidente), sendo a responsabilidade da demandada pelo pagamento fixada em função da proporção de contribuição de culpa do condutor do veículo por si segurado.

Como vimos, a tese sustentada pela A. implica, na prática, que a seguradora demandada apenas será admitida a fazer prova da culpa exclusiva de terceiro (que não o condutor do veículo por si segurado): se lograr fazer essa prova, afasta de pleno a sua responsabilidade; se não a alcançar, e ainda que se conclua (ou pudesse concluir) pela ocorrência de culpas repartidas (i.e., com culpa apenas parcial do condutor do veículo segurado pela demandada), terá essa seguradora de arcar sempre com o pagamento da totalidade da dívida hospitalar, não obstante haver outros responsáveis pela produção do acidente. Desta interpretação do regime legal em apreço decorrem, nas situações de colisão de veículos (ou outras em que há mais que um potencial responsável do acidente), duas consequências assaz significativas: a entidade hospitalar demandante poderá accionar apenas uma, à sua escolha, das seguradoras eventualmente responsáveis; e, no caso de haver responsabilidades repartidas, gera para a seguradora demandada (e que pagou pela totalidade a dívida, ainda que só seja parcialmente culpado o condutor do veículo por si segurado) um segundo ónus, qual seja o de ter de exercer direito de regresso sobre a seguradora do outro ou outros culpados pela produção do acidente, para assim recuperar o que pagou à entidade hospitalar a mais (em relação à medida da sua efectiva responsabilidade).

A questão está, pois, em saber se o legislador do Decreto-Lei nº 218/99 quis essas consequências. Poderá argumentar-se que os objectivos de simplificação e celeridade referidos no preâmbulo do diploma, e supra evidenciados, serão mais compatíveis com a interpretação radical que conduz a tais consequências. A dispensa de a entidade hospitalar ter de accionar todos os potenciais responsáveis certamente facilita a sua tarefa processual e favorece uma maior celeridade na satisfação do seu crédito. Mas será que essas vantagens, seguramente úteis para a recuperação do equilíbrio financeiro do SNS (e este terá sido um importante móbil da iniciativa legislativa subjacente ao diploma), autorizam que uma solução de cariz prevalecentemente processual (como a do citado artº 5º) possa arredar de pleno a regular aplicação do regime substantivo da responsabilidade civil?

Apesar de tudo, alguns sinais provinham do mesmo diploma em sentido não coincidente com essa interpretação mais radical. Por um lado, fala-se de simplificação, mas acrescenta-se que «sem afastar os princípios gerais de direito relativamente ao reconhecimento e execução dos direitos» E, por outro lado, quando nesse diploma se regia especificamente sobre «dívidas resultantes de acidente de viação» e se previa pagamentos às entidades do SNS «independentemente do apuramento do responsável» (Secção III e artos 9º a 12º, entretanto já revogados pelo artº 192º, nº 2, da Lei nº 64-B/2011, de 30/12), aludia-se à obtenção do pagamento por via da demanda «das seguradoras», com determinado limite «por acidente e lesado» (artº 9º, nº 1), e referia-se que, no caso da assistência a ocupantes dos veículos envolvidos no acidente, «cada seguradora suporta os encargos correspondentes às pessoas transportadas no veículo que segurar» (artº 9º, nº 2). Ou seja: o mesmo legislador parecia sugerir, nas citadas normas, demandas individualizadamente dirigidas (que poderiam ser separadas ou litisconsorciais) para responsabilidades repartidas.

Naturalmente, esta bipolaridade legislativa não poderia deixar de ter reflexos jurisprudenciais de duplo sentido, em diversos arestos. De um lado, refira-se, v.g., o Ac. RE de 27/9/2007 (Proc. 1612/07-3, idem), no qual, em caso em que a factualidade não permitiu «deduzir que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo onde as vítimas eram transportadas, nem concluir pela ausência de culpa da demandada», antes apontando para «concorrência de culpas dos condutores dos veículos intervenientes», se entendeu que, a ser assim, «a responsabilidade seria solidária e consequentemente a A. poderia demandar de qualquer dos responsáveis a totalidade da dívida, sem que ao demandado seja lícito eximir-se ao seu pagamento com fundamento de que não é o único». Por outro lado, e também a título exemplificativo, mencione-se o Ac. RC de 3/12/2013 (Proc. 214/11.8TBTBU.C1, idem), no qual, em caso de colisão de veículos sem se apurar a culpa de qualquer dos condutores, e em que apenas foi demandada uma das seguradoras (de um dos veículos envolvidos), e não obstante o reconhecimento do funcionamento da inversão do ónus da prova por aplicação do artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99, se considerou que «a questão não se pode resolver singelamente no quadro do previsto pelo art. 503º, nº 1, do C.Civil, atribuindo a responsabilidade à seguradora» de um dos veículos e aí demandada, antes sendo de «solucionar a questão no quadro do estatuído pelo art. 506º, nº 1, do C.Civil» e de «ter em conta a distribuição das responsabilidades pelo risco na produção dos danos», em conformidade com esse preceito.

Efectivamente, quando o legislador não resolve questão que devia resolver, e até fornece sinais contraditórios sobre a solução que estaria no seu espírito se a tivesse contemplado, cabe ao tribunal decidir, na ponderação dos vários princípios e interesses em presença. No caso presente, afiguram-se-nos especialmente relevantes duas ordens de considerações: por um lado, não se mostra equilibrada, no confronto dos interesses envolvidos, uma solução que privilegie uma célere satisfação de créditos do sector público (por via de um mero mecanismo processual) em prejuízo de uma regular aplicação do regime substantivo da responsabilidade civil e com sacrifício patrimonial para entidades privadas, sem correspondência imediata entre esse sacrifício e uma justa repartição de responsabilidades substantivas; e, por outro lado, num plano mais prático, tal solução potencia um menor cuidado da entidade credora na preparação da respectiva acção judicial, ao permitir a demanda de quem tem menor responsabilidade substantiva e até uma selectividade injustificada de demandados.

Por tudo isto, propendemos para a solução adoptada pelo tribunal a quo, que se posicionou do lado dos que entendem que a inversão do ónus de prova prevista no artº 5º do Decreto-Lei nº 218/99 se traduz num simples critério de averiguação da prova, que não afasta a subsequente aplicação do regime substantivo da responsabilidade civil – e do qual resulta que, em caso de colisão de veículos e quando seja possível concluir que o condutor do veículo segurado pela seguradora demandada não é, pelo menos, exclusivo culpado da produção do acidente, não está vedado aplicar o regime de repartição proporcional na contribuição para os danos e na contribuição de culpas previsto no artº 506º do C.Civil.

Por aplicação desse critério alcançou o tribunal a quo a proporção de 50% como medida da responsabilidade da R. seguradora, que determinou a sua condenação em metade do montante peticionado. Em concordância com essa orientação e com o resultado a que necessariamente conduziu, apenas nos resta, pois, expressar a nossa plena total adesão à decisão recorrida.

A rematar, cumpre, pois, declarar que se acolhem os fundamentos da sentença recorrida e não se vislumbra qualquer razão para a alterar. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, pelo que não merece censura o juízo de procedência (parcial e nos termos em que o foi) da pretensão da A. formulado na decisão recorrida.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isenta a A. apelante (artº 24º do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26/2).


Évora, 06 /10/2016


Mário António Mendes Serrano


Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes


Mário João Canelas Brás