Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
122/16.6T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
EXTINÇÃO
DIREITO DE HABITAÇÃO
DIREITO REAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
Demonstrada a existência do direito real de habitação da autora, nos termos do artigo 5º da Lei nº 7/2001 com as alterações decorrentes da Lei 23/2010 e a necessidade de habitação do réu, proprietário do imóvel, que é mendigo, tem apenas a pensão de € 239,23 por mês e pernoita numa casa em ruínas, a qual corre o risco de ruir a qualquer momento, deve restringir-se o direito da autora às suas efectivas e reais necessidades, sabendo-se, ademais, que a casa dos autos tem 4 divisões e uma garagem onde já viveram quatro pessoas, sendo uma delas o próprio réu, a quem fica assim assegurado o direito constitucional à habitação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB intentou a presente ação declarativa, com processo especial, contra CC, pedindo que seja declarado que a autora é titular do direito real de habitação do prédio urbano, sito na urbanização Quinta da …, lote …, freguesia de São Clemente, concelho de Loulé, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o nº …/19871102, assim como do direito de uso do respetivo recheio pelo período de 21 anos e seis meses, contado a partir do dia 7 de Agosto de 2011, condenando-se o réu no reconhecimento de tais direitos.
Alegou, em síntese, ter vivido em união de facto com DD no período compreendido entre 07.02.1990 e 05.08.2011 - data do decesso do dito DD -, na casa de habitação deste, o prédio urbano acima descrito, e aí continua a viver desde o falecimento do seu companheiro, o qual deixou como único herdeiro o seu irmão, ora réu, o qual figura como titular inscrito do dito imóvel, mas é a autora que liquida todos os impostos relativos ao mesmo, assim como efetua todos os pagamentos de consumo de água, luz e comunicações. Alegou, por fim, ter requerido junto da Segurança Social uma pensão de sobrevivência por morte do seu companheiro, a qual foi deferida, assistindo-lhe assim o direito de permanecer no prédio em causa.
A 1ª Secção da Instância Central Cível da Comarca de Faro, considerando estar em causa na ação a atribuição da casa de morada de família, declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da ação, tendo a autora requerido a remessa do processo para o Tribunal de Família e Menores de Faro, onde o mesmo foi distribuído à 1ª Secção, Juiz 3.
Realizada a tentativa de conciliação a que alude o artigo 990º, nº 2, do CPC, sem que se lograsse o acordo das partes, veio o réu contestar alegando, em resumo, que é idoso, vive como mendigo e padece de carências graves a nível das sua necessidades básicas, nomeadamente, alimentação, higiene, vestuário e alojamento, sobrevivendo com a ajuda dos Serviços da Ação Social da Câmara Municipal de Loulé e a caridade de alguns vizinhos, pernoitando numa casa em ruínas, a qual corre o risco de ruir a qualquer momento, impedindo a ré que o mesmo se aproxime da habitação de que é proprietário.
Deduziu ainda o réu reconvenção, pedindo que a autora/reconvinda seja condenada a desocupar e a entregar-lhe o antes identificado prédio urbano e a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o seu direito de propriedade.
Inquiridas as testemunhas, foi proferida sentença que decidiu:
«Pelo exposto, julgo procedente e provada a acção e, em consequência, reconheço à Autora o direito real de habitação do prédio urbano sito na Quinta da …, Lote …, Freguesia de São Clemente, Concelho de Loulé, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número …/19871102, assim com o direito de uso do respetivo recheio pelo período de 21 anos e seis meses, contado a partir do dia sete de Agosto de dois mil e onze, e o Réu condenado a reconhecê-los com as legais consequências».
Inconformado, o réu apelou do assim decidido, tendo finalizado as alegações com as seguintes conclusões:
«A) O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 615.º, nº 1, alíneas a) e d) do CPC.
B) Nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 615.º do CPC, a douta sentença é nula por não conter a assinatura do juiz.
C) Em pedido reconvencional, o Réu pediu a condenação da Autora a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade do Réu/reconvinte, e a desocupar a moradia, entregando-a ao Réu.
D) Porém, o Tribunal a quo comete uma omissão de pronúncia, pois, não se pronunciou sobre o pedido reconvencional deduzido pelo Réu na sua oposição, violando desse modo o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
E) Consequentemente, não se pronunciou devidamente o Tribunal a quo sobre a questão da colisão de direitos invocada pelo ora recorrente;
F) O Tribunal a quo não procedeu à devida e justa ponderação do circunstancialismo do caso concreto, pois o direito de propriedade do recorrente deveria ter prevalecido.
Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o Douto suprimento de Vossas Excelências Senhores Desembargadores, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, devendo ser a sentença substituída por outra, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!».

A autora não apresentou contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença;
- direito do réu a habitar o prédio dos autos, na qualidade de proprietário do mesmo em face do direito real de habitação da autora.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1 - A Autora BB viveu com DD, em condições análogas à dos cônjuges, no período de 7 de fevereiro de 1990 a 5 de agosto de 2011, data do falecimento deste;
2 - Durante todo este período, cerca de 21 anos e 6 meses, a Autora BB viveu com o de cujus, DD, na habitação deste - prédio urbano sito na Urbanização Quinta da …, lote …, freguesia de São Clemente, concelho de Loulé, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé, sob o nº …/19871102;
3 - Tendo ficado a residir no imóvel supra identificado até à presente data;
4 - Sucede que, com o óbito do DD, sucedeu-lhe o seu único herdeiro, o seu irmão, o ora Réu CC, não existindo qualquer testamento;
5 - O qual procedeu ao pedido de número de herança indivisa, por óbito de DD, e participou ao modelo 1 do IMI, relativo ao identificado prédio urbano;
6 - Desde o ano de 2011 que o Imposto Municipal Sobre Imóveis, relativo ao prédio urbano mencionado se encontra em nome do Réu CC;
7 - No entanto, é a Autora BB que liquida todos os tributos relativos ao prédio urbano, nomeadamente, o IMI;
8 - Bem como é a Autora BB que procede a todos e quaisquer pagamentos de consumo, nomeadamente, água, luz e comunicações;
9 - Requereu a Autora BB, em 15 de outubro de 2012, junto do Instituto de Segurança Social, pensão de sobrevivência, por morte de DD, tendo apresentado a respetiva prova de união de facto exigida, e, em 15 de novembro de 2012, é deferida por aquele instituto a pensão requerida;
10 - A Autora BB, desde 7 de fevereiro de 1990, sempre viveu de forma ininterrupta, no identificado imóvel, continuando, após o falecimento do companheiro, a residir no mesmo local, até à presente data;
11- A Autora BB não é proprietária de qualquer casa de habitação na área do concelho de Loulé ou em qualquer outra zona do país;
12 - O Réu CC encontra-se privado de habitar a moradia sua propriedade e de exercer os demais direitos de proprietário;
13 - O Réu CC é mendigo, padecendo de carências a nível da satisfação das suas necessidades básicas, nomeadamente, alimentação, higiene, vestuário e alojamento;
14 - O Réu CC sobrevive com a ajuda dos Serviços de Ação Social da Câmara Municipal de Loulé, da Associação Existir e com a caridade de alguns vizinhos;
15 - O Réu já é idoso e não tem mais nenhuma habitação;
16- O Réu CC aufere uma pensão de velhice, no valor de € 239,23, por mês;
17 - O Réu CC pernoita numa casa em ruínas, sita na rua de Santa Catarina, no sítio dos Quartos, na Goncinha, Loulé, perto da sua moradia;
18 - O local onde pernoita o Réu CC corre o risco de ruir a qualquer momento e é desprovido de quaisquer condições mínimas de habitabilidade, sem ter água, eletricidade, esgotos e sanitários;
19 - A Autora BB impede que o Réu Ilídio Fialho se aproxime da habitação.

O DIREITO
Da nulidade da sentença
Diz o recorrente que a sentença é nula por não conter a assinatura do juiz.
Mas não tem razão.
Nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 615º do CPC, é nula a sentença que não contenha a assinatura do juiz, que é a sanção para o desrespeito do art. 153º, nº 1, do CPC que manda que as decisões judiciais são datadas e assinadas pelo juiz ou relator. Trata-se de um requisito de forma essencial[1], cuja omissão é suprida oficiosamente, ou a requerimento das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura (nº 2 do art. 615º).
Sucede, porém, que a sentença proferida nos autos se encontra datada e assinada eletronicamente, substituindo a assinatura eletrónica aposta na sentença a assinatura autógrafa da Sr. Juíza que a proferiu, nos termos do art. 19º, nºs 1 e 2, da Portaria 280/2013, de 26.08.
Improcede, pois, a nulidade invocada, com fundamento na falta da assinatura do julgador.
Sustenta também o recorrente que a sentença não se pronunciou sobre o pedido reconvencional deduzido pelo réu na sua oposição, violando desse modo o disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, norma segundo a qual a sentença é nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Ora, no caso concreto, a Sr.ª Juíza a quo pronunciou-se sobre todas as questões que foram submetidas à sua apreciação, como decorre inequivocamente da fundamentação de direito constante da sentença, aí analisando o concurso entre o direito de uso da autora e o direito de propriedade do réu, e concluindo que este último direito, pelas razões que aduziu, devia ceder perante o direito da autora, ficando assim prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional (cfr. art. 608º, nº 2, do CPC).
Com efeito, a total procedência da ação, como foi decidida, implicava a improcedência do pedido reconvencional e ainda que nulidade houvesse, a mesma foi suprida pela Sr. Juíza no despacho de 07.11.2017, a fls. 139/140, o qual, nos termos do art. 617º, nº 2, do CPC, integra a sentença proferida.
Em suma, a sentença não enferma das nulidades que lhe são apontadas pelo recorrente.

Do direito do réu a habitar o prédio dos autos
Perante o quadro factual acima descrito e considerando os elementos objetivos da instância - tal como foram configurados nos articulados apresentados pelas partes -, a questão jurídica fundamental colocada no âmbito do presente processo, traduz-se em determinar se pode o réu, enquanto titular do prédio dos autos habitar o mesmo, sabendo-se da existência de um direito real de habitação a favor da autora.
A Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, de 23 de Agosto, prescreve no seu art. 5º:
«1 - Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respetivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.
2 - No caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, os direitos previstos no número anterior são conferidos por tempo igual ao da duração da união.
(…)».
Está assente que a autora viveu com DD, em condições análogas à dos cônjuges, no período de 7 de fevereiro de 1990 a 5 de agosto de 2011, data do falecimento deste, e durante todo esse período viveram na habitação pertencente àquele, ou seja o imóvel dos autos, sendo que após a morte do seu companheiro a autora continuou a residir nessa mesma casa até hoje. Mais se provou que a autora não é proprietária de qualquer casa de habitação na área do concelho de Loulé ou em qualquer outra zona do país.
Significa isto que a autora provou a união de facto e a sua duração, bem como a vivência em comum na casa em questão, e demonstrou ainda (pese embora se trate de exceção) que não é proprietária de qualquer casa de habitação.
Em suma, a autora alegou e demonstrou a existência do seu direito, pelo que o seu pedido não pode, à partida, deixar de ser julgado procedente, como foi.
Porém, de outra banda temos o réu, proprietário do imóvel que herdou do irmão e relativamente ao qual se provou:
- é mendigo, padecendo de carências a nível da satisfação das suas necessidades básicas, nomeadamente, alimentação, higiene, vestuário e alojamento;
- sobrevive com a ajuda dos Serviços de Ação Social da Câmara Municipal de Loulé, da Associação Existir e com a caridade de alguns vizinhos;
- é idoso e não tem mais nenhuma habitação;
- aufere uma pensão de velhice, no valor de € 239,23, por mês;
- pernoita numa casa em ruínas, sita na rua de Santa Catarina, no sítio dos Quartos, na Goncinha, Loulé, perto da sua moradia;
- o local onde pernoita o corre o risco de ruir a qualquer momento e é desprovido de quaisquer condições mínimas de habitabilidade, sem ter água, eletricidade, esgotos e sanitários.
Na sentença recorrida, depois de judiciosas considerações sobre a evolução do regime legal nesta matéria, escreveu-se:
«O legislador de 2010, tendo em atenção que a atribuição deste direito real[2], onera o direito de propriedade dos sucessores do membro da união de facto falecido, numa composição de interesses contrapostos, entendeu excluir aquele direito nas situações em que o membro sobrevivo dispunha de uma casa própria, com uma localização próxima, onde podia estabelecer a sua habitação.
Tendo, neste caso, a morte do membro da união de facto que era o proprietário da casa de morada de família ocorrido ainda na vigência da versão actual da lei das uniões de facto e provando-se não ter outra casa no concelho de Loulé nem noutros, o direito real de habitação sobre a casa de morada de família a favor da Autora constitui-se, por determinação legal, com a morte do outro membro dessa união que era o proprietário da casa, não sendo necessária para essa constituição qualquer reconhecimento judicial. Este poderá verificar-se, em caso de litígio sobre a existência do direito, mas não é nesse momento que o direito se constitui na esfera jurídica do membro sobrevivo, mas sim na data da morte do seu companheiro.
Concluindo, não há direitos absolutos e o direito de propriedade, de cariz mais material, cede perante o direito ao uso da casa pela companheira do falecido, direito de cariz mais pessoal. A lei é feita para todos e pensada para proteger os companheiros sobrevivos, evitando que sejam despejados da casa onde sempre viveram, sem terem outra para onde ir.
Assim, à Autora assiste-lhe, o direito de permanecer na mesma casa, que atualmente faz parte do acervo hereditário do Réu por um período igual ao da duração da união de facto, em concreto de, 21 anos e seis meses, e o direito de preferência na alienação da habitação por parte do Réu enquanto o direito de uso se mantiver.»
Embora se reconheça o mérito da argumentação aduzida pela Sr.ª Juíza a quo, entendemos que as especificidades do caso concreto reclamam uma solução, que sem deixar de reconhecer à autora o direito de habitar a casa dos autos, não pode deixar igualmente de ter em consideração as miseráveis condições de vida do réu, nomeadamente ao nível da habitação, que não possui.
Assim, estando essencialmente em causa a utilização/habitação do imóvel, importa trazer à colação os factos instrumentais apurados nos autos e ver se estes permitem restringir o direito de habitação de cada um, na medida das respectivas necessidades.
Consta dos documentos juntos ao processo que a autora tem atualmente 62 anos e viveu 21 anos com o falecido companheiro e irmão do réu que tem 69 anos. Este é mendigo e tem apenas a pensão de € 239,23 por mês, pernoita numa casa em ruínas, a qual corre o risco de ruir a qualquer momento pondo assim em perigo a sua própria vida. Ela também não tem outra habitação e tem o rendimento ilíquido de € 5.362,00 (vd. despacho de concessão do benefício do apoio judiciário).
Acresce que na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, consta a reprodução das declarações da testemunha Noémia … no sentido de que foi o falecido que construiu a casa e que nesta moraram também a mãe e o irmão (ora réu), pelo menos até à morte da mãe, o que permite concluir, juntamente com o que consta da certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 13/14, que a casa tem condições físicas para ambos morarem, já que lá habitaram antes 4 pessoas.
Aliás, da referida certidão, no que respeita à composição do imóvel em causa, consta que se trata de uma habitação de rés-do-chão com 4 divisões, garagem e logradouro, com uma área total de 546 m2, sendo 135,68 m2 de área coberta e 410,32 m2 de área descoberta, sendo que na caderneta predial urbana de fls. 15/18 se refere uma “Área Bruta Dependente” de construção de 16,50 m2, a qual, tudo indica, se trata da garagem.
Tratando-se de factos instrumentais/complementares, devem - porque importam à decisão - ser considerados pelo juiz e, consequentemente, pela Relação, nos termos conjugados dos artigos 5º, nº 2, alíneas a) e b), 607º, nº 4 e 663º, nº 2, do CPC.
Assim, considerados tais factos, entendemos ser de limitar o direito de habitação da autora às respectivas necessidades, as quais se afiguram conciliáveis com as necessidades de habitação do réu, se tivermos em consideração que a casa dos autos tem 4 divisões, onde já viveram quatro pessoas, a qual, com algumas eventuais adaptações, assegura o direito constitucional à habitação que assiste a cada uma das partes.
Ademais, tratando-se de um processo de jurisdição voluntária, o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art. 987º do CPC).
Ora, a atribuição em exclusivo à autora do direito de habitar a casa dos autos nos termos em que foi concedido, inviabilizaria que ao réu, seu proprietário, fosse efectivamente assegurado igual direito, atendendo ao período temporal em que a autora terá direito a permanecer no imóvel (21 anos) e à idade do réu.
Em suma, deve o direito da autora ser comprimido na medida das suas necessidades (art. 1484º do CC).
Não se ignora que a solução encontrada não está isenta de escolhos, nomeadamente na sua vertente prática, mas aqui cabe às partes estabelecerem as regras que permitam o exercício do direito que a cada um assiste relativamente ao imóvel em causa.
O recurso do réu procede, assim, em parte.

Sumário:
Demonstrada a existência do direito real de habitação da autora, nos termos do artigo 5º da Lei nº 7/2001 com as alterações decorrentes da Lei 23/2010 e a necessidade de habitação do réu, que é mendigo, tem apenas a pensão de € 239,23 por mês e pernoita numa casa em ruínas, a qual corre o risco de ruir a qualquer momento, deve restringir-se o direito da autora às suas efectivas e reais necessidades, sabendo-se, ademais, que a casa dos autos tem 4 divisões e uma garagem onde já viveram quatro pessoas, assegurando-se assim às partes o direito constitucional à habitação.

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, reconhece-se ao réu o direito a habitar o prédio urbano da sua propriedade, sito na Quinta da …, Lote …, Freguesia de São Clemente, Concelho de Loulé, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número …/19871102, na medida das suas estritas necessidades e com respeito pelo direito real de habitação da autora, mantendo no mais a decisão recorrida.
Custas a cargo de autora e réu, na proporção de ½, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam.
*
Évora, 13 de Setembro de 2018
Manuel Bargado (Relator por vencimento)
Albertina Pedroso
Sílvio Sousa (Relator vencido nos termos da declaração infra)

O projeto de acórdão rejeitado confirmava a sentença impugnada, inclusive na parte respeitante ao pedido reconvencional, com o seguinte fundamento: não alegação por parte do réu/reconvinte, CC, como lhe competia, da indispensável matéria de facto conducente, eventualmente, à procedência do pedido que formulou, ainda que, necessariamente, de forma parcial.
Na verdade, o referenciado alicerçou a reconvenção na defesa, por impugnação, que deduziu, onde se limitou, ao fim e o cabo, a contradizer o efeito jurídico que a autora /reconvinda, BB, pretende extrair dos factos que alegou.
Dada a inequívoca sobreposição de direitos reais sobre a mesma coisa, com a atribuição de uma posição de privilégio ao direito de uso e habitação - titulado pela dita autora/reconvinda -, mas, apenas, na medida das suas necessidades e da respetiva família, ao mencionado Réu/reconvinte competia-lhe alegar e provar que o exercício do seu direito de propriedade - direito não prevalente - não inviabilizava o direito daquela.
Tal não aconteceu, nem se encontra adquirido nos autos, pelo facto de a caderneta predial aludir a um prédio com quatro divisões ou a certidão emanada no registo predial mencionar uma área coberta de 135,58 m2.
Acresce que o direito de uso e habitação abarca, necessariamente, o direito à intimidade.
Sílvio Sousa

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[1] Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., p. 734.
[2] Trata-se do direito real de habitação previsto no nº 1 do art. 5º da Lei 7/2001, com as alterações decorrentes da Lei 23/2010.