Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
105/08.0TAEVR.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NULIDADE DA SENTENÇA
VÍCIOS DO ART. 410.º DO CPP
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO MÉDICO
PERÍCIAS
VIOLAÇÃO DAS ``LEGES ARTIS´´
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – O exame crítico não se basta com uma mera referência dos factos às provas, tornando-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam, de molde a poder concluir-se quais as provas e em que termos garantem que os factos aconteceram, ou não, da forma apurada.

II – O parecer elaborado pelo Conselho Médico-legal do Instituto Nacional de Medicina Legal a solicitação do Ministério Público em fase de inquérito constitui prova pericial, a valorar nos termos do art. 163.º do CPP.

III - A actividade médica, que, por natureza, é potenciadora de diversos riscos, impõe aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida do doente.

IV – Age com negligência a médica que dá alta hospitalar a um doente, que vem a falecer horas depois, e que à data do atendimento ainda apresentava sinais de um quadro de Edema Agudo do Pulmão (EAP), que foram desvalorizados, por não ter esgotado os meios que tinha ao seu dispor em função das possibilidades oferecidas pelos conhecimentos científicos, mormente para fazer um diagnóstico e um prognóstico correctos, quando o procedimento adequado seria o internamento do doente, com a sua manutenção sob vigilância e não lhe tivesse dado alta, como fez.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Évora, sob prévia acusação do Ministério Público, a arguida ME foi pronunciada pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal (CP).

O assistente, CH, e NR, MH, JR e MJ deduziram pedido de indemnização civil contra a arguida e contra Companhia de Seguros ---, tendo sido decidido, por despacho de fls. 830/835, ao abrigo do art. 82.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), remeter as partes para os tribunais civis no que a tal pedido diz respeito.

A arguida contestou a pronúncia, concluindo no sentido de que a sua actuação não tenha sido causa adequada da morte de GH, pugnando pela sua absolvição.

Realizado o julgamento, a arguida foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e. p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa à razão diária de €12 (doze euros), perfazendo o montante de €2040,00.

Inconformada com tal condenação, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões:

1) Quanto à matéria de facto, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova e, bem assim, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2) Desde logo se verifica que do elenco dos factos provados constam raciocínios e conclusões que não revestem a natureza de matéria de facto.

3) Consequentemente, devem ser eliminados da matéria de facto, com as devidas consequências, os factos n.º 35, 37, 47 e 49.

4) Por outro lado, os pareceres emitidos pelo Conselho Médico-Legal não revestem a natureza de prova pericial, atentas as disposições legais que lhe são aplicáveis e que supra ficaram indicadas, dando-se aqui por reproduzido o que sobre essa matéria ficou dito.

5) Consequentemente, a sentença recorrida violou as ditas normas legais, por ter entendido que o parecer produzido e os respectivos esclarecimentos revestem a natureza de perícia.

6) Não obstante, a recorrente entende que, atentas as consequências que o art.º 163.º do CPP atribui às perícias em sede de valoração de prova, a interpretação segundo a qual os pareceres emitidos pelo Conselho Médico-Legal constituem verdadeira prova pericial é claramente inconstitucional por violação do disposto no art.º 32.º, n.º 1 da CRP, na medida em que prejudica substancialmente o direito de defesa da arguida.

7) A sentença recorrida viola o artigo 355º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual, por regra, só podem valer em julgamento, «nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal», as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, na medida em que o parecer do Conselho Médico-Legal não foi examinado em audiência de julgamento.

8) A matéria dada como provada nos factos n.ºs 19 a 24 carece de ser alterada em conformidade com o que acima ficou alegado, e consequentemente, o mesmo deverá ocorrer quanto ao facto n.º 25.

9) Na verdade não ficou provado que a arguida não avaliou correctamente a gravidade da situação clínica do doente ou que a alta tivesse sido incorrectamente dada.

10) Por outro lado, deverá ter-se como provada a matéria constante do ponto III da matéria de facto não provada, quer pela prova produzida, quer pela aplicação do princípio in dubio pro reo.

11) O facto n.º 34 carece de ser alterado na medida em que a arguida disse ao doente para continuar a tomar a sua medicação, o que corresponde a uma efectiva terapêutica medicamentosa.

12) O facto n.º 35 deve ser alterado pois a provável existência de EAP não se confirmou na urgência;

13) Acresce que não está provado que o internamento do doente iria permitir efectuar vigilância e monitorização pois o hospital estava sobrelotado estando os doentes a ser internado no refeitório onde seguramente não é possível fazer uma monitorização e vigilância.

14) Relativamente ao facto n.º 36, atento tudo o que já ficou dito, deve o mesmo ser eliminado, porquanto, por um lado e de acordo com as declarações das testemunhas já transcritas, as alterações referidas nos pontos 19, 21 e 22 não impunham o internamento do paciente e, por outro, porque a arguida descartou a hipótese diagnóstica de haver um EAP.

15) Na verdade a matéria constante dos n.ºs 35, 36 e 37, não tem fundamento na prova testemunhal produzida já que todas as testemunhas da acusação e defesa foram unânimes em concordar que a actuação da arguida foi conforme à leges artis e por isso cientificamente fundamentada;

16) No que concerne ao facto n.º 48 – “O Edema Agudo Pulmonar, embora seja uma patologia grave, com a assistência médica adequada tem tratamento e não conduz à morte”, verifica-se erro notório na apreciação da prova, pois conforme as testemunhas afirmaram o EAP é uma emergência médica muito grave, tem tratamento médico adequado, a maior parte das vezes eficaz, mas pode conduzir à morte.

17) Resulta do testemunho da Dr.ª LM que a instalação do quadro é progressiva, não sendo a agudização imediata, não sendo perceptível a razão pela qual o socorro foi chamado tardiamente.

18) Deverá ser dado como provado que a instalação do quadro de EAP é progressiva, não sendo a agudização imediata.

19) Subsiste a dúvida do que efectivamente aconteceu ao Sr. H levando a que não fosse atempadamente chamado o socorro do INEM, já que a falta de ar não ocorre de um momento para o outro, antes se vai instalando progressivamente;

20) Não é, pois, possível imputar objectivamente à conduta da arguida o resultado morte;

21) Sendo certo que na negligência deve haver um dever de prever que se traduz na pessoa dever representar uma situação objectiva não o fazendo, os elementos apurados não conduzem à conclusão a que a arguida tenha violado esse dever de prever.

22) Determinante para a imputação objectiva a um arguido de conduta com relevo penal, em consequência de um aumento do risco permitido em que tenha incorrido, é saber se esse risco, da forma como se manifestou, era adequado a materializar, a concretizar, o resultado típico.

23) Relativamente a este aspecto, resultou em nosso entender provado que a estabilidade clínica do doente, constatada no momento da alta, não fazia antever o desfecho que se verificou.

24) Ou seja, não havia elementos objectivos que pudessem conduzir ao entendimento de que a alta dada ao doente consubstanciava um aumento do risco, pois foram tomados todos os cuidados e dadas as recomendações para que o não fosse.

25) Perante a prova recolhida, o resultado que veio a ocorrer era imprevisível, ou ainda que previsível, improvável ou de verificação rara, na perspectiva da normalidade e das máximas da experiência.
26) Nesta situação a existência de um nexo de causalidade não se estabeleceu, nem é possível estabelecer com segurança.

27) Acresce que existem indícios – que geram dúvidas – de que possam ter ocorrido intervenções susceptíveis de quebrar o nexo causal.

28) Ou seja, quer pela prova produzida quer por via da aplicação do princípio “in dubio pro reo” a arguida não pode ser condenada, antes se impondo a sua absolvição.

29) O aresto recorrido enferma, pois, de erro de Direito, por violação na aplicação do nº 2 do artº 374º do CPP, devido a inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico das provas, como supra ficou patente.

Deste modo e atento o exposto, deverá ser revogada a sentença proferida, devendo ser a mesma substituída por outra que absolva a arguida.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser revogada a sentença proferida, devendo ser a mesma substituída por outra que absolva a arguida do crime que lhe é imputado.

Apresentaram resposta:

- o Ministério Público, concluindo que deve o recurso ser julgado totalmente improcedente e manter-se na íntegra a douta sentença recorrida;

- o assistente, concluindo:

1. Refere a recorrente que « (…) do elenco dos factos provados constam raciocínios e conclusões que não revestem natureza de matéria de facto", Nomeadamente os factos constantes em 35, 37, 47 e 49 da douta sentença recorrida.

2. Ora não pode o Assistente concordar com tal facto, muito pelo contrário, apreciação da prova efectuada na sentença para determinação dos factos dados como provados e não provados foi bem analisada.

3. Ora tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

4. Pelo exposto verifica-se que os factos dados como provados e referidos nos pontos 35, 37, 47 e 49 da douta sentença recorrida não podem ser interpretados como Conclusões c raciocínios jurídicos, mas sim como factos concretos apreciados à luz de prova apresentada.

5. Assim, todos os factos dados como provados incluindo o constante no artigo 35, 37, 47, 49, foram determinados por prova principalmente testemunhal e documental pelo que não devem ser eliminados do elenco de facto provados.

6. No seu Recurso veio a Arguida invocar que não concorda com a natureza de prova pericial do referido relatório.

7. Ora não pode o Assistente mais uma vez concordar com tal facto considerando que bem andou o tribunal ad quo quanto a esta matéria.

8. A prova pericial tem como finalidade "a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial".

9, A prova pericial, aliás como toda a prova, está sujeita na respetiva produção a um determinado número de regras de direito probatório formal.

10. Entende o Assistente que o que releva fundamentalmente para a admissão da perícia é que a mesma se reporte ao núcleo fundamental da questão ou questões que se pretendem ver esclarecidas.

11. Ora, perante o exposto, coloca-se a questão de saber se a prova Pericial foi corretamente utilizada no âmbito do processo penal e seus requisitos.

12. O despacho, elaborado por Ministério Público, a fls. 137-138, ordenou a realização de perícia, sendo que do mesmo constava o seu objeto (exame, ou, nos termos do art. 152º do C. de Processo Penal, perceção e apreciação, das circunstâncias em que ocorreu a morte de GH e a eventual existência entre a mesma e a assistência médica hospitalar que lhe foi prestada), solicitação efetuada ao Concelho Medico-Legal do INML (Coimbra).

13. Estando face a um meio de prova, com um preciso modelo legal ou disciplina estabelecida pela lei temos que o relevante, desde logo, respeita às regras da sua produção (no ensinamento de Manuel da Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 1992, pág. 83, «as regras de produção de prova visam apenas disciplinar o procedimento exterior da prova na diversidade dos seus meios e métodos»).

13. Ora, todas as regras foram observadas, pelo que deverá o referido meio de prova ser considerado valido e apto a dar respostas às dúvidas sobre factos constantes dos autos devendo para o efeito ser considerado como prova credível porque legal

14. Mesmo que assim não se entenda sempre se dirá que na falta da observação das regras constantes no modelo legal, jamais poderão ser interpretadas ao ponto de não poder ser valorado como meio de prova.

15. Tendo presente o acima referido, no pertinente, a prova pericial em destaque não observou o modelo legal, a disciplina estabelecida na lei para a sua produção, o que traz una consequência, qual seja a de que padece a mesma de invalidade (irregularidade - arts. 118°, n.ºs 1 e 2, e 123°, n.º 1, do C. de Processo Penal).

Contudo, tendo presente o que consta dos arts. 164°, n.ºs 1 e 2, 165°, n.º 1, e 283º, n.º 3, al. d), do C. de Processo Penal, sempre esse "relatório pericial" se teria (e tem) de configurar como prova documental, agora sujeita ao princípio livre apreciação acolhido no art. 127º do C. de Processo Penal.

16. Em conclusão: se a prova pericial for inválida, essa invalidade determina que a mesma passe a configurar como prova documental.

17. Pelo que perante este ultimo facto, não pode a mesma prova deixar de ser levada em consideração, nem que seja como prova documental e sujeita à livre apreciação do Julgador.

18. Considera a Arguida que os exames foram bem elaborados e que o diagnostico efetuado por si estaria correto (pontos 19 a 24 da douta Sentença ora recorrida). Mais uma vez não está o assistente de acordo com tal afirmação.

19. Primeiro porque nenhuma das testemunhas ouvidas estava presente no dia e hora do acontecimento.

20. No que se refere ao factos constantes em 34 a 37, devem os mesmos permanecer como provados, pois porque de facto foram alcançados por prova, nomeadamente pela inquirição de Dr. B, que foi no fundo reiterar o referido no seu relatório, tendo explicado que ao fazer o referido relatório verificou os diversos exames e diagnósticos tendo concluído pelo constante nos referidos artigos.

21. Mais, não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova que dá origem ao facto 48 da douta sentença.

22. De facto o que aí se diz é que "com a assistência medica adequada" o edema agudo pulmonar não conduz à morte.

23. Quando à invocação do principio do in dúbio pro reo invocado pela Arguida: O princípio in dubio pro reo é um princípio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido (art. 32.°, n.º 2, da CRP), como tal objecto de controle por parte deste Tribunal.

24. Quer este princípio dizer que na dúvida, deve julgar a favor do réu.

25. Verificar da aplicabilidade de tal princípio significa que é necessário recorrer, no caso em apreciação, à motivação da convicção do tribunal, em conjugação com a factualidade assente, para ver se surpreendemos a alegada violação do princípio "in dubio pro reo".

26. Do ponto de vista do tipo objetivo de ilícito, o crime de Homicídio por negligência exige-se a capacidade do agente para proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz - ou seja legis artis.

27. Assim o dever cuja violação a negligência supõe, consiste em o é agente não ter usado aquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento.

28. Do que se expôs conclui-se que para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objetivamente à conduta e subjetivamente ao agente.

29. Significa isto que a responsabilidade apenas se verifica se existir um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido.

30. Atenta a factualidade provada, dúvidas não existem de que cai pela base os fundamentos de defesa invocada pela arguida.

31. De facto podemos - e devemos - considerar que a arguida, no exercício da sua atividade profissional de médico, não procedeu com o cuidado a que, atentas a circunstâncias - de tempo e lugar, bem como da prudência -, estava obrigado, e de que era capaz, como é exigido a um médico, uma vez que o arguido não tendo posto no atendimento da vítima uma atuação prudente e de acordo com as legis artis e os conhecimentos da medicina, antes omitindo negligentemente certos cuidados (nomeadamente internamento) e o recurso a meios complementares de diagnóstico.

32. Pelo exposto jamais se poderia aplicar aos factos aplicados o princípio do in dubio pro reo, pois duvidas não se verificaram, antes pelo contrário.

Termos em que, não deverá a douta sentença ser revogada mantendo-se quanto a essa matéria tudo o que da mesma consta.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no essencial, concordando inteiramente com a resposta apresentada pelo Ministério Público na instância recorrida e entendendo que a decisão do tribunal a quo não violou qualquer norma legal e fez correcta integração dos factos, devendo o recuso ser declarado improcedente.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do CPP, a arguida reiterou a sua posição.
Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as cominadas com nulidade da sentença (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e as previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19.10, publicado in DR I-A Série de 28.12.1995.

Reside, então, em apreciar:
A) – da nulidade da sentença;
B) – do erro notório na apreciação da prova;
C) – da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
D) – da natureza probatória dos pareceres do Conselho Médico-Legal;
E) – da valoração desses pareceres;
F) – da violação do art. 355.º do CPP;
G) – da eliminação de factos provados;
H) - da impugnação de matéria de facto;
I) – do enquadramento jurídico dos factos.

Consta da sentença recorrida:

Factos provados:

1. A arguida ME é médica não especialista e à data da prática dos factos infra descritos estava a prestar serviço no Serviço de Urgência do HES de Évora (doravante designados apenas por SU e HES, respectivamente);

2. A arguida havia entrado de serviço naquele hospital às 08h00m do dia 15 de Fevereiro de 2008 e terminava o seu turno às 08h00m do dia 16 de Fevereiro de 2008;

3. No dia 16 de Fevereiro de 2008, pelas 03h40m, GH deu entrada no Centro de Saúde de Vendas Novas, com dificuldade respiratória;

4. Foi entretanto accionada a Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), que se deslocou ao referido Centro de Saúde, onde a médica da equipa da VMER encontrou GH com sintomas de Edema Agudo do Pulmão (EAP) grave, designadamente cianosado, dispneico, não colaborante; com auscultação cardíaca hipofonética, rítmica; auscultação pulmonar com murmúrio vesicular bilateralmente; fervores e sibilos laterais; sem edemas e hipertenso;

5. A equipa médica da VMER efectuou a monitorização cardíaca do paciente com electrocardiograma (ECG) e iniciou terapêutica;

6. Depois do mesmo estar estabilizado, eupneico (sem sinais de dificuldade respiratória) e sem dor precordial, a equipa da VMER fez o transporte de GH para o HES, onde chegou já sem dificuldades respiratórias nem queixas de dor precordial, consciente, orientado e corado;

7. Pelas 5h03m, GH deu entrada no SU do HES, acompanhado pela equipa médica do VMER, tendo a triagem sido efectuada às 5h10m;

8. No SU, GH foi recebido pela arguida, que ficou encarregue de lhe prestar assistência médica e foi a única responsável pelo atendimento médico que lhe foi efectuado no hospital;

9. Aquando da entrada no SU, a médica da VMER passou à arguida, na qualidade de médica que o recebeu, toda a informação clínica da situação de GH, incluindo cópia da ficha de observação médica (ficha CODU) e o ECG realizado;

10. Comunicou-lhe, também, que se tratava de doente com provável Edema Agudo do Pulmão, grave, mas que não necessitava de cuidados imediatos, pois estava estabilizado, do que a arguida ficou ciente, tendo GH permanecido a oxigénio;

11. Assim, logo que lhe foi possível, a arguida avaliou e interrogou GH no balcão de homens, tendo apurado:

- Tratar-se de um doente do sexo masculino, de 71 anos, de raça eurocaucasóide, trabalhador agrícola/reformado, com antecedentes pessoais e hábitos medicamentosos que não soube discriminar claramente;

- Que tomava medicação para o colesterol, sem contudo identificar o nome do medicamento;

- Que tomava medicamentos que o punham a urinar, mais uma vez sem saber discriminar o nome do medicamento;

- Ter tido hábitos tabágicos;

- Não se recordar de qualquer internamento hospitalar;

- Ter acesso ao seu médico de família, que anualmente o avaliava;

- Que tinha realizado recentemente diversos exames prescritos pelo médico de medicina geral e familiar;

- Que o episódio que o levou ao SU se relacionava com o facto de ter sentido dificuldade respiratória e torácica em casa após o jantar, tendo sido conduzido ao SAP de Vendas Novas pelo seu filho, local onde teve atendimento médico, sendo posteriormente avaliado e assistido pela equipa da VMER;

12. Após ter apurado os dados referidos no ponto 11 dos factos provados, relativos ao quadro clínico, a arguida efectuou o exame objectivo do doente;

13. A observação foi feita em maca com elevação da cabeceira e tronco de aproximadamente 30º (trinta graus);

14. Da observação resultou tratar-se de doente obeso, consciente, orientado no espaço e tempo, com um Score de Glasgow de 15 (situação de normalidade), com discurso fluente e coerente;

15. No exame físico realizado a GH, a arguida verificou que este se encontrava com as mucosas coradas e hidratadas, com ingurgitamento jugular a 40º, com auscultação cardíaca (AC) que mostrava S1 e S2 mantidos, sem sopros nem extra-sons, sem edemas dos membros inferiores, sem refluxo hepato-jugular, eupneico, sem cianose, sem tiragem, com auscultação pulmonar (AP) com murmúrio vesicular mantido, simétrico, sem ruídos adventícios, com abdómen globoso, mole e depressível;

16. Não tinha queixas de dor, sendo a tensão arterial de 110/56 e apresentava saturações periféricas acima de 90%;

17. Face a todos os elementos conhecidos (quadro clínico do doente, a terapêutica realizada, a resposta clínica e a hipótese diagnóstica aquando da avaliação da VMER), a arguida procedeu então ao estudo complementar do diagnóstico;

18. Nesse âmbito, solicitou a realização de análises, de gasimetria arterial, de radiografia de tórax pós anterior e de ECG;

19. A radiografia do tórax mostrava um infiltrado intersticial bilateral ocupando o quarto inferior de ambos os campos pulmonares;

20. Tal radiografia foi realizada com GH deitado em maca com elevação de tronco e cabeceira a 30º (trinta graus), e não de pé, pelo que a arguida entendeu ser desconsiderar tais alterações;

21. A gasimetria revelou uma retenção de CO2 grave (81 mmHG), com pH (7.210 L) característico de acidose;

22. A Troponina I estava elevada (0,52 ng/ml);

23. A enzima CKmb apresentava um valor de 2,3 ng/mL, dentro dos valores de referência;

24. O bicarbonato apresentava valores de 32,4 mmol/L (HCO3) e 25,8 mmol (HCO3std), acima dos valores de referência;

25. Apesar do referido nos pontos 20, 21 e 22 dos factos provados, tendo em consideração as más condições técnicas em que foi realizada a radiografia, o historial clínico e pessoal de GH, a ausência de dor, a inexistência de alterações da CKmb, a sua boa oxigenação, o seu bom estado de consciência e de orientação no espaço e no tempo, com discurso fluente e articulado, a inexistência de sinais clínicos de situação aguda e a sua obesidade, a arguida entendeu estar perante uma situação de cronicidade do quadro respiratório no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), associada quer ao meio laboral (paciente havia sido carpinteiro e trabalhador agrícola), quer a uma história de tabagismo não quantificada;

26. Não obstante o referido no ponto 25 dos factos provados, face à hipótese de diagnóstico de EAP colocada pela médica da VMER, o tratamento de GH, efectuado quer pela VMER, quer pela arguida no SU, foi centrado em três objectivos:

- Melhorar a ventilação pulmonar através da administração de oxigénio e realização de terapêutica broncodilatadora, o que foi realizado com sucesso, sendo que a realização de terapêutica broncodilatadora foi realizada exclusivamente pela VMER;

- Diminuir a congestação venocapilar, para diminuir a congestação pulmonar, com administração de fármacos diuréticos e de fármacos venodilatadores, no sentido de diminuir o fornecimento de líquidos ao coração e assim retirar uma eventual sobrecarga do mesmo, o que também foi feito com sucesso, sendo que a administração de tais fármacos foi feita exclusivamente pela equipa da VMER;

- Tratamento etiológico/Doença causal, sendo este da responsabilidade da arguida;

27. Enquanto se manteve no SU em observação, GH esteve sempre assintomático;

28. Considerando o quadro clínico e a referida interpretação efectuada pela arguida quanto às alterações dos exames complementares de diagnóstico, GH foi colocado sentado num cadeirão e retirada a respectiva algália, tendo urinado espontaneamente;

29. A arguida chamou por duas vezes os familiares de GH para lhes explicar a situação, mas nenhum se encontrava presente;

30. Assim, encontrando-se GH em bom estado de consciência e de orientação, a arguida explicou-lhe o seu quadro clínico e respectiva interpretação;

31. Mais lhe foi dito pela arguida que:

- A medicação que realizava no domicílio, nomeadamente a que o colocava a urinar, não poderia faltar,
sob pena de desencadear nova crise de dispneia;

- Deveria ficar em repouso, fazer uma dieta ligeira, sem sal e com restrição de gorduras;

- Deveria voltar de novo ao SU ao menor sinal de descompensação;

- Deveria consultar o médico de família o mais rapidamente possível para que este ficasse informado dos factos e pudesse estudar as circunstâncias de forma mais exaustiva, bem como reajustar, se assim o considerasse, a sua terapêutica habitual, ao que GH respondeu que conseguiria falar com o seu médico na segunda-feira;

32. A arguida explicou igualmente a GH que não iniciava qualquer terapêutica nova em função de já estar medicado para a causa da situação que o levou ao SU, mas também porque rapidamente poderia consultar o seu médico assistente, que de forma mais ajustada e com melhor monitorização dos resultados, alargando inclusivamente o estudo complementar com possível avaliação da função cardíaca com ecocardiograma/prova de esforço e avaliando a função respiratória com provas de função respiratória, poderia aferir as possíveis correcções terapêuticas a implementar;

33. Para este efeito, foi entregue a GH cópia de todo o processo clínico e respectivos exames complementares de diagnóstico;

34. Foi neste contexto que, pelas 7h07m, a arguida concedeu alta a GH, sendo certo que não o medicou nem lhe prescreveu qualquer terapêutica medicamentosa;

35. Acontece que, tendo em conta a provável existência de Edema Agudo do Pulmão, referida na hipótese de diagnóstico que lhe foi transmitida pela VMER, impunham as boas práticas médicas que a arguida tivesse determinado o internamento de GH, com a sua consequente monitorização e vigilância e não lhe tivesse dado alta, como fez;

36. As alterações referidas nos pontos 19, 21 e 22 impunham, de acordo com as boas práticas médicas, o internamento do paciente para melhor estabilização, o que também já se impunha pela provável existência de EAP;

37. Porque não avaliou correctamente a gravidade da situação clínica do doente e da patologia de EAP, nem analisou e valorizou devidamente os resultados dos exames complementares de diagnóstico supra referidos e as alterações por ele reveladas, a arguida deu alta a GH, ao contrário do que devia, impunham as boas capacidades médicas e tinha capacidade para ter feito;

38. Não obstante a concessão da alta às 7h07m, GH ficou no SU até cerca das 11h00m, pois nenhum familiar o foi buscar, tendo sido transportado a casa pelos Bombeiros Voluntários de Vendas Novas, que aí o deixaram às 12h05m;

39. A hora não concretamente apurada, mas certamente antes das 20h47m, GH voltou a ter uma crise de falta de ar;

40. Às 20h47m um membro da sua família telefonou para o 112, que às 20h53m accionou como meio de socorro os bombeiros de Vendas Novas;

41. A ambulância dos bombeiros de Vendas Novas saiu do quartel às 20h55m;

42. Contudo, devido a lapso na morada, os bombeiros de Vendas Novas deslocaram-se primeiramente à Rua ..., em Vendas Novas, e não à artéria com o mesmo nome, mas sita nas Piçarras, localidade onde residia GH;

43. Devido a tal circunstância, acabaram por chegar ao local onde se encontrava GH às 21h15m;

44. Quando os bombeiros se acercaram de GH este encontrava-se inconsciente e em situação de paragem cárdio-respiratória, sendo que aqueles lhe prestaram socorro, nomeadamente efectuando manobras de reanimação cárdio-respiratória;

45. Às 21h16m os bombeiros de Vendas Novas contactaram o CODU, que por seu turno accionou a VMER, sendo que esta chegou junto de GH às 21h50m, tendo-o encontrado em situação de paragem cárdio-respiratória, em assistolia e com os bombeiros em suporte básico de vida (SBV), na sequência do que a equipa da VMER iniciou manobras avançadas de suporte de vida e administrou fármacos a GH com vista à sua reanimação, mas no entanto sem sucesso;

46. GH acabou por falecer, com hora declarada de morte às 22h30m do referido dia 16 de Fevereiro de 2008;

47. A morte de GH ficou a dever-se a Edema Agudo do Pulmão e foi consequência directa e necessária da conduta da arguida, designadamente da sua decisão de não o internar no SU e lhe ter dado alta hospitalar, decisão essa que tomou nas circunstâncias e pelos motivos supra referidos;

48. O Edema Agudo Pulmonar, embora seja uma patologia grave, com a assistência médica adequada tem tratamento e não conduz à morte;

49. Ao actuar da forma descrita, designadamente ao dar alta a GH nas circunstâncias em que o fez, fazendo uma incorrecta avaliação da gravidade da patologia que apresentava e das alterações reveladas pelos exames complementares de diagnóstico que analisou, a arguida violou as boas práticas da medicina e os deveres de cuidado e profissionais que se lhe impunham, sendo certo que os conhecia, a eles estava obrigada e tinha capacidade para os respeitar;

50. A arguida sabia que a sua conduta é proibida por lei;

51. Durante o período de turno da arguida no SU, referido no ponto 2 dos factos provados, verificaram-se os seguintes condicionalismos:

- No dia 15 de Fevereiro de 2008, sexta-feira, às 8h00m havia no serviço de Medicina 2 uma vaga em enfermaria e outra vaga suplementar no refeitório, não existindo vagas no serviço de Medicina 1;

- Durante a tarde do dia 15 de Fevereiro de 2008 foram dadas duas altas, sendo uma na enfermaria e outra no refeitório, cujas vagas foram ocupadas ainda no decorrer do dia 15;

- O SO estava preenchido;

- Entre as 8h00m do dia 15 de Fevereiro de 2008 e as 8h00m do dia 16 de Fevereiro de 2008 afluíram ao SU mais de 150 doentes;

- A arguida deu alta a 45 doentes, mas observou e prestou assistência a mais, nomeadamente os que foram internados e os que foram passados a outras especialidades, nomeadamente de cirurgia geral e de psiquiatria;

- A arguida encontrava-se bastante cansada, o que desde logo resultava da circunstância de estar a fazer um turno de 24h;

52. A arguida exerce funções nas urgências de dois hospitais, em regime de prestação de serviços, auferindo a quantia média mensal de € 1750, que pode atingir a quantia de € 2500 em meses de férias;

53. Vive com o marido e com três filhos menores;

54. O seu marido é professor no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, auferindo a remuneração mensal de € 1900;

55. O seu agregado habita em casa própria, pagando a instituição bancária a quantia média mensal de € 1000, decorrente da concessão de empréstimo para aquisição daquela habitação;

56. O casal despende a quantia média mensal de € 1500 nas propinas escolares dos seus filhos, bem como no vestuário e em tratamentos dentários destes;

57. A arguida tem como habilitações literárias a licenciatura em Medicina;

58. É tida pelos seus colegas, nomeadamente por aqueles que com ela trabalharam e conviveram no HES, como uma excelente profissional, cuidadosa, atenta e com muito boa preparação;

59. Do certificado de registo criminal da arguida não consta qualquer averbamento.

Factos não provados:

I. A arguida é detentora da especialidade de Medicina Geral e Familiar;

II. Na ocasião referida no ponto 4 dos factos provados, GH encontrava-se hipotenso;

III. O ECG referido no ponto 18 dos factos provados apresentava ritmo sinusal sem evidências de isquémia, sem arritmia (normal) e sem sinais electrocardiográficos de hipertrofia, isto é, não mostrava evidência de sofrimento cardíaco grave ou agudo;

IV. O tratamento etiológico referido no ponto 26 dos factos provados foi efectuado com sucesso;

V. Por referência ao ponto 38 dos factos provados, GH chegou a casa bem e sem qualquer problema;

VI. Por referência ao período em que GH permaneceu no HES após a concessão da alta e até ao momento em que os bombeiros o foram buscar (ponto 38 dos factos provados), aquele permaneceu assintomático e sem alterações do seu estado.

A demais matéria alegada, nomeadamente na contestação, é de natureza conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa, razão pela qual não consta do elenco de factos provados ou não provados

Motivação fáctica:
Na formação da sua convicção o tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, acolhendo os dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e dos depoimentos prestados. Buscaram-se os seus pontos de concludência, de coerência e de consistência. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica da prova.

Assim:
- Quanto aos pontos 1 e 2 dos factos provados e I dos factos não provados, o tribunal atendeu às declarações da arguida, nomeadamente quanto à circunstância de ter referido ser médica não especialista, não sendo detentora da especialidade referida na pronúncia ou de qualquer outra, o que aliás se encontra em consonância com o que consta do relatório social de fls. 841 a 847;

- As respostas contidas nos pontos 3 a 6 da matéria provada e II da matéria não provada têm na sua base os documentos de fls. 17 (ficha de consulta do SAP do Centro de Saúde de Vendas Novas, que também se encontra a fls. 639) e 108 (ficha de observação médica da VMER do INEM, que também se encontra a fls. 407), conjugados com as declarações do assistente CH, filho de GH, e com o depoimento da testemunha ML, médica pneumologista, que à época dos factos integrava a referida equipa da VMER.

Mencionou CH que entre as 2 e 3 da manhã o seu pai lhe telefonou referindo que se sentia com falta de ar e com dores no peito, sendo que o próprio se deslocou a casa do seu pai (o assistente vivia em Vendas Novas e o seu pai habitava na localidade das Piçarras), sendo que de tal local telefonou para o 112, iniciando o próprio o transporte de GH para o Centro de Saúde de Vendas Novas, sendo que à entrada desta localidade encontrou a ambulância dos bombeiros, fez-lhe sinal e o seu pai foi transferido para tal viatura (veja-se a guia de transporte de doentes de fls. 606), continuando viagem em direcção ao Centro de Saúde de Vendas Novas (nas palavras do próprio, quando o seu pai foi transferido para a ambulância «já não dizia coisa com coisa»). Entretanto chegou também ao Centro de Saúde de Vendas Novas a ambulância da VMER, sendo que depois de prestar auxílio a GH a médica da equipa da VMER disse ao assistente que o seu pai estava muito mal, que já o tinha conseguido estabilizar, que seria transportado para o HES e que não valia a pena o próprio dirigir-se também para a unidade hospitalar, devendo antes telefonar para o HES às 8h00m para pedir informação sobre o estado do seu pai.

De especial importância quanto a esta matéria mostrou-se também o depoimento da testemunha ML, que referiu que quando a sua equipa chegou ao Centro de Saúde de Vendas Novas encontrou GH com um quadro de Edema Agudo do Pulmão, com descompensação grave, com os sinais já referidos na matéria provada, ao que acrescentou que se mostrava com alterações de consciência (devido à falta de oxigénio), não conseguindo falar, com respiração típica de exaustão e num estado agónico. Mais referiu que apesar de se encontrar num estado grave não foi necessário ligá-lo ao ventilador, pois os valores da tensão arterial eram elevados.

Aliás, sobre a tensão arterial cumpre referir que a pronúncia padece de lapso manifesto, que corrigimos em sede de sentença. Com efeito, na pronúncia é referido que GH se encontrava hipotenso, quando na realidade se encontrava hipertenso. Esse é facto de que ML se recorda com precisão, tendo explicado que a circunstância de GH se encontrar hipertenso era um bom sinal, pois permitia a administração de determinadas drogas com o intuito de baixar a tensão arterial, enquanto que na situação em que o paciente se encontra hipotenso já não é possível administrar essas drogas, sendo uma situação mais grave, que obriga à sua ventilação (explicou ML que quando a tensão arterial média é inferior a 90 a pessoa considera-se hipotensa, sendo que a partir de uma média de 140-160 a pessoa considera-se hipertensa). De todo o modo, a própria arguida referiu em audiência que a informação que lhe foi transmitida pela testemunha ML era que quando inicialmente contactou com GH este se encontrava hipertenso, o que se encontrava compatível com a ficha da VMER que lhe foi apresentada, sendo os primeiros valores de pressão arterial registados de 170/90 (veja-se fls. 108). Por estas razões resultou provado que na ocasião referida GH se encontrava hipertenso e não provado que se encontrava hipotenso (ponto II dos factos não provados).

Continuando com o depoimento de ML, mais referiu que face ao estado clínico que GH apresentava procurou estabilizá-lo, administrando-lhe drogas típicas para situação de EAP, nomeadamente nitratos e diuréticos (precisamente os fármacos que são mencionado na ficha de fls. 108 e que depois também são referidos no relatório completo de urgência do HES sobre o qual nos debruçaremos mais adiante), tendo ainda efectuado ECG. Conseguida a estabilização de GH, foi então encetado o seu transporte para o HES, sendo que à saída do Centro de Saúde de Vendas Novas já aquele falava, mostrando-se consciente e lúcido (é circunstância de que ML se recordava com particular pormenor, pois na altura até disse à enfermeira da equipa da VMER que agora que o doente tinha começado a falar já não se calava mais até ao HES), sendo que chegou ao HES no estado referido no ponto 6 dos factos provados, o que de resto se mostra em consonância com o relatório de urgência;

- No que tange ao ponto 7 dos factos provados, atendeu-se ao teor do relatório de urgência de fls. 20-21, do relatório institucional de episódio de urgência de fls. 655-656, do relatório completo de episódio de urgência de fls. 109 a 114 e do relatório de urgência de fls. 995 a 997 (de ora em diante designados apenas por relatórios de urgência), encontrando-se este último inserto na certidão emitida pelo Conselho Nacional de Disciplina da Ordem dos Médicos, respeitante ao processo disciplinar que corre em paralelo, em que também é arguida ME.

Quanto a esta matéria note-se que na pronúncia era referido que GH deu entrada no SU do HES às 5h10m. No entanto, entendeu o tribunal que tal facto deveria ser descrito com maior precisão, consignando que GH deu entrada no SU do HES às 5h03m (hora da admissão), tendo a triagem acontecido às 5h10m, que é afinal o que consta dos relatórios referidos.

No que respeita à triagem propriamente dita, cumpre dizer que ML referiu que à chegada ao HES GH passou imediatamente para o interior do SU, nem sequer passando pelo balcão de triagem, sendo que o discriminador que consta nos relatórios de urgência quanto à triagem («incapacidade de articular frases completas») foi transmitido pela própria à enfermeira responsável pelo balcão de triagem, muito embora na ocasião tal incapacidade já não se verificasse (como aliás já vimos há pouco a respeito do ponto 6 dos factos provados), o que fez com o intuito de que fosse atribuída a GH maior prioridade (o que aconteceu através da atribuição da prioridade laranja, correspondente a situação muito urgente, segunda mais importante na escala respeitante à triagem de Manchester);

- Quanto aos pontos 8, 9 e 10 da matéria provada, tomou-se em consideração as declarações da arguida e o depoimento de ML, que se mostraram concordantes, mostrando-se ainda em consonância com o que consta dos relatórios de urgência, nomeadamente quanto à circunstância de terem sido transmitidos à arguida a informação clínica e demais elementos referidos.

Em especial quanto ao diagnóstico referido no ponto 10 dos factos provados, cumpre dizer que das declarações da arguida e do depoimento de ML não resulta que esta tenha transmitido àquela que GH tinha um Edema Agudo do Pulmão, mas sim que tal era o diagnóstico provável (referiu a arguida que ML lhe disse que lhe parecia que o doente tinha um EAP, o que se mostra compatível com o que a última também referiu em sede de audiência de discussão e julgamento).

Aliás, nem poderia ser de outra forma. Com efeito, conforme escreve HENRIQUES GASPAR, «o diagnóstico é “grosso modo” a determinação da doença. Perante o doente que se queixa, o médico utiliza os seus conhecimentos para determinar o mal do doente e, uma vez determinado, lhe ministrar o tratamento adequado» (A Responsabilidade Civil do Médico, Colectânea de Jurisprudência, 1978, ano III, Tomo 1, p. 335-335).

De forma mais exaustiva, debruçando-se sobre as diversas fases da actividade médica normal, MARIA DE FÁTIMA GALHARDAS menciona que a seguir à fase da anamnese, «reportada ao historial clínico do doente e que tem a ver com um dever de preparação e informação prévio», se segue a fase do diagnóstico, que «é o momento central da actividade típica do profissional médico, que pressupõe a recolha de todos os dados anamnésticos, a interpretação de todos os sintomas clínicos manifestados pelo doente, o uso oportuno dos chamados meios auxiliares de diagnóstico, a correcta valoração dos resultado obtidos dessas investigações, o conhecimento dos diversos quadros nosográficos – que descrevem, diferenciam e classificam as doenças – esquematizados pela patologia e suas múltiplas variantes, de acordo com a experiência clínica» (Negligência Médica no Código Penal Revisto, in Revista Sub Judice, nº 11, Janeiro/Junho de 1996, p. 163 e ss.).

Por seu turno, na sua obra intitulada Responsabilidade Médica em Direito Penal (Almedina, Março de 2007, p. 33), ÁLVARO RODRIGUES escreve que «vários são os actos médicos praticados na fase de diagnóstico de clínica geral, entre os quais, de acordo com o esquema de Surós, se destacam:

Interrogatório (anamnese);
Inspecção (primeiro a geral, somática – atitude, fácies, estado nutritivo, altura, cor da pele, etc. e depois a local ou topográfica como do tórax, abdómen, etc.);
Palpação;
Mensuração;
Percussão;
Auscultação; e
Métodos complementares de diagnóstico».

Como bem se vê, ao contrário do que se dá a entender na pronúncia o diagnóstico efectuado por ML não tinha um carácter definitivo, até porque na VMER não tinha acesso aos meios técnicos para que fossem efectuados os exames complementares (laboratoriais, imagiológicos, etc.) necessários para emitir um juízo de tal natureza, nem uma viatura com aquelas características está vocacionada para tanto (mas sim para a emergência e reanimação, como o seu próprio nome indica), para isso existindo as unidades hospitalares, para onde veio a ser transportado GH. Aliás, na própria ficha da VMER de fls. 108, o EAP surge como hipótese diagnóstica. Daí que no ponto 10 dos factos provados surja a expressão provável, o que se encontra em consonância com o que a arguida alegou na sua contestação (artigos 18º e 30º da contestação).

No que diz respeito ainda ao facto consignado no ponto 10 dos factos provados, em relação ao que constava da pronúncia acrescentou-se ainda o segmento “mas que não necessitava de cuidados médicos imediatos”, que provém do artigo 8º da contestação. Com efeito, ML referiu que logo que entraram no SU (nos termos que já referimos a propósito do ponto 7 dos factos provados) a arguida estava a atender uma outra paciente, mas veio logo ter consigo. A testemunha disse-lhe que o doente que trazia (GH) já estava estabilizado, pelo que não necessitava de assistência imediata, podendo a arguida continuar a ocupar-se da outra paciente;

- O ponto 11 dos factos provados resulta das declarações da arguida, que descreveu de forma circunstanciada os diversos itens referidos em tal ponto, relacionados com a fase da anamnese a que já fizemos referência. De todas as pessoas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento, apenas a arguida sabia o que perguntou a GH, pelo que as suas declarações foram nesta parte totalmente acolhidas pelo tribunal.

Provindo tal facto do alegado no artigo 9º da contestação, note-se que em sede de sentença foi expurgada a expressão “fácil”, relacionada com o acesso ao médico de família, pois tal expressão é de natureza conclusiva;

- As respostas contidas nos pontos 12 a 16 dos factos provados resultam também das declarações da arguida, desta feita conjugadas com o teor dos já referidos relatórios de urgência.

Alguns destes pontos dos factos provados necessitam, no entanto, de explicação suplementar:

. Quanto ao ponto 14, que tem na sua génese o artigo 12º da contestação, note-se que embora não tenhamos conseguido vislumbrar nos referidos relatórios de urgência uma referência expressa a um Score de Glasgow de 15, o tribunal teve como boa a declaração da arguida nesse sentido. Com efeito, tal declaração mostra-se compatível com a circunstância de GH se encontrar orientado (o que expressamente consta dos relatórios de urgência na parte respeitante ao exame físico, sendo ainda compatível com o que ML disse a respeito do estado de GH à chegada ao HES), sendo certo que um valor de 15 na escala de Glasgow corresponde a uma pessoa desperta e totalmente alerta, i.e., a uma situação de normalidade (uma simples busca na internet permite encontrar quadros com a referida escala de Glasgow, desenvolvida por Graham Teasdale e Bryan J. Jennett, professores da Universidade de Glasgow);

. No que respeita ao ponto 15,o tribunal decidiu transcrever o que consta dos relatórios de urgência na parte respeitante ao exame físico, sendo certo que tal exame físico foi realizado pela própria arguida e que o que foi escrito nesse segmento dos relatórios de urgência é da sua lavra. De todo o modo, corresponde no essencial ao que a arguida alegou nos artigos 13º a 16º da sua contestação, sendo certo que a ausência de sinais clínicos de falta de ar ou de dificuldades em respirar (alegada no artigo 13º da contestação) é uma das conclusões que se extrai do observado no exame físico (assim, sendo uma conclusão, não foi inserida nos factos provados);

. Também a ausência de queixas de dor e os valores da tensão arterial se encontram consignados nos relatórios de urgência, sendo que no que tange às saturações periféricas as mesmas foram referidas pela arguida em sede de audiência de discussão e julgamento, não existindo razões para não ter como boa a sua palavra, tanto mais que diz respeito a matéria atinente ao exame físico por si realizado – ponto 16 dos factos provados;

- Os pontos 17 e 18 dos factos provados resultam também do teor dos relatórios de urgência, conjugados com as declarações da arguida, sendo indubitável que esta solicitou a realização dos exames complementares de diagnóstico referidos.

No entanto, apesar de ter resultado provado que além dos exames complementares de diagnóstico laboratoriais e radiológicos referidos a arguida solicitou também a realização de ECG, o tribunal não pôde considerar provado o apurado em tal ECG (ponto III dos factos não provados). Com efeito, O ECG desapareceu (a este propósito veja-se: fls. 225, respeitantes ao processo de averiguações internas do HES; fls. 1003, respeitantes ao parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos, elaborado no âmbito do processo disciplinar respeitante à arguida). Por isso não é possível afirmar com certeza o que o ECG evidenciava ou deixava de evidenciar, sendo certo que sobre esta matéria, por se tratar de um elemento técnico (ao contrário do que referimos, por exemplo, quanto ao ponto 16 dos factos provados), não é suficiente a declaração da própria arguida. De todo o modo, há que realçar que a circunstância de não ter resultado provado o facto referido, que deriva dos artigos 20º e 21º da contestação, não significa de modo algum que esteja provado o contrário, i.e., que no SU GH se encontrasse em situação de sofrimento cardíaco agudo ou grave;

- Os pontos 19 e 20 dos factos provados resultam das declarações da arguida, sendo certo que as diversas testemunhas que tiveram acesso ao processo clínico ou aos presentes autos foram unânimes em referir que a radiografia foi realizada em más condições técnicas [ML, confrontada com o documento de fls. 114 (cópia em papel da referida radiografia, inserta no relatório completo de episódio de urgência de fls. 110 e ss.), mencionou que a mesma foi realizada em péssimas condições técnicas; BP, médico da especialidade de medicina interna e instrutor do processo de averiguações internas do HES, que nessa qualidade teve acesso ao original da referida radiografia, fez também menção às más condições técnicas da sua realização). Para melhor esclarecimento, referiu a arguida que uma radiografia para ser feita nas melhores condições deve ser realizada com o doente em pé, pois caso contrário a imagem pode ficar distorcida.

No que respeita ao que aquela radiografia demonstrava, as declarações da arguida também se mostram compatíveis com o que referiram ML (recordemos, médica pneumologista) e BP (ML referiu que a radiografia demonstra a existência de estases nas bases dos pulmões, sendo que BP fez também menção a sinais evidentes de estase), o que de todo o modo é confirmado pelo teor da consulta técnico científica do Conselho Médico-Legal do “Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P.” (fls. 165 a 167), onde se lê «Rx tórax – de difícil leitura, mas parece haver grande congestão hilar e sinais de edema intersticial»).

Em especial quanto à circunstância da arguida ter entendido ser de desconsiderar as alterações evidenciadas pela radiografia, a própria confirmou-o expressamente, sendo certo que tal se enquadra no que diremos a respeito do ponto 25 dos factos provados;

- Os pontos 21, 22 e 23 dos factos provados e IV dos factos não provados têm como suporte o que consta dos relatórios de urgência quanto aos resultados das análises e gasimetria arterial.

Sobre esta matéria, cumpre dizer que ao contrário do que a arguida conclusivamente alega no artigo 24º da sua contestação, não se pode considerar que o valor da Troponina I se encontra apenas moderadamente aumentado, pois o valor apurado é 17 a 18 vezes mais alto do que o valor máximo de referência (valores de referência entre 0.00 e 0.003 ng/mL), o que de resto é assinalado no já referido parecer do Colégio de Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos (cfr. fls. 1003);

- Já quanto ao ponto 24 dos factos não provados, proveniente do artigo 29º da contestação, a arguida apenas se refere a bicarbonato. Presumimos que se esteja a referir ao HCO3, já que os bicarbonatos são sais que contêm o anião HCO3. Ora, em relação ao HCO3, muito embora os relatórios de urgência não mencionem os valores de referência laboratorial, os apurados são superiores aos que na internet encontrámos como valores de referência (cfr. http://boasaude.uol.com.br/exam/index.cfm?lookup=A&ExamID=9&View=View e http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAplsAF/gasometria);

- O vertido no ponto 25 da matéria provada resulta também das declarações da arguida. Com efeito, sobre esta matéria a arguida referiu que face à situação clínica que lhe foi descrita pela equipa da VMER, considerou que o mesmo podia indicar um quadro de EAP, tendo valorizado os sintomas que lhe foram comunicados nesse sentido, razão pela qual pediu a realização dos exames complementares de diagnóstico. Contudo, tendo recebido e analisado o resultado de tais exames complementares de diagnóstico e considerando os elementos que consignámos no ponto 25 dos factos provados (no essencial resultante da conjugação dos artigos 23º e 25º a 29º da contestação), na sua opinião a situação clínica de GH enquadrava-se numa crise hipertensiva pré-EAP no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), estando descartada a hipótese daquele pré-EAP poder evoluir para EAP nas horas seguintes. Mais adiante já veremos a importância que esse juízo clínico da arguida teve sobre os acontecimentos subsequentes, pois ele foi essencial para a concessão da alta;

- O referido no ponto 26 dos factos provados tem estreita ligação com o ponto 25 dos factos provados, significando que não obstante a arguida tenha vindo a chegar à conclusão referida no ponto 25 dos factos provados, a própria valorizou a hipótese de diagnóstico apresentada pela VMER (nomeadamente solicitando os exames complementares de diagnóstico nos termos já referidos), pelo que o tratamento de GH (efectuado pela VMER e pela própria arguida) foi necessariamente centrado nos três objectivos referidos. Contudo, uma vez que no artigo 30º da contestação, que constitui a base deste facto provado, não é referido quem administrou os fármacos a GH, entendeu o tribunal consignar expressamente que tal foi realizado pela VMER. Com efeito, dos relatórios de urgência resulta que os fármacos furosemida, morfina, salbutamol, brometo de ipatrópio e metoclopramida que têm fins broncodilatadores, diuréticos e venodilatadores, foram administrados pela VMER, o que se encontra em consonância com a ficha INEM/VMER de fls. 108. Aliás, a própria arguida mencionou que não administrou qualquer fármaco a GH, o que de todo o modo é compreensível face à circunstância deste ter permanecido no SU ainda sob o efeito dos administrados pela VMER, tendo apresentado «franca melhoria clínica» após a sua administração (veja-se o escrito nos relatórios de urgência no segmento história da doença actual).

Relacionado com este facto provado encontra-se o ponto IV dos factos não provados. Com efeito, sendo a etiologia o estudo da causa das coisas, referindo-se mais especificamente quanto à medicina ao estudo das causas das doenças, não se pode dizer que o tratamento etiológico efectuado pela arguida tenha encontrado sucesso [com tal matéria relaciona-se ao que já dissemos a respeito da conclusão a que a arguida chegou (ponto 25 dos factos provados), sendo campo a que teremos necessariamente de regressar];

- Quanto aos pontos 27 a 33 da matéria provada, a convicção do tribunal fundou-se nas declarações da arguida, que também neste ponto se mostraram credíveis, tanto mais que de todas as pessoas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento, apenas a arguida sabia o estado que GH apresentava durante o tempo que permaneceu no SU, sendo certo que dos relatórios de urgência consta a expressão “melhorou”, por referência à alta (por isso consignámos no ponto 27 dos factos provados que durante a sua permanência no SU em observação, GH esteve assintomático). Também em relação à informação e recomendações transmitidas (pontos 30 a 33 dos factos provados) apenas a arguida poderia prestar declarações esclarecedoras, sendo certo que o que referiu se encontra em consonância quer com o consignado nos relatórios de urgência (alta para o domicílio; destino: médico assistente; consulta de acompanhamento: por Médico do Centro de Saúde), quer com o declarado por CH (mencionou que quando contactou com o seu pai após o regresso a casa, este lhe transmitiu que a arguida lhe tinha dado uma carta e dito para ir ao médico de família. Note-se que este discurso coerente de GH, relatado pelo assistente CH, serve também para reforçar a ideia de que se encontrava orientado e de que percebeu o que lhe foi transmitido e recomendado pela arguida aquando da alta).

Finalmente ainda dentro deste conjunto de factos, a circunstância de nenhum familiar de GH se encontrar presente aquando da alta (ponto 29 dos factos provados), tal foi também confirmado por CH, sendo certo que quando expusemos a nossa convicção quanto aos pontos 3 a 6 da matéria provada já explicámos a razão pela qual se verificou tal ausência (de todo o modo, pela sua importância indiciária quanto aos factos essenciais em discussão nos autos, será matéria sobre a qual nos voltaremos a debruçar mais adiante);

- O ponto 34 dos factos provados resulta quer das declarações da arguida, quer dos relatórios de urgência, estando intimamente ligado com o ponto 26 dos factos provados na parte na parte atinente à não administração de fármacos no SU (veja-se o que escrevemos aquando da motivação do ponto 26 dos factos provados quanto à administração de fármacos), com o ponto 25 dos factos provados (conclusão a que a arguida chegou, que esteve na génese da alta, para o que naturalmente também contribuiu o referido nos pontos 27 a 30 dos factos provados) e com os pontos 31 a 33 dos factos provados (quanto à circunstância de não ter receitado a GH qualquer terapêutica medicamentosa);

- Os pontos 35, 36, 37, 48 e 49 dos factos provados constituem o cerne da causa.

Quanto a esta matéria teve primordial importância na decisão do tribunal o parecer de fls. 165 a 167, elaborado no âmbito de consulta técnico-científica solicitada ao Conselho Médico-Legal do “Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P.” (e naturalmente os esclarecimentos de fls. 584 a 586, respeitantes a tal consulta técnico-científica e solicitados em sede de instrução).

Ora, antes de mais há que definir qual o valor probatório de tal parecer. A fls. 137-138, em sede de inquérito, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho: «nos termos do disposto nos arts. 151º e 154º do Código de Processo Penal, determino a realização de perícia que incida sobre as circunstâncias em que ocorreu a morte de GH e a eventual relação existente entre a mesma e a assistência médica hospitalar que lhe foi prestada.

Para o efeito, remetendo cópia de (…), solicite ao Conselho Médico-Legal – INML (Coimbra), que elabore parecer onde se pronuncie sobre os seguintes factos/circunstâncias: (…)» (sublinhado nosso).

A tal solicitação do Ministério Público respondeu o Conselho Médico-Legal do INML a fls. 151, acusando a recepção do processo e informando que o mesmo seria apreciado nos termos do disposto no nº 2 do art. 6º do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril.

O parecer elaborado no âmbito da solicitada consulta-técnico científica foi relatado pelo Doutor Carlos Dias (fls. 165 a 167), tendo o mesmo sido apreciado em reunião do Conselho Médico-Legal do INML realizada a 10 de Dezembro de 2008 e aprovado por unanimidade.

Nos termos do disposto no art. 151º do Cód. de Proc. Penal, «a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos». No caso dos autos era indubitável que tanto a percepção como a apreciação dos factos exigiam especiais conhecimentos científicos, razão pela qual o Ministério Público solicitou a realização de perícia. Vigorando entre nós um modelo de perícia pública (cfr. art. 152º do Cód. de Proc. Penal), teria necessariamente de solicitar a realização da perícia ao INML, já que tal cabe nas suas atribuições, sendo que nesse âmbito é considerado a instituição nacional de referência (cfr. art. 3º, nº 2, alínea b) e nº 3, do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril).

Um dos órgãos do INML é precisamente o Conselho Médico-Legal (cfr. art. 4º alínea b), do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril), a quem compete «exercer funções de consultadoria técnico-científica, designadamente emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas de natureza pericial», sendo que os pareceres técnico-científicos emitidos por tal órgão «são insusceptíveis de revisão e constituem o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada, salvo a apresentação de novos elementos que fundamentem a sua alteração» (art. 6º, nº 2, alínea a) e nº 4, do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril).

Por isso, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Abril de 2012 a propósito também de um parecer elaborado no âmbito de uma consulta técnico-científica do Conselho Médico-Legal do INML, «estamos perante prova pericial, sem sombra de dúvida» (in www.dgsi.pt, Proc. 191/07.0TACCB.C1, Desembargadora relatora Olga Maurício; sublinhado nosso).

Tratando-se de prova pericial, daí teremos de retirar as legais consequências, nomeadamente quanto à circunstância do juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presumir subtraído à livre apreciação do julgador (cfr. art. 163º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal).

Mas vejamos então o que de mais relevante resulta do parecer de fls. 165 a 167 e dos esclarecimentos de fls. 584 a 586, todos atinentes à referida consulta técnico-científica efectuada pelo Conselho Médico-Legal do INML (naturalmente sem ignorar o restante, que aqui não transcrevemos):

- Ao quesito «se o facto de lhe ter sido dada alta médica, nas circunstâncias em que a mesma foi feita, foram procedimentos adequados», foi dada resposta nos seguintes termos: «os procedimentos seguintes foram adequados – observação clínica, estudo analítico, radiografia do tórax, gasimetria, ECG, contudo foi inadequado dar alta ao doente» (fls. 166, sublinhado nosso);

- Ao quesito «na negativa, quais os procedimentos que deveriam ter sido adoptados pelos profissionais envolvidos», foi dada resposta nos seguintes termos: «internamento do doente» (fls. 166, sublinhado nosso);

- Ao quesito «se o facto de ter sido dada alta médica ao doente, tendo em conta o quadro de Edema Pulmonar Grave que apresentava e foi reportado pelo médico do INEM, foi determinante da morte do mesmo, horas depois», foi dada resposta nos seguintes termos: «não podemos estabelecer com segurança uma relação directa causa-efeito entre a alta e a morte do doente. Contudo era previsível, apesar do doente estar estabilizado no SU após terapêutica, com as alterações analíticas presentes na altura (acidose respiratória com elevada retenção de C02, troponina I elevada) e com alterações radiográficas sugestivas de congestão pulmonar, que pudesse vir a ter um agravamento do quadro clínico com novo edema agudo do pulmão que, não sendo tratado em tempo útil, poderia levar à morte» (fls. 167);

- Ao quesito «se é possível determinar que, caso o doente tivesse sido correctamente avaliado e tivesse ficado internado, a situação de edema pulmonar poderia ter sido muito provavelmente controlada e o paciente não teria morrido», foi dada resposta nos seguintes termos: «podemos presumir que se o doente tivesse ficado internado e correctamente avaliado e vigiado a possibilidade de aparecimento de um novo edema agudo do pulmão poderia ter sido diminuída, sob terapêutica médica adequada» (fls. 167);

- Ao quesito «se existe uma relação de causalidade entre as eventuais más práticas médicas e a morte de GH», foi dada resposta nos seguintes termos: «não podemos estabelecer com segurança uma relação causa-efeito entre as atitudes tomadas pelos médicos e a morte do doente» (fls. 167);

- Ao quesito «caso exista nexo de causalidade entre a actuação do clínico e a morte, por violação de boas práticas médicas, quais as concretas condutas/procedimentos que deviam ter sido adoptados», foi dada resposta nos seguintes termos: «o doente deveria ter sido internado e mantido em vigilância» (fls. 167; sublinhado nosso);

- Ao quesito «o diagnóstico de Edema Agudo do Pulmão (EAP) é um diagnóstico clínico» foi dada resposta nos seguintes termos: «sim. O diagnóstico de Edema Agudo do Pulmão é um diagnóstico clínico» (fls. 584);
- Ao quesito «sob o ponto de vista etiológico, o EAP está associado a situações de insuficiência cardíaca (aguda ou crónica) decorrentes na sua grande maioria de crises hipertensivas, cardiomiopatias, síndromes coronários agudos, taquidisrritmias e situações de sobrecarga hídrica», foi dada resposta nos seguintes termos: «sim. São as causas mais frequentes de Edema Agudo do Pulmão» (fls. 584);

- Ao quesito «no SU do HESE o doente GH apresentava sinais ou sintomas de EAP» foi dada resposta nos seguintes termos: «não. Segundo a ficha clínica do SU do HESE o doente não apresentava sinais ou sintomas de EAP. O doente estava consciente, corado e hidratado, com auscultação cardíaca normal e pulmonar normal, o que não sucede no EAP» (fls. 584; sublinhado nosso);

- Ao quesito «é verdade que o Edema Agudo Pulmonar, com a assistência médica adequada tem tratamento e não conduz à morte ou há situações em que apesar de toda a assistência e terapêutica instituída, a morte sobrevém» foi dada resposta nos seguintes termos: «o EAP é uma emergência médica muito grave. Tem tratamento médico adequado, a maior parte das vezes eficaz, mas pode conduzir à morte em algumas situações clínicas mais graves, sobretudo de causa cardíaca ou quando não há resposta à terapêutica» (fls. 584; sublinhado nosso);

- Ao quesito «ainda relativamente à gasimetria e considerando a hipercapnia, face à hipótese diagnóstica e face às circunstâncias de instalação do quadro clínico, seria ou não expectável que o doente tivesse concomitantemente alterações do estado de consciência, nomeadamente estar letárgico, sonolento, confuso ou com cefaleias associadas», foi dada resposta nos seguintes termos: «o doente apresentava um valor de PaC02 de 81.0 na gasimetria. Numa pessoa sem antecedentes patológicos respiratórios, um valor deste nível pode provocar letargia, sonolência, confusão e cefaleias, embora não seja obrigatório que tal ocorra. Num doente com DPOC este valor pode ser o valor habitual e não provocar qualquer sonolência ou letargia, podendo mesmo permitir uma vida normal. Pela análise da ficha clínica não podemos afirmar que o doente sofria de doença pulmonar obstrutiva crónica» (fls. 585; sublinhado nosso)

- Ao quesito «face a um doente que está assintomático, sem sinais ou sintomas respiratórios devem ser valorizadas as alterações do RX de tórax, quando se sabe que o mesmo não foi realizado nas circunstâncias adequadas e que tecnicamente mostra deficiências», foi dada resposta nos seguintes termos: «um Rx de tórax realizado em condições técnicas deficientes deve ser interpretado e avaliado com muita prudência» (fls. 585);

- Ao quesito «face aos conhecimentos e estado da medicina, é errado e não conforme com as leges artis ponderar um síndrome de hipoventilação crónica num doente com hipercapnia e um aumento franco dos bicarbonatos na gasimetria, e que em termos de antecedentes pessoais, é obeso, tem uma DPOC tabágica e que profissionalmente trabalha em áreas que podem também afectar o bom funcionamento pulmonar, designadamente carpintaria e agricultura», foi dada resposta nos seguintes termos: «não é errado. Num doente obeso, com hipoventilação crónica, com hipercapnia e aumento significativo e compensador dos bicarbonatos, fumador e com história de trabalho com madeiras é correcto presumir que pode ter uma DPOC» (fls. 585 e 586; sublinhado nosso).

Ora, analisadas as referidas respostas aos quesitos, podemos concluir que não obstante no SU não apresentasse sinais de EAP, a arguida não podia afastar a hipótese da sua existência (desde logo pelo que lhe foi dito pela médica da VMER) ou da situação de GH avançar para um EAP. Como vimos, foi situação que descartou (note-se que apenas a descartou depois da análise referida no ponto 25 dos factos provados), pois entendeu que estava perante uma situação de cronicidade no contexto de provável DPOC. Contudo, conforme resulta do parecer que vimos transcrevendo, pela análise da ficha clínica não se poderia afirmar que GH sofria de DPOC, sendo certo que o referido na última parte que transcrevemos é, como bem se refere, uma mera presunção, baseada nos factos que a própria arguida fez constar do quesito (veja-se o quesito III- 1, formulado a fls. 947). Acontece que em nenhuma parte dos autos é referido que GH sofria de hipoventilação (é mais uma presunção da arguida), sendo certo que o seu historial tabágico não se encontrava quantificado (cfr. ponto 25 dos factos provados, sendo certo que o assistente referiu que o seu pai foi fumador até aos 49-50 anos, i.e., que já não fumava há cerca de 20 anos).

Em suma, como se refere no despacho de pronúncia, a arguida «partiu de determinados pressupostos que não podia assumir como certos e valorizou indevidamente outros. Nomeadamente, partiu do pressuposto, na avaliação que faz do doente, que este padecia de DPOC. Não o devia ter feito com o juízo de certeza que afirma, pois que se tratava de doente cujo historial clínico desconhecia e que não se fazia acompanhar de documentação médica. Por seu turno, não conseguiu apurar junto do doente (…) qual a medicação que o mesmo tomava (no sentido da identificação nominativa dos medicamentos ou da sua substância activa – cfr. ponto 11 dos factos provados). Não conseguiu confirmar junto dos familiares (…) os antecedentes do doente, a medicação do mesmo e o eventual apoio no domicílio».

Para tudo isto terá certamente contribuído a circunstância da arguida ter visto GH no SU já estabilizado, sem se encontrar em crise aguda e agónico, conforme o encontrou a equipa da VMER.

Estas circunstâncias estiveram na base da alta concedida pela arguida a GH, sendo certo que resulta do parecer elaborado no âmbito da consulta técnico-científica que tal se mostrou inadequado, sendo que o procedimento adequado seria o internamento do doente, com a sua manutenção sob vigilância [ao que acresce que a excelente competência técnico-profissional da arguida, unanimemente reconhecida pelos profissionais médicos inquiridos em audiência (cfr. ponto 58 dos factos provados) lhe permitiam ter actuado de outra forma]. Aliás, em sentido relativamente idêntico, o Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos emitiu parecer (parecer este que não tem valor de prova pericial, mas apenas de prova documental, naturalmente com importância), de onde constam, entre outras, as seguintes conclusões: «a boa prática impunha que o doente não tivesse tido alta antes da reavaliação dos valores da troponina para aferir a sua curva evolutiva, e sem reavaliação e correcção dos valores da gasimetria arterial (acidémia e retenção de CO2); «teria sido prudente a instituição de terapêutica para o ambulatório, ou pelo menos o ajuste da terapêutica que faria habitualmente, a qual não estaria certamente adequada às necessidades do doente já que permitiu a instalação do quadro de edema agudo do pulmão» (cfr. fls. 1003 e 1004).

Sobre esta matéria, para além da própria arguida, foram também ouvidas as testemunhas ML, MT (médica e à data dos factos chefe da equipa de serviço de urgência que a arguida integrava) e BP.

Referiu ML que a situação de GH poderia eventualmente indicar situação de DPOC. Mas mais referiu que com aqueles sintomas e resultados de análises apenas se poderia tratar de situação de EAP, que não obriga a internamento, sendo que duas horas podem chegar para fazer uma análise rigorosa da situação e para conceder alta ao doente (no entanto referiu, aliás de forma perfeitamente compreensível, que para se defenderem a si próprios os médicos pedem uma outra gasimetria antes do doente sair. Tal vai precisamente no sentido do que consta do parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos). De todo o modo, a circunstância de aquando do primeiro episódio (o referido nos pontos 3 a 6 dos factos provados) ML ter dito ao assistente CH que não valia a pena o próprio dirigir-se também para a unidade hospitalar, devendo antes telefonar para o HES às 8h00m para pedir informação sobre o estado do seu pai, indicia que a sua expectativa era também que GH fosse internado ou pelo menos permanecesse mais tempo em observação (de todo o modo, como dissemos, trata-se de mero indício).

MT referiu que teve acesso ao processo clínico e que na sua opinião clínica GH chegou ao SU numa situação de pós-EAP, cujos sintomas são idênticos aos do pré-EAP. Mais referiu que num contexto em que não se conhece o historial clínico do paciente, a boa prática clínica seria a de avaliar a evolução do doente durante 2 a 3 horas, eventualmente com repetição dos exames. Mencionou ainda que na sua opinião GH sofreu uma crise hipertensiva, sendo que se tivesse sido a própria a observá-lo tanto lhe poderia ter dado alta como ter ficado com o mesmo em observação, sendo que mesmo em situações em que o doente tenha tido um EAP é admissível enviá-lo para casa sem ser medicado.

Referiu ainda que não obstante os exames complementares de diagnóstico sejam importantes, a clínica (a observação, a auscultação) é para si soberana.

A este respeito escreve ÁLVARO RODRIGUES que «a diagnose (…) não deve ser apenas a soma dos resultados dos testes e pesquisas, pois, há nela uma componente que ilumina todas as demais: a perspicácia do médico baseada na sua experiência clínica. Todavia, importa ter em atenção que o “olho clínico” não é hoje (cada vez o é menos) elemento exclusivo para a formulação do diagnóstico, embora seja indispensável para a cabal avaliação dos resultados fornecidos pelos meios auxiliares de diagnóstico» (ob. cit., p. 294). Acrescenta ainda o mesmo autor que «na actualidade, o “olho clínico”, de ainda indiscutível relevância no campo médico, vê-se cada vez mais substituído pelos exames multidisciplinares (radiografias, análises clínicas, tomografias axiais computorizadas (T.A.C.), tomodensitometrias, exames de ressonância magnética nuclear, ecografias, ultra-sonografias Doppler etc.), o que implica a exacta leitura do resultado destes sofisticados testes científicos (ob. cit., p. 35).

Finalmente, BP mencionou que a boa prática médica obriga ao internamento de doentes com situação de EAP, que as análises deveriam ter sido repetidas, nomeadamente devido ao aumento da troponina (aliás, tudo em consonância com as conclusões que verte no relatório por si elaborado no âmbito do processo de averiguações internas do HES, constante de fls. 222 a 226 – conclusões 1 e 4b).

De todo o modo, fossem os depoimentos destas testemunhas positivos ou negativos em relação à actuação da arguida, eles não se poderiam sobrepor em termos de valor probatório à consulta técnico-científica supra referida. Com efeito, ainda que a honorabilidade pessoal e competência técnica dos médicos referidos não estejam minimamente postos em causa, os mesmos foram ouvidos como testemunhas e não como peritos, pelo que os seus depoimentos foram livremente apreciados pelo tribunal (art. 127º do Cód. de Proc. Penal), não tendo servido minimamente para infirmar o juízo científico constante da perícia realizada (a referida consulta técnico-científica).

Por todas estas razões resultaram provados os factos vertidos nos pontos 35, 36, 37, 48 e 49 dos factos provados.

- No que respeita ao ponto 38 dos factos provados, a resposta do tribunal assentou no teor dos relatórios de urgência, em conjugação com a guia de transporte de doentes de fls. 607 (hora de saída do quartel às 10h00m) e com o registo de pedidos de socorro ou de serviços dos bombeiros de Vendas Novas (fls. 637), resultando da experiência (no caso não as regras da experiência comum, mas a experiência de quem conhece bem a estrada entre Évora e Vendas Novas, nomeadamente por já ter exercido funções no Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Novo, territorialmente competente sobre a cidade de Vendas Novas) que se mostra acertado um período de uma hora de viagem entre Vendas Novas e Évora e período ligeiramente mais elevado quanto ao trajecto entre Évora e as Piçarras (naturalmente cumprindo os limites de velocidade, para mais tratando-se de um veículo de transporte de doentes).

Quanto à circunstância de nenhum familiar ter ido buscar GH ao HES, tal relaciona-se com o referido pelo assistente a respeito de ML lhe ter dito que não havia necessidade de se deslocar a tal unidade hospitalar, sendo que quando às 8h05m telefonou para o HES para se inteirar sobre o estado do seu pai (conforme dissemos, ML disse-lhe para telefonar a partir das 8h00m) foi informado que já lhe tinha sido concedida alta (o que se mostra compatível com tudo o que já dissemos) e que o seu pai regressaria a casa de ambulância.

Em estreita relação com o aludido ponto 38 dos factos provados encontra-se o ponto V dos factos não provados, que provém do artigo 41º da contestação. Com efeito, não tendo sido ouvida em audiência qualquer pessoa que tenha acompanhado GH no transporte entre o HES e a sua casa (maxime os bombeiros que efectuaram tal transporte) ou que o tenha recebido neste último local (o assistente mencionou que foi um seu irmão quem recebeu o seu pai nas Piçarras, sendo que o próprio veio a tomar contacto com ele mais tarde, pela hora do almoço, tendo-o então encontrado muito melhor do que aquando do episódio em que o conduziu na direcção do Centro de Saúde de Vendas Novas, embora ainda tivesse dificuldade em falar e se mostrasse muito cansado), não existe maneira de saber com certeza processual suficiente se GH chegou a casa bem e sem qualquer problema, embora seja de supor (sem certeza processual, repetimos) que se GH se tivesse sentido mal durante a viagem, os bombeiros teriam regressado ao HES [de todo o modo, a frase “bem e sem qualquer problema” é de natureza conclusiva, sendo certo que a arguida a alega de forma especulativa e não afirmativa (referimo-nos ao segmento “tê-lo-ão”)].

Também o ponto VI dos factos não provados está relacionado com o ponto 38 dos factos provados. Ora, enquanto esperou pela chegada da ambulância, GH não estava monitorizado (era doente a quem já tinha sido concedida alta), não havendo por isso maneira de saber se permaneceu assintomático e sem alterações do seu estado (nem a arguida tinha maneira de o saber, pois terminou o seu turno às 8h00m, tendo no entanto – segundo a própria – permanecido no HES até cerca das 9h00m, ainda assim hora bastante anterior àquela a que GH foi para casa). Ora, embora seja de admitir que se GH se tivesse sentido mal teria pedido ajuda, tal é de todo insuficiente para permitir dar resposta positiva ao que a arguida afinal alega (pelo menos em parte) no artigo 42º da sua contestação;

- Os pontos 39 e 40 dos factos provados resultam da análise da ficha CODU de fls. 872, conjugada com as declarações do assistente. Declarou este que cerca das 20h00m recebeu um telefonema de uma sua tia, que lhe comunicou que o seu pai estava novamente a sentir-se mal. Disse à sua tia para telefonar para os bombeiros, tendo o próprio iniciado imediatamente viagem para as Piçarras, tendo tal viagem demorado cerca de 15 minutos, chegando antes dos bombeiros e encontrando o seu pai em situação muito pior do que no 1º episódio, pois embora respirasse já não se aguentava em pé e não se mexia.

Ora, as declarações de CH não permitem fixar com certeza o momento em que GH começou a sentir-se mal, até porque numa situação de urgência de um progenitor o filho não se encontra em condições de fixar com exactidão todos os pormenores, nomeadamente horários. Agora, o que é possível fixar com exactidão é a hora a que o CODU recebeu a chamada de emergência (20h47m), pois tal encontra-se registado na aludida ficha de fls. 872, sendo que logicamente GH começou a sentir-se mal antes da referida chamada.

Aliás, tendemos mais a acreditar que a chamada que CH recebeu da sua tia terá sido a hora mais tardia do que as 20h00m, eventualmente entre as 20h30m e as 20h47m, pois recordemos que o assistente mencionou que demorou cerca de 15 minutos entre Vendas Novas e as Piçarras, sendo que quando chegou a esta última localidade já tinha sido feita a chamada para o 112 (que, como vimos, se verificou às 20h47m). De todo o modo, trata-se de conjectura, sendo que o tribunal entendeu apenas consignar nos factos provados que a segunda crise de falta de ar sentida por GH se iniciou certamente antes das 20h47m, o que é seguro e indubitável;

- A matéria fáctica constante dos pontos 41, 42 e 43 dos factos provados encontra sustentação na guia de transporte de doentes de fls. 608 e no verbete de socorro de fls. 658 (respeitante à ambulância dos bombeiros de Vendas Novas), conjugado com o depoimento de RV, à época socorrista nos bombeiros de Vendas Novas. Referiu esta testemunha que no dia 16 de Fevereiro de 2008 se encontrava em casa (não se encontrava de serviço no quartel dos bombeiros), sita na Rua C..., em Vendas Novas, quando ouviu as sirenes da ambulância, vindo à rua e perguntando aos seus colegas o que se passava, ao que estes responderam que iam para uma intervenção na Rua C... Entretanto, a residente em tal rua e nº de porta informou os bombeiros que naquele local ninguém precisava de auxílio, sendo que o próprio RV informou os seus colegas que o pedido de socorro podia dizer respeito à Rua C..., mas na localidade das Piçarras. O próprio entrou então também na ambulância, tendo seguido juntamente com os seus colegas em direcção às Piçarras, vindo a encontrar GH caído no chão (encontrando-se junto de familiares), numa artéria situada perto da Rua C... (quanto à hora de chegada a tal localidade, veja-se o que consta do verbete de socorro de fls. 658);

- O ponto 44 dos factos provados resulta também do depoimento de RV, precisamente a pessoa que enquanto socorrista prestou auxílio a GH, sendo certo que o estado em que este se encontrava e as manobras de reanimação efectuadas estão consignados no verbete de socorro de fls. 658 (item “11 – exames primários” e item “15 – actuação”);

- Também quanto ao ponto 45 dos factos provados se atendeu ao depoimento de RV, conjugado com o verbete de socorro de fls. 658, com a ficha CODU de fls. 873, com a ficha de observação médica nº 73046 do INEM/VMER (fls. 659) e com o depoimento de ML.

Referiu RV que tiveram de sair do local devido a falta de segurança (os familiares de GH estavam exaltados devido, nomeadamente, à demora na chegada da ambulância dos bombeiros), sendo que próprio contactou o CODU (trata-se da chamada 73011, identificada quer no verbete de socorro de fls. 658, quer na ficha CODU de fls. 873), que por seu turno accionou a VMER, tendo sido combinado o “rendez-vous” entre a ambulância dos bombeiros e a ambulância da VMER junto da intersecção da Estrada Nacional nº 4 com a estrada das Piçarras.

Quanto a esta matéria foi também inquirida ML, que também neste segundo episódio era a médica que integrava a equipa da VMER, confirmando o referido “rendez-vous” com a ambulância dos bombeiros (o que conforme resulta da ficha de fls. 659 aconteceu às 21h50m), encontrando GH em situação de paragem cárdio-respiratória (segundo o que lhe foi transmitido pelos bombeiros, os próprios já o tinham encontrado nessa situação), sendo que as tentativas que depois efectuou com vista a à sua reanimação se mostraram infrutíferas (na ficha de fls. 659 está descrita quer a situação em que a equipa da VMER encontrou GH, quer o realizado com vista à sua reanimação);

- No que tange ao ponto 46 dos factos provados, tomou-se em consideração o certificado de óbito de fls. 3;

- O ponto 47 dos factos provados resulta do relatório de autópsia médico-legal de fls. 70 a 76 (também elemento pericial que se presume subtraído à livre apreciação do julgador, mais uma vez não existindo razão para divergir do juízo científico nele contido), conjugado com parte do que dissemos a propósito da motivação de facto dos pontos 35, 36, 37, 48 e 49 dos factos provados e com o que diremos de seguida.

Recordemos as respostas obtidas a respeito desta matéria no parecer elaborado no âmbito da consulta técnico-científica solicitada ao Conselho Médico-Legal do INML:

- Ao quesito «se o facto de ter sido dada alta médica ao doente, tendo em conta o quadro de Edema Pulmonar Grave que apresentava e foi reportado pelo médico do INEM, foi determinante da morte do mesmo, horas depois», foi dada resposta nos seguintes termos: «não podemos estabelecer com segurança uma relação directa causa-efeito entre a alta e a morte do doente. Contudo era previsível, apesar do doente estar estabilizado no SU após terapêutica, com as alterações analíticas presentes na altura (acidose respiratória com elevada retenção de C02, troponina I elevada) e com alterações radiográficas sugestivas de congestão pulmonar, que pudesse vir a ter um agravamento do quadro clínico com novo edema agudo do pulmão que, não sendo tratado em tempo útil, poderia levar à morte» (fls. 167);

- Ao quesito «se é possível determinar que, caso o doente tivesse sido correctamente avaliado e tivesse ficado internado, a situação de edema pulmonar poderia ter sido muito provavelmente controlada e o paciente não teria morrido», foi dada resposta nos seguintes termos: «podemos presumir que se o doente tivesse ficado internado e correctamente avaliado e vigiado a possibilidade de aparecimento de um novo edema agudo do pulmão poderia ter sido diminuída, sob terapêutica médica adequada» (fls. 167);

- Ao quesito «se existe uma relação de causalidade entre as eventuais más práticas médicas e a morte de GH», foi dada resposta nos seguintes termos: «não podemos estabelecer com segurança uma relação causa-efeito entre as atitudes tomadas pelos médicos e a morte do doente» (fls. 167).

Como se vê, no que respeita ao estabelecimento de um nexo causal entre a concessão da alta e a morte de GH, aquele parecer é de certo modo inconclusivo, embora nele se diga que se pode presumir que se o doente tivesse ficado internado e correctamente avaliado e vigiado a possibilidade de aparecimento de um novo edema agudo do pulmão poderia ter sido diminuída, sob terapêutica médica adequada. Mas tal não impede que o tribunal possa retirar as suas próprias conclusões de tudo o que resultou provado, para tanto sendo essencial responder à questão colocada na pronúncia: «a decisão da arguida dar alta ao doente, encaminhando-o para o domicílio (…) contribuiu para a morte do mesmo»? A resposta não pode deixar de ser positiva. Com efeito, ao não ser mantida a observação clínica de GH foi criada situação apta a que caso a sua situação se agravasse não tivesse acesso atempado a cuidados médicos e a terapêutica adequada, ao contrário do que aconteceria se tivesse permanecido no HES. Aliás, o dia 16 de Fevereiro de 2008 foi um Sábado, GH habitava em zona rural do concelho de Vendas Novas e só teria acesso ao seu médico de família na segunda-feira seguinte, sendo ainda certo que é considerável a distância entre a localidade das Piçarras e o HES, sendo tudo circunstâncias que desaconselhavam a concessão da alta e potenciavam a possibilidade do resultado fatídico;

- O vertido no ponto 50 dos factos provados resulta do conjunto de todas as circunstâncias já referidas;

- No que tange às vicissitudes ocorridas durante o período de turno da arguida no SU (ponto 51 dos factos provados), atendeu-se ao que a própria referiu, que se afigurou credível, tanto mais que MT, que conforme já referimos era no dia em questão a chefe da equipa do serviço de urgência, mencionou que nesse dia se verificou uma grande afluência de doentes;

- Quanto à situação pessoal da arguida (pontos 52 a 57 dos factos provados), o tribunal atendeu às declarações que esta prestou, que se afiguraram credíveis, tanto mais que não têm correlação directa com o assacar da sua eventual responsabilidade criminal. Foram tais declarações ainda conjugadas com o teor do relatório social de fls. 841 a 847;

- Os profissionais médicos ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento foram unânimes quanto à circunstância da arguida ser uma excelente profissional (ML diz que tem da arguida enquanto médica a melhor ideia possível; MT disse o mesmo, acrescentando que teve e teria muito gosto em ter a arguida na sua equipa; BP mencionou que todos os colegas com quem contactou no âmbito do processo de averiguação interna de que foi relator se referiram à arguida como uma excelente médica, o que aliás relatou na conclusão 6ª do relatório final por si elaborado – cfr. fls. 225). Por isso resultou provado o consignado no ponto 58;

- No que concerne à ausência de antecedentes criminais da arguida (ponto 59 dos factos provados), tomou-se em consideração o teor do CRC de fls. 782.

Apreciando, conforme definido:

A - da nulidade da sentença:

A recorrente invoca violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP, devido a, segundo refere, inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico das provas, o que, a acontecer, poderá redundar em nulidade da sentença, por força do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aliás, de conhecimento oficioso como decorre do n.º 2 deste mesmo preceito legal, na interpretação de que a utilização da expressão «conhecidas» outro sentido não consente e, além do mais, se harmoniza com a especificidade das nulidades de sentença face às nulidades em geral (entre outros, acórdão do STJ de 02.02.2005, in CJ Acs. STJ, ano XIII, tomo I, pág. 189, acórdãos da Relação do Porto de 29.09.2004 e de 30.03.2005, respectivamente nos procs. n.ºs 0442419 e 0510407, acessíveis em www.dgsi.pt , acórdão da Relação de Lisboa de 13.01.2005, in CJ ano XXX, tomo I, pág. 123, e acórdão desta Relação de Évora de 17.10.2006, no proc. n.º 2194/06-1, in www.dgsi.pt).

Todavia, limita-se a recorrente a aduzir essa conclusão, sem que, da motivação do recurso, se colha argumentação para o efeito, transparecendo que o faz, afinal, como manifestação da sua discordância quanto ao exame crítico operado pelo tribunal “a quo”.

A questão prende-se com a necessária explicitação, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com a indicação e o exame crítico das provas, cuja finalidade, sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127,º do CPP, é impor que o julgador esclareça quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e por que o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra, conforme acórdão do STJ de 01.03.2000, in BMJ n.º 495, pág. 209.

Não dizendo a lei em que consiste esse exame crítico das provas, ele tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (acórdão do STJ de 12.04.2000, in proc. n.º 141/2000-3.ª, Sum. Acs. STJ, n.º 40, pág. 48).

Assim, não basta uma mera referência dos factos às provas, mas torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam, de molde a poder concluir-se quais as provas e em que termos garantem que os factos aconteceram, ou não, da forma apurada.

Sem prejuízo, note-se, contudo, que a fundamentação exigível não se configura como repositório pormenorizado de todo o julgamento, já que isso se consubstanciaria como que um substitutivo da audiência e dos princípios da imediação e da oralidade que a regem.

Nem mesmo ao tribunal é exigido que indique todos os meios de prova produzidos, desde que tais meios não tenham sido considerados relevantes para motivar os factos provados e não provados a cuja enumeração procedeu, como, também, não se impõe que sobre cada meio de prova seja feita uma individualizada e exaustiva valoração, como, ainda, que, em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir e que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, de tal modo minuciosa que acabaria por tornar-se tarefa impraticável e sem utilidade, além do mais, destinando-se os recursos a servir de remédios jurídicos contra decisões erradas e injustas e não a meios de entorpecimento da justiça (acórdão do STJ de 30.06.1999, in proc. n.º 285/99-3.ª, Sum. Acs. STJ n.º 32, pág. 92).

Essa exigência de motivação acaba por ter uma função dupla, pré e pós judicatória – naquela primeira fase permite ao julgador exercer um auto-controle do acerto dos seus próprios juízos; na segunda fase permite à comunidade, e ao destinatário das medidas a tomar pelo sistema penal, compreender os critérios seguidos pelo julgador e aferir da respectiva legitimidade, razoabilidade e aceitabilidade (Paulo Saragoça da Matta, “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, coorden. científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 255).

Traduz imposição do moderno processo penal, conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle no espírito de um determinado sistema processual, com a dupla finalidade de, extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram e, intraprocessualmente, de realização do objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.

Ainda, trata-se de concretização do desiderato constitucional a que alude o art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo a fundamentação na forma prevista na lei, como parte integrante do conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição Anotada, pág. 799), por respeito às garantias de defesa do condenado (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que se assegure um julgamento equitativo (“fair trail”), como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Só desse modo se cumpre a garantia de tutela judicial efectiva, à luz dessa livre apreciação da prova, em adequação à previsão dos arts. 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 1, da CRP, sendo a fundamentação indispensável para que fique salvaguardado o respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, dando corpo à imparcialidade, à independência e à isenção que lhe devem ser reconhecidas e, como tal, aceites.

Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1993, vol. II, págs. 112/113:

Quando tratámos dos actos decisórios referimos a finalidade da sua fundamentação: lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos.

A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias.

O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado, obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova.

Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade.

É, pois, inequívoco que, ao dever de fundamentar, correspondem, em concreto, determinadas exigências, sem as quais não é viável atingir as respectivas finalidades, cumprindo, em sintonia com o aludido art. 374.º, seu n.º 2, adequá-las à medida necessária para que, no fim de contas, a decisão seja compreensível, para tanto devendo conter, para além da indicação dos factos provados e não provados e dos meios de prova, a explicitação dos elementos que, em razão das regras da experiência e/ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formou em determinado sentido ou foram valorados os diversos meios (acórdão do STJ de 13.02.1992, in CJ ano XVII, tomo I, pág. 36), sem que, no entanto, deixe de ser tão completa quanto possível, ainda que sucinta.

Só este entendimento se compadece com a livre apreciação da prova, a qual se não confunde com apreciação judicial arbitrária, em que a livre convicção do juiz seja meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável.

Esta “liberdade” de apreciação não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação (Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, 1967/68, pág. 53).

Postas estas considerações, é manifesto que a sentença “sub judice” procedeu a pormenorizado exame crítico das provas, não só as elencando, como também as analisando valorativamente, sem prejuízo da sua conjugação e da sua ponderação relativa.

Aliás, resulta que a fundamentação nesse âmbito cuidou de apreciar as diversas perspectivas que quanto aos factos se colocaram, com a implícita preocupação de explicitar adequadamente as asserções que estabeleceu, de modo a tornar cabalmente inteligível o processo que rodeou a construção da sua convicção.

Para além de que a recorrente nada fundamenta em concreto que sustente diverso entendimento, a conclusão que extraiu não é mais, como se referiu, do que a expressão da sua discordância relativamente a esse exame crítico, como decorre da sua argumentação ao nível da matéria de facto, esta, em momento próprio, a ser analisada, sendo, contudo, realidade bem diversa daquela que poderia conduzir à nulidade da sentença, nos termos descritos.

Inexistindo ausência, ou relevante deficiência, do exame crítico em questão, a sua alegação não procede.

B) –do erro notório na apreciação da prova:
O erro notório na apreciação da prova é um vício da decisão, que, nos termos do art. 410.º, n.º 2, do CPP, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, por um lado, apenas com apelo a elementos intrínsecos e endógenos a essa decisão e, por outro, à luz das máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, isto é, segundo Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Lisboa, 1981, vol. II, pág. 300, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto «sub judice», assentes na experiência comum, e por isso independentes de casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Tal erro deve ser interpretado como o tem sido o facto notório em processo civil, de que todos se apercebem directamente ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (acórdão do STJ de 06.04.1994, in CJ Acs. STJ, ano II, tomo II, pág. 185).

Deparar-se-á quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (acórdão do STJ de 24.03.2004, no proc. n.º 03P4043, em www.dgsi.pt).

Reconduz-se, assim, a um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado de forma ostensiva e inquestionável, que nada tem a ver com a desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a de quem recorre, baseadas em diferentes valorações.

Segundo Maria João Antunes, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 4 (1994), pág. 120, verifica-se «sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando como limitação ao referido princípio da livre apreciação da prova, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência.

A recorrente invoca detectá-lo no facto provado em 48. (“O Edema Agudo Pulmonar, embora seja uma patologia grave, com a assistência médica adequada tem tratamento e não conduz à morte”), perante o que consta da motivação relativamente aos depoimentos das testemunhas e ao esclarecimento do Conselho Médico-Legal, de fls. 584, segundo o qual, o EAP (Edema Agudo do Pulmão) é uma emergência médica muito grave. Tem tratamento médico adequado, a maior parte das vezes eficaz, mas pode conduzir à morte em algumas situações clínicas mais graves, sobretudo de causa cardíaca ou quando não há resposta à terapêutica.

No que concerne a tal facto, constata-se da fundamentação da sentença que reproduz essa resposta ao quesito formulado de que «é verdade que o Edema Agudo Pulmonar, com a assistência médica adequada tem tratamento e não conduz à morte ou há situações em que apesar de toda a assistência e terapêutica instituída, a morte sobrevém» (?), depois de explicitar que esse elemento se valorava como pericial, sem que se detecte, dos depoimentos a que alude, motivo para contrariar essa conclusão.

Verifica-se, pois, que o tribunal aparentemente terá excedido o significado da formulação oferecida pela perícia, ao ter expressado nesse facto que o EAP não conduz à morte, situação que aquela não reflecte.

Contudo, tal facto (que reproduz o que já constava da decisão instrutória, de fls. 744) tem de ser conjugado com outros que se reportam à actuação da recorrente e às respectivas consequências, surgindo como síntese que põe o acento tónico na assistência médica adequada, no contexto subjacente a toda a materialidade apurada.

Deste modo, não se afigura existir erro notório nessa apreciação.

C) – da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Sustenta a recorrente que a sentença padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o que, à semelhança de outros vícios a esse nível, tem de resultar, como referido, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, à luz, assim, dos parâmetros que deixaram explicitados em B).

Tal vício ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar solução de direito ou, nas palavras de Germano Marques da Silva, in ”Curso de Processo Penal”, Verbo, 1994, vol. III, pág. 325, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito, o que significa que existirá um hiato a preencher de modo a lograr atingir decisão, porque se deixou de apurar matéria de facto que cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique.

Ainda, como expressivamente se assinalou no acórdão do STJ de 20.04.2006, no proc. n.º 06P363 (www.dgsi.pt), A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista à sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.

A exigência subjacente à conceptualização do vício decorre do princípio geral de descoberta da verdade material e da boa decisão da causa consagrado no art. 340.º do CPP, através do necessário apuramento da culpabilidade (art. 368.º do CPP) e da determinação da sanção (art. 369.º do CPP).

Considera a recorrente que na sentença recorrida não estão vertidos todos os elementos subjectivos e objectivos do tipo legal de crime, transparecendo que, por nada mais referir nessa sede, coloca a problemática desse vício em matéria que haverá que sindicar ao nível de direito, em plano alheio à dimensão do mesmo.

Por isso, alguma eventual relevância da sua asserção não poderá reverter para a presença do alegado vício.

A sua virtualidade residirá, se positivamente entendida, na discussão acerca da prova recolhida, se é ou não suficiente para preencher o tipo de ilícito, relacionada com a impugnação fáctica, mas não com a insuficiência em apreço.

D) – da natureza probatória dos pareceres do Conselho Médico-Legal:

A recorrente preconiza que o parecer elaborado pelo Conselho Médico-Legal, o qual foi considerado na sentença como constituindo prova pericial, não deve revestir tal natureza, sustentando-o em que do mesmo consta que seria apreciado nos termos do disposto no n.º 2 do art. 6.º do Dec. Lei n.º 131/2007, de 27.04, e em que, desse modo, são às questões que se atribui essa natureza e não aos pareceres, aludindo ainda à competência desse Conselho definida pelo art. 7.º, n.º 1, alínea b), da sua Lei Orgânica, aprovada pelo Dec. Lei n.º 166/2012, de 31.07.

Decorre da sentença que “em sede de inquérito, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho: «nos termos do disposto nos arts. 151º e 154º do Código de Processo Penal, determino a realização de perícia que incida sobre as circunstâncias em que ocorreu a morte de GH e a eventual relação existente entre a mesma e a assistência médica hospitalar que lhe foi prestada” e “Para o efeito, remetendo cópia de (…), solicite ao Conselho Médico-Legal – INML (Coimbra), que elabore parecer onde se pronuncie sobre os seguintes factos/circunstâncias: (…)»”.

Mais aí se refere que “A tal solicitação do Ministério Público respondeu o Conselho Médico-Legal do INML a fls. 151, acusando a recepção do processo e informando que o mesmo seria apreciado nos termos do disposto no nº 2 do art. 6º do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril”, que “O parecer elaborado no âmbito da solicitada consulta-técnico científica foi relatado pelo Doutor CD (fls. 165 a 167), tendo o mesmo sido apreciado em reunião do Conselho Médico-Legal do INML realizada a 10 de Dezembro de 2008 e aprovado por unanimidade” e, ainda, que “Nos termos do disposto no art. 151º do Cód. de Proc. Penal, «a prova pericial tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimento técnicos, científicos ou artísticos». No caso dos autos era indubitável que tanto a percepção como a apreciação dos factos exigiam especiais conhecimentos científicos, razão pela qual o Ministério Público solicitou a realização de perícia. Vigorando entre nós um modelo de perícia pública (cfr. art. 152º do Cód. de Proc. Penal), teria necessariamente de solicitar a realização da perícia ao INML, já que tal cabe nas suas atribuições, sendo que nesse âmbito é considerado a instituição nacional de referência (cfr. art. 3º, nº 2, alínea b) e nº 3, do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril)”.

E, adiante, que “Um dos órgãos do INML é precisamente o Conselho Médico-Legal (cfr. art. 4º alínea b), do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril), a quem compete «exercer funções de consultadoria técnico-científica, designadamente emitir pareceres sobre questões técnicas e científicas de natureza pericial», sendo que os pareceres técnico-científicos emitidos por tal órgão «são insusceptíveis de revisão e constituem o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada, salvo a apresentação de novos elementos que fundamentem a sua alteração» (art. 6º, nº 2, alínea a) e nº 4, do Dec.-Lei nº 131/2007, de 27 de Abril) ”.

O tribunal concluiu, pois, que nenhuma dúvida existia quanto a essa natureza pericial.

Também se afigura que assim deva ser, não se descortinando que a alegação da recorrente possa proceder, nem, note-se, de modo algum com fundamento no invocado acórdão desta Relação de 21.10.2010, no proc. n.º 281/04.0TALGS.E2, relatado pelo aqui Adjunto (www.dgsi.pt), em que, face à transcrição respectiva que deste faz, não se encontram motivos que apoiem a sua visão, acrescendo que, na situação aí apreciada, se excluiu aquela natureza pericial por razões bem diversas daquelas que a recorrente agora aponta, que se prenderam com o modo como foi essa prova, em concreto, efectuada, ao ponto de inquinar essa natureza.

Na verdade, nos termos do art. 151.º do CPP, A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, visando a avaliação de vestígios da prática do crime que pressupõe esses conhecimentos, fora do alcance directo do julgador.

Como já assinalava Cavaleiro de Ferreira, ob. cit.., vol. II, pág. 345, a sua contribuição no processo consiste na formulação dum parecer ou opinião sobre o significado ou valor de meios de prova, consubstanciando um auxiliar importante da função judicial, embora sem que deixe de se restringir a uma análise factual.

Neste sentido, constitui, em si mesma, um meio de prova pessoal, efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos, cuja relevância inerente a esses conhecimentos explica que o legislador a tenha preferencialmente confiado a serviços públicos, desde que a complexidade da matéria não justifique diferente tratamento ou não exista impossibilidade ou inconveniência (arts. 152.º, 154.º e 160.º-A do CPP).

Segundo o disposto no art. 159.º do CPP, quando se tratem de perícias médico-legais e forenses que se insiram nas atribuições do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), são realizadas pelas delegações deste e pelos gabinetes médico-legais, só excepcionalmente isso não acontecendo nas situações aí referidas, por manifesta impossibilidade ou por versar formação médica especializada.

A diligência nos autos foi ordenada, em inquérito, pelo Ministério Público, ao abrigo do art. 154.º do CPP, para tanto remetendo ao Conselho Médico-Legal de Coimbra os elementos entendidos como relevantes e formulando as questões sobre as quais se pretendia obter parecer, como consta do despacho de fls. 137 e seg..

O parecer foi elaborado por pessoa designada por esse Conselho e, conforme referido pela recorrente, nos termos do art. 6.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 131/2007 (entretanto revogado pelo Dec. Lei n.º 166/2012, de 31.07, a que a recorrente alude, mas não aplicável à data), como tal, sobre questões técnicas e científicas de natureza pericial.

Decorre do art. 3.º, n.º 2, alínea b), do Dec. Lei n.º 131/2007 que constitui atribuição do INML Cooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm no sistema de administração da justiça, realizando os exames e as perícias de medicina legal e forenses que lhe forem solicitados, nos termos da lei, bem como prestar-lhes apoio técnico e laboratorial especializado, no âmbito das suas atribuições, sendo para tanto, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, considerado como instituição nacional de referência.

Ainda, de harmonia com o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, definido pela Lei n.º 45/2004, de 19.08, as mesmas, segundo o disposto no seu art. 2.º, são realizadas, obrigatoriamente, nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, só se admitindo as excepções de impossibilidade ou inconveniência, identicamente previstas no referido art. 159.º.

A recorrente não questiona, em concreto, a competência e a atribuição do INML para a realização da diligência solicitada, mas, no entanto, retira da redacção da alínea a) desse n.º 2 do art. 6º do Dec. Lei n.º 131/2007 curiosa interpretação, sem explicar, porém, então, que tipo de prova resultará desses pareceres.

Em seu entender, a redacção inculca a ideia de que apenas as questões são de natureza pericial, como se os pareceres se pudessem delas dissociar.

Diga-se que, se as questões são dessa natureza, o que é pacífico, os pareceres sobre as mesmas têm de revestir idêntica virtualidade, sob pena de, assim não sendo, esquecer a caracterização e a finalidade dessa prova.

O argumento da recorrente de que só outra diferente redacção, como fosse «emitir pareceres de natureza pericial sobre questões técnicas e científicas», consentiria que os pareceres constituíssem prova pericial, não convence.

Acresce que a sua interpretação conduziria a desconhecer a dimensão conferida a esse tipo de prova à luz do respectivo regime jurídico, versando este, na realização de perícias pelo INML, além de que a designação de “pareceres” se coaduna plenamente com a formulação de opiniões especializadas que as perícias têm em vista.

Outra vertente é suscitada pela recorrente, direccionada ao modo como a diligência probatória foi efectuada, aqui relevando saber se poderia ter tido lugar, como aconteceu, sem que lhe tivesse sido dada a faculdade prevista no art. 155.º do CPP, de designar um consultor técnico para acompanhá-la.

Situa-a, também, como motivo da sua exclusão de natureza pericial, enquanto preterição de regra de produção dessa prova, inquinando o seu valor como tal, alegando, ainda, que interpretação no sentido de não atribuir relevância a essa suposta omissão será inconstitucional, em razão de violação das suas garantias de defesa e, designadamente, do princípio do contraditório (posição acolhida por Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 433).

Ora, nos termos do art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, a disposição em causa não é aplicável às perícias médico-legais efectuadas nas delegações do INML ou nos gabinetes médico-legais, pelo que, por esta via, a argumentação da recorrente sempre colidirá com essa ressalva legal, expressamente prevista, a qual tem implícita a especial competência, a idoneidade e a imparcialidade conferidas àquela instituição, subjacente a considerações que já constavam da Proposta de Lei n.º 127/IX/2, de que resultou o diploma, in D.A.R. I Série n.º 99/IX/2 2004, de 24.06:

A definição de novos critérios e regras que devem presidir à actividade pericial surge também da imperiosa necessidade de conformar a medicina legal em Portugal à evolução das condições tecnológicas e científicas, cuja dinâmica moderna, poderá afirmar-se, atinge uma velocidade cada vez maior. Tratando-se de uma área técnico-científica especializada, pressupõe conhecimentos não acessíveis à generalidade dos cidadãos, entidades ou profissionais, pelo que se revela particularmente importante acautelar a imparcialidade da actividade pericial, por um lado, e garantir a qualidade e rigor científicos por outro. Pretende o Governo com a presente proposta assegurar a dignidade e a qualidade das perícias médico-legais e forenses, cometendo ao Instituto Nacional de Medicina Legal atribuições e responsabilidade no domínio da creditação e controlo da realização de perícias médico-legais.

Atente-se que o Instituto Nacional de Medicina Legal consiste numa instituição com natureza judiciária, encontrando-se os peritos abrangidos pelo segredo de justiça bem como por um especial dever de sigilo profissional.

A responsabilidade decorrente da actividade pericial desenvolvida ao abrigo das atribuições legais cometidas aos serviços médico-legais preserva a autonomia técnico-científica dos peritos, mas determina a obrigatoriedade de respeito pelas normas, modelos e metodologias periciais em vigor a nível nacional, assegurando desta forma a harmonização pericial do ponto de vista técnico e procedimental.

Sem que se questione a importância, em geral, conferida às regras da produção da prova, através do integral respeito pelas exigências que comportam para que possam valer como tal e com as implicações de relevância inerentes, não se descortina, sem mais, que não possam, em casos justificados, dentro do objecto de descoberta e de perseguição da verdade, ter lugar sem intervenção de pessoa que venha a ser, por ela, de algum modo, afectada.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou nesse âmbito, no acórdão n.º 137/2007, de 27.02 (www.dgsi.pt), de que se destacam algumas passagens:

«Deve esclarecer-se desde logo que (…) não pode inferir-se directamente da Constituição a existência de um direito dos participantes processuais a acompanharem os exames médico-legais, realizados no âmbito do próprio Instituto Nacional de Medicina Legal, por si ou através dos consultores técnicos que os coadjuvem nas matérias técnico-científicas envolvidas na prova pericial.

Ocorre, porém, perguntar se a Constituição consente ao legislador liberdade para moldar um regime específico quanto àquelas perícias que devem ocorrer no Instituto Nacional de Medicinal Legal, regime que é mais restritivo quanto ao direito de acompanhar a diligência que é conferido aos intervenientes processuais e, portanto, também ao arguido.

Mas a análise da evolução legislativa que esta matéria sofreu revela que não tem verdadeiro fundamento a alegação do recorrente quanto à não existência de "justificação razoável – técnica, científica ou processual – para essa limitação", omissão que, em seu entender, seria demonstrativa da natureza "desproporcionada e desnecessária" da solução legal.

É, pelo contrário, manifesto que a norma impugnada, ao introduzir uma distinção quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional, e gozam de total autonomia técnico-científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica.

Ora, o Tribunal tem entendido que a proibição constitucional do arbítrio não afasta a possibilidade de a lei permitir distinções, desde que não se apresentem como desrazoáveis ou injustificadas (cfr. Acórdão n.º 189/2001, Ac.TC n.º 50 p. 285; Acórdão n.º 31/91 in DR II série, 25 de Junho de 1991), como é manifestamente o presente caso.

Fica, porém, desde logo totalmente por demonstrar que a sindicância a posteriori do resultado das perícias não garante o exercício cabal e pleno do princípio do contraditório, assim como fica por explicar a razão pela qual o exercício do contraditório há-de necessariamente compreender a possibilidade de serem apresentadas, através de consultor técnico, as sugestões julgadas pertinentes, "que os peritos acolherão ou não"; ou a possibilidade de, durante o decurso da produção do meio de prova, ser "fiscalizada", através de consultor técnico, a "idoneidade da metodologia adoptada".

Decorre claramente do que já se observou que o direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa", no seu sentido mais estrito: no decurso da prova pericial não impende sobre o arguido qualquer ónus de contradizer ou afirmar qualquer facto; não é atribuída qualquer eficácia ao acordo expresso ou tácito sobre factos não contraditados.

O que aqui vale, seguramente, é a busca da verdade material e da realização da justiça, do dever de investigação judicial autónoma da verdade, com independência e imparcialidade, embora sem excluir o auxílio das partes – artigo 340º n.º 1 do Código de Processo Penal – objectivo que representa uma das finalidades do processo penal. À autoridade judiciária incumbe rodear a produção de prova pericial das condições necessárias a que dela se retire a verdade material, processualmente válida. Ora, na decorrência desse grande objectivo do processo penal, o sistema português adoptou um regime de perícia oficial – não contraditória – essencialmente disciplinado pelos artigos 152º n.º 1 e 154º n.º 1 do citado Código, no domínio da qual o perito é um perito do Tribunal, sujeito ao mesmo dever de imparcialidade e de busca da verdade material que oneram a actividade judiciária.

Esclarecida a verdadeira natureza da actuação dos participantes processuais neste âmbito, é mais fácil compreender que o direito do arguido de acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa exigência do princípio do contraditório. Com efeito, o princípio do contraditório, na sua caracterização mais rigorosa, corresponde a uma concepção próxima do direito de audiência e da oportunidade processual de influenciar, através da sua audição pelo Tribunal, o resultado do processo.

Ora o exercício deste contraditório para os intervenientes processuais – e, portanto, também para o arguido –, resulta aqui do direito que a lei lhes confere de pedir esclarecimentos aos peritos, e até de requerer ao tribunal que determine a realização de nova perícia, ou a renovação da anterior.

Note-se que a lei exige que os peritos apresentem um relatório no qual mencionem e descrevam as suas respostas e conclusões "devidamente fundamentadas". É assim claro que, através dos pedidos de esclarecimento, o arguido pode verificar o método utilizado na recolha da prova e controlar as conclusões que dela os peritos retiraram; assim como lhe permite discutir o valor probatório que há-de ser atribuído, no julgamento, às conclusões encontradas, como aliás, sucede em relação à generalidade dos meios de prova.

É certo que não pode nomear um consultor técnico para acompanhar a perícia médico-legal, no caso de esta se realizar no Instituto Nacional de Medicina Legal, diversamente do que sucede nos casos disciplinados pelo aludido artigo 155º do Código de Processo Penal. Todavia, as garantias acrescidas de qualidade técnica que são conferidas, somadas aos poderes que a lei garante ao arguido e que acabaram de se descrever, permitem concluir que este regime respeita as exigências do princípio do contraditório aplicado às provas.

É, aliás, assim, que o Tribunal tem caracterizado o princípio do contraditório.

O Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio do contraditório imposto, quanto à audiência de julgamento em processo penal, pelo n.º 5 do artigo 32º da Constituição, exige que ao arguido seja garantido o poder de discutir, contestar, ou debater o valor probatório de qualquer prova utilizada na audiência. Diz-se no Acórdão 372/2000 in DR II série de 13-11-2000:

A Constituição remete assim para a lei ordinária a tarefa de concretização dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório. A este propósito, escreveu-se no Acórdão nº 434/87 (…) “Na determinação dos actos instrutórios que hão-de ficar subordinados ao princípio do contraditório goza, assim, o legislador de grande liberdade. Ele só não pode esquecer que o arguido tem de ser sempre respeitado na sua dignidade de pessoa, o que implica ser tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto da decisão judicial. Ou seja, tem sempre de ter presente que o processo criminal há-de ser a due processo of law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público. É que, como adverte Eduardo Correia, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114º, p. 365, o princípio do contraditório se traduz «ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido»." ».

Não se vislumbra que os fundamentos aí explicitados devam ser postos em crise, nem a recorrente apresenta argumentos concretos que os contrariem ou atenuem a sua validade.

Aliás, tendo sido a diligência ordenada com observância das legais exigências, além do mais, concretizando as questões objecto de parecer, não se descortina qualquer irregularidade na forma como foi formulado, que contenda com a sua atribuída natureza pericial.

Acresce que, em sede de instrução, a recorrente teve a possibilidade, que exerceu, de suscitar o pedido de esclarecimentos relativamente ao parecer, o que foi prosseguido através de resposta adequada, de fls. 584/586, não se vendo que o seu direito ao contraditório tivesse sido postergado.

Como tal, a natureza pericial do parecer, complementado por essa resposta, não pode deixar de haver-se por verificada, valendo como meio de prova, não inquinado por qualquer nulidade/irregularidade, independentemente do juízo que o julgador tivesse feito acerca do mesmo.

E) – da valoração desses pareceres:

A questão da valoração desses pareceres entronca na que antes ficou apreciada, sendo que o tribunal, nos termos do art. 163.º do CPP, a presumiu subtraída à sua livre apreciação, não tendo explicitado fundamentos que divergissem das conclusões aí vertidas.

Respeitou, assim, o juízo inerente aos mesmos, expressão da limitação legal ao princípio consagrado no art. 127.º do CPP.

Conforme já Figueiredo Dias escrevia, in “Direito Processual Penal”, Coimbra, 1974, «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer -, já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo científico provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência.».

E, segundo Germano Marques da Silva, ob. cit. vol. II, pág, 154, Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser apreciado na base de argumentos da mesma natureza.

Não se detecta, assim, que o tribunal tenha procedido à valoração dessa prova em detrimento das restrições a que legalmente estava sujeito.

Bem pelo contrário, acatou a limitação, intrínseca a essa prova, à sua liberdade de apreciação.

F) – da violação do art. 355.º do CPP:

A recorrente invoca a violação do art. 355.º do CPP, dado que, de acordo com o que alega, o parecer do Conselho Médico-Legal não foi examinado em audiência.

Segundo tal preceito, no que ora releva, Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.

Traduz exigência implícita ao princípio da imediação, assegurando a garantia de defesa de que as provas sejam plenamente conhecidas e em relação de proximidade com o objecto do julgamento.

Admitindo as restrições referidas nos arts. 356.º e 357.º do CPP, que ao caso não se aplicam, a alegação da recorrente é manifestamente improcedente no âmbito da prova pericial que está documentada nos autos.

Como tal, tratando-se de prova já existente no processo, cuja leitura, em audiência, não era proibida, mas também não era exigível, nenhum obstáculo legal se divisa para que tivesse sido valorada pelo tribunal.

Essa inserção nos autos permitiu assegurar o contraditório, uma vez que os sujeitos processuais puderam proceder à sua discussão, antes ou durante a audiência, desde que o pretendessem.

Nenhum sentido tem a recorrente vir dizer que não foi examinada, na medida em que a finalidade do exame está prevista para tipo de prova como aquela em questão e que não existe qualquer obrigatoriedade do tribunal, durante a audiência, de fazer referência a esse exame, seja por que forma for.

Assim o têm entendido, que se saiba de modo uniforme, a doutrina e a jurisprudência (Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 1998, pág. 624; Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 891; acórdão do Tribunal Constitucional n.º 87/99, de 10.02, in D.R., II Série, de 01.07.99; acórdãos do STJ de 31.05.2006, no proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt , e de 29.11.2006, in CJ Acs. STJ ano XIV, tomo III, pág. 235).

G) – da eliminação de factos provados:

Defende a recorrente a eliminação dos factos provados em 35, 37, 47 e 49, por, segundo entende, não revestirem a natureza de factos, mas sim de raciocínios ou conclusões.

Reproduzem-se, aqui, tais factos:
35. Acontece que, tendo em conta a provável existência de Edema Agudo do Pulmão, referida na hipótese de diagnóstico que lhe foi transmitida pela VMER, impunham as boas práticas médicas que a arguida tivesse determinado o internamento de GH, com a sua consequente monitorização e vigilância e não lhe tivesse dado alta, como fez;

37. Porque não avaliou correctamente a gravidade da situação clínica do doente e da patologia de EAP, nem analisou e valorizou devidamente os resultados dos exames complementares de diagnóstico supra referidos e as alterações por ele reveladas, a arguida deu alta a GH, ao contrário do que devia, impunham as boas capacidades médicas e tinha capacidade para ter feito;

47. A morte de GH ficou a dever-se a Edema Agudo do Pulmão e foi consequência directa e necessária da conduta da arguida, designadamente da sua decisão de não o internar no SU e lhe ter dado alta hospitalar, decisão essa que tomou nas circunstâncias e pelos motivos supra referidos;

49. Ao actuar da forma descrita, designadamente ao dar alta a GH nas circunstâncias em que o fez, fazendo uma incorrecta avaliação da gravidade da patologia que apresentava e das alterações reveladas pelos exames complementares de diagnóstico que analisou, a arguida violou as boas práticas da medicina e os deveres de cuidado e profissionais que se lhe impunham, sendo certo que os conhecia, a eles estava obrigada e tinha capacidade para os respeitar.

O aludido art. 374.º do CPP, ao aludir aos requisitos da sentença, inclui a enumeração dos factos provados e não provados, implicitamente afastando que estes se traduzam em juízos de valor ou meras conclusões.

Estes últimos constituirão já apreciação do que a realidade concreta ofereça, e não, em rigor, acontecimentos ocorridos, embora a linha divisória neste âmbito se torne, não raras vezes, relativamente flutuante.

Conforme Antunes Varela/ Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra, 1984, págs. 392/393, «Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem, não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem – ex propriis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (…), Anota-se, por fim, que a área dos factos (…) cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas; mas pode abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não meros factos, mas verdadeiros juízos de facto.».

Importante é saber se esses ditos juízos cabem ainda, em concreto, na situação material em análise, sem descurar que os factos a constar da sentença são todos aqueles que revelem para a decisão da causa, sendo que os alegados pela recorrente já da decisão instrutória faziam parte integrante (fls. 743/744) e, inevitavelmente, não se dissociam de outros que foram dados por provados.

Aliás, reflectem a atribuída relação entre a conduta da recorrente e o resultado que se verificou, decorrendo de juízo apoiado em acontecimentos reais, mormente, trazido pelos elementos periciais (isso se infere da sua fundamentação), ainda suportando que devam ser tidos como juízos de facto, necessários ao objecto da causa, o qual, note-se, se prende com as práticas médicas.

Acresce que se apresentam consentâneos com a averiguação dos elementos que, na vertente da negligência imputada à recorrente, se justificava, de acordo com o que teria feito e do que deveria ter feito, sem o que a percepção cabal da realidade ficaria afastada.

Inexiste razão, pois, para que esses factos devam ser eliminados.

H) - da impugnação de matéria de facto:
A recorrente impugna matéria de facto, tendo minimamente dado cumprimento às especificações exigidas (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP), embora sem que o tivesse feito de forma cabal e relativamente a alguns dos pontos de facto que indica.

Não obstante, a sua perspectiva afigura-se, no geral, inteligível, permitindo que, dentro das limitações por si própria colocadas, da mesma se conheça.

Começa por referir-se aos factos provados em 19. e 20.:
19. A radiografia do tórax mostrava um infiltrado intersticial bilateral ocupando o quarto inferior de ambos os campos pulmonares;

20. Tal radiografia foi realizada com GH deitado em maca com elevação de tronco e cabeceira a 30º (trinta graus), e não de pé, pelo que a arguida entendeu ser desconsiderar tais alterações;

entendendo que a matéria aí descrita não é congruente com a motivação operada pelo tribunal.

Sustenta-o nos depoimentos de BP, de MT e de ML, invocando que, apesar de admitir que essa radiografia não foi efectuada nas melhores condições, dada a prova nesse sentido, o primeiro, terá referido que reflectia se reportar a um doente crónico, a segunda, que o que releva é o exame clínico que foi feito ao doente e denotando auscultação pulmonar normal, sem ruídos adventícios e, a terceira, que não revelou sinais de pneumonia, nem de derrame pleural e apresentando-se compatível com doente a recuperar de fase aguda de edema ou doente crónico, sem necessidade de repetição, perante ausência de alterações respiratórias detectadas pela clínica.

Reporta-se, ainda, ao esclarecimento de fls. 585, do qual consta que Um Rx de tórax realizado em condições técnicas deficientes deve ser interpretado e avaliado com muita prudência, concluindo que não terá, no exame clínico a que procedeu, irrelevado essa prudência.

Reproduzindo a fundamentação constante da sentença:

- Os pontos 19 e 20 dos factos provados resultam das declarações da arguida, sendo certo que as diversas testemunhas que tiveram acesso ao processo clínico ou aos presentes autos foram unânimes em referir que a radiografia foi realizada em más condições técnicas [ML, confrontada com o documento de fls. 114 (cópia em papel da referida radiografia, inserta no relatório completo de episódio de urgência de fls. 110 e ss.), mencionou que a mesma foi realizada em péssimas condições técnicas; BP, médico da especialidade de medicina interna e instrutor do processo de averiguações internas do HES, que nessa qualidade teve acesso ao original da referida radiografia, fez também menção às más condições técnicas da sua realização). Para melhor esclarecimento, referiu a arguida que uma radiografia para ser feita nas melhores condições deve ser realizada com o doente em pé, pois caso contrário a imagem pode ficar distorcida.

No que respeita ao que aquela radiografia demonstrava, as declarações da arguida também se mostram compatíveis com o que referiram ML (recordemos, médica pneumologista) e BP (ML referiu que a radiografia demonstra a existência de estases nas bases dos pulmões, sendo que BP fez também menção a sinais evidentes de estase), o que de todo o modo é confirmado pelo teor da consulta técnico científica do Conselho Médico-Legal do “Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P.” (fls. 165 a 167), onde se lê «Rx tórax – de difícil leitura, mas parece haver grande congestão hilar e sinais de edema intersticial»).

Em especial quanto à circunstância da arguida ter entendido ser de desconsiderar as alterações evidenciadas pela radiografia, a própria confirmou-o expressamente, sendo certo que tal se enquadra no que diremos a respeito do ponto 25 dos factos provados.

E quanto a este ponto 25. (Apesar do referido nos pontos 20, 21 e 22 dos factos provados, tendo em consideração as más condições técnicas em que foi realizada a radiografia, o historial clínico e pessoal de GH, a ausência de dor, a inexistência de alterações da CKmb, a sua boa oxigenação, o seu bom estado de consciência e de orientação no espaço e no tempo, com discurso fluente e articulado, a inexistência de sinais clínicos de situação aguda e a sua obesidade, a arguida entendeu estar perante uma situação de cronicidade do quadro respiratório no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), associada quer ao meio laboral (paciente havia sido carpinteiro e trabalhador agrícola), quer a uma história de tabagismo não quantificada), fundamentou-se:

- O vertido no ponto 25 da matéria provada resulta também das declarações da arguida. Com efeito, sobre esta matéria a arguida referiu que face à situação clínica que lhe foi descrita pela equipa da VMER, considerou que o mesmo podia indicar um quadro de EAP, tendo valorizado os sintomas que lhe foram comunicados nesse sentido, razão pela qual pediu a realização dos exames complementares de diagnóstico. Contudo, tendo recebido e analisado o resultado de tais exames complementares de diagnóstico e considerando os elementos que consignámos no ponto 25 dos factos provados (no essencial resultante da conjugação dos artigos 23º e 25º a 29º da contestação), na sua opinião a situação clínica de GH enquadrava-se numa crise hipertensiva pré-EAP no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), estando descartada a hipótese daquele pré-EAP poder evoluir para EAP nas horas seguintes.

Sobre o que a radiografia revelou, embora efectuada nas mencionadas deficientes condições técnicas, é de notar que, segundo a perícia atendível, se apresentava de difícil leitura, mas parece haver grande congestão hilar e sinais de edema intersticial (fls. 165), com sinais de descompensação cardíaca (fls. 166) e alterações sugestivas de congestão pulmonar (fls. 167).

A recorrente não contrariou, em audiência, a existência desses sinais, ainda que admitindo a reserva relacionada com aquelas condições, e explicitou que não lhe pareceu pertinente a repetição face aos restantes elementos complementares de diagnóstico e à observação ao doente.

Por seu lado, ML, reiterando as más condições da radiografia, embora sem sinais de pneumonia e de derrame pleural, referiu que eram visíveis sinais de estase (presença de líquidos em excesso impedindo normal oxigenação) nas bases dos campos pulmonares, acrescentando, no entanto, que o padrão radiológico se mantém entre 12/24 horas e era aceitável que a radiografia não fosse repetida.

Quanto a MT, o seu depoimento não é referido na sentença nesse específico aspecto.

Relativamente a BP, à semelhança do que oportunamente fez constar do relatório final de averiguação interna que elaborou, reafirmou essa evidência de sinais de estase.

Não se descortina que o facto provado em 19. deva, em conformidade com os elementos colhidos, ser alterado.

No que respeita ao facto provado em 20., a própria recorrente manifestou, nas suas declarações, não ter atribuído especial relevo a tais sinais da radiografia, quando conjugados com outros que constatou decorrentes de outros exames e, sobretudo, da sua observação, associando-os a diagnóstico de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), não obstante toda a informação que lhe foi transmitida pela médica da VMER acerca da situação clínica de GH e da terapêutica a que este foi sujeito.

Tal problemática não contende com os elementos probatórios invocados, nem mesmo com as conclusões periciais.

Na verdade, se bem que, conforme implicitamente decorre do que a recorrente preconiza, resulte, designadamente dos indicados depoimentos, que o diagnóstico clínico se funda no exame do paciente comportando vários actos médicos, no sentido de verificar os sinais morbosos objectivos, a sua natureza e a sua gravidade, redundando na alegada prevalência da clínica, enquanto observação assente em todos eles, também releva que a radiografia, ainda que tecnicamente efectuada de forma criticável, era elemento não desprezível no quadro colocado de Edema Agudo do Pulmão (EAP), notando-se que BP consignou no seu relatório que a sua não valorização pode ser admitida numa situação crónica conhecida, num doente medicado e compensado (fls. 132).

Já se vê, pois, que a recorrente descurou esses sinais, não só em razão das deficientes condições de obtenção da radiografia, como também porque conjugou-os com outros, estes aludidos no facto provado em 25., conduzindo-a para aquele diagnóstico de DPOC.

Se é certo que BP não excluiu a hipótese de que os sinais radiográficos pudessem denotar estar-se em presença de doente crónico, não é menos verdade que esclareceu que essa circunstância, se conjugada com outros elementos complementares (pH característico de acidose e troponina), não afastava a verificação de EAP.

O mesmo se diga relativamente a ML.

Assim, o facto provado em 20. surge como devidamente fundamentado pelo tribunal, pese embora a discordância da recorrente.

Quanto aos factos provados em 21., 22., 23., 24. e 25.:
21. A gasimetria revelou uma retenção de CO2 grave (81 mmHG), com pH (7.210 L) característico de acidose;

22. A Troponina I estava elevada (0,52 ng/ml);

23. A enzima CKmb apresentava um valor de 2,3 ng/mL, dentro dos valores de referência;

24. O bicarbonato apresentava valores de 32,4 mmol/L (HCO3) e 25,8 mmol (HCO3std), acima dos valores de referência;

25. Apesar do referido nos pontos 20, 21 e 22 dos factos provados, tendo em consideração as más condições técnicas em que foi realizada a radiografia, o historial clínico e pessoal de GH, a ausência de dor, a inexistência de alterações da CKmb, a sua boa oxigenação, o seu bom estado de consciência e de orientação no espaço e no tempo, com discurso fluente e articulado, a inexistência de sinais clínicos de situação aguda e a sua obesidade, a arguida entendeu estar perante uma situação de cronicidade do quadro respiratório no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), associada quer ao meio laboral (paciente havia sido carpinteiro e trabalhador agrícola), quer a uma história de tabagismo não quantificada;

resultam fundamentados na sentença em que:
(…) têm como suporte o que consta dos relatórios de urgência quanto aos resultados das análises e gasimetria arterial.

Sobre esta matéria, cumpre dizer que ao contrário do que a arguida conclusivamente alega no artigo 24º da sua contestação, não se pode considerar que o valor da Troponina I se encontra apenas moderadamente aumentado, pois o valor apurado é 17 a 18 vezes mais alto do que o valor máximo de referência (valores de referência entre 0.00 e 0.003 ng/mL), o que de resto é assinalado no já referido parecer do Colégio de Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos (cfr. fls. 1003);

- Já quanto ao ponto 24 dos factos não provados, proveniente do artigo 29º da contestação, a arguida apenas se refere a bicarbonato. Presumimos que se esteja a referir ao HCO3, já que os bicarbonatos são sais que contêm o anião HCO3. Ora, em relação ao HCO3, muito embora os relatórios de urgência não mencionem os valores de referência laboratorial, os apurados são superiores aos que na internet encontrámos como valores de referência (cfr. http://boasaude.uol.com.br/exam/index.cfm?lookup=A&ExamID=9&View=View e http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAplsAF/gasometria);

- O vertido no ponto 25 da matéria provada resulta também das declarações da arguida. Com efeito, sobre esta matéria a arguida referiu que face à situação clínica que lhe foi descrita pela equipa da VMER, considerou que o mesmo podia indicar um quadro de EAP, tendo valorizado os sintomas que lhe foram comunicados nesse sentido, razão pela qual pediu a realização dos exames complementares de diagnóstico. Contudo, tendo recebido e analisado o resultado de tais exames complementares de diagnóstico e considerando os elementos que consignámos no ponto 25 dos factos provados (no essencial resultante da conjugação dos artigos 23º e 25º a 29º da contestação), na sua opinião a situação clínica de GH enquadrava-se numa crise hipertensiva pré-EAP no contexto de provável Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), estando descartada a hipótese daquele pré-EAP poder evoluir para EAP nas horas seguintes. Mais adiante já veremos a importância que esse juízo clínico da arguida teve sobre os acontecimentos subsequentes, pois ele foi essencial para a concessão da alta.

Sobre tais factos, a recorrente tão-só assinala que o aumento da troponina (referida no facto provado em 22.) não é, só por si patognomónico de qualquer situação aguda, aludindo ao que consta do relatório elaborado por BP (fls. 131), por este confirmado em audiência, contrariamente ao que se retira da perícia de fls. 165 e segs., associando-o a agravamento do quadro clínico com novo edema agudo do pulmão.

Não discute, pois, que a matéria vertida sob esse ponto 22. esteja, quanto ao valor da troponina, de modo algum incorrecto, nem que esse valor fosse elevado, tal como assentou a fundamentação da sentença, mas sim a relevância do mesmo para o efeito de probabilidade de contexto de EAP, e não apenas, como entendeu, relacionado com DPOC.

Como se colhe de consulta a wikipedia.org/wiki, a troponima é um complexo de três proteínas que participam do processo de contração muscular no músculo esquelético e cardíaco, mas não no músculo liso, sendo de três tipos (C, T e I), sendo que, da prova disponível, se pode concluir a sua importância na avaliação de patologias cardíacas, constituindo elemento de análise adequado perante a sintomatologia que o doente apresentava e atinente a um diagnóstico nesse âmbito.

Esclarece-se efectivamente, ao nível pericial, que A elevação das enzimas cardíacas (nomeadamente da troponina) pode ocorrer em várias situações clínicas, além do enfarte do miocárdio, como sobrecarga hídrica, crise hipertensiva, traumatismo torácico, miocardite, embolia pulmonar e insuficiência cardíaca aguda (fls. 585), o que não foi minimamente contrariado pelas declarações da recorrente ou pelos depoimentos que agora invoca.

Se não sofre dúvida que GH estava, quando assistido pela equipa da VMER, em crise hipertensiva, reflectida nos valores à chegada ao Centro de Saúde de Vendas Novas (conforme ficha de consulta de fls. 17, com tensão arterial de 210/100), outros elementos foram aportados à recorrente sobre a situação do doente, mencionados no facto provado em 4., justificativos, aliás, da realização de exames por si ordenada, nos quais o resultado da troponina não mais constituiria do que aspecto a considerar, a par de outros.

BP sublinhou que a troponina era motivo de alerta, ainda que em contexto de DPOC, conjugado com a grave retenção de CO2 e com os sinais de estase decorrentes da radiografia, acentuando que a análise respectiva deveria ter sido repetida.

ML referiu que o valor da troponina não era indicativo, sem mais, de isquémia aguda e, MT, que a dimensão desse valor é compatível com processo inflamatório que teria ocorrido.

Já se vê que o valor, no entanto, não deixava de ser, como se provou, elevado.

Por seu lado, o entendimento de diagnóstico da recorrente, expresso no facto provado em 25., não foi efectivamente afastado pelos referidos depoimentos, embora sem o sentido que transparece do alegado, de que a DPOC contendesse com a informação que anteriormente lhe havia sido transmitida por ML e que inviabilizasse o sustentado diagnóstico de EAP, que esta última frisou, em audiência, como tendo por base o que constatou e focando que a hipertensão e os problemas cardíacos estão normalmente associados a essas duas patologias.

Perante o acervo probatório examinado e produzido em audiência, não se afigura aceitável que esse sentido, sem a contextualização da sua intrínseca relação e a vários níveis, deva prevalecer e, assim, o facto provado em 25. retrata, afinal, o balanceamento das condicionantes em presença e da forma como a recorrente as perspectivou, inexistindo fundamento para modificá-lo, aliás, ainda, em consonância com as declarações da própria recorrente.

Acerca do facto não provado em III:
III. O ECG referido no ponto 18 dos factos provados apresentava ritmo sinusal sem evidências de isquémia, sem arritmia (normal) e sem sinais electrocardiográficos de hipertrofia, isto é, não mostrava evidência de sofrimento cardíaco grave ou agudo;

A sentença motivou:
No entanto, apesar de ter resultado provado que além dos exames complementares de diagnóstico laboratoriais e radiológicos referidos a arguida solicitou também a realização de ECG, o tribunal não pôde considerar provado o apurado em tal ECG (ponto III dos factos não provados). Com efeito, O ECG desapareceu (a este propósito veja-se: fls. 225, respeitantes ao processo de averiguações internas do HES; fls. 1003, respeitantes ao parecer do Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos, elaborado no âmbito do processo disciplinar respeitante à arguida). Por isso não é possível afirmar com certeza o que o ECG evidenciava ou deixava de evidenciar, sendo certo que sobre esta matéria, por se tratar de um elemento técnico (ao contrário do que referimos, por exemplo, quanto ao ponto 16 dos factos provados), não é suficiente a declaração da própria arguida.

De todo o modo, há que realçar que a circunstância de não ter resultado provado o facto referido, que deriva dos artigos 20º e 21º da contestação, não significa de modo algum que esteja provado o contrário, i.e., que no SU GH se encontrasse em situação de sofrimento cardíaco agudo ou grave.

Neste âmbito, apenas a recorrente declarou que o Electrocardiograma (ECG) não revelou falência cardíaca, pelo que é perfeitamente aceitável a conclusão extraída pelo Tribunal, tratando-se efectivamente de elemento cuja tecnicidade não permite interpretações de outra ordem.

Sobre a situação, colhe-se, ainda, dos esclarecimentos à perícia médico-legal, que esse eventual resultado não permitia ponderar a exclusão de síndrome coronário agudo em evolução (fls. 584).

De qualquer modo, essa matéria foi, acertadamente, dada como não provada, não se afigurando que possa merecer diferente valoração.

Quanto ao facto provado em 34.:
34. Foi neste contexto que, pelas 7h07m, a arguida concedeu alta a GH, sendo certo que não o medicou nem lhe prescreveu qualquer terapêutica medicamentosa;

a recorrente defende a eliminação desta última parte, atendendo a que terá dito ao doente para continuar a tomar a sua medicação.

Ora, a recorrente recolheu informação do doente de que tomava medicação, para o colesterol e para o fazer urinar, sem contudo ter podido, como declarou em audiência, identificar nomes dos medicamentos (v. facto provado em 11.), tendo reconhecido, também em audiência, que não prescreveu terapêutica.

Embora tendo fornecido ao doente as indicações que constam do facto provado em 31., designadamente para continuar essa medicação, o que é razoável à luz de confiar no que lhe foi transmitido, dentro de princípio de confiança subjacente ao contacto e à observação que fez, não pode afirmar-se que o tenha medicado (a terapêutica foi feita pela equipa da VMER) e/ou que, perante a ausência de concretas referências, essa indicação equivalesse a efectiva prescrição.

Este é o sentido a conferir à fundamentação da sentença, sem motivo para infirmá-la.

No que respeita aos factos provados em 35., 36. e 37.:
35. Acontece que, tendo em conta a provável existência de Edema Agudo do Pulmão, referida na hipótese de diagnóstico que lhe foi transmitida pela VMER, impunham as boas práticas médicas que a arguida tivesse determinado o internamento de GH, com a sua consequente monitorização e vigilância e não lhe tivesse dado alta, como fez;

36. As alterações referidas nos pontos 19, 21 e 22 impunham, de acordo com as boas práticas médicas, o internamento do paciente para melhor estabilização, o que também já se impunha pela provável existência de EAP;

37. Porque não avaliou correctamente a gravidade da situação clínica do doente e da patologia de EAP, nem analisou e valorizou devidamente os resultados dos exames complementares de diagnóstico supra referidos e as alterações por ele reveladas, a arguida deu alta a GH, ao contrário do que devia, impunham as boas capacidades médicas e tinha capacidade para ter feito;

resulta da sentença que a respectiva valoração obedeceu, no essencial, ao juízo pericial, através das respostas aos quesitos formulados, acerca dos quais o tribunal consignou que podemos concluir que não obstante no SU não apresentasse sinais de EAP, a arguida não podia afastar a hipótese da sua existência (desde logo pelo que lhe foi dito pela médica da VMER) ou da situação de GH avançar para um EAP. Como vimos, foi situação que descartou (note-se que apenas a descartou depois da análise referida no ponto 25 dos factos provados), pois entendeu que estava perante uma situação de cronicidade no contexto de provável DPOC. Contudo, conforme resulta do parecer que vimos transcrevendo, pela análise da ficha clínica não se poderia afirmar que GH sofria de DPOC, sendo certo que o referido na última parte que transcrevemos é, como bem se refere, uma mera presunção, baseada nos factos que a própria arguida fez constar do quesito (veja-se o quesito III- 1, formulado a fls. 947). Acontece que em nenhuma parte dos autos é referido que GH sofria de hipoventilação (é mais uma presunção da arguida), sendo certo que o seu historial tabágico não se encontrava quantificado (cfr. ponto 25 dos factos provados, sendo certo que o assistente referiu que o seu pai foi fumador até aos 49-50 anos, i.e., que já não fumava há cerca de 20 anos).

Em suma, como se refere no despacho de pronúncia, a arguida «partiu de determinados pressupostos que não podia assumir como certos e valorizou indevidamente outros. Nomeadamente, partiu do pressuposto, na avaliação que faz do doente, que este padecia de DPOC. Não o devia ter feito com o juízo de certeza que afirma, pois que se tratava de doente cujo historial clínico desconhecia e que não se fazia acompanhar de documentação médica. Por seu turno, não conseguiu apurar junto do doente (…) qual a medicação que o mesmo tomava (no sentido da identificação nominativa dos medicamentos ou da sua substância activa – cfr. ponto 11 dos factos provados). Não conseguiu confirmar junto dos familiares (…) os antecedentes do doente, a medicação do mesmo e o eventual apoio no domicílio».

Para tudo isto terá certamente contribuído a circunstância da arguida ter visto GH no SU já estabilizado, sem se encontrar em crise aguda e agónico, conforme o encontrou a equipa da VMER.

De realçar, neste âmbito, que, segundo esclarecimento pericial, de fls. 585, Pela análise da ficha clínica não podemos afirmar que o doente sofria de doença pulmonar obstrutiva crónica, donde as considerações da recorrente, acerca de que o valor da gasimetria apurado poderia ser habitual em doente com essa patologia, sem provocar sonolência ou letargia como se verificou com GH durante o período em que este esteve no hospital, partem de pressuposto sem suficiente base de sustentação, ao implicitamente afastar a probabilidade de EAP, colocada pela médica da equipa da VMER.

Na verdade, ML, de acordo com a sua avaliação, manifestou, ao longo do seu depoimento, sustentar o seu diagnóstico de EAP e a necessidade de determinar-se a causa que o desencadeara, sem que tivesse de afastar-se a associação a DPOC ou a outros problemas de insuficiência cardíaca, expressando a ideia de que se o doente tivesse ficado internado ou, pelo menos, sujeito a uma vigilância, incluindo repetição da gasimetria e terapêutica adequada, a probabilidade de sofrer novo edema ficaria diminuída.

Por seu lado, MT, que apenas teve conhecimento da situação através da consulta à documentação clínica, também não afastou o contexto de EAP, inclinando-se, porém, para crise hipertensiva pré ou pós-EAP, encontrando-se o doente já devidamente estabilizado aquando da alta médica.

No seu relatório, BP refere que O Edema Pulmonar Agudo é uma entidade clínica grave, embora na maioria dos casos, com tratamento adequado, seja de relativamente fácil resolução. No entanto, dada a condição subjacente, que, maioritariamente é a Insuficiência Cardíaca descompensada, leva a que a boa prática médica nos obrigue ao internamento dos doentes com esta situação, o que, em audiência, não veio contrariar, mas, ainda assim, esclarecendo que isso seja tendencialmente teórico, já que não viu o doente e que o julgamento clínico, ainda que fosse exigível uma observação mais demorada, poderia não obrigar a esse internamento.

Na perícia refere-se que foi inadequado dar alta ao doente (fls. 166), não obstante os procedimentos – observação clínica, estudo analítico, radiografia do tórax, gasimetria, ECG – tivessem sido os adequados.

A verificada estabilização do doente, durante a permanência deste no SU, constatada pela recorrente, não pode dissociar-se da terapêutica que lhe havia sido feita anteriormente, como decorre, designadamente, do depoimento de ML.

Quanto à alegação da recorrente de que a reversão em doentes que apresentem tensão arterial elevada para valores tensionais normais poderá, desde que assintomáticos ou sem deterioração de órgão alvo, redundar na alta hospital, fundando-se em esclarecimento à perícia, de fls. 586, e nos sinais que GH apresentou (conforme relatório de urgência de fls. 20/21), afigura-se que esse esclarecimento não deve ser lido da forma assertiva como o faz, na medida em que traduz resposta eminentemente genérica e subordinada a que esse entendimento só se verifique após terapêutica.

No essencial, a sua discordância estará em que, na sua perspectiva, não actuou contra as boas práticas médicas, recondutíveis às denominadas regras da arte (“leges artis”), que constituem um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científicas, mas também deontológicas ou de ética profissional (Álvaro Rodrigues, in “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, 2007, pág. 54).

Ora, se é certo que, perante a prova, o diagnóstico de EAP não podia deixar de se apresentar como hipótese, que mesmo a recorrente, segundo declarou em audiência, não afastou liminarmente, a conclusão pericial de que, nas circunstâncias, a alta hospitalar não era adequada a obviar às consequências de uma evolução negativa no estado de saúde de GH, que lamentavelmente desencadeou o falecimento deste, não é minimamente contrariada pelas alegações da recorrente.

Para o efeito, releva que a alta hospitalar tenha sido por si determinada relativamente à situação que se lhe deparava, com importantes sinais de alerta, com insuficiente informação acerca do doente, habitando este numa zona rural, algo distante do hospital e só tendo acesso ao médico de família na segunda-feira seguinte, como se realçou na sentença.

Não se trata de fundamentar a inconveniência dessa alta em incertezas, decorrentes de que o juízo clínico é que ditaria o procedimento mais adequado, nem em dúvidas ou erros que sempre existirão na actividade médica, mas sim no que a situação concreta oferecia para avaliação da recorrente.

Para além das importantes considerações que se alcançam da exaustiva motivação da sentença, refira-se que o EAP é a acumulação de fluido intersticial nos pulmões como resultado da tensão sanguínea causada por insuficiência cardíaca esquerda (…) uma característica de falência cardíaca (“Guia Prático das Urgências Médicas”, de Prasanna Sooriakumaran, Channa Jayasena e Anjia Sharman, Climepsi, 2007, pág. 53).

Tratando-se de uma emergência médica muito grave, a sua avaliação e o seu tratamento, com vista a poder estabelecer-se um prognóstico, ou seja, a avaliação do seu grau de gravidade e da evolução ulterior, só se completarão através de esclarecimento da(s) causa(s) subjacentes e dos factores desencadeantes, sendo que pode desenvolver-se subitamente num estado de insuficiência cardíaca crónica, ou pode ser a primeira manifestação de cardiopatia, de vulgar enfarte agudo do miocárdio, que pode ser doloroso ou silencioso (“Diagnóstico Clínico y Tratamiento”, de Lawrence M. Tierney, Jr, Stephen J. McPhee e Maxine A. Papadakis, 36a.edicion, traducida de la 39a. Edición en inglês - aqui em tradução livre do ora relator –, pág. 418).

Afigura-se que, mesmo a probabilidade colocada pela recorrente de GH padecer de DPOC, não a desonerava de adoptar procedimentos diversos daquele por que enveredou.

Sublinha-se o que ficou vertido no parecer de fls. 1003 e seg., subscrito pelo Colégio da Especialidade de Medicina Interna da Ordem dos Médicos: a boa prática impunha que o doente não tivesse tido alta antes de reavaliação dos valores da troponina para aferir a sua curva evolutiva, e sem reavaliação e correcção dos valores da gasimetria arterial (acidémia e tenção de CO2) … Teria sido prudente a instituição de terapêutica para ambulatório, ou pelo menos o ajuste da terapêutica que faria habitualmente, a qual não estaria certamente adequada às necessidades do doente já que permitiu a instalação do quadro de edema agudo do pulmão.

Embora a testemunha ML tenha admitido que a instalação desse quadro possa ser progressiva, o que se compadece, aliás, com a evolução da situação de GH, não se extrai minimamente, do seu depoimento, que para o falecimento daquele tenha contribuído alguma demora na assistência, nomeadamente em razão do lapso na morada que é referido no facto provado em 42.

Por seu lado, a testemunha não afastou que a agudização pudesse ser imediata, sendo que não se descortina contradição alguma nessa alegada progressão do quadro, que, segundo a avaliação que fez, até estaria, pois, já instalado, e que a agudização posterior verificada, aparentemente não divergente da anterior e, certamente, de gravidade não inferior, resultava numa exigência acrescida de ponderação por parte da recorrente quanto à alta que determinou.

Não se vislumbra, assim, razão para que, dos factos provados, deva constar, como a recorrente pretende, que a instalação do quadro de EAP é progressiva, não sendo a agudização imediata, já que, por um lado, essa agudização pode ser, e terá sido no caso, imediata e, por outro, não vem fornecer qualquer esclarecimento/complemento ao que ficou vertido na sentença nesse âmbito.

Outras considerações não se justificam para concluir que a matéria impugnada deve persistir, porque cabalmente motivada na prova recolhida e sem que, a respeito dela (e da restante que fixou) o tribunal tenha expressado qualquer dúvida ou que, ora, se perspective que alguma dúvida, que teria de ser séria, relevante e inultrapassável, se devesse ter imposto, à luz das regras da experiência, resultando, sim, que foi firmada convicção de modo devidamente objectivado, alicerçada em raciocínio lógico, reflectido de forma inteligível, com ponderação equilibrada dos elementos com que se deparou.

I) – do enquadramento jurídico dos factos:

A alegação da recorrente neste âmbito transparece decorrente da preconizada modificação da matéria de facto provada.

Não tendo, esta, obtido sucesso, estará de algum modo prejudicada, se bem que ainda alguns apontamentos se deixem aqui referidos.

O essencial da argumentação da recorrente reside em que não é viável estabelecer com segurança que a sua actuação tenha, em concreto, aumentado o risco de que o resultado viesse a ocorrer, sem que tivesse o dever de o prever, não se materializando o necessário nexo de causalidade, aferido por juízo de prognose póstuma, de idoneidade e de acordo com a sua capacidade.

O Ministério Público, sufragando entendimento diverso, refere que:
De facto, a morte de GH foi causada por edema Agudo Pulmonar, como consta das conclusões do incontestado relatório de autópsia.

Por outro lado, como consta afirmado na Perícia do Conselho Médico-Legal: perante o quadro clínico do doente (descrito pela arguida), designadamente as alterações analíticas verificadas (acidose respiratória com elevada retenção de CO2, troponina I elevada) e com alterações radiográficas sugestivas de congestão pulmonar, apesar de o doente estar estabilizado no SU (ou seja, assintomático), era previsível que pudesse vir a ter um agravamento do quadro clínico com novo edema agudo do pulmão que, não sendo tratado em tempo útil, poderia levar à sua morte; A possibilidade de aparecimento de novo edema agudo do pulmão poderia ter sido diminuída sob terapêutica médica adequada; E existe tratamento médico adequado, a maior parte das vezes eficaz para evitar a morte por Edema Agudo Pulmonar.

Os elementos probatórios mencionados permitem concluir que:

Eram previsíveis os eventos lesivos que se verificaram – a formação de novo edema agudo pulmonar e a consequente morte de GH;

E que era alta a probabilidade de evitar tais eventos – ou seja, o resultado típico do crime – com o estudo completo e determinação da causa da sua doença, prescrição de terapêutica médica adequada e a sua estabilização clínica - que exigiam o internamento daquele.

Tanto basta para afirmar que, se a arguida tivesse diagnosticado correctamente a causa da doença de GH e tomado as decisões do tratamento médico adequado à sua situação clínica – como devia e pôde ter feito – com elevada probabilidade não teria ocorrido a morte daquele e que, assim, tais incorrecção de diagnóstico e omissões de tratamento médico criaram risco não permitido de produção do resultado típico e foram causas adequadas da morte.

A negligência, definida no art. 15.º do CP, subjacente ao ilícito por que a recorrente foi condenada, traduz-se na violação de um dever de cuidado, por acção ou omissão, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que, segundo as circunstâncias, o agente podia ter cumprido.

«O tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido por comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente proibida» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, tomo I – “Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, Coimbra, 2004, pág. 634).

A ordem jurídica, ao impor esse dever de cuidado, está a afirmar, no plano normativo, o verdadeiro sentido onto-antropológico que liga o agir entre os homens.

E com realce, note-se, na actividade médica, que, por natureza, é potenciadora de diversos riscos, impondo aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida do doente (Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, “Responsabilidade Médica em Portugal”, in BMJ n,º 332, pág. 64), ainda que estejamos perante uma obrigação de meios, que não de resultado (Álvaro Rodrigues, ob. cit., pág. 62), à luz das referidas “leges artis”, definidas, conforme ao acórdão desta Relação de 08.04.2010, no proc. n.º 683/05.5TAPTG.E1 (sendo relator, o Desembargador Correia Pinto), como as regras da arte …. normas escritas (não jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos e destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, designadamente, a evitar o desenvolvimento de perigo ou a ocorrência de danos que tais ofícios são naturalmente hábeis a produzir.

Também como referido por Faria e Costa, in “O Perigo em Direito Penal”, Coimbra, 1992, págs. 529 e seg., 530, «As regras do cuidado cristalizadas nas leges artis medicinae sem dúvida que são, primariamente regras de cuidado, na medida em que visam acautelar e defender os bens jurídicos que a ordem penal considera relevantes (…), mas, para além disso, perfilam-se com uma densidade normativa que de modo algum pode ser ignorada, sob pena de, se assim se proceder, amputarmos uma parte substancial da realidade. Com efeito, as leges artis médicas visam, não só a manutenção ou a não diminuição dos bens jurídicos, como também prosseguem a finalidade de aumentarem esses mesmos bens jurídicos.

Como motivado na sentença, «…resulta da matéria provada (pontos 35, 36, 37 e 49 dos factos provados), as boas práticas médicas impunham que a arguida tivesse determinado o internamento de GH, com a sua consequente monitorização e vigilância e não lhe tivesse dado alta».

Mais aí se acrescenta que «Estamos na presença de uma situação em que o convencimento da arguida de que GH teria tido uma crise hipertensiva no contexto de uma DPOC, não existindo patologia mais grave (o referido EAP, que considerou nos termos referidos, mas veio a descartar), a fez incorrer em erros de prognóstico (quanto à evolução da situação) e de tratamento, concedendo alta a GH (no contexto do caso não podemos deixar de considerar o internamento, monitorização e vigilância do paciente como parte do tratamento; quanto ao erro médico e suas diversas modalidades, cfr. ÁLVARO RODRIGUES, ob. cit., p. 287 a 300, sendo que em relação ao erro de tratamento menciona que ele pode decorrer (…) de um prévio erro de diagnóstico de que será, nesse caso, efeito ou consequência ou ser independente do diagnóstico», acrescentando ainda que «tal erro há-de traduzir-se necessariamente na violação das leges artis»).».

Tal omissão de cuidado da recorrente não se dissocia do resultado verificado, existindo entre ambos o necessário nexo de causalidade, já que a decisão por que se pautou, perante as apuradas condições, se colocou em plano para além da margem de risco tolerado, incrementando a possibilidade do resultado se ter verificado.

Sublinha-se na sentença que “com os ensinamentos de ÁLVARO RODRIGUES, «como é opinião dominante da generalidade da doutrina especializada, só se pode falar em ilícito imprudente, quando a acção (conduta ou comportamento) se traduza na criação de um risco não permitido (incremento ou potenciação de risco), previsível ou cognoscível pelo agente e desde que se estabeleça a relevância jurídica penal de tal conduta, que só existirá quando o resultado lhe for objectivamente imputável, isto é, quando se verifica um resultado danoso mediante a actualização do risco (…) Em síntese: o risco será não permitido ou intolerado quando for apto a causar lesão à vida ou integridade física do paciente e for exigível e possível ao agente (médico) a sua evitação. E, desta forma, só haverá negligência penal médica se a violação do dever geral objectivo de cuidado tiver criado um risco não permitido e se o resultado se plasmar na concretização ou actualização de tal risco cabendo no âmbito da protecção da norma» (ob. cit., p. 277-278).”.

O subjacente conceito de causalidade tem em vista a apreciação da causa adequada a produzir o resultado, seja por acção, seja por omissão, perante a qual essa adequação tem de ser aferida segundo um juízo de “prognose póstuma”, o que significa, conforme Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 310, que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer das factos, a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Se entender que a produção do resultado era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar.

E, como escreveu Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, Almedina, 2.ª edição, 1973, pág. 748. Em condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo da responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele, aqui entroncando a previsão ou previsibilidade do resultado, relativamente à qual se debruça a sentença em termos esclarecedores: “no parecer elaborado no âmbito da consulta técnico-científica solicitada ao Conselho Médico-Legal do INML, foi formulada a seguinte conclusão, que voltamos a transcrever:

«(…) era previsível, apesar do doente estar estabilizado no SU após terapêutica, com as alterações analíticas presentes na altura (acidose respiratória com elevada retenção de C02, troponina I elevada) e com alterações radiográficas sugestivas de congestão pulmonar, que pudesse vir a ter um agravamento do quadro clínico com novo edema agudo do pulmão que, não sendo tratado em tempo útil, poderia levar à morte» (fls. 167).».

Acompanhando Claus Roxin, “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, a págs. 257 e seg., (…) a questão fundamental e decisiva é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente? Como método de resposta, proponho o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido.

Não se descortina qualquer causa de interrupção no processo causal de evolução que levou ao falecimento de GH, já que, como se fundamenta na sentença, No caso dos autos não se encontra minimamente provado que caso os bombeiros não se tivessem enganado no caminho conseguiriam ainda chegar a tempo de salvar a vida a GH. Aliás, recordemos que após a chamada da sua tia, o assistente CH demorou cerca de 15 minutos a chegar às Piçarras, chegando antes dos bombeiros e encontrando o seu pai em situação muito pior do que no 1º episódio, pois embora respirasse já não se aguentava em pé e não se mexia.

Deste modo, pode afirmar-se que a produção do evento era evitável, segundo os conhecimentos e a capacidade concreta da recorrente, não fora a sua decisão de descurar as indicações que lhe foram transmitidas pela médica da equipa da VMER e os alertas que alguns dos exames lhe deram em sentido consentâneo com as mesmas.

Conforme Álvaro Rodrigues, ob. cit. pág. 278, o risco será não permitido ou intolerado quando for apto a causar lesão à vida ou integridade física do paciente e for exigível e possível ao agente (médico) a sua evitação. E, desta forma, só haverá negligência penal médica se a violação do dever geral objectivo de cuidado tiver criado um risco não permitido e se o resultado se plasmar na concretização ou actualização de tal risco cabendo no âmbito da protecção da norma.

Na verdade, a recorrente não esgotou os meios que tinha ao seu dispor em função das possibilidades oferecidas pelos conhecimentos científicos, mormente para fazer um diagnóstico e um prognóstico correctos, não se afigurando razoável justificar o seu procedimento pela mera circunstância de GH, enquanto esteve em observação, ter denotado se encontrar relativamente estabilizado e assintomático, pois não desconhecia que lhe havia sido administrada terapêutica e que, ainda assim, sinais de quadro de EAP estavam presentes, com o que revelou imprudência relevante em ter enveredado pelo procedimento de alta hospitalar.

No homicídio por negligência, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente; ou seja, a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido e serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que segundo as máximas da experiência, a normalidade do acontecer e portanto segundo o que é em geral previsível são idóneas para produzir o resultado; consequências imprevisíveis ou de verificação rara serão juridicamente relevantes (acórdão do STJ de 05.11.1997, in CJ, Acs. STJ, ano V, tomo III, pág. 227).

Reproduzindo a síntese aludida na sentença:

« No campo específico da responsabilidade penal médica por negligência, que é afinal o que nos ocupa, «importa reter duas notas axiomáticas (…)»:

«Prima: Apenas existirá responsabilidade criminal do médico a título de negligência, se este realizar um tipo de ilícito penal. Isto significa, desde logo, que por maior que seja a gravidade da imprudência ou da indolência do médico, da sua imperícia ou descon­sideração, em suma da sua negligência (violação do dever objectivo de cuidado) ele não responderá criminalmente pela sua acção ou omissão, se a sua conduta não estiver tipificada na lei. Como se sabe, inexiste entre nós um crimen culpae, havendo antes crimina culposa.

Nas palavras de Enrique Bacigalupo, e no que concerne à lesão da integridade física ou da vida «no apuramento da responsabilidade criminal do médico por negligência, a questão consiste na determinação das condições, sob as quais, qualquer lesão ou o resultado morte, provenientes de um tratamento médico, pode considerar-se subsumível na previsão do delito de ofensas à integridade física (lesiones) ou de homicídio».

É por isso que, nem toda a violação das leges artis ou mesmo de erro médico se traduz na negligência médica penalmente relevante, pois terá de ser consequência de violação do dever de cuidado objectivo (art.º 15.º do Código Penal) ou, na discursividade jurídico-penal da moderna teoria da imputação objectiva, ter criado um risco não permitido (verboten Risiko), que se concretizou no resultado lesivo e que cabe no âmbito da tutela da norma que proíbe ou impõe a conduta.

Secunda: Por outro lado, importará ter sempre em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 13.º do nosso compêndio legislativo penal, só é punível o facto praticado com negligência, nos casos especial­mente previstos na lei, pelo que ainda que o comportamento do médico, se fosse doloso, se inscrevesse na previsão de um ilícito típico, tal não significa automaticamente que a mesma conduta, praticada com negligência, seja criminosa» (ÁLVARO RODRIGUES, ob. cit., p. 272-273).».

Dentro de todo o descrito circunstancialismo, que o acervo fáctico provado reflecte, a subsunção ao crime por que foi a recorrente condenada não merece censura.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, assim,
- manter integralmente a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, com a taxa de justiça em soma correspondente a 7 UC.

Processado informaticamente e integralmente revisto pelo Relator.

Évora, 21 de Maio de 2013

Carlos Berguete Coelho

João Gomes de Sousa - com declaração de voto

Declaração de voto

“ Voto a decisão, sem prejuízo de considerar potencialmente violador do princípio da igualdade de armas e do contraditório o artigo 3º da Lei nº 45/2004, de 19-08, ao impedir a nomeação de assessores técnicos ao arguido na realização de perícias médico-legais.

Entendo que a legislação avulsa sobre perícias médico-legais se está a revelar avessa ao contraditório e à igualdade de armas e o referido preceito contraria – ou pode contrariar em concreto – o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a variada jurisprudência do TEDH.

A perícia, como qualquer meio de prova, está sujeita – no conjunto da prova - aos princípios da igualdade de armas e do contraditório. Este é concretizável na possibilidade de tomar conhecimento das observações ou elementos de prova produzidos pela outra parte, bem como na possibilidade de as discutir (Brandstetter v. Austria, 26-08-1991, § 67);

Sendo certo que a cada “parte” deve ser oferecida uma possibilidade razoável de apresentar a sua causa em condições que a não coloquem numa situação de desvantagem em relação à contraparte (Nideröst-Huber v. Suíça, 27-01-1997, § 23), que a aplicação do princípio deve ser feita em concreto tendo em vista a globalidade dos procedimentos (G.B. v. França, 02-10-2001, § 68), havendo arguidos constituídos a excepção do artigo 3º. do Regime Jurídico das Perícias Médico-legais e Forenses que exclui a aplicabilidade dos artigos 154º e 155º do C.P.P às perícias efectuadas nas delegações do INML ou nos gabinetes médico-legais (pode) constitui(r) uma violação do artigo 6º, nº 1 da referida Convenção.

Assim, estamos frontalmente contra o fundamentado no acórdão do Tribunal Constitucional 133/2007 quando afirma:

“O direito de nomear um consultor técnico permitido pelo artigo 155º do Código de Processo Penal, não é um direito conferido especificamente a título de "garantia de defesa",

O direito do arguido de acompanhar a perícia através de um consultor técnico não constitui uma imperiosa exigência do princípio do contraditório.

Negar a possibilidade ao arguido recorrente de nomear, nesta fase, um consultor técnico, não ofende as garantias previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, ou qualquer outra norma constitucional”.

Bem ao invés entendemos que o “direito a nomear consultores técnicos” é um direito conferido especificamente a título de defesa dos interesses em jogo (de assistente e/ou arguido), sendo, naturalmente, um direito atribuído especificamente a título de defesa se é a posição do arguido que está em jogo e dependente do resultado da perícia. É corolário lógico, ou então a perícia não se justifica no caso concreto.

O caso concreto pode determinar que a simples possibilidade de discutir o relatório da perícia em audiência de julgamento não seja suficiente para assegurar contraditório no momento da realização da perícia (Cottin v. Bélgica, 02-06-1995, § 33 e Mantovanelli v. França, 17-02-1997, § 36), falando mesmo o TEDH em direito a participar na sessão de realização da perícia (Cottin v. Bélgica, - em causa uma perícia médica - § 32).

Dos casos referidos - Cottin v. Bélgica, de 02-06-1995, § 33 e Mantovanelli v. França, de 17-02-1997, § 36 – extrai-se que a simples possibilidade de discutir a perícia em audiência pode não ser suficiente se a parte não teve oportunidade de oferecer os seus “comentários” no momento da realização da perícia.

No entanto, a recorrente não invoca, em concreto, razão alguma para que se considere ter havido violação dos referidos princípios.

Acresce que a conclusão 6ª das conclusões de recurso da arguida centra atenções no especial valor probatório da perícia, o que entendemos não colocar em causa aquele princípio do contraditório.”