Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
184/19.4T8OLH.E1
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: INVENTÁRIO
MEAÇÃO
DÍVIDAS COMUNS
Data do Acordão: 09/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: Sumário (elaborado pela relatora):

I- No inventário em consequência de divórcio, a partilha destina-se a dividir os bens comuns dos cônjuges e envolve também a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, quando, segundo o artigo 1689.º, n.º 3 do Código Civil, aqueles sejam pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum. Quando não existirem bens comuns, ou sendo eles insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor, casos em que o pagamento tem lugar fora do inventário.


II. – Um dos cônjuges que paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer. Sendo um crédito que só é exigível no momento da partilha dos bens do casal – artigo 1697.º, n.º 1 do Código Civil –, ele deve ser objeto de relacionação no inventário instaurado em consequência de divórcio.


III. O que se procura com esta relacionação é que no inventário se proceda à correta partilha do património comum, nas proporções que a lei estabelece, devendo para tanto ser aí tomados em consideração os créditos/débitos entre os cônjuges, se e na medida em que sejam pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum.

Decisão Texto Integral: Recurso de apelação n.º 184/19.4T8OLH.E1

***


Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora:


I – Relatório


AA, identificado nos autos, instaurou no Cartório Notarial de Cidade 1, inventário na sequência de divórcio destinado à partilha dos bens comuns do dissolvido matrimónio, sendo requerida a ex-cônjuge BB, também identificada nos autos.


Na sequência de despacho proferido pelo Sr. Notário, em 26 de setembro de 2018, no qual decidiu a reclamação que a interessada BB apresentou da relação de bens e indeferiu o requerimento que esta formulou, no sentido de, ao abrigo do disposto no artigo 16.º do RJPI1, se remeter o processo para os meios comuns, a referida interessada interpôs recurso para o Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2 – Juízo de Família e Menores de Cidade 2, no âmbito do qual foi proferido despacho judicial, em 25 de maio de 2021, que julgou parcialmente procedente o recurso, em consequência do que revogou a correspondente parte do despacho notarial impugnado e, além do mais, determinou a exclusão das relacionadas verbas dois e três do passivo e a notificação do cabeça de casal para juntar nova relação de bens em conformidade com a decisão.


Prosseguindo os autos e elaborado o mapa da partilha pelo Sr. Notário, foram os mesmos remetidos a juízo e nele o tribunal a quo, por despacho proferido no dia 19 de novembro de 2024, apreciou o requerimento de correção de erro do referido mapa, que BB apresentou em 26 de setembro de 2022, tendo decidido que a pretensão da interessada foi já objeto de despacho do Sr. Notário, pelo que, em caso de discordância, devia aquela ter reagido através dos meios próprios, designadamente interpondo recurso da decisão notarial, nada mais havendo, pois, a determinar a tal respeito.


Na mesma data, 19 de novembro de 2024, a 1.ª instância proferiu sentença homologatória da partilha constante do mapa de 27 de abril de 2022.


2. Inconformado com a sentença homologatória da partilha, proferida em 19 de novembro de 2024, e do despacho judicial de 25 de maio de 2021, que julgou parcialmente procedente o recurso que a requerida interpôs do despacho do Sr. Notário, de 26 de setembro de 2018, e que, em consequência, determinou, além do mais, a exclusão das verbas dois e três do passivo elencado na relação de bens, o cabeça de casal AA interpôs recurso de apelação em que, no termo das respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões (transcrição):


“A. O despacho de 25.05.2021 vota ao desperdício completo toda a actividade processual desenvolvida ao longo de anos no processo de inventário e fá-lo, salvo o devido respeito, com base numa distinção meramente conceptual que não tem em consideração os objectivos do legislador, o qual, claramente, determinou que todas as compensações de créditos entre os cônjuges devem ser considerados na altura da partilha.


B. Até mesmo o próprio Dr. Lopes Cardoso preconiza que tais créditos deverão ser levados à partilha, mesmo quando não devam ser considerados como verdadeiros créditos de compensação – cfr. Partilhas Judiciais, 3ª Ed. Vol. III, pp. 391 e 392.


C. Num inventário para partilha de bens subsequente a divórcio, deve ser relacionado o crédito de compensação, como passivo do património comum, pelos pagamentos que um ex-cônjuge fez com dinheiro exclusivamente seu, por dívidas que eram da responsabilidade de ambos.


D. Acresce que a jurisprudência recente entende que, para além dos créditos referentes às dívidas da responsabilidade do casal, pagas, apenas e só, por um dos ex-cônjuges na constância do matrimónio, devem ser relacionados, como passivo do património comum, até os pagamentos que um ex-cônjuge fez, por dívidas que eram da responsabilidade de ambos, mesmo que tenham sido feitos depois do divórcio.


E. Quanto mais não será assim quando estão em causa pagamentos feitos, em grande parte, na constância do matrimónio.


F. Posto isto, a vexata quaestio, saber se as sobreditas verbas – que são créditos de compensação – devem ser relacionadas no processo de inventário já se encontra respondida: têm de ser relacionadas.


G. Os valores suportados pelo Recorrente com o pagamento do mútuo e do IMI descritos nas verbas dois e três do passivo devem considerar-se como compensação devida pelo património comum ao património próprio do próprio Recorrente.


H. O despacho judicial de 25.01.2021 não só procedeu a uma errónea aplicação da distinção entre créditos de compensação e outros créditos entre os cônjuges, como também – e mesmo que assim não tivesse sido, como é – desconsiderou que quaisquer dos créditos em causa sempre teriam de ser considerados na partilha.


I. Por conta do despacho judicial de 25.01.2021 o mapa de partilha, elaborado no dia 27 de Abril de 2022, entretanto homologado, mostra-se errado devendo, a final, ser corrigido.


J. O despacho e a Sentença recorridos violam, além do mais, as normas constantes dos artigos 1697.º, n.º 1 e 1689, n.º 3 do CC.


Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência:


- o despacho judicial de 25.05.2021 ser revogado, pelo menos parcialmente, e substituído por um outro que mantenha na relação de bens as verbas 2 e 3 do passivo, conforme despacho do Senhor Notário 25.05.2021;


- ser revogada a sentença homologatória e corrigido o mapa de partilha, passando este a incluir, para além das restantes que já lá se encontram, as referidas verbas 2 e 3 como crédito do Recorrente sobre o património comum, reduzindo-se, em conformidade, o valor de tornas a receber pela Recorrida;


- subsidiariamente, ser notificado o Recorrente, cabeça-de-casal para ser apresentada nova relação de bens nos termos acima propugnados, seguindo processo os seus ulteriores termos”.


3. A interessada BB veio interpor recurso do despacho que indeferiu o requerimento de correção do erro material contido no despacho notarial sobre o mapa de partilha e, bem assim, na mesma peça processual, apresentou as suas contra-alegações ao recurso interposto pelo cabeça de casal, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):


“1. Poderia o Tribunal de Cidade 2 ter corrigido o mapa de partilha, expurgando dele o erro que o Sr Notário por claro lapso, fez inserir.


2. É que o Sr Notário mandou abater o passivo ao ativo, pelo que a operação seguinte é a divisão do activo ao qual se chegou, pelos dois interessados, correspondendo metade, à parte a pagar de tornas à recorrente.


3. Quando o Sr Notário manda, que do montante de tornas devido à interessada, seja ainda penhorado o montante em divida ao credor, está a duplicar nesse item o passivo, o que é errado.


4. Não tendo o Sr Notário corrigido o erro, deveria tê-lo feito o tribunal. Que não o tendo feito, motivou o presente recurso.


5. Por outro lapso, Não há qualquer dívida do património comum ao interessado AA,


6. motivo pelo qual não o foi nem poderia ter sido relacionada,


7. ao contrário das dívidas a terceiros, que foram pagas pelo interessado, já depois divórcio.. motivo pelo qual foram relacionadas no passivo da relação de bens.


8. A prova produzida nos autos de inventário, não permite concluir que o dinheiro doado pela mãe de AA se destinava ao pagamento de crédito habitação, antes que se destinava a ajudar o casal na totalidade das suas despesas.


9. Motivo pelo qual a verba 2, correspondente ao serviço da dívida do crédito habitação contraído pelo casal, foi bem eliminada do passivo da relação de bens apresentada e assim deve permanecer.


10. Note-se que a doadora, quando do divórcio, não manifestou que os montantes que havia doado, o foram só ao interessado,


11. Sendo que à face do disposto no artigo 1791.º do CC, só nesse caso poderia haver alguma alteração.


12. Além disso, não se produzir NENHUMA PROVA sobre a quantia que terá sido doada pela mãe do ao longo dos anos, pelo que, daqui resulta que não poderia ser levado tal á partilha, pois não está apurado.


13. Na verdade, a dívida do crédito habitação, tal colo resulta da prova testemunhal e documental produzida nos autos, era uma dívida dos dois elementos do casal, paga pelos dois á custa do produto do seu trabalho na loja de que eram donos.


14. O cabeça de casal assumiu no âmbito do divórcio, o pagamento de todas as despesas da casa de morada de família, pelo que não faz sentido relacionar quer as prestações ao banco, relativas ao crédito habitação, quer os IMI`s liquidados durante o tempo da separação e até á partilha.


15. Verbas que foram excluídas da relação de bens por ordem do Tribunal de Cidade 2, e devem por isso assim se manter.


Nestes Termos e nos melhores de Direito, com o Mui Douto Suprimentos de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser recebido e a final julgado procedente, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que:


A) ordene a correção do mapa de partilha,


B) mantenha a exclusão das verbas 2 e 3 do passivo da relação de bens, apresentada nos autos pelo cabeça de casal,


C) declare que a interessada apenas responde por metade da dívida do crédito habitação e IMI´S, a partir da data de encerramento do processo de partilha, por até lá o interessado AA se ter obrigado a suportar tais despesas.


Assim permitindo que se almeje Justiça!”.


4. Ao recurso interposto pela interessada, veio o cabeça de casal AA apresentar contra-alegações em que começa por pugnar no sentido da inadmissibilidade daquela pretensão recursória.


Sustenta, para tanto, que os argumentos que a apelante aduz em suporte do seu pedido são ininteligíveis, porquanto não explica em que medida a impugnação da decisão da 1.ª instância, no sentido de não conhecer da questão, por esta ter transitado em julgado, sendo, por isso, insuscetível de ser modificada, está relacionada com a alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), que invoca em apoio da sua pretensão recursória.


Por outro lado, se a apelante pretende equiparar o requerimento objeto do despacho recorrido a um articulado, para efeitos de aplicação da alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, sempre se dirá que aquele não é um articulado, nos termos previsto na citada alínea d) e no artigo 147.º do CPC e, como tal, o despacho impugnado não é autonomamente recorrível.


Contudo, ainda que o requerimento pudesse ser percebido como um articulado, sempre se diria que o despacho impugnado não constitui um mero despacho de “rejeição de articulado”, uma vez que a pretensão da apelante foi sujeita a análise pela 1.ª instância, sendo que a circunstância de esta ter concluído pela sua não reapreciação com o fundamento de a questão já ter sido decidida e transitada em julgado, não se traduz numa pura recusa ou rejeição de articulado para efeitos de aplicação da norma invocada.


O apelado sustenta ainda que a questão que a apelante coloca no requerimento já foi apreciada em decisão anterior do Sr. Notário, sendo neste caso a autoridade do caso julgado que impede que o tribunal a quo proceda a nova análise.


De todo o modo, para o apelado o pedido que a apelante pretendia ver apreciado nos autos não é o de uma mera retificação material, de erro de cálculo ou de inexatidão, antes configura uma verdadeira revisão do despacho em que o Sr. Notário se recusou a alterar o mapa da partilha no sentido preconizado pela recorrente, pela circunstância de ter entendido que tal questão devia ser dirimida nos autos de execução, despacho esse em que apenas se limitou a verter no referido mapa o valor penhorado à ordem da indicada execução, fazendo-o mais a título informativo, sem ter tomado qualquer decisão, o que significa que a apelante procura algo que redunda num pedido inócuo, supérfluo e, sobretudo, infundado.


Donde, por estas razões, para o apelado o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.


4. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*


II – Objeto dos Recursos


O objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas nas alegações, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, para além das que forem de conhecimento oficioso, ressalva feita àquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).


Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência dos recorrentes relativamente às decisões impugnadas, são as seguintes as questões a decidir:


Recurso do interessado AA


- Se no inventário para liquidação do património comum dos cônjuges devem ser relacionados os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, que são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum.


- Se o despacho judicial proferido em 25 de maio de 2021 deve ser revogado, pelo menos parcialmente, e substituído por outro que mantenha na relação de bens as verbas dois e três do passivo.


- Consequentemente, se deve ser revogada a sentença homologatória e corrigido o mapa da partilha, passando este a incluir, para além das restantes verbas que já lá se encontram, as referidas verbas dois e três como crédito do recorrente sobre o património comum, reduzindo-se, em conformidade, o valor de tornas a receber pela apelada.


Recurso da interessada BB


- Recorribilidade do despacho proferido pelo tribunal a quo, em 19 de novembro de 2024.


- Sendo recorrível, se o despacho em questão deve ser revogado e substituído por outro que ordene a retificação do mapa da partilha, nos termos requeridos pela apelante.


*


III – Fundamentação


Fundamentação de facto.


1. Para além do que consta enunciado no ponto 1 do relatório deste acórdão, dos presentes autos resulta ainda o seguinte:


1.1. O despacho que o Sr. Notário proferiu a 26 de setembro de 2018 (ref.ª Citius 124702841), referido no ponto 1 do relatório, tem o seguinte teor (transcrição dos segmentos relevantes para o presente recurso):


“Neste processo de inventário de partilha por divórcio, entre AA e BB, veio esta reclamar contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal e requerente, aquele AA, alegando, em sínteses, que:


(…)


II) Da errada relacionação do passivo


a) Que o crédito da verba dois – no montante de 171.991,47€ - reclamado pelo cabeça-de-casal não é dívida com existência à data da propositura da acção de divórcio, tendo sido satisfeita na constância do matrimónio com os rendimentos do casal provenientes da actividade comercial que ambos exerceram na sociedade “F... Atoalhados Têxteis para o Lar, Limitada”; e adiantou – sem conceder – que qualquer valor de dívida (resultante de um crédito hipotecário) a ser reconhecido é a existente à data da propositura da acção de divórcio e por metade do valor, porquanto a outra metade é da responsabilidade do cabeça-de-casal; e adiantou ainda, que mesmo que o cabeça-de-casal tivesse procedido ao pagamento integral do serviço da dívida, o direito à sua restituição por enriquecimento sem causa sem causa prescreve no prazo de 3 anos, como estipulado no art. 482º do Código Civil.


E termina, invocando que tal crédito (a existir) não onera bens comuns do dissolvido casal, mas tão só a meação do cônjuge devedor do património comum, pelo que, de acordo com o nº 3 do art. 1689º do C.C. o alegado crédito não tem, de todo, que ser relacionado.


b) Que o crédito da verba três reclamado pelo cabeça-de-casal – no montante de 1.917,28€ (referente a IMI dos anos de 2010 a 2014 do imóvel da verba um) é da sua exclusiva responsabilidade por força do Acordo quanto ao destino da casa de morada de família (homologado com o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio (proferido aos 30/08/2010), destinada à habitação do requerente que nela prosseguirá suportando todas as despesas.


E termina, após desenvolver a sua fundamentação de facto e de direito, requerendo a exclusão da verba três do passivo da relação de bens.


(…)





Tendo sido produzido a prova requerida, cumpre apreciar e decidir:


(…)


II) Da errada relacionação do passivo:


a) Dispõe o art. 1725º do C.C. que “Quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns”.


Trata-se de uma presunção de comunicabilidade relativamente aos bens móveis – o que inclui, portanto, dinheiro -, presunção esta que poderá ser elidida mediante prova do contrário (Peres de Lima e A. Varela, C.C. Anotado, vol. IV, pag. 429, 2º ed. rev. e actual., 1992).


Da prova testemunhal produzida – valorando-se especialmente o depoimento das testemunhas indicadas pelo requerente CC, DD e EE – resultou de modo explícito que o pagamento das prestações do imóvel adquirido pelo casal foram efectuadas com valores doados pela mãe ao filho – o requerente AA – e não ao casal. Assim, tais valores, elidida a presunção do art. 1725º do C.C. devem considerar-se bens próprios do requerente de acordo com o disposto na al. b) do nº 1 do art. 1722º do mesmo Código, visto se tratar de casamento celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos.


Estabelece o nº 1 do art. 1697º do C.C. que “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer;…”.


É este o caso dos presentes autos – a dívida das prestações do empréstimo contraído pelo casal (no indicado valor de 171.991,47€) foram satisfeitas com bens próprios de um só deles, o requerente, pelo que este tornou-se credor da requerida por metade deste valor, ou seja 85.995,74€.


Por esta dívida da requerida perante o requerente responde em primeiro a meação da devedora no património comum (o activo objecto da partilha) e só depois os bens próprios do cônjuge devedor; é o que estipula o nº 3 do art. 1689º do C.C.


Este crédito do requerente sobre a requerida só pode ser exigido no momento da partilha dos bens do casal, ou seja no âmbito do presente processo, conforme estipula a 2ª parte do referido nº 1 do art. 1697º, pelo que tal regime, em princípio, é por natureza incompatível com o regime, do enriquecimento sem causa (arts. 473º e seguintes do C.C. e designadamente com o prazo a que alude o art. 482º deste instituto).


Como salienta A. Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, Vol. III, pag. 340, 6º ed., 2015) “Por força de crédito sobre o património comum funciona, na partilha de bens comuns, em sistema de “compensação” em sentido impróprio… Deve, assim, ser tal relação obrigacional de débito/crédito objecto de relacionamentos”.


Assim, tratando-se de um crédito deverá o mesmo relacionar-se pelo seu valor, ou seja na importância de 85.995,74€, pelo que improcede a reclamação da requerida quanto à exclusão de todo o crédito relacionado sob o verba 2 do passivo, sendo também certo que esta não contra alegou qual seria o valor da divida resultante do empréstimo bancário à data da propositura da acção do divórcio.


b) Relativamente à divida do IMI dos anos de 2010 a 2014 pagos nos anos de 2011 a 2015 não foi produzida prova testemunhal mas apenas a prova documental apresentada pelo requerente (doc. nº 3 junto à relação de bens).


A requerida não contestou que o pagamento dos IMI’s em causa tivesse sido efectuado pelo requerente, porém invocou o acordo quanto ao pagamento das despesas inerentes à habitação da casa de morada de família que seriam da responsabilidade do ex-marido; este contra alegou considerando que as despesas inerentes à habitação não abarcam o pagamento do IMI que são devidas pelo proprietário.


Sendo o IMI um imposto, que é efectivamente da responsabilidade do(s) proprietário(s) do imóvel e não estando a relação tributária (estabelecida entre o contribuinte e o Estado) na disponibilidade das partes, tendo o mesmo sido satisfeito pelo requerente deverá este ser “compensado” pela requerida por metade do valor pago, ou seja na importância de 958,64€, pelo que se indefere o pedido da sua exclusão, na totalidade, da relação de bens.


c) A matéria referente às verbas 2 e 3 do passivo foi apreciada e decidida nos pontos anteriores [a) e b)].


(…)





Pelo exposto, determina-se que sejam relacionados os seguintes bens, com os seguintes valores:


1) Verba única do Activo – o imóvel pelo valor de 275.000,00€;


2) Verba dois do passivo – dívida ao cabeça de casal pelo valor de 85.995,74€;


2) Verba três do passivo – dívida ao cabeça de casal pelo valor de 958,64€;


3) Verba quatro do passivo – dívida ao cabeça de casal pelo valor de 3.559,26€;


4) Verba cinco do passivo – dívida (comum) ao Banco Cofidis, SA, no indicado valor de 33.117,46€;


(…)”.


1.2. Por sua vez, o despacho proferido pela 1.ª instância em 25 de maio de 2021 (ref.ª Citius 120168927), que versou sobre a decisão notarial indicada supra, em 1.1., e do qual o apelante interpôs recurso, tem o seguinte teor (transcrição dos segmentos relevantes para a apelação):


“I - O presente processo de inventário foi remetido a este Tribunal, nos termos do art. 16º/4 e 76º do RJPI (aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março), para apreciação do recurso interposto pela interessada BB do despacho proferido pelo Exmº Sr. Notário em 26/9/2018 (fls 316 a 327).


Tal despacho decidiu a reclamação da relação de bens e indeferiu o requerimento apresentado por aquela interessada, que visava a remessa do processo para os meios comuns ao abrigo do art. 16º do RJPI.


No recurso a interessada alega, em síntese, que a prova produzida não permite concluir que o crédito à habitação foi liquidado com recurso a bens próprios do requerente, pelo que deve ser excluído da relação de bens a verba nº 2 do passivo no valor de €171 991,47 (crédito do interessado AA sendo devedora a interessada BB). Mais alega que o valor do IMI deve ser eliminado da relação de bens, invocando o alegado no acordo do divórcio quanto às despesas com a casa de morada de família (assumidas pelo interessado AA).


(…)


*


III - Importa agora apreciar as questões objecto do recurso da decisão do Sr. Notário proferida em 26/9/2018 sobre a reclamação contra a relação de bens.


O presente inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal foi instaurado na vigência da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, doravante designada por RJPI (cf. art. 11º da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro).


Decorre do art. 31º/2 aplicável ex vi art. 35º/3 do RJPI que, em matéria de reclamação da relação de bens, as provas são indicadas com os requerimentos e respostas, decidindo o notário da existência de bens e da pertinência da sua relacionação.


Donde, incumbe ao reclamante provar a matéria da reclamação.


*


Conforme acima se explicitou, alega a recorrente BB, em síntese, que:


1. A prova produzida não permite concluir que o crédito à habitação foi liquidado com recurso a bens próprios do requerente, pelo que deve ser excluída da relação de bens a verba nº 2 do passivo no valor de €171 991,47 (crédito do interessado AA sendo devedora a interessada BB), para além de que não devem ser consideradas em processo de inventário as dívidas entre cônjuges.


2. O valor do IMI deve ser eliminado da relação de bens, invocando o alegado no acordo do divórcio quanto às despesas com a casa de morada de família (assumidas pelo interessado AA).


3. Resultou da prova produzida que o recheio da casa de morada de família ficou na posse do interessado AA, pelo que deve ser relacionado.


A primeira questão suscitada prende-se com os chamados «créditos entre cônjuges».


O casamento contraído entre os ora interessados sob o regime de comunhão de adquiridos, foi dissolvido em 30 de Agosto de 2018, no âmbito de processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Cidade 1.


A dissolução do casamento e da comunhão implica o fim do regime matrimonial e o surgimento de um estado de indivisão pós-comunhão que terminará com a liquidação e partilha dos bens comuns.


O art. 1697º do C. Civil prevê a compensação pelo pagamento das dívidas do casal devidas nos casos em que foram pagas dívidas comuns por meio de bens próprios ou dívidas próprias com bens comuns, sendo tais créditos exigíveis no momento da partilha dos bens do casal, salvo se vigorar o regime da separação.


Importa, contudo, distinguir os créditos de compensação stricto sensu e as dívidas entre cônjuges (vide v.g. «Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal», Cristina Araújo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 125).


Na medida em que apenas os bens cuja titularidade pertença a ambos os cônjuges e se encontrem confundidos na massa que o património comum integra podem ser objecto de partilha (só esses bens devendo ser relacionados no processo de inventário), apenas são de inventariar os bens que são bens comuns de acordo com o regime de comunhão de adquiridos, nos termos dos arts. 1721º a 1731º, todos do Cód. Civil.


Deverão, ainda, ser relacionados em sede de inventário os créditos do património comum sobre um dos cônjuges. Crédito esse, que existe sempre que, por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns - cfr. arts. 1697º, nº 2 do Cód. Civil.


Do lado do passivo, devem ser relacionadas as dívidas que oneram o património comum, isto é, o que se considera como de responsabilidade de ambos os cônjuges. E, oneram o património comum as dívidas decorrentes da aplicação do regime dos arts. 1691º, 1693º, nº 2 e 1694º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Civil.


Mas já não, os créditos de um dos cônjuges sobre o outro. Na verdade, e como refere o Ac. RL de 21/02/02, in CJ, T. I, p. 109 e ss, tais créditos correspondem a dívidas “que resultam, em regra, de terem sido pagas com bens próprios de um dos cônjuges dívidas da responsabilidade de ambos, caso em que o primeiro se toma credor do outro (artigo 1697º/1 do CC). Os cônjuges tornam-se, não raro, devedores entre si, por exemplo, quando por bens próprios de um deles são pagas dívidas da responsabilidade do outro, ou no caso de dívidas por cujo pagamento ambos são responsáveis e um satisfaz ao credor maior quantia do que o outro”.


Assim, não integram o passivo os créditos dos cônjuges entre si, que não devem por isso ser relacionados no processo de inventário. Trata-se de créditos que não pertencem ao património comum, mas sim ao património individual do cônjuge credor (vide neste sentido, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Coimbra Almedina, 1991, vol III, pág. 392).


No mesmo sentido, vide o acórdão do STJ de 6/2/2007 (agravo nº 4445/06 – 1ª secção) pesquisado in www.stj.pt


Como estatui o art. 1689º/3 do C. Civil, os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.


Transpondo tais considerações para o caso vertente, concluímos que assiste razão à reclamante no que concerne às verbas 2 e 3 do passivo relacionadas pelo cabeça de casal – dívidas reclamadas por este, alegando ter pago o empréstimo da habitação e o IMI com recurso exclusivo a bens próprios (dinheiro doado pela sua mãe). Com efeito e de acordo com o entendimento acima sugrafado, trata-se de (eventuais) dívidas entre cônjuges e não dívidas de que seja credor ou devedor o património comum, pelo que não devem ser relacionadas no presente inventário, cabendo ao cabeça de casal recorrer aos meios comuns para fazer reconhecer a existência do alegado direito de crédito.


(…)


*


IV - Decisão


Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pela interessada BB e em consequência, decide-se revogar parcialmente a decisão do Sr. Notário, determinando-se:


- A exclusão das verbas 2. e 3. do passivo constante da relação de bens;


(…)


- A notificação do cabeça de casal para, no prazo de dez dias (após notificação para o efeito) juntar aos autos nova relação de bens em conformidade com a presente decisão.


Custas a cargo do cabeça de casal.


Registe e notifique.


Devolva os autos ao Cartório Notarial”.


*


1.3. O mapa da partilha elaborado pelo Sr. Notário, em 27 de abril de 2022 (ref.ª Citius 124702695), sobre o qual recaiu a sentença homologatória da partilha proferida pela 1.ª instância, em 19 de novembro de 2024, aqui também sob recurso, apresenta o seguinte teor:


Mapa de Partilha


AA e BB foram casados um com o outro sob o regime da comunhão de adquiridos, encontrando-se divorciados desde 30 de Agosto de 2010, por decisão já transitada proferida pela Conservatória do Registo Civil de Cidade 1.


ACTIVO


Bens adquiridos a título oneroso na constância do casamento


Verba 1 (um) ……………………………………………………….. 275.000,00€


Verba 2 (dois) ………………………………………………………. 500,00€


PASSIVO


Dividida do património comum ao ex-cônjuge AA


Verba 1 (um) …………………………………………………………. 7.118,52€


Verba 2 (dois) ………………………………………………………… 12.000,00€





A quota do cônjuge AA é de 147.309,26€, igual a metade do valor do activo e a este acrescentando o valor de metade do passivo;


A quota do cônjuge BB é de 128.190,74€, igual a metade do valor do activo e a este descontando o valor de metade do passivo.





PREENCHIMENTO DAS QUOTAS


Cônjuge AA


RECEBE:


- Verbas 1 (um) e 2 (dois) do Activo, no valor de ………………….. 275.500,00€


Tem a haver do património comum as verbas nºs 1 (um) e 2 (dois) do Passivo, no valor de ………………………………………………………………………………. 19.118,52€


_______________


256.381,48€


Repõe ao cônjuge BB ………. 128.190,74€


Cônjuge BB


Tem a haver do cônjuge AA ………….. 128.190,74€





As tornas deverão ser pagas pelo interessado AA à interessada BB ou delas feito depósito autónomo (art.º 62.º, n.º 1 do RIN).





Das tornas devidas pelo interessado AA, considera-se penhorado o crédito que a executada BB venha a receber de tornas, no âmbito do Processo nº 406/14.8... do Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2, Cidade 3 – Juízo de Execução – Juiz 2, até ao montante de 6.858,20€ (seis mil oitocentos e cinquenta e oito euros e vinte cêntimos), tornas estas penhoradas ao abrigo destes autos, ficando à ordem da Exm.ª Agente de Execução Dr.ª FF, tudo conforme notificação para penhora de crédito da Exm.ª Agente de Execução submetida à plataforma informática aos 03/09/2020.





Notifique os interessados para, no prazo de 10 (dez) dias, requerer, querendo, qualquer rectificação ou reclamação contra qualquer irregularidade.





Não ocorrendo qualquer pedido de rectificação ou reclamação, enviem-se os presentes autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2, Juízo de Família e Menores.


(…)”.


*


1.4. No dia 13 de maio de 2022, a requerida BB veio expor e requerer ao Sr. Notário o seguinte (ref.ª Citius 124702685):


“(…)


A verba 1. a verba relacionada na relação de bens, como verba 1 do passivo, corresponde à quantia em dívida no processo de execução que corre sob o n.º 406/14.8...,


2. no cálculo de tornas, foi abatido todo o passivo ao valor do activo, pelo que é partilhado apenas o remanescente no valor de 256381,48€.


3. Nessa medida, cabe á interessada metade desse valor, ou seja, 128190,74€, valor que portanto não pode sofrer qualquer outro desconto ou penhora.


4.Efectivamente, deduzido o valor do passivo áquilo que a interessada tem a receber, o interessado AA deve depositar 128190,74 € que a ela são devidos e 6858,20€ devidos ao exequente da ação 406/14.8...


Nessa medida, requer-se a rectificação do despacho pelo qual é elaborado o mapa de partilha, no sentido de ser retirado o parágrafo que ordena a penhora de tornas da interessada ora reclamante.


(…)”.


1.5. Sobre o requerimento descrito em 1.4., o Sr. Notário proferiu despacho, em 25 de maio de 2022, no qual decidiu o seguinte (ref.ª Citius 124702682):


“Notificada do despacho proferido aos 27/04/2022 referente à elaboração do mapa de partilha, veio a interessada BB requerer a rectificação daquele mediante a eliminação do parágrafo referente à entrega pelo interessado AA de quantia correspondente à penhora de tornas efectuada no âmbito do processo de execução nº 406/14.8..., do Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2, Cidade 3 – Juízo de execução – Juiz 2, com os fundamentos expressos no dito requerimento e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.


Tudo visto, cumpre decidir.


No âmbito do referido processo de execução foi ordenada a penhora de importância que a executada BB venha a receber de tornas no âmbito do presente processo de inventário, consignando-se que a mesma fica penhorada ao abrigo dos presentes autos, tudo conforme a notificação para penhora de créditos submetida à plataforma informática aos 03/09/2020.


Na notificação referia-se que as referidas tornas ficam penhoradas até ao montante de 6.858,20€ (seis mil oitocentos e cinquenta e oito euros e vinte cêntimos).


No referido despacho de 27/04/2022 foi determinada a notificação da Exmª Agente de Execução para informar os autos do número da conta bancária onde aquela importância deverá ser depositada. Na resposta, para além da indicação da conta bancária, a Exmª Agente de Execução informou ainda que o valor em dívida pela executada BB com juros e despesas à data de 06/05/2022 era de 6.946,30€ (seis mil novecentos e quarenta e seis euros e trinta cêntimos), sendo que se continuaram a vencer juros e despesas com o processo até integral pagamento, conforme o ofício recebido no dia 12/05/2022 e submetido à plataforma informática aos 17/05/2022.


Independentemente dos fundamentos invocados pela reclamante BB para eliminação no dito despacho de 27/04/2022 do parágrafo que ordena a penhora de tornas que lhe são devidas (e, consequentemente, também do correspondente parágrafo inserto no mapa de partilha da mesma data) entende-se que não cabe no âmbito do processo de inventário dirimir quaisquer questões relacionadas com a decisão que ordenou nos meios comuns a penhora do crédito de tornas devidas a uma das partes em resultado da partilha efectuada (cfr. nº 1 e 3 do art.º 2.º do RIN e ainda o n.º 1 do art.º 16.º, do n.º 2 o art.º 17.º e n.º 1 do art.º 36.º do mesmo diploma).


Não pode o notário pronunciar-se sobre o que foi decidido nos meios judiciais comuns, ou seja, in casu, no âmbito do processo de execução; é ai que os interessados devem intervir.


Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pela interessada BB, mantendo-se o constante do despacho referente ao mapa de partilha e ao próprio mapa de partilha.


Notifique todos os interessados, incluindo a Ilustre Agente de Execução Drª FF.


Decorrido o prazo de dez (10) dias, nada mais havendo decidir, enviem-se os presentes autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Cidade 2, Juízo de Família e Menores de Cidade 2.


(…)”.


1.6. Na mesma data, 25 de maio de 2022, foi disponibilizada no sistema informático de tramitação do processo de inventário – “plataforma dos inventários” –, a notificação da Ilustre mandatária da interessada BB do conteúdo do despacho notarial descrito em 1.5. (ref.ª Citius 124702681):


1.7. Em 26 de setembro de 2022, a requerida BB veio expor e requerer o seguinte (ref.ª Citius 10489461):


“1. o mapa da partilha, colocado na plataforma de “inventários” EM 27/04/2022, contem um erro, a saber:


2. a verba relacionada na relação de bens, como verba 1 do passivo, corresponde á quantia em dívida no processo de execução que corre sob o n.º 406/14.8...,


3. no cálculo de tornas, foi abatido todo o passivo ao valor do activo, pelo que é partilhado apenas o remanescente no valor de 256381,48€.


4. Nessa medida, cabe á interessada metade desse valor, ou seja, 128190,74€, valor que portanto não pode sofrer qualquer outro desconto ou penhora.


5. Efectivamente, deduzido o valor do passivo aquilo que a interessada tem a receber, o interessado AA deve depositar 128190,74€ que a ela são devidos e 6858,20€ devidos ao exequente da ação 406/14.8...


6. Fez requerimento ao Exmo SR Notário requerendo a CORREÇÃO do mapa nos termos acabados de expor,


7. o que foi negado por despacho de 25.05.2022, despacho que apesar de estar na plataforma “Inventários” não foi notificado à reclamante.


8. Neste sentido, ao abrigo do Princípio da Cooperação entre as partes, e ainda dos Princípios da Economia e Celeridade processuais, e para que não haja duplicação do valor do passivo reclamado pelo credor reclamante no processo 406/14.8..., que não havendo correção a requerente seria chamada a pagar duas vezes:


Requer-se, muito respeitosamente a Vossa Excelência a rectificação do mapa de partilha, no sentido de ser retirado o parágrafo que ordena a penhora de tornas da interessada ora reclamante, porque o passivo foi já deduzido do valor a partilhar”.


1.8. Em 19 de novembro de 2024, o tribunal a quo proferiu despacho a apreciar o requerimento indicado em 1.6. (ref.ª Citius 134307956):


Referência citius n.º 10989461, de 26 de Setembro de 2022


A pretensão da interessada já foi apreciada pelo despacho do Sr. Notário, datado de Maio de 2022 e notificada à interessada no própria dia (Referência citius n.º 124702681), mencionado no próprio requerimento, pelo que se lhe impunha, em caso de discordância, que reagisse por via dos meios próprios, nomeadamente interpondo recurso de tal decisão, pelo que nada mais há a apreciar.


Notifique”.


*


1.9. Na mesma data, 19 de novembro de 2024, o tribunal a quo proferiu ainda a seguinte sentença homologatória da partilha, aqui sob recurso (ref.ª Citius 134307956):


“Nos presentes autos de inventário instaurados para partilha de bens comuns do dissolvido casal anteriormente constituído por AA e BB, homologa-se por sentença a partilha constante do mapa de partilha (referência citius n.º 124702695, de 27 de Abril de 2022), adjudicando-se os respectivos quinhões com a composição ali descrita.


Custas por ambos os interessados, nos termos do disposto no art. 67, n.º 1, do RJPI


Registe e notifique”.


*


2. Fundamentação de direito.


Por razões de precedência lógica, a Relação irá apreciar em primeiro lugar o recurso interposto pela interessada BB.


2.1. 1.ª questão: recorribilidade do despacho proferido pelo tribunal a quo em 19 de novembro de 2024.


Nas contra-alegações que apresentou, o aqui apelado AA vem dizer que o despacho impugnado (transcrito supra, em 1.8.) não é autonomamente recorrível, uma vez que o fundamento que para tanto a apelante invocou, previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, não é aplicável ao caso pois o requerimento sobre o qual versou o despacho recorrido não é um articulado, na definição que consta do artigo 147.º do CPC, a que acresce que, ainda que o requerimento pudesse ser percebido como um articulado, sempre se diria que o despacho impugnado não constitui um mero despacho de “rejeição de articulado”, uma vez que a pretensão da apelante foi sujeita a análise pela 1.ª instância, sendo que a circunstância de esta ter concluído pela sua não reapreciação por motivo de a questão já ter sido objeto de decisão notarial que transitou em julgado, não se traduz numa pura recusa ou rejeição de articulado.


Pois bem.


O requerimento de retificação do mapa de partilha, apresentado pela apelante BB, no sentido de ser retirado o parágrafo que ordena a penhora de tornas da interessada ora reclamante, porque o passivo foi já deduzido do valor a partilhar, não configura um “articulado”, tal como consta definido no n.º 1 artigo 147.º do CPC (os articulados são as peças em que as partes expõem os fundamentos da ação e da defesa e formulam os pedidos correspondentes), nem o desfecho decisório vertido na decisão recorrida corresponde a um despacho de rejeição da referida peça processual, no sentido de que o tribunal decidiu apenas sobre os pressupostos formais da sua admissibilidade, em vez de proceder à análise do seu conteúdo e avaliar se a questão que esse conteúdo suscita foi objeto de requerimento anterior já apreciado por decisão que, não tendo sido oportunamente impugnada, fez caso julgado, que foi o que precisamente se verificou na situação em apreço.


O despacho em questão é, pois, insuscetível de apelação autónoma, porquanto não preenche a previsão legal da citada alínea d), nem nenhuma outra elencada no n.º 2 do artigo 644.º do CPC.


O que, todavia, não significa que o recurso não seja admissível, embora não revista caráter autónomo, aplicando-se, neste caso, o regime previsto no n.º 2 do artigo 76.º do RJPI que, no essencial, corresponde ao consagrado no n.º 3 do artigo 644.º do CPC, estabelecendo-se, assim, que as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do processo de inventário devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha.


No presente caso o cabeça de casal interpôs recurso da decisão de homologação da partilha, ao qual a apelada BB veio responder e, no mesmo articulado, veio impugnar a referida decisão intercalar do tribunal a quo em que ficou vencida.


Atendendo ao meio utilizado e à oportunidade da sua efetivação (na sequência do recurso interposto pela parte vencida na decisão da partilha), é de concluir que é fundada e encontra amparo na lei a possibilidade que se reconhece à apelada de impugnar como impugnou a apontada decisão intercalar em que ficou vencida.


Veja-se que, segundo sustenta Abrantes Geraldes2, “[e]m face do disposto no art. 636.º, não poderá deixar de se considerar a possibilidade de a parte interessada aproveitar a interposição de um recurso pela contraparte para nele enxertar, por via das contra-alegações, a impugnação das decisões interlocutórias que a desfavoreceram, mas cujo resultado continue a interessar-lhe para que seja confirmada a decisão que a beneficiou”, pois “nenhuma razão existe para que fiquem afastadas do ónus de ampliação conferido ao recorrido as decisões em que tenha ficado vencido e que hajam sido proferidas ao longo do processo, mas relativamente às quais lhe esteve vedada a interposição de recurso, por não se integrarem no elenco previsto no n.º 2 do art. 644.º”


Se a ampliação do objeto do recurso por iniciativa do recorrido permite alcançar o apontado desiderato, então também o mesmo se deve entender quando, em “resposta” ao recurso que o outro interessado interpôs da decisão que homologou a partilha, a parte apelada opta por recorrer de decisão interlocutória que lhe foi desfavorável.


Em suma, face ao acima exposto, é de concluir que o recurso da interessada BB não só é admissível, pois tem por objeto uma decisão recorrível, como também se mostra oportuna e devidamente interposto, nada obstando, pois, a que dele se conheça neste acórdão.


*


2.2. 2.ª questão: se o despacho proferido pelo tribunal a quo, em 19 de novembro de 2024, deve ser revogado e substituído por outro que ordene a retificação do mapa da partilha, nos termos requeridos pela apelante.


Conforme resulta das incidências acima descritas em 1.4., 1.5., 1.6. e 1.7., a pretensão de retificação do mapa da partilha, que a interessada BB submeteu ao tribunal a quo e este decidiu no despacho recorrido, foi, como a própria decisão explicita, já apreciada pelo despacho do Sr. Notário, datado de 25 de Maio de 2022, e notificada no próprio dia à interessada, na pessoa da sua Ilustre mandatária.


Ao contrário do que alega a apelante, está comprovado pela ref.ª Citius 124702681 que, no dia 25 de maio de 2022, aquela notificação foi disponibilizada no sistema informático de tramitação do processo de inventário “plataforma dos inventários”, tendo o ato sido praticado em conformidade com o regime instituído pela Portaria n.º 278/2013, de 26 de agosto (alterada pela Portaria n.º 46/2015, de 23 de fevereiro), que regulamenta o processamento dos atos e os termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março. Portaria essa que estabelece no seu artigo 9.º, n.º 1 que as notificações efetuadas pelo cartório notarial aos mandatários dos interessados que já tenham intervindo no processo são realizadas através do sistema informático de tramitação do processo de inventário, para área de acesso exclusivo do mandatário no referido sistema, considerando-se o mandatário notificado no 3.º dia após a disponibilização da notificação na sua área de acesso exclusivo, ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.


Dos autos não consta que, notificada do despacho do Sr. Notário que indeferiu o requerimento que apresentou de retificação do mapa da partilha, a interessada BB o tivesse impugnado, nomeadamente dele interpondo recurso.


Pese embora não se trate de uma decisão judicial, certo é que o despacho proferido pelo Sr. Notário não deixa de se tornar definitivo se não for judicialmente impugnado por meio de reclamação ou de recurso, no momento oportuno, adquirindo autoridade semelhante à do caso julgado formal.


Assim, não tendo sido interposto recurso (para o tribunal de 1.ª instância), a referida decisão notarial tornou-se definitiva e, por força da verificação do caso julgado formal, nos termos previstos no artigo 620.º, n.º 1 do CPC, ficou precludida a possibilidade de se reapreciar a pretensão que nela foi conhecida.


Deste modo, o tribunal a quo estava impedido de apreciar novamente a questão da pretendida retificação do mapa da partilha, por se tratar de questão definitivamente resolvida no processo, imperando, por conseguinte, a autoridade do caso julgado.


Donde bem andou o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, determinando que nada mais há a apreciar quanto à retificação do mapa da partilha, que BB veio requerer ao tribunal, em 26 de setembro de 2022, uma vez que a pretensão da interessada já foi apreciada pelo despacho do Sr. Notário, datado de 25 Maio de 2022, do qual aquela não reagiu por via dos meios próprios, nomeadamente interpondo recurso.


***


Passemos, agora, à apreciação do recurso interposto pelo cabeça de casal AA.


2.3. 1.ª questão: Se no inventário para liquidação do património comum dos cônjuges há lugar à relacionação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, pelos quais responde a meação do cônjuge devedor no património comum.


2.3.1. Na relação de bens que inicialmente o apelante e cabeça de casal apresentou no inventário, constava do passivo a seguinte:


VERBA DOIS: “Dívida ao aqui Cabeça-de-Casal AA pelo pagamento integral do serviço da dívida desde a data da constituição do empréstimo hipotecário até ao presente com recurso exclusivamente a bens próprios (valores monetários que lhe foram doados por sua Mãe), no valor de capital de 103.428,37 €, de juros de 68.511,80 €, e de comissões de gestão de 51,30 € -------171.991,47 €”.


No despacho proferido em 25 de maio de 2021, o tribunal a quo entendeu que a mencionada verba dois trata de uma (eventual) dívida entre cônjuges e não de dívida de que seja credor ou devedor o património comum, pelo que não deve ser relacionada no presente inventário, cabendo ao cabeça de casal recorrer aos meios comuns para fazer reconhecer a existência do alegado direito de crédito.


Conforme resulta do teor do citado despacho (cf. supra, 1.2.), impugnado pelo apelante, o tribunal a quo decidiu sufragando o entendimento de que não integram o passivo os créditos dos cônjuges entre si, os quais não devem, por isso, ser relacionados no processo de inventário, porquanto se trata de créditos que não pertencem ao património comum, mas ao património individual do cônjuge credor.


E perante o que assim entendeu, a 1.ª instância nada mais apreciou quanto a esta verba dois, não tendo, pois, conhecido da questão que, ao recorrer do despacho notarial que decidiu da reclamação da relação de bens, a interessada BB também colocou, de saber se a prova produzida não permite concluir que o dinheiro doado pela mãe de AA se destinava ao pagamento do crédito à habitação e que este foi liquidado com recurso a bens próprios do cabeça de casal, tratando-se, antes, de uma dívida dos elementos do casal, paga pelos dois à custa do produto do seu trabalho na loja de que eram donos.


O que bem se compreende, atendendo à solução que deu ao diferendo, nos termos acima expostos, de cujo teor se extrai que resultam prejudicadas as restantes questões que se prendem com a matéria de facto, em relação à qual o tribunal a quo não deixou de se referir do seguinte modo: “alegando ter pago o empréstimo da habitação”, “(eventuais) dívidas entre cônjuges e não dívidas de que seja credor ou devedor o património comum” e “cabendo ao cabeça de casal recorrer aos meios comuns para fazer reconhecer a existência do alegado direito de crédito” (sublinhado nosso).


Mas já lá iremos.


*


2.3.2. Debrucemo-nos agora sobre a vexata quaestio de saber se a referida verba dois do passivo, tal como o cabeça de casal a configurou – dívida relativa à liquidação do crédito à habitação com recurso a dinheiro doado por sua mãe – deve ser levada à relação de bens.


É sabido que a extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, no sentido da extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe termo com a liquidação do património conjugal comum e a sua partilha.


No que diz respeito à responsabilidade por dívidas, é de considerar que, em termos gerais, são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um deles, o mesmo sucedendo quando as dívidas de só um dos cônjuges forem pagas com bens comuns, observando-se nestes casos o regime do artigo 1697.º, n.os 1 e 2 do Código Civil.


As situações geradoras de compensação têm por base uma relação entre o património comum e o património próprio de algum dos cônjuges, o que não se verifica quando ocorrem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Por isso, as compensações entre as diferentes massas patrimoniais só são devidas no final da comunhão de vida e com a partilha dos bens, como determina o artigo 1697º, n.os 1 e 2 do Código Civil, que refere expressamente o “momento da partilha”. As razões da proibição da partilha dos bens comuns antes de cessarem as relações patrimoniais entre os cônjuges prendem-se com a ideia da proteção de um património comum especialmente afeto às necessidades da vida familiar. Além disso, prendem-se também com a própria natureza deste património comum, regulado pela lei como um património coletivo, tendo os cônjuges apenas direito a uma meação que, em regra, só é concretizável após a dissolução do casamento. Faz, pois, sentido, que a liquidação da comunhão apenas ocorra no momento da sua dissolução e que só nessa altura se concretize o direito de cada um dos cônjuges sobre os bens que fazem parte da comunhão (cf. Acórdão da Relação de Évora, de 12 de setembro de 20243, e a doutrina de Cristina Araújo Dias, na obra aí citada).


*


Está em causa uma dívida de um cônjuge perante o outro, ou vistas as coisas de uma outra perspetiva, de um crédito de um cônjuge sobre o outro, resultante do pagamento de uma dívida da responsabilidade de ambos alegadamente satisfeito com bens próprios de um dos cônjuges, tornando-se este credor do outro.


Não obstante se trate de um crédito de um dos cônjuges sobre o outro, certo é que ele tem por base uma dívida com a especificidade de dizer respeito à partilha dos bens comuns, na medida em que deve ser levada em conta na meação de cada um dos ex-cônjuges. Por isso se diz que são, “não tanto dívidas do ex-cônjuge, mas antes dívidas da sua meação”.4


Neste sentido, o artigo 1697.º do Código Civil, com a epígrafe “Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal”, dispõe no seu n.º 1 que, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.


A propósito desta norma, Augusto Lopes Cardoso assinala que, na partilha de bens comuns, por força de crédito sobre o património comum, funciona um sistema de “compensação” em sentido impróprio, em que o crédito de um face ao débito do outro têm de ser tomados em consideração para efeitos da igualização na partilha, devendo, assim, a referida relação obrigacional de crédito/débito ser objeto de relacionação.5


Segundo Cristina Araújo Dias, as compensações têm por objetivo restabelecer o equilíbrio entre os diferentes patrimónios e “procuram evitar o enriquecimento injusto, como princípio geral de direito, de um património em detrimento de outro, decorrente, em especial, do pagamento de dívidas, por um dos patrimónios, que oneram definitivamente outro património”.6


Por sua vez, o artigo 1689.º do Código Civil, que trata da partilha dos bens comuns, como consequência da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, estabelece no n.º 3 que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.


O que significa que, de acordo com o entendimento de Augusto Lopes Cardoso, que subscrevemos, “embora estes créditos não respeitem ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do cônjuge devedor, mal se compreenderia que, estando a ocorrer partilha do património conjugal, tais relações obrigacionais não fossem consideradas. Estes débitos e créditos são efectivamente parte do património individual, mas não se podem comportar como o passivo individual em que o outro não seja contraparte. É altura de ser restituída a justiça plena na partilha patrimonial e seria incompreensível que o credor tivesse de usar outros meios para obter o pagamento, com o risco de ver desaparecer património activo responsável pelo débito ao outro. Só assim tem sentido a norma do art. 1689.°-3 CCiv.: «Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum». Se são «pagos» é porque se deve aproveitar a fase em que existe meação por partilhar; o que não desmerece, de modo algum, que, como também diz a lei, «não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor» (ibidem), caso em que, obviamente, o pagamento tem lugar fora do inventário”.7


O que se procura com esta relacionação é, pois, que no inventário se proceda à correta partilha do património comum, nas proporções que a lei estabelece, devendo para tanto ser aí tomados em consideração os créditos/débitos entre os cônjuges, se e apenas na medida em que devam ser pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum.


Em suma, como se assinala no Acórdão da Relação de Guimarães, de 27 de janeiro de 20228, “[p]ara se chegar à partilha propriamente dita é necessário previamente determinar, por exemplo, se um cônjuge é detentor de um direito de crédito sobre o outro, emergente de ter pago com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Essa é uma questão que influencia a partilha. Ora, como no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, suportado apenas por um deles, é adequado, com vista à oportuna dilucidação de tal questão, que o crédito seja relacionado. Essa relacionação permite estabilizar o objecto da partilha, alcançar o mencionado objectivo e garantir uma partilha completa”. Donde, “o cônjuge que pagou dívidas comuns com bens próprios tem direito a obter o pagamento desse crédito sobre o outro cônjuge no momento da partilha, através da meação deste no património comum; como em regra o que se partilha no inventário deve ser objecto de relacionação, tal crédito deve ser relacionado”.


Assim, atendendo a que na verba dois está em causa um crédito que, a confirmar-se ter existido nos moldes alegados pelo cabeça de casal, deverá ser pago pela meação do cônjuge devedor no património comum, o qual apenas com a partilha se tornou exigível, deve o mesmo ser objeto de relacionação no inventário.


O mesmo sucede com o crédito da verba três, relativa ao IMI dos anos de 2010 a 2014, sobre o imóvel comum do casal, na medida em que se apure que resultou do pagamento integral que o cabeça de casal diz ter efetuado exclusivamente com recurso a bens próprios e que não houve acordo dos cônjuges quanto a ficar a cargo de um deles a satisfação integral deste valor junto da autoridade tributária.


*


2.3.3. Aqui chegados, perante o que acima se concluiu, cumpriria agora aplicar o direito aos factos, começando por determinar se o cabeça-de-casal AA procedeu ao pagamento integral do serviço da dívida desde a data da constituição do empréstimo hipotecário até ao presente, com recurso exclusivamente a bens próprios (valores monetários que lhe foram doados por sua Mãe), no valor de capital de 103 428,37 €, de juros de 68 511,80 €, e de comissões de gestão de 51,30 €, no total de 171 991,47 €.


E, a confirmar-se o pagamento e a natureza dos bens que para o efeito foram utilizados, nos termos invocados pelo apelante, caberia decidir em conformidade.


Acontece que na decisão recorrida não consta indicada qualquer matéria que o tribunal a quo tenha considerado provada, quando é certo que no recurso que interpôs do despacho notarial, a interessada BB impugnou a decisão que aí foi tomada quanto aos factos dados como provados, pondo em causa a prova dos que se referem à origem dos bens aplicados, no sentido de que se tratava de uma doação a favor do cabeça de casal, efetuada pela sua mãe.


Com efeito, conforme acima se adiantou, a 1.ª instância não se pronunciou sobre nenhum dos referidos factos, nem sobre eles teceu qualquer consideração, além da já indicada, não tendo, pois, conhecido da questão que, ao recorrer do despacho notarial que decidiu da reclamação da relação de bens, a interessada BB também colocou, de saber se a prova produzida não permite concluir que o dinheiro doado pela mãe de AA se destinava ao pagamento do crédito à habitação e que o crédito à habitação foi liquidado com recurso a bens próprios do cabeça de casal, tratando-se, antes, de uma dívida dos elementos do casal, paga pelos dois à custa do produto do seu trabalho na loja de que eram donos.


Isto porque, como também já foi dito, com a solução que o tribunal a quo deu ao diferendo suscitado no recurso da interessada resultou prejudicado o conhecimento das restantes questões relativas à matéria de facto, em relação à qual o julgador não deixou de se posicionar como estando perante o alegado pagamento do empréstimo da habitação, o alegado direito de crédito do cabeça de casal e as eventuais dívidas entre os cônjuges.


Não tendo o tribunal a quo fixado os factos que revestem relevância para a questão de saber se, no âmbito da invocada verba dois, se apura o pagamento de dívida comum dos cônjuges, com bens próprios do cabeça de casal, sendo certo que estamos perante uma decisão de mérito que necessariamente impunha o apuramento dos factos, tendo por base a matéria do despacho notarial recorrido, a impugnação que sobre ela recaiu no recurso da interessada e a resposta apresentada pelo cabeça de casal, é forçoso concluir que a situação configura uma falta absoluta de factos para tomar uma decisão acerca da verba controvertida.


Ora, segundo a previsão legal do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto.


Neste contexto, se a referida norma permite a anulação oficiosa da decisão proferida na 1.ª Instância quando a decisão de facto for deficiente, então por maioria de razão tê-lo-á que permitir quando for absolutamente omissa, por esta omissão total ser o grau máximo da deficiência.


Assim, na expressão “deficiência” caberá necessariamente, não só a falta de decisão sobre um facto essencial, como a falta absoluta de decisão sobre todos os factos essenciais.9


Por outro lado, na senda do que se assinala no Acórdão desta Relação, de 11 de abril de 202410, mesmo quando não há lugar à impugnação pelas partes, se a 1.ª instância omite pronúncia sobre factos indispensáveis à boa decisão da causa, a consequência que daí decorre é que a decisão recorrida deve ser anulada.


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In casu, como já se disse, a 1.ª instância omitiu pronúncia quanto aos factos que considerou provados e/ou não provados, com relevância para a decisão sobre a questão relativa à verba dois, tendo presente que na questionada relação de bens consta alegado que o cabeça-de-casal AA procedeu ao pagamento integral do serviço da dívida desde a data da constituição do empréstimo hipotecário até ao presente, com recurso exclusivamente a bens próprios (valores monetários que lhe foram doados por sua Mãe), no valor de capital de 103 428,37 €, de juros de 68 511,80 €, e de comissões de gestão de 51,30 €, no total de 171 991,47 €, e que no despacho notarial, de 26 de setembro de 2018, esta matéria foi considerada provada, com base na prova testemunhal aí indicada.


Devendo ainda levar-se em linha de conta que, no recurso que interpôs para o tribunal a quo, a interessada reclamante impugnou a referida matéria, com apoio na prova testemunhal que especificou, sustentando que o cabeça de casal não provou que os montantes recebidos de sua mãe eram exclusivamente para si e não para o casal, instalando-se a dúvida sobre o destino desse dinheiro e se o crédito à habitação era ou não pago com o produto do trabalho do casal, gastando o cabeça de casal o dinheiro que a mãe lhe dava noutras despesas, ao que o cabeça de casal recorrido respondeu pugnando no sentido de que os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas que identifica no seu articulado recursório confirmam que se trata de um valor que, em cumprimento do serviço da dívida contraída para aquisição do imóvel, foi pago ao banco exclusivamente por ele, com recurso a montantes que a sua mãe lhe doou.


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Do mesmo passo, é também de concluir que a 1.ª instância omitiu pronúncia quanto aos factos que considerou provados e/ou não provados, com relevância para a decisão sobre a reclamação dirigida à verba três, tendo presente que, na questionada relação de bens, foi descrita como dívida ao cabeça de casal AA pelo pagamento integral do IMI de 2010 a 2014 relativo ao imóvel indicado na verba única do Ativo, exclusivamente com recurso a bens próprios (valores monetários que lhe foram doados por sua Mãe), pago nos anos de 2011 a 2015, no valor global de 1 917,28 €, e que no despacho notarial, de 26 de setembro de 2018, se considerou que, em relação a esta matéria, foi produzida a prova documental apresentada com a relação de bens (doc. n.º 3) e que a interessada reclamante não contestou que o pagamento dos IMI’s em causa tivesse sido efetuado pelo cabeça de casal, porém, invocou o acordo quanto ao pagamento das despesas inerentes à habitação da casa de morada de família que seriam da responsabilidade do ex-marido, o qual sustentou que as despesas inerentes à habitação não abarcam o pagamento do referido imposto, devido pelo proprietário, e que não estando a relação tributária (estabelecida entre o contribuinte e o Estado) na disponibilidade das partes, o valor que a esse título foi satisfeito pelo cabeça de casal deverá ser “compensado” pela interessada reclamante por metade do valor pago, ou seja na importância de 958,64 €, que deve ficar a constar da relação de bens.


Devendo ainda levar-se em linha de conta que, no recurso que interpôs para o tribunal a quo, a interessada reclamante impugnou a referida matéria, alegando que na ata da conferência do processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 5190/2010 se lê que “a casa de morada de família propriedade dos cônjuges […] destina-se à habitação do requerente, marido, que nela permanecerá suportando as despesas inerentes a tal habitação até á partilha ou venda a terceiros”, resultando, assim, provado que o cabeça de casal assumiu o pagamento de todas as despesas da casa de morada de família até à partilha, pelo que o valor do IMI deve ser eliminado da relação de bens, ao que o cabeça de casal respondeu ao recurso reiterando que o IMI não constitui uma “despesa de habitação”, mas sim um encargo objetivamente imposto sobre o proprietário, seja ou não habitante do imóvel, sobre o qual nem as partes poderiam dispor.


Cumprindo, deste modo, ao tribunal a quo pronunciar-se e tomar posição sobre o que omitiu no despacho recorrido, no sentido de apurar o que foi acordado entre os ex-cônjuges, relativamente ao pagamento do IMI.


Isto naturalmente sem embargo de um tal acordo não ser oponível ao credor (artigo 406.º, n.º 2 do Código Civil), valendo apenas nas relações entre os cônjuges, regulando-as no âmbito do processo de inventário para partilha dos bens comuns, estando, pois, apenas em causa o acordo quanto ao pagamento (definindo quem suporta o encargo, pagando ao credor) de uma dívida tributária que, perante o credor Estado, não deixa de ser da responsabilidade de ambos os contribuintes proprietários do imóvel bem comum do casal.


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Como tal, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, impõe-se anular a decisão recorrida e determinar que o tribunal a quo decida sobre a matéria de facto relativa às verbas dois e três, nos termos acima referidos, de modo a que, face à prova produzida nos autos, passe a constar a pronúncia do tribunal a quo quanto essa matéria, fundamentando de facto o despacho e decidindo em conformidade, tendo em conta tudo o que atrás ficou dito sobre o assunto.


Nestes casos, está vedado ao tribunal de 2.ª instância exercer o seu dever de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, previsto no artigo 662.º, nº 1, do CPC, sob pena de preterição do direito ao contraditório e à prova quanto aos factos omitidos, bem como de violação do duplo grau de jurisdição (cf. Acórdão da Relação de Évora, de 11 de abril de 202411).


Com efeito, a apreciação, pela instância de recurso, de fundamentos de factos que não foram objeto de julgamento e decisão pela instância recorrida, é manifestamente contrária à função que àquela é legalmente cometida em sede de recurso ordinário. Na 2.ª instância reaprecia-se a decisão recorrida, tendo por base a matéria de facto de que se serviu ou podia ter servido o tribunal que a proferiu, pré-existente, pois, ao recurso, cabendo a este Tribunal da Relação sindicar o juízo de facto realizado pela 1.ª instância, e não substituir-se-lhe nessa função, com a formulação de um juízo sobre a factualidade de forma inédita e integral.


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Por fim, resta referir que a anulação aqui decretada prejudica o conhecimento, no presente acórdão, das restantes questões suscitadas na apelação interposta pelo cabeça de casal.


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2.4. Do desentranhamento de articulado e da litigância de má-fé.


No articulado de resposta ao recurso da interessada BB, o cabeça de casal AA veio, a final, dizer o seguinte:


O recurso que interpôs tem por objeto a sentença homologatória da partilha e o despacho judicial de 25 de maio de 2021, em que foi decidido que os créditos dos cônjuges não devem ser relacionados no processo de inventário, constituiu, apenas e só, um recurso de direito, limitado à questão de defender que todos os créditos de compensação devem ser sujeitos à peticionada relacionação.


Porém, lidas as contra-alegações da interessada BB, esta nem sequer responde ao recurso do cabeça de casal, desviando-se totalmente das conclusões que o mesmo nele formulou. À exceção de pugnar pela manutenção do despacho impugnado pelo apelante, a apelada optou por não responder ao recurso, apresentando uma peça processual em que comenta toda a matéria de facto e a prova produzida, questão que nem sequer fazia parte do objeto do recurso do apelante e nem a matéria em causa se encontra controvertida. O despacho judicial de 25 de janeiro de 2021 decidiu o que decidiu com arrimo na interpretação e aplicação do direito, sem se imiscuir na matéria de facto dada como provada pelo Sr. Notário.


O recorrente sustenta, assim, que a intervenção da recorrida é anómala e inverte as regras do jogo, pelo que devem as suas contra-alegações ser rejeitadas e desentranhadas, para além de que, a final, deve o Tribunal da Relação aquilatar, oficiosamente, a eventual litigância de má-fé, nos termos e para os efeitos do artigo 542.º, n.º 2 do CPC.


Notificada a recorrida, esta nada veio dizer ou requerer.


Pois bem.


Conforme dispõe o artigo 542.º, n.º 1 do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta pedir.


Por sua vez, segundo o n.º 2 do artigo 542.º, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:


a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;


b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;


c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;


d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.


A litigância de má-fé, para a qual a lei exige uma atuação com dolo ou negligência grave, pode revestir as seguintes formas: por um lado, a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pretensão ou de oposição cuja falta de fundamento a parte que assim agiu não devia ignorar, bem como a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa; por outro lado, a má-fé instrumental, que se traduz na omissão grave do dever de cooperação, no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.


Neste contexto, conforme se assinala no Acórdão desta Relação, de 26 de outubro de 202312, que aqui segue de perto Abrantes Geraldes, em Temas Judiciários, I vol., páginas 303 e seguintes, “as partes devem estar cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de direito privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual. A lei, porém, não pede a nenhuma das partes que se entregue, sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade, mesmo que assentem em normas jurídicas objetivamente injustas, ou desde que não sejam excedidos certos limites para além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais. Comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializados na dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizados na grave violação do dever de cooperação ou, por fim, exteriorizados através do uso ilegítimo de instrumentos do direito adjetivo, com vista à obtenção de objetivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da atividade dos tribunais, são considerados ilícitos e, por isso, merecedores de sanções de natureza cível, independentemente do resultado final da ação ou da execução”.


*


Conforme acima foi exposto (cf. 2.3.1. e 2.3.3.), no presente caso a questão que, ao recorrer do despacho notarial que decidiu da reclamação da relação de bens, a interessada BB colocou, de saber se a prova produzida não permite concluir que o dinheiro doado pela mãe de AA se destinava ao pagamento do crédito à habitação e este foi liquidado com recurso a bens próprios do cabeça de casal, tratando-se, antes, de uma dívida de ambos os elementos do casal, paga pelos dois à custa do produto do seu trabalho na loja de que eram donos, ficou por apreciar pela 1.ª instância, que não chegou a decidir de qualquer questão quanto à matéria de facto, o que, de resto, constitui o fundamento da anulação que, nesta fase, pelas razões já referidas, a Relação entende ser de decretar.


Como também já se disse, a omissão de fixação de qualquer factualidade no despacho proferido em 25 de maio de 2021, foi consequência lógica da solução que o tribunal a quo deu ao diferendo entre as partes, de cujo teor se extrai que resultam prejudicadas as questões que se prendem com a matéria de facto, não deixando o julgador de se referir de um modo em que vinca a natureza controvertida da matéria em apreço e que ficou por fixar, com base na prova produzida: “alegando ter pago o empréstimo da habitação e o IMI com recurso exclusivo a bens próprios”, “(eventuais) dívidas entre cônjuges e não dívidas de que seja credor ou devedor o património comum” e “cabendo ao cabeça de casal recorrer aos meios comuns para fazer reconhecer a existência do alegado direito de crédito” (sublinhado nosso).


Perante este quadro, não é de considerar, como pretende o apelante, que a resposta da apelada, ao abordar a matéria de facto e a prova produzida, é anómala e inverte as regras do jogo, entendendo-se, ao invés, que este é um tema de essencial relevância, ao ponto de, como vimos, determinar que a Relação tenha decidido pela anulação do julgado.


Temos, assim, que o articulado questionado pelo apelante nada traz ao processo que não deva aí ser discutido, não se divisando, pois, a existência de fundamento para ordenar que se desentranhe essa peça processual, nos termos requeridos na resposta ao recurso.


*


Por outro lado, considerando as mesmas razões, nos termos atrás expostos, não se pode, outrossim, concluir que, nesta sede, com a apresentação das suas contra-alegações a apelada tenha adotado um comportamento que configura litigância sancionada por qualquer das alíneas do artigo 542.º, n.º 2 do CPC, não se alcançando fundamento para a sua condenação como litigante de má-fé, no âmbito do presente recurso.


E se assim é, então a apontada pretensão da apelante deve improceder.


***


IV – Decisão


Pelo exposto, acordam as juízas deste Tribunal da Relação:


1. Em julgar improcedente o recurso interposto por BB e, consequentemente, confirmam o despacho recorrido, no qual se determinou que nada mais há a decidir quanto à pretensão da interessada já apreciada em despacho notarial não impugnado (ref.ª Citius 134307956).


2. Em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo cabeça de casal AA, embora com fundamentação diversa, e, consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, anulam o despacho proferido em 25 de maio de 2021 (ref.ª Citius 120168927), na parte em que o tribunal a quo decidiu sobre as verbas dois e três da relação de bens, com total ausência de matéria de facto fixada, e ordenam que:


2.1. O processo seja devolvido à 1.ª instância, para que esta profira novo despacho no qual proceda à indispensável fixação da matéria de facto quanto às referidas verbas dois e três, conforme foi exposto em 2.3.3.


2.2. A 1.ª instância, em função do que apurar, nos termos indicados em 2.1., proceda à aplicação do direito aos factos, tendo em conta que devem ser relacionados os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro que são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum, em conformidade com o que preveem os artigos 1697.º, n.º 1 e 1689.º, n.º 3 do Código Civil e o que se deixou exposto em 2.3.2., com todas as demais consequências legais ao nível dos trâmites subsequentes do processo de inventário.


3. Em julgar improcedente o pedido de condenação da apelada BB como litigante de má-fé, formulado pelo apelante AA.


Custas pela apelante BB, relativamente ao recurso por ela interposto (artigo 527.º, n.os 1 e 2 do CPC).


As custas do recurso interposto pelo interessado AA serão suportadas pela parte vencida, a final.


Notifique.


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Évora, 18 de setembro de 2025


Helena Bolieiro – relatora


Rosa Barroso – 1.ª adjunta


Beatriz Marques Borges – 2.ª adjunta

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1. Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março.↩︎

2. Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, 2022, pág. 264.↩︎

3. Aresto proferido no processo n.º 2029/21.6T8FAR.E1 (relator Manuel Bargado), disponível na Internet em . Cf. Cristina Araújo Dias, “Responsabilidade por dívidas e compensação entre patrimónios”, pp. 23-24, in REVISTA ELECTRÓNICA DE DIREITO – junho 2020 – n.º 2 (vol. 22) –www.cije.up.pt/revistared [consult. em 20 de julho de 2025].↩︎

4. Cf. Miguel Teixeira de Sousa et al., O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2024, pág. 159.↩︎

5. Cf. Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. III, Almedina, 6.ª ed., 2015, pág. 341. Edição que, como se refere nesta publicação, surge com base nas quatro edições antigas da obra de João António Lopes Cardoso (a última de 1991), mantendo a doutrina e a história desde os primórdios processuais das instituições hoje em vigor.↩︎

6. Cf. Clara Sottomayor (Coord.) Código Civil Anotado, Livro IV – Direito da Família, 2.ª ed. (anotação de Cristina Araújo Dias ao artigo 1697.º), Almedina, 2022, pág. 325.↩︎

7. Ibid., pág. 342.↩︎

8. Aresto proferido no processo n.º 4218/21.4T8BRG-A.G1 (relator Joaquim Boavida), disponível na Internet em .↩︎

9. Cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de junho de 2023, proferido no processo n.º 3096/17.2T8VNF-J.G1 (relatora Maria João Matos), disponível na Internet em , e jurisprudência nele citada.↩︎

10. Aresto proferido no processo n.º 730/22.6T8ORM.E1 (relatora Maria Adelaide Domingos), disponível na Internet em .↩︎

11. Aresto identificado na nota anterior.↩︎

12. Aresto proferido no processo n.º 46/21.5T8ABT-G.E1 (relatora Isabel Imaginário), disponível na Internet em .↩︎