Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
268/03-3
Relator: TAVARES DE PAIVA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 06/26/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I - Ao invocar o direito de preferência, o autor terá que alegar e provar:
    a - que tenha sido vendido um prédio com área inferior à unidade de cultura;
    b - que é dono dum prédio confinante com o vendido;
    c - que o prédio daquele que prefere tenha área inferior à unidade de cultura
    d - que o adquirente do prédio não é proprietário confinante.

II - A expressão “terreno” do artigo 1381º do Código Civil, tem o significado de “terreno rústico”.

III - Não gozam de preferência os proprietários confinantes, quando o terreno vendido se destina a um fim diferente da cultura agrícola.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I - Relatório

“A” intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de ..., acção de preferência com processo sumário, contra os RR “B”, “C” e “D, pedindo que os RR sejam condenados a reconhecer o direito de preferência dos AA. sobre a venda o prédio rústico denominado ... da freguesia do ..., concelho de ..., composto de uma parcela de cultura arvense e oliveiras, com 30.000m2 de área, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., da freguesia do ... e aí inscrito sob a inscrição G2, que se ordene o cancelamento dos registos subsequentes à venda em causa e que se condene os RR. a pagar aos autores, a título de indemnização, as despesas extrajudiciais a que a acção dê lugar, a liquidar em execução de sentença.

Citados os RR contestaram, impugnando que o prédio confinante dos AA. seja para cultura, constituindo antes um prédio misto, cuja parte urbana e rústica formam uma unidade economicamente incindível, em que a parte rústica serve de logradouro à parte urbana para habitação, negando, desse modo, o alegado direito de preferência .
Alegam ainda que o preço da venda foi um preço especial, justificado pelo pai dos RR compradores, ser arrendatário do prédio e por no mercado o prédio nunca poder ser vendido por menos de 600.000$00.
Alegam também que os RR sempre declararam não ter qualquer interesse na compra do prédio.
Os RR terminam deduzindo pedido reconvencional, pedindo que os AA. sejam condenados, no caso de procedência da acção, a pagar para além do preço declarado e das despesas de sisa, escritura e registo, também a quantia de 300.000$00, correspondente à parte da venda que foi de favor.

Os AA responderam ao pedido reconvencional, alegando entre outros factos sob o art. 15 º e 16 dessa resposta que o ”A , marido é armeiro e o seu prédio confinante, além de se destinar à agricultura e cultivo de hortas e legumes, tem instalado um campo de tiro onde o A e filhos experimentam e calibram pólvora para cada tipo de arma “.
E sob o art. 16 refere “só quer exercer a preferência porque do prédio seu pode ser atingido algum cidadão que ande no cultivo ou vá deslocar-se para o prédio a preferir
Os Autores terminam esse seu articulado pedindo a improcedência do pedido reconvencional .

Os RR., em face da matéria alegada pelos Autores sob os citados arts. 15 º e 16 da resposta ao pedido reconvencional, fizeram juntar ao processo um requerimento em que consignam que aceitam para não ser retirado o que se alega no art. 15 ( na parte em que nele se diz que o prédio dos AA. têm instalado um campo de tiro ) e 16 da resposta .
Tal requerimento, por se ter considerado novo articulado, veio a não ser admitido e foi ordenado o seu desentranhamento .

Este despacho mereceu da parte dos RR, recurso que foi admitido como agravo a subir como o primeiro que haja de subir imediatamente nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas suas alegações deste recurso, os RR formulam as seguintes conclusões:

1 - O requerimento mandado desentranhar não tem natureza de articulado.
2 - Foi elaborado ao abrigo do disposto nos arts. 38º e 567º do CPC.
3 - Com a recusa da sua inclusão no processo , violou o despacho o disposto naqueles mesmos artigos , enquanto os Réus de exercer a faculdade por eles prevista.

Nestes termos deve revogar-se o douto despacho e ordenar-se que o requerimento dos RR fique nos autos.

Seguiu-se o despacho saneador organizou-se a matéria de facto assente e elaborou-se a base instrutória, que foi objecto de reclamação que foi decidida no início da audiência, nos termos do despacho de fls. 219 e segs.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença, que reconheceu o direito de preferência dos AA, declarou válido o depósito do preço efectuado, ordenou o cancelamento de todas as inscrições subsequentes à inscrição G3, absolvendo os RR do demais pedido e julgou improcedente o pedido reconvencional, absolvendo os AA desse pedido.

Os RR não se conformaram com a sentença e apelaram para este Tribunal da Relação.

Nas suas alegações de recurso os RR formulam as seguintes conclusões:

1 - A matéria de facto assente precisa de ser alterada pela inclusão do facto confirmado pelos Autores nos artigos 15º e 16 da resposta .
2 - E precisa de ser reduzida pela eliminação, na resposta ao quesito 1º, da alusão a animais e oliveiras .
3 - Para lograr procedência, em acção de preferência, instaurada com base no art. 1380 do CC , precisa o Autor de alegar e provar que é proprietário de “terreno” confinante com o vendido, que o seu prédio tem área inferior à unidade de cultura, que o prédio tenha sido vendido a quem não seja proprietário confinante;
4 - Pressupõe-se também que a preferência será exercida com os objectivos que presidem à concepção do emparcelamento rural como instrumento jurídico de fomento agrário.
5 - A expressão “ terreno” usada no aludido preceito tem, de facto, como se justificou no texto pela inserção sistemática e pela sua “ratio”, o sentido de terreno rústico.
6 - Ora, dos três pressupostos que integram a fattispecie do preceito, os Autores apenas provaram um – que o seu prédio tem menos de 7,5ha.
7 - Não provaram que sejam donos de terreno rústico, porque a casa e terreno de que se compõe o seu prédio formam um conjunto incindível ( resposta ao quesito 2º) e, quando assim é, os indevidamente chamados prédios mistos passam a ter no seu todo a natureza de rústicos ou urbanos, conforme a parte que prevalecer ( art. 5º do C. Cont. Aut.).
8 - O contrário, sim, é que se provou, pois que a justa ponderação dos factos instrumentais facilmente se conclui que o terreno constitui logradouro da casa.
9 - De qualquer forma, como, ao contrário do que se diz na sentença não são os RR que têm de provar que o terreno dos Autores não é rústico, antes são estes quem têm de provar que o é, sempre a dúvida jogaria a favor daqueles ( art. 516 do CPC).
10 - Por outro lado, não alegaram sequer os autores que os RR não são proprietários confinantes . Eles invocaram, é certo, no artigo 5º, uma declaração que foi exarada na escritura pública, mas essa declaração é dos vendedores de si próprios, não dos Réus, compradores.
11 - Faltando os dois referidos pressupostos – titularidade de terreno rústico e não serem os preferidos proprietários confinantes do prédio vendido – a acção tinha de improceder. Decidindo em sentido contrário, violou o art. 1380 do CC e os arts. 516 e 664 do CPC ( o primeiro por violação da regra do ónus da prova, o segundo por ter tomado em conta facto não alegado).
12 - Raciocinou-se até aqui como se fosse seguro que estamos perante uma compra e venda e portanto perante negócio jurídico gerador de direito de preferência. Mas não é isso absolutamente certo . Crê-se mesmo que é seguro que o não é.
13 - O negócio celebrado, pela particularidade de os vendedores terem querido privilegiar os Réus com um preço de favor (venderem por 300 contos o que valia 1.200 contos) tem a natureza de negócio mixtum cum donatione. Este não é venda para efeitos de preferência, como se sustentou no texto.
14 - As razões invocadas foram-no para justificar que os autores não têm o direito que pretendem ter . Outro há no entanto, que também lho retiraria , suposto que ele existisse : o abuso de direito.
15 - É que os Autores declaram nos autos que não é para melhor fomento agrícola que exercem a preferência, mas para benefício de um campo de tiro que têm no seu prédio.
16 - Exercem , assim, o direito para fim diferente daquele para o qual a lei o confere . E isso é proibido.

Os RR contra-alegaram , pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Colhidos os vistos , cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentação :

Os factos que foram dados como provados, foram os seguintes:

1 - Encontra-se registada a favor dos Autores a aquisição do prédio misto denominado “...”, sito na freguesia do ..., ..., com área de 10.750 m2, composto de duas parcelas de cultura arvense e oliveiras , habitação com 64 m2 de área coberta e dependência agrícola, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na rústica sob o artigo ..., da respectiva freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., com o valor patrimonial de 10.106$00 (rústica) e de 14.386$00 (urbana);

2 - Por escritura pública de compra e venda celebrada a 9.03.1994 no ... Cartório Notarial de ... , lavrada a fls. 56 vº e 58 do Livro 33-L , os Autores compraram o prédio referido em 1);

3 - Os 1ºs e 2ºs RR têm registada a seu favor a aquisição do prédio rústico denominado igualmente “...“ , sito na freguesia do ..., ..., composto de uma parcela de cultura arvense e oliveiras , com 30.000m2 de área , inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., prédio este que confina com o prédio descrito em 1).

4 - Por escritura pública celebrada a 12 de março de 1998 , no Cartório Notarial de ..., exarada a fls. 86 e 87 do livro 516 – B , os 1ºs e e 2º RR compraram aos 3º RR o prédio referido em 3;

5 - Nessa escritura declararam pagar o preço de 300.000$00 que aqueles receberam;

6 - O prédio descrito em 1 confina a nordeste com o prédio descrito em 3.

7 - O prédio descrito em 1 foi habitado por “D”, que nele cultivava um pouco de hortejo e tinha alguns animais e algumas oliveiras dispersas.
8 - A parte urbana e rústica do prédio referido em 1 formam uma unidade incindível;

9 - O valor real de mercado do prédio referido em 3, à data da venda, livre de rendeiros era de 1.200.000$00;

10 - Os RR exploravam o prédio referido em 3 , pagando ao seu proprietário um montante simbólico.

Por poder ter influência na apelação, importa apreciar previamente o recurso de Agravo :

E neste domínio, importa destacar os factos, que estiveram na origem do aludido recurso:
Os autores sob os arts. 15 e 16 da resposta ao pedido reconvencional alegam “O A. Marido, é armeiro e o seu prédio confinante, além de se destinar à agricultura e cultivo de hortas e legumes, tem instalado um campo de tiro onde o A e filhos experimentam e calibram pólvoras para cada tipo de arma “.
E sob o art. 16 diz “só quer exercer a preferência porque do prédio seu pode ser atingido algum cidadão que ande no cultivo ou vá deslocar-se para o prédio a preferir “.
Os RR perante estas afirmações juntaram o requerimento de fls. 69 a aceitar essas afirmações.
Conforme se constata, estamos, tão só, perante um requerimento e não um novo articulado , conforme se diz no despacho recorrido.
Tal aceitação feita nesse requerimento, tem o seu fundamento nos arts. 38 e 567 do CPC e , por conseguinte, não se vislumbram quaisquer razões para o seu desentranhamento.

Nestes termos, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, admitindo-se a junção aos autos do requerimento dos RR junto a fls. 69.

Apelação:

Como é sabido, é pelas conclusões de recurso que se delimita o âmbito do recurso ( art. 684 nº 3 e 690 nº 1 , 2 e 4 do CPC ).
Os RR começam por pretender incluir na matéria de facto a matéria dos arts. 15 e 16 da resposta ao pedido reconvencional e eliminar a referência a animais e oliveiras .
Quanto aos factos referenciados nos arts. 15 e 16 da resposta, que configuram essencialmente a confissão exarada em articulado, que os RR aceitaram, ao abrigo do arts. 38 e 567 do CPC , podem perfeitamente ser incluídos na matéria de facto assente, de forma a que fique também a constar:
O A , marido é armeiro e o seu prédio confinante, além de se destinar à agricultura e cultivo de hortas e legumes , tem instalado um campo de tiro onde o A e filhos experimentam e calibram pólvoras para cada tipo de arma”;
os autores só querem exercer ao preferência, porque do seu prédio que tem instalado um campo de tiro, pode ser atingido algum cidadão que ande no cultivo ou vá a deslocar-se para o prédio a preferir” .
Já quanto à alusão a animais e oliveiras, feita na resposta ao 1º quesito, pode ser encontrada na fundamentação dada à resposta e daí que seja de manter essas referências.

Fixada a matéria de facto, cumpre-nos agora ver o direito:

Os proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura gozam reciprocamente de direito de preferência em relação a quem não seja proprietário confinante – art. 1380 nº 1do CC .
O autor, além do mais, tem de alegar e provar que o comprador não é proprietário confinante.
Efectivamente, o direito de preferência consagrado neste artigo depende dos seguintes requisitos, cuja ocorrência caberá a quem se arroga tal direito alegar e provar: a) Existirem dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, sejam aptos para cultura, e tenham ambos, cada um per si, área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; b)Fazer qualquer dos proprietários, ou propor-se fazer, a venda ou dação em cumprimento do seu terreno a um terceiro que não seja proprietário confinante ( Galvão Telles, em o Direito, 106º- 119º, 1974/1987, pag. 352).
São, pois, pressupostos do direito de preferência : a) que tenha sido vendido um prédio com área inferior à unidade de cultura; b) que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio vendido; c) que o prédio daquele que prefere tenha área inferior à unidade de cultura; d) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante (cfr. Ac . Coimbra, 17/2/1978, CJ 1978 , 2º 687).
Quem pretenda ver judicialmente reconhecido um direito real de preferência, na qualidade de proprietário confinante terá de alegar e provar, de acordo com a repartição do ónus probatório, os factos constitutivos do seu direito e que são indicados no citado art. 1380 do CC.
Por seu turno, quem possa defender-se terá de provar alguma das excepções enunciadas no art. 1381 do mesmo Código ( Ac. STJ 5/7/1988, BMJ, 380, 544).
A expressão terreno utilizada no preceito, outro significado não pode ter que não seja de terreno rústico.
Desde logo, importa sublinhar que o autor tem, além do mais alegar e provar que o comprador não é proprietário confinante.
Neste domínio os autores nada chegam a alegar, não obstante terem declarado na escritura não possuírem prédios, como bem observa o recorrente trata-se de uma declaração dos vendedores e não dos RR compradores .
Tanto bastava para a improcedência da acção .
Mas ainda que se considere que tal alegação é feita sob o art. 5º da pi , note-se que se trata de um declaração dos vendedores e não dos compradores, ainda, assim, acção teria de improceder .
Não gozam de preferência os proprietários confinantes quando algum dos terrenos se destine a um fim que não seja a de cultura - parte final do art. 1381 a) .
A razão desse preceito tem de encontrar-se no art. 1377 a) ( cfr. art. 1381 do CC Anotado de Pires de Lima e A . Varela ).
Os terrenos aptos para a cultura (agrícola ou florestal) não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima ( art. 1376 – 1º) , o que tem a ver com razões económicas ( rentabilidade de propriedade rústicas ).
O fraccionamento dos terrenos, designadamente para loteamento, tem fortes implicações no ambiente e no aproveitamento de terras com aptidão agrícola .
O direito de preferência previsto no art. 1380º, visando o emparcelamento, visa evitar e combater a pulverização da propriedade rústica.
Entendeu, no entanto, o legislador que a proibição do fraccionamento já não tem razão de ser em relação a terrenos, que se destinem a algum fim que não seja a cultura.
Isto é, se parte do terreno for destinado a fim que não de cultura agrícola já não se impede a divisão.
De modo análogo, já não goza do direito de preferência o proprietário confinante se o terreno agrícola alienado se destinar a outro fim que não seja a cultura.
A simples declaração de afectação de um terreno de cultura a fim diferente, mesmo que conste da escritura de alienação não basta para precludir o direito de preferência.
Ora, no caso em apreço, sendo um prédio em que prevalece a parte urbana (o prédio forma uma unidade económica incindível) e constando ainda que o autor apenas pretendia exercer o direito de preferência por causa do campo de tiro, que tem instalado, dúvidas não existem, no caso em apreço, que não se verificam os pressupostos do direito de preferência a que alude o citado art. 1380.

III- Decisão

Nestes termos , acordam os Juizes desta Relação, em julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, consequentemente julgar a acção improcedente e absolver os RR do pedido.

Custas pelos AA .
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Évora, 26.06.2003