Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
502/21.5T9STR-B.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: ESCUSA A DEPOR
NOTÁRIO
SEGREDO PROFISSIONAL
INTERESSE PREPONDERANTE
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O segredo profissional dos notários não constitui um privilégio pessoal dos membros da respetiva corporação, antes constituindo um verdadeiro princípio de ordem pública, sendo concomitantemente um dever para com toda a classe, para com a sua Ordem e para com a comunidade em geral, devendo os notários escusar-se de testemunhar os factos de que tiveram conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas.
II. O conflito de deveres que daí emerge posiciona de um lado o dever de testemunhar e nessa medida de colaborar na descoberta da verdade e de realização da justiça (artigo 131.º, § 1.º CPP); e, do outro, o dever de sigilo, a que se reporta o Estatuto do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários.

III. O princípio regente do juízo a realizar sobre a quebra do segredo profissional, de molde a justificar a prestação do depoimento, enuncia-se no § 3.º do artigo 135.º CPP, é o da prevalência do interesse preponderante, devendo nomeadamente ter-se em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

IV. A quebra do segredo profissional em favor do interesse da descoberta da verdade e da boa administração da justiça deverá ser excecional; só devendo impor-se por razões prementes, ditadas por imperativos de justiça e na ausência de meios alternativos para alcançar a verdade. Isto é, se do balanceamento a realizar entre os valores que integram os deveres em conflito, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, este se revelar inequivocamente dominante.

V. São para isso fatores determinantes:

- a gravidade do crime em causa (sendo certo que só relativamente a crimes graves se pode equacionar a quebra do sigilo);

- a especial necessidade de proteção dos bens jurídicos, face às circunstâncias do caso concreto;

- a essencialidade do depoimento da testemunha para a descoberta da verdade.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório

1. No …º Juízo (1) Local Criminal de … procede-se à audiência de julgamento em processo comum, em que é arguido AA, com os sinais dos autos, a quem foi imputada a autoria de um crime de difamação, previsto nos artigos 180.º do Código Penal (CP).

Por ocasião da audição da testemunha BB, a mesma escusou-se a depor, invocando que o seu conhecimento dos factos lhe adveio do exercício de funções como notária, estando quanto a eles vinculada pelo dever de sigilo profissional.

Nessa sequência o ilustre defensor do arguido requereu fosse judicialmente determinada a quebra do dever de sigilo, por o depoimento da indicada testemunha se mostrar essencial à descoberta da verdade e boa decisão da causa.

O Ministério Público e a ilustre mandatária da assistente declararam nada terem a opor ao requerido.

A Mm.a Juíza aferiu a legitimidade da escusa e porque considerou essencial o depoimento suscitou o presente incidente de quadra do dever de sigilo.

2. Subidos os autos a esta instância superior, foi determinada a audição da Ordem dos Notários, para em parecer se pronunciar. E fazendo-o veio esta entidade, em síntese, alinhavar as seguintes razões: - a Senhora Notária BB, na qualidade de membro do … foi encarregada, juntamente com …, de elaborar o relatório inspetivo ao cartório notarial da Senhora Notária CC, sito na cidade de …, no seguimento da participação remetida pelo Senhor Notário AA;

- o sigilo profissional do desempenho de cargos na Ordem dos Notários (cf. artigo 81.º do Estatuto da Ordem dos Notários), visa garantir, além do mais, a confiança nos membros dos órgãos da Ordem, concretamente, no órgão que exerce poder disciplinar sobre os notários – Conselho Supervisor;

- entende-se que o sigilo deverá prevalecer, uma vez que, inclusive, do relatório inspetivo elaborado pelas Senhoras Notárias DD e BB constam já os elementos esclarecedores dos factos ocorridos e que poderão ser disponibilizados pelas Senhoras Notárias;

- inexistem, por isso, razões suficientemente justificativas do levantamento do sigilo profissional a que a Senhora Notária se encontra adstrita no exercício das suas funções.

3. Determinada vista ao Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, pronunciou-se este em douto parecer, no qual faz o balanceamento dos interesses em presença, concluindo do seguinte modo: «(…) o princípio da prevalência do interesse preponderante terá de tomar em consideração que, no caso em presença, o crime em investigação é o de difamação, de natureza particular, correspondendo-lhe uma gravidade residual, no quadro dos demais crimes previstos na ordem jurídica penal substantiva. Não poderá igualmente ser desconsiderado que o depoimento da testemunha em causa tenha sido entendido como necessário e importante para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, não o referindo como sendo imprescindível, conceitos de delimitação bastante diversa. Na realidade, a importância de um depoimento resulta, desde logo, da justificação da sua existência no processo, o que não coincide com a sua imprescindibilidade, esta significando um carater indispensável e absolutamente essencial à descoberta da verdade material, de cujo desfecho depende o processo.

Se, no caso concreto, se viesse a entender que se justificava dever sujeitar a testemunha BB a prestar depoimento, em detrimento do seu dever de segredo profissional, ter-se-ia de considerar justificadamente que o interesse de tal depoimento, neste caso, revestiria benefício superior ao da manutenção do segredo profissional supra identificado e caracterizado.

(…) Na avaliação que fazemos dos factos e dos interesses em presença, afigura-se-nos que, pelas razões invocadas no enunciado parecer da Ordem dos Notários, nem o depoimento da testemunha em apreço reveste o descrito caracter de imprescindibilidade para a descoberta da verdade, por a informação que supostamente poderia trazer aos autos ser possível vir a ser a estes carreada através do referido documento – o relatório inspetivo ao cartório notarial da Notária CC, nem a gravidade do crime em causa e a necessidade de proteção de bens jurídicos o impõe, não se nos afigurando, consequentemente, dever ser colocado em causa o interesse público subjacente à salvaguarda do segredo profissional em presença.

Assim, por tudo e em conclusão, manifesta o Ministério Público o seu parecer de que seja decidido não justificada a prestação do depoimento de BB, por não justificada a quebra do segredo profissional, sendo, portanto, legítima e justificada a sua escusa.»

4. Este Tribunal da Relação de Évora é o competente para decidir o presente incidente (artigo 12.º, n.º 2, al. e) do CPP e 73.º, al. h), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

Suscita-se, ao abrigo do disposto no artigo 135.º, § 3.º CPP, o incidente da quebra de segredo profissional a que está vinculada a senhora notária AA, testemunha no julgamento de caso em curso na 1.ª instância, sequente à escusa de depoimento ali afirmada e à verificação judicial da respetiva legitimidade.

A lei reconhece a dimensão adjetiva desse segredo profissional, no artigo 135.º CPP, como razão de escusa de depoimento. Sendo tal dever de sigilo, por seu turno, substantivamente tutelado pelo direito penal (artigo 195.º Código Penal). Preceituando o citado retábulo, na parte que ora releva, que: «1. (…) as pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação de depoimento. 3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.»

A escusa prevista no § 1.º deste artigo constitui uma exceção à obrigação de testemunhar (artigo 132.º, § 1.º, al. d) CPP), a qual, em circunstâncias justificadas, previstas neste artigo 135.º CPP, pode ser arredada, justamente através da quebra do dever de sigilo, por via do incidente processual regulado no § 3.º do mesmo artigo.

Essa possibilidade opera-se através da participação de dois tribunais de diferentes níveis de hierarquia: o tribunal por onde corre o processo (na circunstância o …º Juízo Local Criminal de …), que aprecia a legitimidade da escusa do depoimento da testemunha que invoca o dever legal de sigilo; e o Tribunal de 2.ª instância competente – neste caso no Tribunal da Relação de Évora (artigo 67.º, § 1.º da Lei n.º 62/2013) -, que decidirá da suscitada quebra do sigilo. Pois bem. A relevância social do notariado é reconhecida pela lei, patente na afirmação da especial natureza da profissão de notário e do dever funcional de segredo em que assenta o seu exercício: 23.º, § 1.º, al. d) e § 2.º do Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de fevereiro (Estatuto do Notariado) e 81.º, § 1.º da Lei n.º 155/2015, de 15 de setembro (Estatuto da Ordem dos Notários). Afirmando a lei que o segredo profissional dos notários não constitui um privilégio pessoal dos membros da respetiva corporação, antes constituindo um verdadeiro princípio de ordem pública, sendo concomitantemente um dever para com toda a classe, para com a Ordem e para com a comunidade em geral. O conflito de deveres posiciona de um lado o dever de testemunhar e nessa medida de colaborar na descoberta da verdade e realização da justiça (artigo 131.º, § 1.º CPP); e, do outro, o dever de sigilo, a que se reportam os citados normativos: artigos 23.º, § 1.º, al. d) e § 2.º do Estatuto do Notariado e 81.º, § 1.º do Estatuto da Ordem dos Notários. O princípio regente do juízo a realizar sobre a quebra do segredo profissional, de molde a justificar a prestação do depoimento, enuncia-se no § 3.º do artigo 135.º CPP, ali se afirmando a prevalência do interesse preponderante, devendo nomeadamente ter-se em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

Tal como bem sublinha o Ministério Público no seu parecer, vem-se entendendo que a quebra do segredo profissional em favor do interesse da descoberta da verdade, apenas excecionalmente deverá ser determinada, (2) só devendo prevalecer se do balanceamento a realizar entre os valores que integram os deveres em conflito, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, este se revelar inequivocamente dominante. Neste conspecto são fatores determinantes: - a gravidade do crime em causa (sendo certo que só relativamente a crimes graves se pode equacionar a quebra do sigilo); - a especial necessidade de proteção dos bens jurídicos, face às circunstâncias do caso concreto; - a essencialidade do depoimento da testemunha para a descoberta da verdade. Em geral o crime em causa tem de ser grave e com uma relevância que supere manifestamente o prejuízo adveniente da quebra da garantia do sigilo; e o depoimento terá de ser essencial para a descoberta da verdade, isto é, que da ausência dele advenha grave prejuízo para o esclarecimento da verdade ou se torne impossível alcançá-la. Acrescendo que o dever de sigilo não deverá ceder perante bagatelas penais, nem ainda perante crime relativamente ao qual a lei não permita devassa (espécie) do mesmo género (quebra de segredo), como sucede com os crimes puníveis até 3 anos de prisão,

na medida em que nestes se não permitem escutas telefónicas (artigo 187.º, § 1.º, al. a) CPP) (3). Daqui não derivando, necessariamente, que em caso de crime com pena de máximo superior a 3 anos de prisão se deva, logo por isso, em todos os casos, quebrar o sigilo, tudo dependendo do balanceamento dos valores em presença face ao quadro circunstancial concreto.

Breve: a quebra do segredo profissional em favor do interesse da descoberta da verdade e da boa administração da justiça deverá ser excecional (4); só devendo impor-se por razões prementes, ditadas por imperativos de justiça e na ausência de meios alternativos para alcançar a verdade.

Vejamos agora as circunstâncias do caso concreto, desde logo assinalando a míngua de elementos remetidos pela 1.ª instância relativos aos contornos da causa. Em todo o caso, é possível constatar estarmos perante o julgamento de um crime de difamação, cujo bem jurídico tutelado é a honra. Bem jurídico este, complexo, no qual se entretecem conceções fácticas, subjetivas e objetivas mas também normativas, pessoais e sociais, como proficientemente assinala e distingue José de Faria Costa. (5)

Correspondendo a honra àquele mínimo de condições que razoavelmente são consideradas essenciais para que alguém possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale.

O crime de difamação surge matricialmente punível com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 240 dias (artigo 180.º CP), sendo um dos ilícitos menos graves do espectro da tutela penal, muitas vezes estando associado às denominadas bagatelas penais (por o dano causado ser de pequena importância ou amplitude).

Por outro lado, conforme se refere no parecer da Ordem dos Notários, o depoimento da testemunha sujeita ao dever de segredo parece não ser imprescindível, na medida em que o Tribunal de julgamento poderá lançar mão da requisição do relatório inspetivo elaborado pelas Senhoras Notárias DD e BB, o qual, de acordo com o referido pela referida Ordem, poderá ser disponibilizado, do mesmo constando os elementos que poderão ser esclarecedores dos factos ocorridos e que estarão agora sob escrutínio no julgamento em curso. Temos, portanto, que na concatenação do dever de colaboração com a justiça e a tutela do segredo profissional da testemunha BB, na qualidade de notária e membro do …, releva a circunstância de o crime em referência não assumir uma gravidade abstrata (nem concreta) que deva sobrepor-se à relevância do sigilo profissional e sua preservação. Acrescendo, nas circunstâncias referidas, que nada demonstra a imprescindibilidade do depoimento da assinalada testemunha, uma vez que a factualidade relevante será demonstrável através de outro meio de prova (documental). Da singeleza destas circunstâncias emerge como injustificada a quebra do segredo profissional a que a senhora notária em referência se encontra vinculada.

Termos em que o incidente deverá improceder.

III - Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) julgar improcedente o incidente de quebra do segredo profissional relativamente à testemunha BB, distinta notária e membro do…, não a dispensando do segredo profissional a que está vinculada.

b) Sem custas.

Notifique-se (dando conhecimento também à Ordem dos Notários).

Évora, 24 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Cf. Sónia Reis, Da Relevância do Segredo Profissional no Processo Penal, Revista de Direito Penal, 2003, II, 2, pp. 23 ss., cit, por António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, 3.ª ed., 2021, Almedina, pp. 174.

3 É esta também a interpretação normativa feita por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pp. 366-368.

4 Neste sentido cf. António Gama, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo II, Almedina, 2019, pp. 168.

5 José de Faria e Costa, Comentário Conimbricence do Código Penal, tomo I, 2012, Coimbra Editora, pp. 906 ss.