Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3784/11.7BLLE-N.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
ÓNUS DA PROVA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva.
2 – Nos embargos de executado, as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, e que se baseia em normas de direito substantivo, não se alteram, cabendo ao executado que deduz embargos a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no artigo 342.º do Código Civil.
3 – O título executivo é condição necessária da acção executiva, mas pode ser configurado como um acto complexo sequencial completado pela descrição fáctica contida no requerimento inicial executivo, a qual veio a ser aceite pelo Tribunal sem que tenha sido impugnada a decisão de facto.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3784/11.7BLLE-N.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Execução de Loulé – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente oposição à execução mediante embargos, apensa à acção executiva para entrega de quantia certa, instaurada por (…) contra Massa Insolvente da Sociedade “(…) – Transportes, Lda.”, uma vez proferido saneador-sentença, o executado veio interpor recurso.
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O embargante alegou que adquiriu às sociedades “(…) – Transporte e Bombagens de Betão, Lda.”, “(…) – Sociedade Bombagem e Transporte de Betão, Lda.”, “(…) – Reparação e Aluguer de Máquinas, Lda.”, “(…) – Transportes, Lda.”, “(…) – Transporte e Bombagem de Betão, Lda.” e “Transportes (…), Lda.” 73 (setenta e três) veículos, por um valor global de € 625.031,00 (seiscentos e vinte e cinco mil e trinta e um euros).
Relativamente à aquisição realizada à “(…) – Transportes, Lda.” afirma que, pese embora a resolução do negócio de venda ao ora Embargante e a improcedência da acção de impugnação dessa resolução, não existe título executivo e não existe interesse em agir por parte do liquidatário judicial.
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A Embargada apresentou contestação, defendendo a improcedência dos embargos em razão do caso julgado anterior e sustentando que existe título executivo suficiente.
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Realizou-se a audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador que conclui pela improcedência dos embargos, mantendo-se a execução com vista à entrega coerciva dos veículos identificados no requerimento inicial de execução.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«1. No âmbito dos presentes Autos, e mercê da improcedência dos Embargos de Executado deduzidos pelo ora Apelante, entendeu o Tribunal a quo ordenar a manutenção da execução “com vista à entrega coerciva dos veículos identificados no requerimento inicial de execução”.
2. O ora Apelante não pode conformar-se com o teor de tal decisão, uma vez que, no seu entendimento, o título executivo (simples ou complexo) que deu origem à presente Execução, e que lhe serviu de suporte, não reveste força executiva bastante para que o Exequente pudesse lançar mão de uma acção executiva para entrega de coisa certa.
3. A obrigação exequenda tem de ser certa e deve resultar expressamente do título executivo. Tal certeza consubstancia uma condição processual de exequibilidade intrínseca da pretensão.
4. Com o muito devido respeito por melhor opinião, a presente execução deveria ter sido, ab initio, objecto de indeferimento liminar, por ausência de título executivo – cfr. artigos 10.º, n.º 5, 726.º, n.º 2, alínea a), 729.º, alínea a), 703.º, n.º 1, al. a), todos do CPC.
5. Apesar de estar reconhecida a existência do direito de propriedade na esfera jurídica do Exequente, a apreensão e entrega de tais bens ao mesmo, em Execução movida para esse efeito, está sempre dependente da prévia instauração de acção declarativa, que culmine na condenação do Executado a proceder a tal entrega, sob pena de se porem em causa os princípios basilares que regem em matéria de títulos executivos.
6. A acção executiva pressupõe uma prévia solução sobre a existência e configuração do direito exequendo, pelo que os títulos executivos, nos termos em que a Lei os define e reconhece, contêm um suficiente grau de certeza e de idoneidade, que permite atribuir-lhes uma condição de exequibilidade extrínseca da pretensão – cfr. Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, datado de 12-07-2012.
7. A sentença dada à execução em lado nenhum da sua conclusão condena o ora Recorrente ao cumprimento de qualquer prestação ou obrigação perante a ali Ré, Massa Insolvente, pelo que jamais poderia o ora Apelante ser directamente executado nos termos em que foi.
8. Nenhum dos documentos apresentados pelo Exequente, ou a que se alude na sentença em crise, por si ou conjuntamente, configura título executivo bastante para servir de base à execução, nos termos em que esta foi proposta e enquanto Apenso da Acção de Impugnação do Acto Resolutivo, pelo que deveria a presente execução ter sido julgada extinta em conformidade com o disposto nos artigos 10.º, n.º 5, 703.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC. E, caso assim não se entendesse, sempre deveriam ter sido julgados procedentes os Embargos deduzidos, em conformidade com o disposto na alínea a) do artigo 729.º do C.P.C..
9. Sem conceder, ainda que por mera hipótese académica de raciocínio se equacionasse a existência de um título executivo complexo, nos termos referidos na douta decisão em crise, certo é que não foi esse o caminho por que enveredou o Exequente no Requerimento Executivo, uma vez que não juntou tais documentos aquando da instauração da execução ou posteriormente.
10. Tal omissão violou o princípio do contraditório, impedindo o Executado de exercer em pleno o seu direito de defesa, porquanto não lhe foi concedida a oportunidade para se pronunciar sobre a alegada existência de um “título executivo complexo”, nunca invocado pelo Exequente, ou por este junto aos Autos – cfr. artigos 724.º, n.º 4, alínea a), 725.º, alínea d), 726.º, n.º 2, alínea a), 3.º, n.º 3, todos do C.P.C..
11. A violação do princípio do contraditório constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, nulidade esta que expressamente se invoca, e que, no caso, origina a nulidade da douta Sentença proferida, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, uma vez que, sem a prévia audição das partes, o Tribunal não poderia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.
12. Sem conceder, caso assim não se entenda, sempre se dirá que o caminho seguido pelo Meritíssimo juiz a quo para justificar a existência de título executivo, não tem qualquer suporte legal, uma vez que, sempre com o devido respeito, nem de cada uma das decisões judiciais apreciadas individualmente, nem da sua conjugação – incluindo-se, também, o teor da carta resolutiva – se poderá concluir pela existência de título executivo bastante para a presente execução para entrega de coisa certa, porquanto nunca o ora Apelante foi condenado a entregar quaisquer bens ou bens em concreto (contrariamente ao que se refere na sentença em crise).
13. A ausência de um título executivo, simples ou complexo, que permita à Exequente lançar mão, contra o aqui Executado, de acção executiva é manifesta, e surge evidenciada, desde logo, no teor do articulado de Contestação aos Embargos que a mesma apresenta e cuja argumentação expendida é, toda ela, típica de uma verdadeira acção declarativa, incluindo o pedido formulado de que o Embargante seja “condenado a restituir à Embargada/Exequente todos os veículos identificados no requerimento executivo”.
14. Como bem conclui o Professor Fernando de Gravato Morais, “não sendo restituído voluntariamente, pelo respectivo obrigado – como resulta do artigo 126.º, n.º 1, do CIRE –, o bem para a massa insolvente, cabe ao administrador de insolvência, em representação daquele, instaurar acção judicial tendo em vista essa restituição”.
15. Contrariamente à conclusão firmada na douta sentença em crise, não resulta da prova produzida nos Autos qualquer recusa do Executado na entrega dos bens, sendo certo que nunca o Executado e aqui Recorrente se recusou em entregar quaisquer bens à Exequente ou sequer se pronunciou quanto a uma eventual entrega, apenas invocando que não havia título executivo que servisse de fundamento à execução instaurada.
16. A conclusão firmada na douta Sentença quanto a uma alegada recusa de entrega por parte do Executado e Embargante conduz à nulidade da Sentença, nos termos prescritos na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC.
17. Caso assim não se entenda, sempre haverá que considerar que a douta sentença recorrida enferma de ilegalidade, por violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 10.º, n.º 5, 703.º, n.º 1, alínea a), 724.º, n.º 4, alínea a), 725.º, alínea d), 726.º, n.º 2, alínea a), 729.º, alínea a), todos do C.P.C., e ainda dos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da C.R.P..
18. Deve, assim, a decisão proferida ser revogada e, em sua substituição, ser proferido Acórdão que indefira liminarmente o Requerimento Executivo por falta ou insuficiência do título. Ou, caso assim não se entenda, ser proferida Sentença que julgue procedentes os Embargos de Executado deduzidos, extinguindo-se a execução.
Termos em que, de acordo com as conclusões acima formuladas, deve a decisão recorrida ser revogada por violação das disposições legais citadas, e por estar ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C. e, em sua substituição, ser proferida decisão que indefira liminarmente o requerimento executivo apresentado ou, caso assim não se entenda, julgue procedentes os embargos deduzidos, extinguindo-se a execução, como é legal e de Justiça!».
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A parte contrária não apresentou contra-alegações.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da existência:
a) nulidade por excesso de pronúncia.
b) nulidade por violação do princípio do contraditório.
c) erro na aplicação do direito. *
III – Dos factos apurados:
3.1 – Factos provados:
Atentos os documentos não impugnados e acordo das partes, consideram-se provados e relevantes para a decisão os seguintes factos:
1 – Por sentença datada do dia 4 de Junho de 2012, e na sequência de processo judicial iniciado a 31 de Novembro de 2011, foi a sociedade “(…) – Transportes, Lda.”, declarada insolvente e ali nomeado como Administrador Judicial o Senhor Dr. (…).
2 – Além do mais determinou-se na referida sentença a apreensão e imediata entrega ao administrador da insolvência dos elementos da contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no artigo 150.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
3 – O Administrador da Insolvência procedeu à apreensão dos seguintes veículos:
a. Os veículos com as matrículas (…), (…), (…), (…) e (…).
b. Os veículos com as matrículas (…) e (…).
4 – No âmbito das suas funções, o Administrador de Insolvência tomou conhecimento da celebração de dois contratos de alienação de bens, já em momento posterior ao início do processo de insolvência, nomeadamente:
a. Contrato de 31/03/2012, com alienação pela Insolvente, a favor do aqui Embargante, pelo valor de € 143.240,00 (cento e quarenta e três mil, duzentos e quarenta euros) dos veículos com as seguintes matrículas: (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…), pelo montante unitário de € 8.000,00 + IVA, por cada viatura.
b. Contrato de 30/04/2012, com alienação pela Insolvente, a favor do aqui Embargante, pelo valor de € 16.912,50 (dezasseis mil, novecentos e doze euros e quinze cêntimos) dos veículos com as seguintes matrículas: (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), (…), pelo montante unitário de € 1.250,00 + IVA, por cada viatura.
5 – No âmbito das suas funções o Administrador Judicial em 3 de julho de 2013 procedeu à resolução dos contratos em benefício da massa insolvente, nos termos dos artigos 120.º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tendo remetido comunicação para o efeito ao aqui Executado em idêntica data.
6 – O Embargante recebeu a carta mencionada em 5 onde se declarava resolvido e ineficaz o contrato celebrado com a “(…) – Transportes, Lda.” e pediu a entrega do veículo objecto do contrato.
7 – Inconformado o executado/embargante recorreu da resolução interpondo uma Acção de Impugnação da Resolução de Contrato de Compra e Venda de 22 veículos, interposta pelo executado/embargante contra a Massa Insolvente da “(…) – Transportes, Lda.” foi requerido ao Tribunal que fosse «revogada a resolução em benefício da massa insolvente notificada pelo Senhor Administrador e relativa ao contrato de compra e venda de 22 veículos que a insolvente celebrou com o impugnante».
8 – Por sentença datada de 17 de Janeiro de 2018 a acção de impugnação instaurada pelo Embargante foi julgada improcedente nos seguintes termos: “pelo exposto, julgo a acção improcedente e, em consequência: 1. Julgo procedente por provada a exceção peremptória da caducidade do direito do Autor a intentar a presente acção de impugnação da resolução do negócio em benefício da massa insolvente. 2. Julgo procedente a resolução do negócio em benefício da massa insolvente operada pelo Administrador da Insolvência”.
9 – O Embargante interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora tendo o mesmo sido julgado improcedente através de acórdão de 7 de Junho de 2018.
10 – O Embargante não procedeu ainda à entrega dos veículos mencionados em 4.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Nulidade relativa ao excesso de pronúncia:
De acordo com a primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a sentença é nula, quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Entende o recorrente que o Tribunal a quo violou a sobredita norma.
Em traços gerais, o embargante entende que a conclusão firmada quanto a uma alegada recusa de entrega por parte do executado conduz à nulidade da sentença.
Questões submetidas à apreciação do Tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
É a violação daquele dever que torna nula a decisão e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Coisa diferente são as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, as quais correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa estipulada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A nulidade da decisão por excesso de pronúncia acontece assim, quando o acto decisório decide alguma questão não suscitada pelas partes. E tal não ocorre.
Existe uma distinção entre erros de actividade e erros de juízo. Na perspectiva de Alberto dos Reis «o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria da decisão, os da segunda categoria são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade de julgador.
Assentemos, pois nisto: por vícios da sentença entende a lei os erros materiais e os erros formais, que se corrigem pelos meios facultados pelos artigos 667.º e 669.º[1]. Contrapõem-se aos erros substanciais, contra os quais se há-de reagir por via de recursos»[2]. Esta posição é partilhada por Antunes Varela[3] e encontra eco ainda na jurisprudência recente dos Tribunais Superiores.
Na hipótese vertente, o pedido é o mesmo, a causa de pedir é aquela que foi indicada no articulado inicial e o sentenciamento aplica o direito aos factos apurados. Por conseguinte, resta afirmar que existe uma identidade absoluta entre a pretensão executiva deduzida pelo exequente e a oposição mediante embargos e a matéria solucionada pelo Tribunal.
Carece assim de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
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4.2 – Da nulidade por violação do princípio do contraditório:
O embargante entende ainda que foi violado o princípio do contraditório, por não lhe ter sido concedida a oportunidade para se pronunciar sobre a alegada existência de um título executivo complexo e isso impediu o executado de exercer em pleno o seu direito de defesa.
A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[4], pois, dada a importância do princípio, é indiscutível que a sua inobservância é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa[5].
Por nulidades do processo entendem-se quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder, embora não de forma expressa, uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais[6].
É entendimento pacífico que da nulidade processual prevista no artigo 195.º do Código de Processo Civil não cabe directamente recurso para este Tribunal da Relação, devendo a mesma ser arguida perante o tribunal em que teve lugar (artigo 199.º do mesmo diploma)[7]. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que verse sobre a arguição de nulidade, quando se verifiquem os pressupostos da impugnação por via recursal, é que dessa decisão caberá recurso para este tribunal. Efectivamente, as nulidades do processo hão-de, em princípio, ser arguidas perante o Tribunal em que ocorreram e nele apreciadas e julgadas (sendo excepção não correspondente ao caso dos autos a hipótese prevista no n.º 3 do artigo 199.º). Como refere Alberto dos Reis «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»[8].
Em abstracto, a violação do princípio do contraditório é configurável como nulidade processual e a mesma teria que ser arguida perante o Tribunal que a cometeu e dentro do prazo legal de 10 dias, sob pena de ficar precludida essa possibilidade.
A apelante não invocou a alegada nulidade perante o Tribunal de Primeira Instância no modo e no tempo previstos na legislação aplicável, antes logo interpondo recurso para este Tribunal da Relação, recurso que, nestas circunstâncias, também não poderia proceder pelos motivos supra aduzidos [9] [10].
No entanto, antes disso tudo, no caso concreto, não ocorre qualquer nulidade. Na realidade, face à forma como estava estruturada a acção executiva, não existe o factor de novidade na decisão e a causa de pedir deduzida funda-se claramente no tal título complexo.
Em adição, a referenciada matéria foi até objecto prioritário dos presentes embargos quando o executado defendeu a inexistência de título executivo. E o único factor decisivo é que o Tribunal a quo não aderiu a essa tese e convergiu no sentido contrário de que existia título válido e suficiente para prosseguir a acção executiva para entrega de coisa certa.
Aliás, para além dos suportes disponibilizados no processo e da factualidade apurada pela Primeira Instância, a qual não foi impugnada em sede de recurso, o historial relacionado com a resolução em benefício da massa falida e o subsequente resultado da acção retira a possibilidade do referido efeito surpresa e invalida a tese da existência de um quadro de defesa completa e esclarecida.
O executado sabia da resolução do negócio, impugnou-a e foi notificado do acórdão de 07/06/2018. O executado tinha conhecimento da declaração de insolvência da sociedade “(…) – Transportes, Lda.” e foi notificado, aquando da resolução contratual, para proceder à devolução das viaturas cuja entrega foi reclamada.
Todos estes factos são de conhecimento pessoal do embargante e mostram-se minimamente enunciados nas peças processuais. Basta comparar o requerimento de execução com a factualidade assente e com o juízo silogístico firmado para concluir que a sentença recorrida não se destaca minimamente do objecto processual proposto e que toda a decisão foi sujeita ao crivo do contraditório.
Em função de tudo isto, não se verifica assim a referida nulidade de preterição do contraditório.
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4.3 – Do erro de direito:
Os embargos de executado são uma verdadeira acção declarativa e que visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da actual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto, específico ou geral, da acção executiva[11].
A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo. Ou seja, é exigência legal a existência de um documento que formaliza a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artigo 10.º, n.ºs 4 e 5, do Código de Processo Civil).
Para Lebre de Freitas o título constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade, activa e passiva[12].
Rui Pinto afirma que «deve considerar-se que o título executivo é um documento, i. é., a forma de representação de um facto jurídico, o documento pelo qual o requerente de realização coactiva da prestação demonstra a aquisição de um direito a uma prestação, nos requisitos legalmente prescritos»[13].
O título executivo é, assim, condição necessária da acção executiva e importa assim averiguar se estão reunidas as condições de exequibilidade necessárias à devolução das viaturas aqui em causa.
Nos embargos de executado, as regras que presidem à distribuição do ónus da prova, e que se baseia em normas de direito substantivo, não se alteram, cabendo ao executado que deduz embargos a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no artigo 342.º do Código Civil.
Não existem dúvidas quanto à qualificação da impugnação da resolução em benefício da massa insolvente como uma acção declarativa de simples apreciação[14] e este tipo de procedimento visa obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, de harmonia com a estatuição precipitada na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º[15] do Código de Processo Civil.
Efectivamente, a acção prevista no artigo 125.º[16] do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas corresponde a uma providência judicial destinada a por termo a uma incerteza objectiva susceptível de colocar em crise o valor de uma determinada relação jurídica concreta e precisa[17].
Por outras palavras, esta acção não incorpora qualquer veredicto condenatório, antes se destina a garantir que a resolução do contrato promessa feita a favor da Massa Insolvente é ou não eficaz.
Todavia, como bem afirma o acto recorrido, o título assenta não no resultado da acção de resolução, mas sim no efeito retroactivo da resolução e, bem assim, na necessidade reconstituição da situação anterior e nas regras relacionadas com a entrega de bens decorrentes da declaração de insolvência[18].
É assim válido o pensamento expresso na decisão, quando avança que: «a apreensão dos veículos identificados no requerimento inicial de execução resulta, desde logo, da própria sentença que declarou a insolvência. Com efeito ali se determinou a apreensão de todos os bens que pertencessem à sociedade insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (conforme provado em 2.º).
Aquela decisão conjuga-se ainda com o teor da resolução declarada pelo Administrador da Insolvência pois a resolução em beneficio da massa insolvente a que se alude no normativo inserto no artigo 120.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas visa a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto especifico – a “resolução em beneficio da massa insolvente” – que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património, destinando-se tal expediente a “(…) apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostrem prejudiciais para a massa”».
Na verdade, a documentação apresentada não deve interpretada isoladamente mas antes tem de ser configurada como um acto complexo sequencial que se inicia com a declaração de insolvência e a determinação de apreensão de bens, seguida da decisão do administrador de resolução de negócio em benefício da massa insolvente e que culmina na improcedência da acção tendente a reverter essa declaração de ineficácia negocial.
É inequívoco que os bens em causa integram o património da massa insolvente, não existe qualquer dúvida sobre a titularidade dos veículos e, por fim, aquando da resolução do negócio por parte liquidatário judicial, foi solicitada a entrega dos veículos em apreço, a qual não foi concretizada, mesmo após o trânsito da decisão do Tribunal da Relação de Évora.
A documentação complexa apresentada e a causa de pedir formulada comportam as características de exequibilidade necessárias a constituir título executivo, não se tornando inevitável recorrer a uma acção de reivindicação ou outra providência similar, por a questão relativa à dominialidade dos bens estar consolidada.
Em conclusão, a análise do título e a descrição fáctica contida no requerimento inicial executivo contêm o grau de certeza e de idoneidade necessários à procedência da pretensão executiva.
E, nestes termos, julga-se que a execução embargada assenta em título executivo válido, devendo a execução prosseguir os seus termos, face à clara obrigação que resulta para o Embargante de proceder à entrega dos veículos identificados no requerimento inicial e cuja entrega não foi operacionalizada.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 12/01/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário

Maria Domingas Alves Simões



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[1] A que actualmente correspondem os artigos 614.º e 617.º do novo Código de Processo Civil.
[2] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, págs. 124-125.
[3] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, págs. 687-689.
[4] A prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa 1996, pág. 48.
[6] Anselmo de Castro, «Direito Processual Civil Declaratório», vol. III, pág. 103.
[7] Artigo 199.º (Regra geral sobre o prazo da arguição):
1 - Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
2 - Arguida ou notada a irregularidade durante a prática de ato a que o juiz presida, deve este tomar as providências necessárias para que a lei seja cumprida.
3 - Se o processo for expedido em recurso antes de findar o prazo referido neste artigo, pode a arguição ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição.
[8] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 507.
[9] Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/01/2011, in www.dgsi.pt, que «I - A violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, é susceptível de consubstanciar a prática de uma nulidade processual, quando a subjacente irregularidade cometida se mostre capaz de influir no exame ou decisão da causa.
II - A apontada nulidade não é susceptível de ser conhecida oficiosamente, razão porque se tem por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias, após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo».
[10] No mesmo sentido, entre muitos outros, podem consultar-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/06/2009, do Tribunal da Relação de Évora de 12/09/2013, do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/12/2007 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/11/2011.
[11] Lebre de Freitas, A acção executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 143.
[12] Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Edição, Coimbra, pág. 43.
[13] Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, págs. 142-143.
[14] Marisa Vaz Cunha, in Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 288.
[15] Artigo 10.º (Espécies de ações, consoante o seu fim):
1 - As ações são declarativas ou executivas.
2 - As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas.
3 - As ações referidas no número anterior têm por fim:
a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;
b) As de condenação, exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pressupondo ou prevendo a violação de um direito;
c) As constitutivas, autorizar uma mudança na ordem jurídica existente.
4 - Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida.
5 - Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
6 - O fim da execução, para o efeito do processo aplicável, pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo.
[16] Artigo 125.º (Impugnação da resolução):
O direito de impugnar a resolução caduca no prazo de três meses, correndo a ação correspondente, proposta contra a massa insolvente, como dependência do processo de insolvência.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/02/2014, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Artigo 36.º (Sentença de declaração de insolvência):
1 - Na sentença que declarar a insolvência, o juiz:
a) Indica a data e a hora da respectiva prolação, considerando-se que ela teve lugar ao meio-dia na falta de outra indicação;
b) Identifica o devedor insolvente, com indicação da sua sede ou residência;
c) Identifica e fixa residência aos administradores, de direito e de facto, do devedor, bem como ao próprio devedor, se este for pessoa singular;
d) Nomeia o administrador da insolvência, com indicação do seu domicílio profissional;
e) Determina que a administração da massa insolvente será assegurada pelo devedor, quando se verifiquem os pressupostos exigidos pelo n.º 2 do artigo 224.º;
f) Determina que o devedor entregue imediatamente ao administrador da insolvência os documentos referidos no n.º 1 do artigo 24.º que ainda não constem dos autos;
g) Decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º;
h) Ordena a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de infracção penal;
i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º;
j) Designa prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos;
l) Adverte os credores de que devem comunicar prontamente ao administrador da insolvência as garantias reais de que beneficiem;
m) Adverte os devedores do insolvente de que as prestações a que estejam obrigados deverão ser feitas ao administrador da insolvência e não ao próprio insolvente;
n) Designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes, para a realização da reunião da assembleia de credores aludida no artigo 156.º, designada por assembleia de apreciação do relatório, ou declara, fundamentadamente, prescindir da realização da mencionada assembleia.
2 - O disposto na parte final da alínea n) do número anterior não se aplica nos casos em que for previsível a apresentação de um plano de insolvência ou em que se determine que a administração da insolvência seja efetuada pelo devedor.
3 - Nos casos em que não é designado dia para realização da assembleia de apreciação do relatório, nos termos da alínea n) do n.º 1, e qualquer interessado, no prazo para apresentação das reclamações de créditos, requeira ao tribunal a sua convocação, o juiz designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes à sentença que declarar a insolvência, para a sua realização.
4 - Nos casos em que não é designado dia para realização da assembleia de apreciação do relatório nos termos da alínea n) do n.º 1, os prazos previstos neste Código, contados por referência à data da sua realização, contam-se com referência ao 45.º dia subsequente à data de prolação da sentença de declaração da insolvência.
5 - O juiz que tenha decidido não realizar a assembleia de apreciação do relatório deve, logo na sentença, adequar a marcha processual a tal factualidade, tendo em conta o caso concreto.