Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
422/10.9TBSSB-A.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: VALOR DA CAUSA
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O valor duma acção não é o valor do objecto imediato do pedido, nem da causa de pedir, considerados isoladamente, mas o da combinação dos dois elementos, à luz dos critérios modeladores inscritos nos artigos 297º e 298º do Código de Processo Civil, consoante o caso.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 422/10.9TBSSB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Cível de Sesimbra – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório:
(…) e (…) interpuseram recurso do despacho que fixou o valor à causa na acção proposta contra (…) e (…).
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Os Autores pediram que os Réus fossem condenados a reparar, por si ou à sua custa, os vícios e defeitos de construção existentes no imóvel dos autos e, bem assim, todos os que vierem a notar no seguimento dessa reparação, cujo montante ainda não é possível definir em concreto e deverá ser liquidado em sede de execução de sentença.
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O valor da causa foi fixado em € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros).
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Os recorrentes não se conformaram com a referida decisão e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
A) O presente recurso versa sobre o douto despacho de 22/03/2017 que fixou o valor da causa em € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros) por entender que os dois relatórios existentes tinham como objecto o mesmo quesito.
B) Lê-se no citado despacho que, considerando o teor dos relatórios periciais incidiram sobre o mesmo quesito, isto é, determinar o custo médio de mercado para corrigir os defeitos estruturais do edifício, não devem aqueles valores ser somados, mas dever ser considerado o apurado em último lugar, pois tal resultou da realização da consequente perícia requerida pelas partes, pois necessitaram de ver aprofundado o teor do primeiro relatório pericial.
C) Sucede que, apenas por manifesto lapso se compreende tal afirmação e consequente decisão de fixar o valor da acção em € 75.000,00.
D) É que, se se reparar com atenção, os dois relatórios não visavam esclarecer um mesmo quesito.
E) Na verdade, o primeiro relatório tinha um objecto mais amplo, composto por diversos quesitos (base instrutória dos artigos 1º a 18º, 22º, 23º, 25º a 28º e as questões indicadas no requerimento probatório dos Autores), enquanto
F) A nova perícia requerida visava complementar a primeira e não substituí-la (como aliás a Meritíssima Juíza escreveu no seu douto despacho de 20/02/2013), tendo em conta que os Senhores Peritos que elaboraram o primeiro relatório deram valor de reparação de várias questões, mas entenderam não estar habilitados a dar um valor quanto à correcção dos defeitos estruturais do edifício.
G) Aliás, se se reparar no esclarecimento prestado pelo Perito na nova perícia, de forma clara, respondeu: “No valor indicado estão incluídos todos os custos necessários à reposição do edifício, resultantes dos trabalhos de reforço estrutural, com exclusão dos trabalhos que seriam sobrepostos aos da anterior peritagem, cujo relatório me foi fornecido”.
H) Logo, os valores indicados em ambos os relatórios (€ 35.250,00 + € 75.000,00 acrescidos de IVA) não se encontram duplicados. Enquanto o primeiro visa reparar os problemas de pintura, substituição de azulejos/mosaicos, etc., o segundo visa tão-somente reparar os defeitos estruturais ao nível das fundações do edifício, não havendo qualquer sobreposição de valores.
I) Estando-se perante um evidente e manifesto lapso do Juiz a quo que veio substituir a anterior titular deste processo e que certamente não atentou no porquê de ambos os relatórios, pensando tratar-se de uma segunda perícia que visava substituir a anterior, o que não era o caso.
J) Porém, ao decidir em contrário o Juiz a quo violou os artigos 296º, nº 1, 297º, nº 1, 2ª parte e 476º, nº 2, do C.P.C. e o artigo 569º do C.C.
K) O presente recurso deverá subir imediatamente e em separado uma vez que, se a decisão em crise apenas for impugnada a final tornar-se-ia absolutamente inútil (cfr. artigo 644º, nº 2, al. h), do C.P.C.), na medida em que a fixação do valor da causa em questão afigura-se fundamental quer para feitos da matéria constante nos quesitos 22º e 23º da Base Instrutória, quer para efeitos do pedido que foi formulado nos autos, tendo em conta que quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos (cfr. Art. 569º do Código Civil).
L) E o Tribunal ao fixar como valor da causa a quantia de € 75.000,00 está no fundo a limitar o pedido de indemnização de reparação dos Autores a essa quantia, quando resulta já de ambos os relatórios que a quantia necessária para reparar todos os danos é de € 110.250,00.
Porém Vossas Excelências, julgando procedente o presente recurso, revogando o douto despacho recorrido e substituindo-o por outro que fixe o valor da causa em € 110.250,00 (cento e dez mil, duzentos e cinquenta euros) farão a costumada Justiça!
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação dos critérios de fixação do valor da causa.
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III – Dos factos apurados:
Do teor dos articulados e dos elementos constantes dos autos, com relevo para a decisão da causa, considera-se a seguinte factualidade:
1 – No requerimento de prova apresentado pelos Autores, de 21/02/2011, foi requerida a realização de prova pericial colegial.
2 – No requerimento de prova apresentado pelos Réus, de 16/02/2011, foi requerida igualmente a realização de prova pericial.
3 – Por despacho de 10/03/2011, o Tribunal deferiu o pedido de realização de perícia colegial e fixou o objecto da diligência.
4 – O relatório pericial subscrito pelo colégio de peritos adiantou que o valor global da reparação era de € 35.250,00, acrescido de IVA.
5 – Por requerimento datado de 02/07/2012, os Autores formularam um pedido de esclarecimento aos peritos.
6 – Por despacho de 05/11/2012, o Tribunal ordenou a notificação dos Senhores Peritos para prestarem os esclarecimentos solicitados pelas partes.
7 – Em 30/11/2012, os peritos responder ao pedido de esclarecimento.
8 – Nessa sequência, por requerimento de 17/01/2013, os Autores vieram requerer a realização de uma nova perícia.
9 – Por despacho de 20/02/2013, o Tribunal determinou a realização de nova perícia a realizar pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
10 – Realizada a referida diligência, a perícia concluiu que o valor médio de mercado para corrigir os defeitos estruturais do edifício é de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), valor a acresce o IVA à taxa legal em vigor.
11 – Foi proferido despacho que fixou o valor à causa em € 75.000,00.
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IV – Fundamentação:
IV.1 – Valor da causa:
A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido (artigo 296º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A este valor se atenderá para determinar a competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal, conforme se estatui no nº 2 do citado preceito.
Os critérios gerais para a fixação do valor da causa estão enunciados no artigo 297º[1] do Código de Processo Civil e a utilidade económica imediata do pedido, expressa em dinheiro, constitui o factor decisivo para a fixação do valor processual.
O valor da causa é função do seu objecto, consistente no pedido deduzido e em reconvenção pelo réu[2]. Do valor da acção pode depender a competência do tribunal, a admissibilidade do recurso ordinário e a obrigatoriedade do patrocínio judiciário.
A lei processual estabelece que compete ao juiz fixar o valor da causa no despacho saneador ou, não existindo este, na sentença (artigo 306º do Código Processo Civil).
Como se avalia essa utilidade?
Alberto dos Reis avança que a resposta é simples: «vê-se qual é o fim ou o objectivo da acção e depois procura-se a equivalência económica desse objectivo. E como o valor tem de ser expresso em moeda legal, a equivalência económica consiste na indicação da quantia em dinheiro correspondente ao objectivo da acção»[3].
Há, porém que ter em conta que o pedido se funda sempre na causa de pedir, que o explica e delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica imediata do pedido, pelo que este não é considerado abstractamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para o apuramento do valor da causa[4] [5].
Na perspectiva do recorrente «os valores indicados em ambos os relatórios (€ 35.250,00 + € 75.000,00 acrescidos de IVA) não se encontram duplicados. Enquanto o primeiro visa reparar os problemas de pintura, substituição de azulejos/mosaicos, etc., o segundo visa tão-somente reparar os defeitos estruturais ao nível das fundações do edifício, não havendo qualquer sobreposição de valores».
O Tribunal «a quo» adianta que, considerando o teor dos relatórios periciais incidiram sobre o mesmo quesito, isto é, determinar o custo médio de mercado para corrigir os defeitos estruturais do edifício, não devem aqueles valores ser somados, mas dever ser considerado o apurado em último lugar, pois tal resultou da realização da consequente perícia requerida pelas partes, pois necessitaram de ver aprofundado o teor do primeiro relatório pericial. Em função disso, fixou o valor à causa em € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros).
Estamos perante uma hipótese em que a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, por a situação encontrar agasalho na leitura combinada no disposto no nº 4 do artigo 299º[6] e no nº 2 do artigo 306º[7] do Código Civil.
Neste capítulo, assume particular acuidade a posição expressa na segunda perícia onde se assume que «no valor indicado estão incluídos todos os custos necessários à reposição do edifício, resultantes dos trabalhos de reforço estrutural, com exclusão dos trabalhos que seriam sobrepostos aos da anterior peritagem».
Deste modo, tendo presente o pedido, a causa de pedir e os quantitativos indicados em sede de perícia como necessários para promover a reparação dos defeitos reclamados, a importância exacta em que se avalia o prejuízo ascende a € 110.250,00 (cento e dez mil, duzentos e cinquenta euros), acrescido de IVA, independentemente do veredicto final quanto ao mérito da causa.
Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 296º, 297º, 306º e 308º do Código de Processo Civil, o valor fixado para a causa deve ser alterado para € 110.250,00 (cento e dez mil, duzentos e cinquenta euros), acrescido de IVA.
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V – Sumário:
O valor duma acção não é o valor do objecto imediato do pedido, nem da causa de pedir, considerados isoladamente, mas o da combinação dos dois elementos, à luz dos critérios modeladores inscritos nos artigos 297º e 298º do Código de Processo Civil, consoante o caso.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se:
a) Fixar a valor da causa em € 110.250,00 (cento e dez mil, duzentos e cinquenta euros), acrescida de IVA, julgando assim procedente o recurso interposto.
Sem tributação, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 28/09/2017

José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] Artigo 297º (Critérios gerais para a fixação do valor):
1 - Se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela acção se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
2 - Cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.
3 - No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar.
[2] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra 2014, nºs I.4.1, I.4.4, I.4.6 e II.6.3.
[3] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil. Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 1946, pág. 591.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, pág. 586.
[5] José Alberto dos Reis, obra citada, pág. 593, assevera que «o valor duma acção não é o valor do objecto imediato do pedido, nem da causa de pedir, considerados isoladamente, mas o da combinação dos dois elementos; quere dizer, é o valor do que se pede posto em equação com a causa petenti, ou por outras palavras o valor do pedido considerado em atenção à relação jurídica na base na qua se pede: o valor da relação jurídica, mas nos limites do pedido.
[6] Artigo 299º (Momento a que se atende para a determinação do valor):
1 - Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal.
2 - O valor do pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 530.º.
3 - O aumento referido no número anterior só produz efeitos quanto aos actos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção.
4 - Nos processos de liquidação ou noutros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários.
[7] Artigo 306º (Fixação do valor):
1 - Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
2 - O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença.
3 - Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641.º.