Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
129/11.0GBLGS-A.E1
Relator: ANA BACELAR CRUZ
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. A inadmissibilidade legal da instrução é conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência – e de que deriva a inutilidade da instrução.

Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:

i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];

ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,

iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.o do CPP);

vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.o do CPP) e,

II. O que se pede ao Juiz da Instrução, no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público. A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO
No processo de inquérito que, com o nº 129/11.0GBLGS, correu termos pelos Serviços do Ministério Público de Lagos, foi deduzida acusação contra C, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.

A Arguida requereu a abertura da instrução.

Remetido o processo à distribuição, o Senhor Juiz de Instrução Criminal rejeitou o requerimento de abertura de instrução.

Inconformada com esta decisão, o Arguida dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1 – O douto despacho do juiz a quo viola o estipulado no art. 287º.n.3CPP

2 – Igualmente não respeita o direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 20º CRP de que o direito à instrução em processo penal emana, porquanto fere tal direito

3 – Também desrespeita o ínsito no art. 32º CRP porque não assegura todas as garantias de defesa do arguido, limitando “contra legem” o exercício do direito à instrução em processo penal.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida com todas as legais consequências, assim se fazendo Justiça!»

O Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, respondeu, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. Ao arguido que apresenta um requerimento para abertura de instrução impõe-se, por força do preceituado no artigo 287.º, número 2, do Código de Processo Penal, que indique as razões pelas quais discorda da decisão tomada pelo Ministério Público e, se for caso disso, os actos de instrução que pretenda que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não foram considerados no inquérito e os factos que, por meio deles, espera provar;

2. Quando não contenha as razões da sua discordância relativamente a tal decisão, o requerimento para abertura de instrução não permite sindicá-la;

3. A instrução é uma ase processual que tem em vista a comprovação da decisão de deduzir acusação, sendo admissível, somente, quando tal finalidade possa ser alcançada, conforme resulta do disposto no número 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

4. O requerimento para abertura de instrução que não é apto a permiti-lo deve ser rejeitado com fundamento na inadmissibilidade legal de instrução;

5. A rejeição do requerimento para abertura de instrução que se revele inapto para alcançar a finalidade dessa fase processual, não viola qualquer direito de defesa do arguido ou o direito à tutela jurisdicional efectiva, respectivamente, consagrados nos artigos 32.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, outrossim, violaria, caso revelasse aptidão para tanto;

6. Inexiste fundamento legal para a formulação de convites ao aperfeiçoamento dos requerimentos para abertura de instrução, não se compadecendo o processo penal – que se quer acima de tudo célere – com as delongas inerentes aos mesmos.

Termos em que entendemos dever ser mantida a decisão proferida pelo Mmº Juiz a quo, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se, na íntegra, o despacho recorrido.

Decidindo Vossas Excelências nesta conformidade, farão justiça

O recurso foi admitido.
Não foi feito uso da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, subscrevendo a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O objeto do recurso interposto pela Arguida, delimitado pelo teor das suas conclusões, reconduz-se a determinar se o requerimento para a abertura da instrução respeita as exigências legais e, concluindo-se pela negativa, se antes da sua rejeição deveria ter ocorrido convite ao aperfeiçoamento.

O requerimento para a abertura da instrução tem o seguinte teor [transcrição]:
« (…)
C... (…), vem nos termos do artº 287º e segs requerer
Abertura de instrução
com os seguintes fundamentos:

1 – Vem a arguida acusada pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 152º n.1 al a) e 3 CE e 348º, n.1 al. a) e 69º n..1, al c) CP porquanto alegadamente,
2 – No dia 30 de Julho de 2011 pelas 22.30h no cruzamento Vale da Telha-Aljezur,

3 – A arguida conduzia a viatura ligeira matrícula xxx e teria trocado de lugar com a sua filha J

4 – Tendo de seguida se recusado a efectuar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado.

5 – Ora de facto nem a arguida conduzia a viatura,

6 – Nem se recusou a realizar tal exame, que fez.

7 – Na presença de sua filha J que aliás também os efectuou.

8 – O exame de pesquisa do álcool foi efectuado pela arguida ainda no citado cruzamento.

Termos em que não deve a arguida ser pronunciada pelo crime de que vem acusada.

Testemunha:
J..., com endereço na R. ..., Lisboa, cuja inquirição se requer por videoconferência

A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«Requerimento para abertura de instrução apresentado pela arguida C..: visto.
-
1. O Tribunal é competente.
-
2. Da admissibilidade do requerimento.

2.1. Apreciando em geral.
As finalidades legais da instrução estão previstas no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Resumem-se, em uma síntese muito apertada, em averiguar se uma decisão de acusar surgiu de modo fáctico e regular como consequência da actividade precedente, o inquérito.
Quando assim suceda, nas mais das vezes, o arguido (o acusado) será submetido a julgamento.
Quando tal não ocorra o processo será arquivado.
A instrução configura um puro momento de controlo de uma actividade pretérita.
Esta actividade de averiguação (comprovação) está incumbida a uma entidade distinta da acusadora, o Juiz, e não tem carácter oficioso.
Depende de um impulso de terceiros. Este impulso, que se concretiza mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução, pode provir do assistente ou do arguido.
Ora, quando o requerimento é apresentado pelo arguido – e por força das referidas finalidades legais da instrução – mister será que ele não se limite a contestar a acusação mas, ao invés, que ataque os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou nos meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii), ou mesmo o procedimento (latu sensu) concretamente adoptado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii), ou aponte qualquer patologia processual susceptível de impedir a prossecução dos autos para a fase de julgamento (iv), u seja e em suma, do requerimento apresentado pelo sujeito processual devem constar as razões de discordância como expressamente exige o n-º 2 do artigo 287.º, do Código de Processo Penal.
Por sua vez, a discordância em relação à decisão de acusar terá de ser vertida, de forma leal, no requerimento, há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem tais elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação.
Assim, as razões de discordância não consistem em qualquer manifestação de desagrado pela dedução da acusação.

2.2. Apreciando em concreto
Quais são nesta situação as razões que a arguida apresenta?
Nenhumas.
A arguida limita-se a contestar a veracidade dos factos narrados na acusação.
Nada refere sobre o inquérito ou o que neste se passou.
Conta apenas a sua versão dos factos. Diz que não conduzia a viatura e que até fez o exame.
Porém, escamoteia a análise dos elementos que constam do inquérito. Furta-se a qualquer estocada sobre o inquérito e ignora (?) que o exame a que se submeteu foi o qualitativo, ao passo que o exame a que se recusou submeter é o quantitativo. E isto resulta do inquérito.
Logo, a discordância da arguida consiste apenas na contestação da veracidade dos factos narrados no despacho de acusação. E a testemunha que oferece foi igualmente ouvida no inquérito.
Ora, sendo este o conteúdo do requerimento para a abertura da instrução cumpre desde já dizer que o mesmo é totalmente imprestável para permitir – ou servir de base – à actividade de comprovação com os contornos já referidos.
De facto, o requerimento sobre apreciação, de um lado, ignora as finalidades legais da instrução e, de outro, acaba por transmutar esta fase em um espaço típico do julgamento.
Nada disto é permitido por lei.
Segue-se daqui que, ante o conteúdo do requerimento apresentado, sem quaisquer razões de discordância vinculada nos termos para estas acima referidos, está ab initio impossibilitada a realização da actividade de comprovação jurisdicional prevista no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
2.3. Das consequências
Antecipando a conclusão: como considero, sem qualquer dúvida, que o requerimento apresentado pela arguida não se ajusta às finalidades legais da instrução previstas no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, isto é, não têm cabimento nestas, por possuir esta natureza de “extraneu” em relação à finalidade e ao âmbito da instrução legalmente positivadas, mister será concluir que não deve ser recebido.
Obviamente que, em estrita decorrência do exposto, a consequência de tão grave e congénita patologia do requerimento em apreciação só pode ser a da sua rejeição por legalmente inadmissível.
Encurtando razões, se perante o teor do requerimento a comprovação fica irremediavelmente impossibilitada por falta de objecto, nenhuma razão subsiste, para fechar os olhos a tal e, ao fim e ao cabo, admitir o requerimento e fazer um uso indevido do processo, ou se se quiser, praticar um conjunto de actos inúteis que, justamente por o serem, estão legalmente vedados (no pressuposto, pois claro de, em circunstância alguma no direito vigente, poder a arguida pretender a transferência do exercício dos seus direitos para o Juiz de Instrução, delegando-lhe o ónus de definir o objecto de comprovação que àquela, e só a ela, interessa, vd. Os artigos 287.º, n.º 2 e 288.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, quedando-se a arguida pela comodidade que daí decorre, ao invés de assumir, de forma plena, leal e responsável, o exercício franco e frontal da panóplia dos direitos que, como sujeito processual, a lei lhe confere para a defesa dos seus, e só seus, interesses).
Igualmente, se assim for, ou seja, se se admitisse o requerimento, com a inexorável consequência de, em todo o caso, desfigurar a fase da instrução ainda que a coberto de uma leitura interpretativa que não leva em devida linha de conta o fim, o fundamento e o limite da instrução, o porquê e o para quê desta, que acaba, afinal, por esboroar a trave-mestra inserta no n.º 1, do artigo 286.º, do Código de Processo Penal, ou seja, o puro momento de controlo da actividade do Ministério Público atribuído a um terceiro, o Juiz, sob o horizonte das razões que lhe apresenta o interessado na efectividade desse controlo, o arguido.
Uma tal linha interpretativa, agora sob outro ponto de vista, iria permitir a actuação meramente formal de garantias de defesa olvidando, não só que as mesmas se inserem no âmbito de um procedimento em curso, ou seja, dentro das regras positivadas pelo legislador, mas também e sobretudo, a entendê-las e aceitá-las como se fossem ilimitadas na extensão, no objecto e no conteúdo, posição esta que, de todo em todo, repudiamos, e que não tem assento em qualquer disposição supra ou infra constitucional.
De facto, mesmo que se sustente que o requerimento de abertura da instrução concretiza o direito à tutela jurisdicional efectiva, vd. o artigo 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, posição que em tese acolhemos, daí não se segue, todavia, que o legislador não tenha definido, e no âmbito estrito da sua liberdade de conformação, o modo e as condições necessárias ao exercício da tutela jurisdicional efectiva”. Não é legítimo, do meu ponto de vista, considerar que, em relação ao sujeito processual arguido, o legislador lhe conferiu, passe a expressão “um cheque em branco”, ou sequer, e muito menos, sustentar que lhe conferiu um direito fundamental ilimitado.
De facto, o que a lei confere ao arguido é a possibilidade de, dentro dos limites e condições que estabelece, suscitar o controlo da decisão do Ministério Público. E não, ao invés, que tal possibilidade possa e deva ser actuada fora, à margem ou ao arrepio dos limites e condições pré-definidos pelo legislador.
Daí que, como sucede nesta situação, quando o requerimento de abertura de instrução se limita à simples contestação do despacho de acusação, trâmite da fase subsequente, facilmente se conclui então, que, ou inexiste objecto para comprovação pois que o que é definido no requerimento não se projecta sobre o inquérito (lato sensu) – é mera contestação (i), ou, então conclui-se que o objecto de comprovação se desloca para o conteúdo do requerimento de abertura de instrução e, então, é a contestação que irá ser apreciada (ii), o que, em qualquer dos casos, faz tábua rasa das finalidades legais da instrução, do momento de controlo que esta figura pois, ao fim e ao cabo, com requerimentos deste jaez tudo o que se passou no inquérito de onde brotou a decisão de acusar fica olvidado e controle algum poderá ser efectivamente exercido sobre tal decisão ou sobre o procedimento que a precedeu.

3. Decidindo,
Termos em que, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida C., artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Taxa de Justiça: 1 Uc.
Notifique e remeta à distribuição para julgamento.»

v
Conhecendo.
A instrução [[2]], que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A abertura da instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.

O objeto da instrução são os factos descritos na acusação – formulada pelo Ministério Público ou pelo assistente ou apresentados no requerimento deste último para abertura da instrução.

A fase processual da instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução – diligências de investigação e de recolha de provas que o juiz entenda levar a cabo – e por um debate instrutório, oral e contraditório, o qual visa permitir uma discussão, perante o juiz sobre se no decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.

Pode haver instrução sem atos de instrução – no sentido de diligências de investigação. Quem a requer não está obrigado a pretender a prática de tais atos e, ainda que assim não seja, o Juiz só realiza os que entende necessários. Nestas situações, a instrução reconduz-se ao debate instrutório e à decisão instrutória.

A instrução concretiza o princípio do contraditório, uma vez que nela tem o requerente [no caso, a Arguida] a possibilidade de contrariar os fundamentos, de facto ou de direito, que suportam a peça processual [no caso, a acusação do Ministério Público] que encerra fase do processo [a do inquérito] dominada por quem acusa.

E como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de fevereiro de 2005 [[3]], «o princípio do contraditório, em processo penal, por imposição constitucional e por via da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, significa que o arguido tem o direito de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, abrangendo todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição».

A instrução surge como uma fase intermédia, entre o inquérito e julgamento, dirigida por um juiz e pensada no interesse do arguido e do assistente.

Configurando direito disponível – dado o seu carácter facultativo –, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da atuação do Ministério Público.

Nas palavras de Souto de Moura [[4]], «O n.º 2 do art. 287.º, parece revelar a intenção do legislador de restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controlo judicial da opção do MP. Ora, se a instrução surge na economia do Código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados».

O requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos apenas a inadmissibilidade legal da instrução.

Trata-se de conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência[[5]] – e de que deriva a inutilidade da instrução.

Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:

i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];

ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,

iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP)e,

vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusa ção pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

E não pode o intérprete ou o julgador, distanciado de uma interpretação sistemática, criar novas causas de inadmissibilidade, para além daquelas que resultam diretamente da lei.

E será, agora, ocasião de regressar ao processo.

Acusada da prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código da Estrada, 348.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, C requereu a abertura da instrução.

Com o que pretende que prevaleça a sua versão dos acontecimentos – não era a condutora do veículo automóvel e não recusou realizar exame de pesquisa de álcool expirado –, de onde decorre não ter cometido o crime que lhe é imputado

Pretende, pois, a Arguida afastar totalmente a acusação que o Ministério Público lhe dirige, com base numa análise da prova existente nos autos que considera feita de forma incorreta – por não ter valorado a sua versão dos acontecimentos, corroborada pela filha, J, cuja inquirição requer.

É o que, sem grande esforço interpretativo, resulta do requerimento apresentado com vista à abertura da instrução.

E a proceder a sua pretensão, a Arguida evita o julgamento.

A decisão recorrida, para concluir que a Arguida não apresentou razões de discordância em relação à decisão do Ministério Público de a acusar, acabou por avaliar, de forma truncada, a bondade delas.

Pôs-se, como se costuma dizer, o “carro à frente dos bois”.

E desta alteração da ordem adequada das coisas acabou por se rotular o requerimento formulado pela Arguida de “totalmente imprestável” para a comprovação judicial prevista no n.º 1 do artigo 286.º do Código de Processo Penal, porque se avaliou, fora do contexto da instrução, a atividade do Ministério Público.

Diz-se na decisão recorrida que a Arguida «escamoteia a análise dos elementos que constam do inquérito. Furta-se a qualquer estocada sobre o inquérito e ignora (?) que o exame a que se submeteu foi o qualitativo, ao passo que o exame a que se recusou submeter é o quantitativo. E isto resulta do inquérito.

Logo, a discordância da arguida consiste apenas na contestação da veracidade dos factos narrados no despacho de acusação. E a testemunha que oferece foi igualmente ouvida no inquérito.»

O que se pede, neste caso, ao Juiz da Instrução e no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público.

A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.

Pelo que não ocorrendo situação de inadmissibilidade legal da instrução, não pode ser indeferido o requerimento destinado à abertura dessa fase processual.

E o recurso procede.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a instrução.

Sem tributação.

Évora, 05 de Fevereiro de 2013-02-04
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

(Ana Luisa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
(Maria Cristina Capelas Cerdeira)

__________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Fase processual regulamentada nos artigos 286.º a 310.º do Código de Processo Penal.

[3] Proferido no processo n.º 4740/2004, pelo Senhor Conselheiro Simas Santos – acessível em www.verbojurídico.com/jurisp_stj

[4] In “Jornadas de Direito Processual Penal”, pág. 119,

[5] Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005.