Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
342/21.1T8OLH-E.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
MULTA
DESTITUIÇÃO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - a notificação à Devedora e ao AI do despacho que intima o AI a promover os ulteriores termos do processo, no prazo de 10 dias, sob pena de eventual destituição do cargo configura a observância do princípio do contraditório;
- a designação de administrador substituto pelo juiz não depende de prévia indicação, pela assembleia de credores, de pessoa a nomear.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrentes: (…) Global, Lda. (Devedora)
e … (Administrador de Insolvência)

No âmbito do processo de insolvência em que figura como Devedora/Insolvente (…) Global, Lda., a 05/08/2021 foi proferido despacho determinando a notificação do Administrador da Insolvência (AI) para se pronunciar sobre a eventual liquidação ou o eventual encerramento do processo por insuficiência da massa, dada a não admissão do plano de insolvência.
Ao que o AI não procedeu.
A 27/10/2021, foi proferido despacho constatando a ausência de resposta, mais determinando a notificação do AI para dar cumprimento ao determinado, no prazo de 10 dias, sob pena de eventual condenação em multa nos termos do artigo 417.º do CPC e eventual destituição do cargo.
Do que foram notificados a Devedora e o AI.
O Credor Arrendatário (…) apresentou requerimento dando conta de que tem enviado os recibos de renda para o AI, de quem nada obteve, solicitando a entrega das chaves do imóvel.
Do que foi notificado o AI.
O Credor Banco (…), SA apresentou requerimento dando conta de que, não obstante ter interpelado o AI para se pronunciar quanto ao contrato de locação financeira que tem por objeto um veículo de marca Tesla, este nada disse. Requer, assim, que seja o AI notificado para se pronunciar acerca do cumprimento ou incumprimento do contrato de locação financeira.
Do que foi notificado o AI.


II – O Objeto do Recurso
Aludindo à conduta omissiva do Sr. Administrador da Insolvência, a 21/07/2022 foi proferido despacho apreciando os pressupostos da destituição e da condenação em multa, culminando na seguinte decisão:
«a) Condenar o Senhor Administrador da Insolvência, Sr. Dr. (…), em multa processual no valor correspondente a 3 UC, por violação do seu dever de colaboração;
b) Destituir com justa causa o Senhor Dr. (…) das funções de administrador da insolvência neste processo; e
c) Nomear para as funções de Administrador da Insolvência no processo o Senhor Dr. (…), em resultado do sorteio eletrónico operado pelo citius.»
Notificado do despacho, o AI apresentou-se a requerer o seguinte:
- a desconsideração do despacho de destituição;
- o encerramento do processo de insolvência ao abrigo do artigo 232.º do CIRE;
- a desconsideração da multa.
Invocou, para tanto, que tudo tentou para responder ao ordenado, sendo certo que o não fez porque não conseguiu, que não existem bens passíveis de serem apreendidos a favor da massa e que não foi possível ter acesso aos bens em leasing. Mais assumiu que, efetivamente, tem protelado dar informações ao processo, que tinha sido fácil ter requerido o encerramento do processo por insuficiência de bens, mas que não deixa de ser difícil para si aceitar que uma empresa que era saudável e economicamente viável seja liquidada, sem mais.
Inconformados, os Devedora/Insolvente e o Administrador da Insolvência apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida porquanto foi violado o disposto no artigo 56.º do CIRE, o que consubstancia uma nulidade, e implica violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC e do artigo 20.º, n.º 1, da CRP, o que consubstancia nulidade. Concluíram a alegação de recurso nos seguintes termos:
«A. Na sequência da notificação do despacho que decidiu pela destituição do Administrador de Insolvência nomeado, com justa causa, em virtude de, alegadamente, durante cerca de um ano, o referido não ter respondido às solicitações do Tribunal, pelo que não podiam os ora Recorrentes conformar-se, pelo que vêm apresentar recurso.
B. O Tribunal incumpriu o que vem estabelecido no artigo 56.º do CIRE, sobre a temática da destituição dos Administradores, designadamente porque não foram ouvidos os credores, a Insolvente e o próprio Administrador de Insolvência.
C. O Tribunal a quo destituiu o Administrador em causa, alegadamente, por justa causa, sem ter respeitar o procedimento legal que o legislador definiu para o mencionado ato, pois em momento algum proferiu despacho para que os Recorrentes fossem ouvidos sobre o tema, o que consubstancia uma violação grosseira da norma supratranscrita.
D. A norma espelha que o legislador tem considerado a figura do Administrador de Insolvência como um importante órgão no âmbito de um processo de Insolvência, e, por isso considera que, quer o Administrador, quer a Insolvente deverão pronunciar-se sobre uma eventual destituição com justa causa.
E. O Recorrente Administrador de Insolvência entende que a atuação desenvolvida no processo sempre respeitou todas as regras e princípios de direito e, concretamente, as normas aplicáveis ao processo de Insolvência, pelo que nunca poderia ter sido destituído, muito menos em manifesto desrespeito pelas normas que se aplicam ao caso em apreço, concretamente o artigo 56.º do CIRE.
F. Resulta do processo que em momento algum foram os ora Recorrentes notificados para se pronunciarem quanto à destituição do Administrador de Insolvência por justa causa, pelo que existe uma clara violação do disposto no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, o que consubstancia uma nulidade, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, porquanto a decisão tomada pelo Tribunal a quo influi no exame ou na decisão da causa, conforme se explicará adiante.
G. Sucede que no caso do Recorrente Administrador de Insolvência, para além de não se ter verificado o cumprimento da regra estabelecida no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, ocorreu também o desrespeito pelo princípio do contraditório, pois não foi concedida oportunidade de audição do mesmo para se pronunciar nos termos e para os efeitos da mencionada disposição legal.
H. O que vem reforçar a nulidade arguida, podendo até considerar-se que se trata de uma nova nulidade que tem origem na nulidade anterior – ou seja o não cumprimento da regra estabelecida no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE.
I. Por conseguinte, é patente que terá sido preterida uma formalidade legal, que poderia - caso tivesse sido observada – implicar uma decisão diferente por parte do Tribunal a quo, o que consubstancia a violação do disposto no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE, e que se traduz numa nulidade a sanar pelos Venerandos Desembargadores deste Tribunal.
J. A violação já identificada, no que respeita ao Administrador de Insolvência, trata-se de uma clara e evidente violação do princípio fundamental do exercício ao contraditório, plasmado no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, nomeadamente pelas consequências que a destituição acarreta para o ora Recorrente, o que, por sua vez, se traduz numa violação do direito a um processo equitativo, que decorre do artigo 20.º, n.º 4, da CRP.
K. Os Tribunais que têm o dever de aplicar os mencionados princípios e assegurar o cumprimento dos mesmos, pelo que não se compreende esta decisão surpresa que fora tomada pelo Tribunal a quo, onde não observou, nem fez cumprir preceitos fundamentais, tendo decidido questões essenciais ao processo judicial sem que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre elas.
L. Cabe ao juiz decidir sobre a existência de fundamentos para destituir o Administrador, independentemente do parecer da comissão de credores, do devedor e do próprio Administrador, não obstante não pode deixar de os ouvir.
M. No que respeita ao Administrador a violação desta regra implica a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP, no sentido em que coarta ao Administrador a possibilidade de defesa, como sucedeu ao aqui Recorrente.
N. Com a decisão de que ora se recorre, na qual não houve o prévio cumprimento do estipulado no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE – não audição de nenhuma das entidades referidas no preceito – foi cometida uma nulidade, prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, porquanto é inquestionável que esta omissão influiu na decisão e não permitiu ao Recorrente Administrador de Insolvência defender-se.
O. Neste sentido foram proferidas diversos acórdãos pelos Tribunais da Relação, já citados supra, portanto, é manifesto e unânime na jurisprudência que a violação da regra do artigo 56.º do CIRE, não só é uma violação grave, como significa um total desrespeito por tudo o que o legislador pretendeu salvaguardar com a redação do artigo, o que consubstancia uma nulidade, como no que respeita concretamente ao Administrador de Insolvência também significa uma violação do princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC e do artigo 20.º, n.º 1, da CRP, o que consubstancia uma nova nulidade.
P. Em consequência da declaração das nulidades operadas terá que se determinar a anulação daquela decisão e de todos os atos subsequentes à mesma, o que se requer.
Q. Assim, a sanação da mencionada situação é indispensável, porquanto, para além de configurar uma decisão injusta (no entender dos Recorrentes), implica, também, um registo e publicidade da destituição, uma afetação negativa pessoal que apenas deve ser publicitada quando efetivas, reais e ponderosas razões assim o exigirem para o Recorrente Administrador de Insolvência.
R. Ora, consta dos autos que nunca o Tribunal a quo notificou os Recorrentes, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 56.º, pelo que se impõe sanar esta nulidade.
S. Sem prescindir nem conceder, e pese embora uma vez anulada a decisão que destituiu o Recorrente das funções de Administradora, por ser nula, seja inútil a apreciação da pertinência dos fundamentos em que se baseou a destituição, não poderão os Recorrentes deixar de pronunciar-se sobre a ilicitude da designação de novo Administrador.
T. O n.º 2 do artigo 56.º do CIRE estipula que “deverá ser designada como substituto a pessoa que para o efeito tenha sido eventualmente indicada pela assembleia de credores, mediante deliberação aprovada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.”
U. In casu, mais uma vez o Tribunal a quo não cumpriu o preceituado no n.º 2 do artigo 56.º do CIRE quanto à nova designação do Administrador, o que não espanta os Recorrentes, porquanto parece existir um total desconhecimento da existência do mencionado artigo, que foi desrespeitado in totum pelo Tribunal.
V. Portanto, a nomeação através do sistema de sorteio eletrónico padece de ilegalidade por frontal incumprimento do que se encontrava estabelecido na supramencionada norma jurídica, e, consequentemente também terá que ser dada sem efeito.
W. Assim, devia o Tribunal a quo ter, por sua iniciativa, agendado uma assembleia de credores para o efeito, na sequência da destituição.
X. Notoriamente não o fez, nem quis fazê-lo, assim como não quis cumprir a notificação de todos os sujeitos indicados no n.º 1 do artigo 56.º do CIRE e preferiu designar novo Administrador de Insolvência através do sistema de sorteio eletrónico.
Y. Novamente, no que respeita à nomeação do novo Administrador existe um total e completo desrespeito pelo preceituado, à semelhança do que sucedeu com a destituição, porquanto a nomeação trata-se de um ato praticado contra legem, devendo ser revogado in totum, porquanto só assim se assegurará o cumprimento das normas/princípios basilares do direito.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Tribunal a quo pronunciou-se no sentido da inexistência das apontadas nulidades uma vez que, tanto a Insolvente como o AI foram notificados, a 28/10/2021, do despacho que determinava que, no prazo de 10 dias, o AI desse seguimento ao processo, sob pena de eventual destituição do cargo, sendo que nenhum deles se pronunciou até à prolação da decisão, a 21/07/2022.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
- da nulidade por violação do disposto no artigo 56.º, n.º 1, do CIRE;
- da ilicitude da designação de novo administrador.


III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1 - Por sentença de 24.05.2021, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de (…) Global, Lda., tendo sido nomeado administrador da insolvência o Senhor Dr. (…), por indicação da Insolvente.
2 - Realizada a assembleia de credores, e por despacho de 05.08.2021, o Tribunal decidiu:
a) não decretar a suspensão da liquidação da massa insolvente e da partilha nos termos do artigo 206.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) cessar a administração da massa insolvente pela Devedora, ao abrigo do disposto no artigo 228.º, n.º 1, alínea e), do mesmo Código; e
c) determinar a imediata apreensão de todos os outros bens da Insolvente, nos termos do n.º 2 do citado artigo 228.º.
3 - Tal decisão foi objeto de recurso, sendo que foi fixado ao recurso efeito devolutivo.
4 - Tal decisão foi confirmada na íntegra por acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.11.2021, o qual transitou em julgado, em virtude de ter sido julgado inadmissível recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
5 - Na mesma decisão de 05.08.2021, o Tribunal determinou que: “Em face da não admissão do plano de insolvência, notifique o Senhor Administrador da Insolvência para, em face dos demais bens detidos pela Insolvente, se pronunciar sobre a sua eventual liquidação ou sobre o eventual encerramento do processo por insuficiência da massa”.
6 - O Senhor Administrador da Insolvência foi notificado desta decisão a 09.08.2021.
7 - Tendo decorrido dois meses sem que o Senhor Administrador da Insolvência cumprisse esta determinação, nem tivesse apresentado qualquer justificação para tal, e por despacho de 27.10.2021, o Tribunal ordenou que o Senhor Administrador da Insolvência desse cumprimento ao determinado, sob pena de eventual condenação em multa nos termos do artigo 417.º do Código de Processo Civil e eventual destituição do cargo.
8 - O Senhor Administrador da Insolvência foi notificado desta decisão a 28.10.2021.
9 - O Senhor Administrador da Insolvência não cumpriu a determinação do Tribunal e nada disse nos autos até ao momento.
10 - A 26.04.2022 e 19.07.2022 vieram dois credores da Insolvente informar os autos que não estavam a obter resposta do Senhor Administrador da Insolvência a solicitações que lhe haviam dirigido.
11 - O Senhor Administrador da Insolvência foi notificado de um de tais requerimentos, a 26.04.2022, e nada disse.
12 - O Senhor Administrador da Insolvência teve a sua última intervenção nos presentes autos a 16.07.2021.
Mais se alcança dos autos principais que foi decidido não nomear comissão de credores, em face da simplicidade da causa – cfr. decisão de 24/05/2021.

B – O Direito
Da nulidade por violação do disposto no artigo 56.º, n.º 1, do CIRE
Nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, do CIRE, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar existir justa causa.
Os Recorrentes sustentam que foi cometida nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC porquanto o administrador da insolvência foi destituído sem que tenha havido audição da comissão de credores, da devedora e do próprio administrador. Mais sustentam que tal conduta judiciária consubstancia violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC e no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, implicando em nova nulidade.
Ora, o regime das nulidades processuais com acolhimento no artigo 195.º do CPC determina que delas não cabe diretamente recurso. Detetada que seja o cometimento de nulidade, deve esta ser arguida perante o respetivo tribunal decisor, no prazo de 10 dias – artigos 199.º e 149.º do CPC. Só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que aprecie a arguição de nulidade, verificados que estejam os pressupostos para interposição do recurso, é que dessa decisão caberá recurso para o tribunal superior. A acolher-se a argumentação dos Recorrentes, estando em causa nulidades processuais, o recurso interposto não pode delas conhecer: o objeto de qualquer recurso não são nulidades processuais, mas antes decisões; o que se impugna é uma decisão e o que o tribunal ad quem aprecia, confirmando ou revogando, é essa mesma decisão; portanto, se se verificou uma nulidade no processo que decorreu no tribunal a quo, o tribunal ad quem só pode conhecer dela se e na medida em que a mesma se reflita num vício da decisão recorrida.[1]
Importa, assim, ponderar se, não tendo sido arguida a nulidade do despacho que destituiu o AI, interposto recurso da decisão com fundamento em ter sido postergado o princípio do contraditório, o objeto do recurso contenderá com a nulidade desta decisão, enfermando esta de nulidade por excesso de pronúncia – artigo 615.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4, do CPC.[2]
Neste caso, não obstante o vício processual apontado pelos Recorrentes consubstancie nulidade processual sujeita ao regime inserto nos artigos 195.º e seguintes do CPC[3], uma vez que se encontram cobertas por decisão judicial, acabam por a inquinar, ferindo-a de nulidade[4], pelo que legitimam que sejam esgrimidas em sede de recurso interposto dessa decisão.[5] «A violação da proibição da decisão-surpresa implica um vício da própria decisão-surpresa. A decisão-surpresa é, em si mesma, um vício processual que nada tem a ver com a tramitação processual e, por isso, com as nulidades processuais. É uma nulidade de um ato processual, não uma nulidade (da tramitação) processual. A decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 666.º, n.º 1 e 685.º), porque o tribunal conhece de matéria que, nas condições em que o fez, não podia conhecer.»[6]
Apreciemos, então, se o despacho proferido enferma de nulidade por excesso de pronúncia por violação do princípio do contraditório.
O regime inserto no artigo 56.º, n.º 1, do CIRE consubstancia concretização do princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC. Nos termos desta disposição legal, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem
Como bem salientam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[7], o regime processual civil vigente não permite decisões-surpresa. «O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa.»
No plano das questões de direito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[8] apontam que «é expressamente proibida a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado (…). Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (…).»
Perante o princípio do contraditório assume relevância, para além do mais, a posição assumida pelas partes, devendo prevenir-se que sejam surpreendidas com decisões, designadamente de conhecimento oficioso, sobre as quais não tiveram oportunidade de alinhar argumentos, no seu entender, relevantes. Deve, pois, prevenir-se a tomada de decisão que surja desgarrada do teor daquilo que está em discussão, no concreto processo, que extravase o fundamento fáctico ou de direito sobre o qual as partes emitiram ou tiveram oportunidade de emitir pronúncia.
No caso em apreço, não tinha cabimento ouvir a comissão de credores porquanto tal entidade não foi nomeada, não se mostra constituída – cfr. artigo 66.º, n.º 2, do CIRE.
A Devedora e o próprio Administrador da Insolvência foram notificados do despacho que fez menção da ausência de resposta à intimação do Tribunal ao AI e determinou a notificação do AI para dar cumprimento ao determinado, no prazo de 10 dias, sob pena de eventual condenação em multa nos termos do artigo 417.º do CPC e eventual destituição do cargo. Decorridos cerca de 9 meses sobre tal despacho, nem a Devedora nem o AI se pronunciaram, nem sequer o AI diligenciou pelos ulteriores termos do processo, como se impunha.
Afigura-se, assim, que a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância não constitui uma decisão-surpresa. O princípio do contraditório foi observado ao dar-se conta, quer à Devedora quer ao AI, que estava a ser equacionado determinar a destituição do AI do seu cargo por não promover os trâmites processuais devidos. A destituição não foi determinada sem se ter dado oportunidade de pronúncia quer à Devedora quer ao AI.
Termos em que se conclui não ter o Tribunal de 1.ª Instância incorrido na violação do princípio do contraditório consagrado no artigo 56.º, n.º 1, do CIRE.

Da ilicitude da designação de novo administrador
Na ótica dos Recorrentes, a designação do novo administrador reveste-se de ilicitude por inobservância do disposto no artigo 56.º, n.º 2, do CIRE, porquanto não se diligenciou pelo agendamento de uma assembleia de credores para indicar o novo administrador, revelando um total desconhecimento da norma legal.
Não lhes assiste razão.
A norma legal – o n.º 2 do artigo 56.º do CIRE – há de ser interpretada não desconsiderando qualquer um dos respetivos vocábulos: salvo o disposto no n.º 3 do artigo 53.º, deverá ser designada como substituto a pessoa que para o efeito tenha sido eventualmente indicada pela assembleia de credores, mediante deliberação aprovada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.
A indicação pela assembleia de credores para efeitos de nomeação do administrador da insolvência é eventual, o que vale por dizer casual, fortuita, possível mas incerta.[9] Tal indicação, a ter lugar, constará de deliberação aprovada nos termos do n.º 1 do artigo 53.º: trata-se, assim, da iniciativa dos credores que, reunidos em assembleia de credores, após a designação do administrador da insolvência (nos termos do disposto no artigo 52.º, n.º 1, do CIRE, a nomeação do administrador da insolvência é da competência do juiz), promovem a eleição de outra pessoa para exercer o cargo, inscrita ou não na lista oficial, provendo ainda sobre a remuneração respetiva. É nestes precisos termos que poderá, eventualmente, a assembleia de credores indicar pessoa para substituir o administrador destituído.
Nas palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda[10], «(…) tendo sempre em vista os interesses em causa, quando possível, a nova nomeação deve acompanhar a destituição.
Entretanto, o substituto é designado de acordo com os critérios do artigo 52.º, sem prejuízo do que consta do n.º 2 do artigo em anotação.
Pode suceder, com efeito, que, em deliberação anterior, a assembleia tenha já procedido à designação de que, em caso de necessidade, deva substituir o destituído. Nesse caso, o juiz deve conformar-se com a decisão, salvo ocorrendo as circunstâncias do n.º 3 do artigo 53.º.
Quando isso não tenha acontecido, e dado o regime acolhido na nova redação do n.º 1 do artigo 53.º (…), a assembleia pode agora, a todo o tempo – na primeira reunião que se siga à destituição ou noutra posterior – proceder à mudança do administrador substituto, nos termos que ali se acolhem.»
Improcedem, assim, integralmente os fundamentos do presente recurso.

As custas recaem sobre os Recorrentes – artigo 527.º do CPC.

Concluindo: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

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Évora, 12 de janeiro de 2023
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite

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[1] MTS comentário no blog ippc ao Ac. RG 6/12/2018 (45/17.1T8MAC.G2)
[2] MTS, blogippc.blogspot.pt, “Dispensa da audiência prévia e observância do dever de consulta”; Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, pág. 25. Cfr. ainda Ac. TRE de 10/04/2014 (Maria Alexandra Santos).
[3] Neste sentido, entre muitos outros, Ac. TRL de 15/05/2014).
[4] Cfr. Ac. STJ de 22/02/2017.
[5] Cfr. Acs. entre outros, TRL de 11/01/2011, STJ de 13/01/2005, TRP de 18/06/2007, TRE de 10/04/2014.
[6] MTS, CPC online, artigo 3.º, 9.
[7] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I vol., 2013, pág. 27.
[8] CPC Anotado, vol. 1.º, 3.º edição, pág. 9.
[9] Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021
https://dicionario.priberam.org/eventuais [consultado em 29-11-2022].
[10] In CIRE Anotado, 3.ª edição, pág. 336.