Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
75/14.5GAORQ-A.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL COLECTIVO
Data do Acordão: 05/22/2019
Votação: DECISÃO DO RELATOR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DEFERIDA A COMPETÊNCIA
Sumário:
I – Comunicando-se em sede de julgamento, após produção de alguma da prova, uma nova qualificação jurídica para os factos da acusação, com um acréscimo de crimes imputados ao arguido, de que resulta a incompetência funcional do tribunal singular, e perante a manifestação expressa do Ministério Público em não fazer uso da faculdade prevista no n.º3 do artigo 16.º do CPP, a competência para o julgamento passa a ser do tribunal coletivo.
Decisão Texto Integral:
A Meritíssima Juíza do Juízo de competência genérica de Ourique, da Comarca de Beja, veio suscitar a resolução do conflito negativo de competência surgido no âmbito do processo comum singular n.º75/14.5GAORQ em que é arguido FF, porquanto, quer o tribunal coletivo (Juízo Central Criminal de Beja – Juiz 1), quer o tribunal singular (Juízo de competência genérica de Ourique), declinaram a sua competência material para a realização do julgamento no âmbito dos referidos autos.

Foi cumprido o disposto no art.º 36.º do Código de Processo Penal.

A Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, depois de ter requerido a instrução do incidente com elementos que considerou pertinentes para a boa decisão do conflito suscitado, emitiu o douto Parecer que antecede, no sentido de que o presente conflito deve ser resolvido atribuindo-se a competência para a realização do julgamento ao Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 1.

Não se torna necessário recolher outras informações e provas.

Cumpre decidir.

Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente a quem deferir a competência para o julgamento do processo em causa, que já se arrasta desde 16 de Novembro de 2017.

Dos elementos juntos aos autos incidentais resultam assentes os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir:

- O Ministério Público deduziu acusação e, fazendo uso do disposto no artigo 16.º, n.º3 do CPP, requereu o julgamento do arguido, em processo comum e por tribunal singular, imputando-lhe a prática, em autoria material, de 1 (um) crime de coação sexual, previsto e punível pelo artigo 163.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e de 1 (um) crime de fraude sexual, previsto e punido pelo artigo 167.º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma.

- No Juízo de competência genérica de Ourique foi recebida a acusação e designada data para julgamento perante o tribunal singular.

- Na data designada para a realização da audiência, o senhor juiz, após a abertura da audiência e depois de tomar declarações ao arguido e o assistente, proferiu o seguinte despacho:

Vem o arguido FF acusado, em autoria material e na forma consumada, e em concurso efectivo, por um crime de coacção sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e de um crime de fraude sexual, previsto e punido pelo artigo 167.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo código.

Ora, analisando a acusação de fls. 473 a 484, resulta o seguinte:

- Que os factos descritos sob os pontos 28.º a 31.º da acusação são susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação, previsto e punido nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

- Que os factos descritos sob os pontos 33.º da acusação são susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação, previsto e punido nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

- Que os factos descritos sob os pontos 34.º da acusação são susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação, previsto e punido nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

- Que os factos descritos sob os pontos 35.º da acusação são susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação, previsto e punido nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

- Que os factos descritos sob os pontos 36.º da acusação são susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação, previsto e punido nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal;

Acresce que tendo sido iniciada a produção de prova em audiência de julgamento, o arguido optou por prestar declarações, tendo admitido – ainda que sob reserva – alguns destes factos descritos nos pontos da acusação aqui mencionados, designadamente, que o ofendido praticou em si próprio os actos descritos nestes pontos da acusação por receio de serem divulgadas fotografias e vídeos em que o mesmo aparecia a praticar determinados actos sexuais, ameaça feito pelo próprio arguido.

Por sua vez, o assistente PP, alegada vítima dos factos descritos na acusação, no depoimento que prestou também referiu ter praticado em si próprio os actos descritos nos pontos da acusação acima mencionados por receio de o arguido divulgar as fotografias e vídeos em que o ofendido aparecia a praticar determinados actos sexuais, tendo inclusivamente sofrido com os actos que praticou em si próprio e que não os faria em circunstâncias normais, apenas os tendo praticado por receio de serem divulgadas na internet determinadas fotografias e vídeos da sua intimidade.

Ora, verifica-se assim que, de acordo com os factos descritos na acusação, da sua leitura e em conjugação com a prova produzida até ao momento nesta audiência de julgamento, resulta a prática de factos susceptiveis de configurar a prática, não só dos crimes imputados na acusação (coacção sexual e fraude sexual), mas também de pelo menos cinco crimes de violação, nos termos do art. 164.º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

Assim sendo, uma vez que todos estes factos são susceptiveis de configurar a prática do crime de violação, poderá estar aqui em causa uma relação de concurso efectivo com os crimes de coacção sexual e de fraude sexual por força do carácter eminentemente pessoal do bem jurídico em causa – o da liberdade da determinação sexual – ainda que se trate da mesma vítima.

Ora, interessa agora aqui destacar um determinado aspecto face a esta alteração da qualificação jurídica dos factos que o Tribunal considera ter diante de si, que é o seguinte: o Ministério Público remeteu este processo para ser julgado por um Tribunal Singular, aplicando o disposto no art. 16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ou seja, estabelecendo que não deve ser aplicado ao arguido, em caso de condenação, uma pena de prisão superior a cinco anos, no pressuposto de que o arguido vem acusado pela prática de um crime de coacção sexual e de um crime de fraude sexual; portanto, não considerando que os factos descritos na acusação sejam integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violação. Em relação ao elemento subjectivo do crime de violação, importa referir que o facto descrito sob o ponto 40.º da acusação refere-se ao elemento subjectivo [do crime de coacção sexual] e o mesmo tanto vale para um crime de coacção sexual como para um crime de violação, atendendo que a diferença entre os dois crimes recai basicamente na natureza do acto sexual praticado: no crime de coacção sexual trata-se de um acto sexual de relevo; no crime de violação trata-se de um acto sexual de relevo qualificado, conforme descrito nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 164.º do Código Penal. Portanto o Tribunal considera que o elemento subjectivo descrito no ponto 40.º da acusação, da forma como está redigido, vale igualmente para os crimes de violação.

Em suma, da acusação e da prova produzida até ao momento na audiência de julgamento resulta que vêm descritos factos que são susceptiveis de configurar a prática de mais cinco crimes de violação.

Interessa ainda destacar o seguinte aspecto: é certo que o art. 358.º do Código de Processo Penal não dispõe de norma idêntica àquela que está prevista no art. 303.º, n.º 2 do mesmo código, no entanto a situação com que o Tribunal se depara é idêntica àquela que foi prevista pelo legislador nesta norma do n.º 2 do art. 303.º do CPP, ou seja, que o tribunal singular, no momento em que agora se depara com uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, não tem competência material para apreciar os factos susceptiveis de configurar a prática de um crime de violação. Isto porque o tribunal singular não pode apreciar crimes cujo limite máximo da moldura penal ultrapasse os cinco anos de prisão, nos termos do art. 16.º do CPP, contanto que o Ministério Público não recorra à aplicação do art. 16.º, n.º 3 do mesmo código.

Face ao exposto, impõe-se a este Tribunal remeter o processo novamente para o Ministério Público a fim de ponderar a aplicação ou não do art. 16.º, n.º 3 do CPP, tendo em conta que os factos descritos na acusação são suceptiveis de configurar, não só a prática de um crime de coacção sexual e de um crime de fraude sexual, mas também de cinco crimes de violação.

Trata-se, assim, de uma comunicação nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, ou seja, trata-se de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação que, no entanto, tem a particularidade de pôr em causa a competência material do tribunal singular.

Como tal, este Tribunal declara-se sem competência material para apreciar os factos susceptiveis de configurar a prática de crimes de violação, na ausência de uma prévia decisão do Ministério Público de aplicar aos presentes autos o art. 16.º, n.º 3 do CPP. Numa situação em que o tribunal mantivesse a sua competência material seria dado, obviamente, à defesa o prazo que requeresse para articular a sua estratégia, mas tendo em conta que poderá estar aqui em causa uma alteração da competência material do tribunal singular para a apreciação destes factos, determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público a fim de ponderar a pertinência e a adequação da sujeição a julgamento destes factos a Tribunal Singular.
Notifique”
(…)”

- Deste despacho foi interposto recurso pelo arguido para o TRE, o qual, todavia, foi rejeitado nos termos dos artigos 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, por ter sido considerado manifestamente improcedente, conforme decorre da decisão sumária junta aos autos.

- Após baixa dos autos à 1.ª instância, o Ministério Público, discordando, embora, do entendimento do Mm.º juiz quanto à subsunção jurídica dos factos (por entender que os factos são susceptíveis de configurar a prática não só os crimes de que o arguido vinha acusado, mas também de, pelo menos, mais cinco crimes de coacção sexual, previstos e punidos pelo artigo 163.º, n.º1 e 2 do Código Penal, ao invés dos cinco crimes de violação considerados pelo douto Tribunal “a quo”) considerou que a gravidade dos crimes em concurso não se coadunava com a opção pela aplicação do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

- Na decorrência do que antecede, a Mm.ª juíza de Ourique determinou que o processo fosse remetido ao Juízo Central Cível e Criminal de Beja para distribuição.

Neste Juízo Central Criminal, precedendo promoção do Ministério Público, no sentido de designação de data para julgamento, a senhora juíza a quem o processo foi distribuído proferiu em 30-10-2018 o seguinte despacho:

Competência do Tribunal Coletivo Foram os presentes autos remetidos a este Juízo Central Criminal e Cível para realização de audiência de julgamento.

Do processado anterior resulta o seguinte, com interesse para a apreciação da competência funcional do Tribunal Coletivo:

(i) Em 12/01/2017, foi deduzida acusação pública contra o Arguido FF pela prática, em concurso efetivo, de um crime decoação sexual, p. e p. pelo artigo 163.º n.ºs 1 e 2, do Código Penal, e de um crime de fraude sexual, p. e p. pelo artigo 167.º n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, para julgamento perante o Tribunal Singular, ao abrigo do n.º 3 do artigo 16.º, do Código de Processo Penal (cfr. fls. 473 a 485);

(ii) (ii) Em 7/09/2017, na sequência da distribuição do processo no Juízo de Competência Genérica de Ourique, foi proferido despacho de recebimento da acusação e de admissão do pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente PP, tendo sido designada data para a realização de audiência de julgamento (cfr. fls. 529 e 530);

(iii) (iii) Iniciada a audiência de julgamento e produção de prova, em 16/11/2017, o Tribunal proferiu o despacho a fls. 551 e 552 a dar conta de que da análise do libelo acusatório conjugada com a prova produzida, até àquele momento, resulta que o Arguido está comprometido com a prática, não só dos dois crimes descritos na acusação, mas também de, pelo menos, cinco crimes de violação, p. e p. pelos artigo 164.º n.º 1, alínea b), do Código Penal, o que configura uma alteração da qualificação jurídica que poderá acarretar a incompetência do Tribunal Singular para o julgamento, caso o Ministério Pública decida pela não aplicação do n.º 3 do artigo 16.º do C.P.P.. Conclui pela remessa dos autos ao Ministério Público a fim de ponderar a sujeição a julgamento dos factos que sustentam os referidos crimes de violação a Tribunal Singular;

(iv) (iv) Veio o Arguido interpor decurso dessa decisão, insurgindo-se contra a alteração da qualificação jurídica comunicada em julgamento (cfr. fls. 554 a 559); (v) Por decisão sumária, proferida em 4/05/2018, o Tribunal da Relação de Évora decidiu rejeitar o recurso interposto pelo Arguido, por manifesta improcedência, sustentando tal decisão nas seguintes premissas:

(…) no despacho recorrido não se afirma que o Arguido cometeu, para além dos crimes que lhe são imputados na acusação, mais cinco crimes de violação. Essa conclusão apenas é possível no fim do julgamento e em sede de sentença. No despacho recorrido, o Senhor Juiz limitou-se a aventar essa possibilidade e a tomar as medidas que entendeu adequadas a não inviabilizar a eventual afirmação dos referidos crimes de violação. Ou seja, não ocorreu, ainda, (i) a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao Recorrente na acusação formulada nos autos pelo Ministério Público, (ii) a declaração de incompetência do Tribunal Singular para a realização do julgamento, (iii) a afirmação da prática, pelo Arguido, de qualquer crime. E sendo estes os fundamentos do recurso interposto nos autos, com o propósito de revogação da decisão judicial que convida o MP a dizer se mantém o 16º e do CPP, Posto isto, é manifesta a sua improcedência. Pelo que se impõe a rejeição do recurso, em conformidade com o disposto artigos 417º, n.º 6, alínea b) e 420º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal]. Resta deixar expresso que a esta conclusão não obsta o despacho de admissão do recurso em 1.ª Instância, que não vincula este Tribunal da Relação, conforme resulta do disposto no n.º 3 do artigo 414.º do Código de Processo Penal (cfr. fls. 599);

(v) Na sequência da baixa do processo, foi o mesmo remetido ao Ministério Público que promoveu a remessa do mesmo para julgamento em Tribunal Coletivo, uma vez que não aplicaria o instituto consagrado no n.º 3 do artigo 16.º do C.P.P. (cfr. fls. 607 e 609);

(vi) (vii) Por despacho proferido em 4/10/2018, foi determinada a remessa dos autos à distribuição pelos Juízos Centrais Criminais e Cíveis de Beja.
*
Na senda do entendimento plasmado na decisão sumária do Tribunal da Relação de Évora, que rejeitou o recurso interposto pelo Arguido do despacho proferido em ata a fls. 551 e 552, até àquele momento, o Tribunal de primeira instância apenas aventara a possibilidade de uma eventual e futura comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação.

Como tal, e salvo o devido respeito por opinião contrária, após a tomada de posição pelo Ministério Público, impunha-se a prolação de despacho de comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, com o formalismo previsto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do C.P.P., e de declaração de incompetência do Tribunal Singular para a realização do julgamento, o que não veio a suceder, após a baixa do processo ao Juízo de Competência Genérica de Ourique.

Na verdade, a decisão sumária do Tribunal da Relação de Évora assenta no pressuposto de que o Arguido apenas poderá sindicar uma eventual alteração da qualificação jurídica e declaração de incompetência do Tribunal Singular após prolação dessas decisões com respeito pelo formalismo legal.

Nenhuma decisão foi proferida, posteriormente, a esse respeito, nem de comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, nem de declaração de incompetência do Tribunal Singular, suscetível de sindicância pelos demais intervenientes processuais, pelo que não se encontram reunidos os pressupostos para afirmar a competência deste Juízo Central Criminal para julgamento.
*
Por todo o exposto, por ser tempestivo o conhecimento da incompetência, declaro este Juízo Central Criminal e Cível funcionalmente incompetente para a realização de julgamento e, em consequência, determino a remessa dos autos ao Juízo de Competência Genérica de Ourique, ao abrigo do disposto nos artigos 32.º n.º 1e 33.º n.º 1, C.P.P..

Notifique.
(…)

- Devolvidos os autos ao juízo local remetente e por razões que se desconhecem, pois os elementos que servem de suporte ao conflito não o elucidam, os autos foram conclusos em 14 de Janeiro de 2019 e despachados por Juiz do Juízo de competência genérica de Reguengos de Monsaraz nos termos seguintes:

No despacho proferido na audiência de julgamento do dia 16/11/2017, o Tribunal não aventou “a possibilidade de uma eventual e futura comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação”. O Tribunal procedeu, efectivamente, à comunicação de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação; tivemos inclusivamente o cuidado de referir expressamente no antepenúltimo parágrafo do despacho que o mesmo consistia na comunicação prevista no art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal:

“Trata-se, assim, de uma comunicação nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, ou seja, trata-se de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação que, no entanto, tem a particularidade de pôr em causa a competência material do tribunal singular” (sublinhado nosso – salientando, naturalmente, o facto de esta alteração da qualificação jurídica dos factos implicar a perda da competência material do Tribunal para prosseguir o julgamento).

Deve ainda acrescentar-se que, tendo este Tribunal declarado, por despacho transitado em julgado, não ter competência material para o julgamento dos factos descritos na acusação, e tendo o Ministério Público, nessa sequência, decidido remeter os “autos para julgamento em Tribunal Colectivo, nos termos e para efeitos do artigo 14.º do Código de Processo Penal” (fls. 609), cremos, salvo melhor opinião, que o Juízo de Competência Genérica de Ourique não poderá presidir a qualquer sessão de julgamento neste processo sem incorrer numa manifesta nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal (art. 119.º, al. e) do CPP).

Feito este esclarecimento, e considerando que não compete ao ora signatário tramitar os processos do Juízo de Competência Genérica de Ourique, nada há aqui a determinar pelo signatário.

Remete-se o processo ao Juízo de Competência Genérica de Ourique.”
- Em 28 de Janeiro de 2019, o Ministério Publico, emitiu parecer, dizendo, em resumo, que foi proferida decisão no sentido de se verificar uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido e que o Mm.º juiz do juízo de competência genérica de Ourique declarou-se incompetente em razão da matéria para o julgamento dos factos à luz do novo enquadramento jurídico, pelo que o Juízo de Competência Genérica de Ourique não poderá realizar audiência de discussão e julgamento neste processo sem incorrer numa manifesta nulidade insanável por violação das regras de competência do tribunal - cfr. artigo. 119.º, al. e), do Código de Processo Penal.

- Por fim, em 6 de Março de 2019, foi proferido sob a referência 30198588 o despacho a suscitar a resolução do conflito negativo de competência.

- As decisões transitaram em julgado.

Apreciando:

Está em causa decidir se a competência material para a realização do julgamento no processo em causa deve atribuir-se ao tribunal singular, como requereu o Ministério Público na acusação, ou ao tribunal coletivo, como decidiu o juízo local de competência genérica de Ourique, face à anunciada requalificação jurídica dos factos da acusação que operou.

No essencial as decisões em confronto consubstanciam: uma, que alterando a qualificação dos factos da acusação, concluiu pela sua incompetência funcional; outra que, por entender que nenhuma decisão foi proferida, posteriormente à rejeição do recurso interposto pelo arguido, nem de comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, nem de declaração de incompetência do Tribunal Singular, suscetível de sindicância pelos demais intervenientes processuais, considerou não se encontrarem reunidos os pressupostos para afirmar a competência do Juízo Central Criminal para julgamento, concluindo pela sua própria incompetência funcional.

A competência em razão da matéria pode ser conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final, o que se compreende, pois a violação das regras da competência do tribunal, em razão da matéria, constitui nulidade insanável (cf. art. 32.º, n.º1 e 119.º, al. e), do CPP).

O Meritíssimo Juiz do Juízo de competência genérica de Ourique, em sede de julgamento e após produção de alguma da prova (a audição do arguido e do assistente coenvolvidos na prática dos factos, comunicou à acusação e à defesa uma nova requalificação jurídica dos factos da acusação, o que não desrespeita o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no DR, Série I, n.º 138, de 19-07-2013, onde se decidiu que “ A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art.º 358º nºs 1 e 3 do CPP”.

Como vem referido na fundamentação do referido aresto, por referência à posição aí manifestada pelo Ministério Público, “Ora, tendo em conta a inserção sistemática do preceito [o art.º 358º do CPP] no capítulo que define as regras e princípios que regulam a atividade da produção de prova, não se suscitam grandes dúvidas de que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do artigo 358.º n.º 3 do CPP foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após produção de prova.

Na verdade, a alteração da qualificação jurídica poderá ocorrer em duas situações: no decurso de uma alteração dos factos (não substancial); e no caso em que, não obstante os factos resultantes da prova produzida em julgamento serem coincidentes com os da acusação ou pronúncia, o tribunal discorda dessa qualificação jurídica.

Ora, considerando que o referido nº 3 é uma norma integrada no contexto global do mecanismo da “alteração não substancial dos factos”, prevista no artº 358º CPP, e que a alteração dos factos (n.º 1) só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, estabelecendo o nº 3 que aquele n.º 1 “é correspondentemente aplicável” à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente.

[…]
Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.

Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.”

Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimita os pode­res de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (cf., v.g., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/98, in www.tribunalconstitucional.pt).

Um processo penal como o nosso, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética (cf. art. 283.º do Código de Processo Penal), nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.

Esta matéria encontra-se regulada nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (CPP), que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis."
O n.º3 do artigo 358.º do CPP, aditado pela Lei n.º 59/98, veio tornar aplicável o mecanismo previsto para a alteração não substancial dos factos “quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

Por conseguinte, fora do circunstancialismo previsto nos aludidos artigos 358.º e 359.º do CPP não podem alterar-se os factos ou a qualificação jurídica descrita na acusação ou na pronúncia, se a houver. Esta alteração do objeto do processo não pode ser decretada sem audição dos demais sujeitos processuais. Ela está sujeita a prévia comunicação e deve ocorrer em audiência de julgamento (veja-se a situação descrita no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 518/98 que levou à prolação do Assento n.º 3/2000).

O arguido manifestou-se contra a anunciada alteração da qualificação jurídica e o Ministério Público ainda que discordando do novo enquadramento jurídico, que subsumiu a mais cinco crimes de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163.º, n.º1 e 2 do CP (e não mais cinco crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º1, al. a) e b) do CP, como decidido) entendeu que não era de fazer uso do artigo 16.º, n.º3 do CPP.

Não compete nesta sede discutir qual a qualificação jurídica mais adequada para os factos vertidos na acusação, pois, tal apenas poderá ser feita pelo tribunal competente para o julgamento na sentença, mas tão só decidir em face da nova qualificação jurídica aportada e ao não uso pelo Ministério Público da faculdade prevista no n.º3 do artigo 16.º do CPP, a quem deferir a competência para o julgamento. [1]

Reconhece-se o interesse do arguido em acautelar uma qualificação jurídica menos gravosa dos factos. Mas tal garantia não será alcançada no âmbito deste incidente. Basta ver as referidas flutuações acerca da diversa qualificação jurídica dos factos feita pelos juízes e Ministério Público para concluir que a certeza jurídica nesse campo só será atingida quando, após julgamento e produção de toda a prova, se fixar definitivamente a matéria de facto e perante ela se enquadrar a mesma juridicamente, com decisão transitada em julgado acerca dos factos e do direito.

Até lá, a única garantia que o arguido terá será a de conseguir uma definição do tribunal competente para o julgamento, sendo certo que o seu julgamento com a intervenção de um tribunal colegial até lhe trará um reforço das garantias de defesa.

Quer se entenda que os factos vertidos na acusação integram, para além dos crimes inicialmente imputados (coação e fraude sexual) mais 5 crimes de violação ou de coação sexual, em concurso efetivo, não temos dúvidas de que o julgamento é da competência do tribunal coletivo, de harmonia com o preceituado no artigo 14.º, n.º 2, al. b) do CPP e 134.º, al. a) da Nova Lei da Organização do Sistema Judiciário, uma vez que a pena máxima abstratamente aplicável, em cúmulo jurídico, é superior a 5 anos.

Assiste, por conseguinte, razão ao senhor juiz do juízo de competência genérica de Ourique, do Tribunal da Comarca de Beja, ao declarar materialmente incompetente o Tribunal Singular, como doutamente sustenta a Exma. Senhora Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal.

De harmonia com o preceituado no n.º1 do artigo 118.º da LOSJ “Compete aos juízos centrais criminais proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri.”

No caso, e de acordo com o que resulta do Mapa III, anexo ao Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, deverão os autos ser remetidos, sem mais delongas, ao Juízo Central Criminal de Beja, que é o territorialmente competente para a tramitação dos ulteriores termos do processo.

DECISÃO:

Em face do exposto, decido o presente conflito, deferindo a competência para o julgamento dos factos, com a qualificação jurídica aportada pelo Juízo de competência genérica de Ourique, ao tribunal coletivo com competência na área territorial de Ourique, no caso, o Juízo Central Criminal da comarca de Beja, Juiz 1, para onde os autos devem ser remetidos e respeitada a distribuição já aí efetuada.

Comunique aos juízos em conflito e notifique nos termos do art.º 36.º, n.º 3, do CPP, comunicando-se também ao Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Beja.

Sem tributação.

(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator, que assina eletronicamente)

Évora, 22 de Maio de 2019

Fernando Ribeiro Cardoso (Presidente da Secção Criminal)

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[1] - A convolação opera-se verdadeiramente com a decisão final.