Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
30/14.5GBODM.E1
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: BURLA
ILÍCITO MERAMENTE CIVIL
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Estão reunidos os elementos estruturais do crime de burla e os requisitos que deve determinar a intervenção do direito penal, porquanto:

- ab initio o arguido/recorrente teve a intenção de não realizar a sua prestação, entregando os bens;

– verifica-se um dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

- verifica-se uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

– há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

– há uma impossibilidade de se reparar o dano; e

– há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo comum nº30/14.5GBODM do Juízo de Competência Genérica de Odemira (juiz-1) do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, sob acusação deduzida pelo Ministério Público, os arguidos D. – UNIPESSOAL, Ldª, com o NIF… e sede no Edifício Malhoa Plaza, Avª José Malhoa, … em Lisboa e JJ, devidamente identificado nos autos, foram submetidos a julgamento perante tribunal singular, vindo por sentença proferida em 21-01-2019 a ser julgada procedente a acusação e em consequência a ser decidido o seguinte:

1. Condenar o arguido JJ, pela prática, em autoria material, de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à razão diária de 7,00 (sete) Euros.

2. Condenar a arguida D…Unipessoal, Lda., pela prática, em autoria material, de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à razão diária de 100,00 (cem) Euros.

Recurso.

Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido JJ, pugnando pela sua absolvição da prática daquele crime e pela revogação do despacho exarado na acta da sessão de julgamento que ocorreu em 14-01-2019, que o condenou em multa por ter falta e não ter justificado a sua falta, rematando a motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

«.- O recorrente criou em 2013 a sociedade D… que se dedicava ao comércio electrónico de artigos domésticos;

- Para tal efeito, a D… fazia publicidade comercial na empresa KuantoKusta, da Maia;

.- Só que esta sentiu-se lesada, acabou o negócio e apresentou queixa criminal contra a D… no Tribunal da Maia;

.- Em consequência desta atitude, a D… pôs termo ao negócio e não podia cumprir, apresentando-se à insolvência no Tribunal de Sintra, enquanto sugiram inúmeras queixas de lesados no Tribunal de Lisboa;

.- Mas, o Ministério Público nos Tribunais da Maia e de Lisboa mandou arquivar as aludidas queixas criminais, por tudo ser de natureza cível;

.- Na verdade, para haver burla, é necessária actuação com astucia, manha, aldrabice e não negócio organizado e funcional;

.- Logo, o recorrente não praticou, não esteve ligado e não beneficiou do negócio em questão, em que não podia haver sombras de burla;

.- E por não poder comparecer ao julgamento, requereu tempestivamente justificação para a sua falta, a qual era, e foi e só poderia ser absolutamente inconsequente.

Nestes termos, o recorrente espera e confia que V. Exas., Senhores Desembargadores, concedam provimento ao recurso, com a revogação da sua condenação em multa e por crime de burla, fazendo-se assim Justiça!».

Contra motivou o Ministério Público na 1ª Instância defendendo o acerto da sentença recorrida e do despacho impugnado, concluindo pela improcedência do recurso com a manutenção de ambas as decisões.

Nesta Relação a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta acompanha a argumentação expendida na resposta ao recurso, sendo também de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente com a consequente manutenção da sentença recorrida.

Observado o disposto no nº2 do art.417º, do CPP respondeu o arguido/recorrente reeditando no essencial a argumentação/entendimento por si expresso na peça recursiva.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.

Os poderes cognitivos deste Tribunal conformam-se à revisão da matéria de direito, quer por que também não se alega nem ex officio se vislumbra qualquer dos vícios elencados no nº2 do art.410º, do CPP, quer por que o recorrente também não impugnou a matéria de facto nos termos estatuídos no art.412º, nº3 e 4 do CPP, centrando a sua dissidência relativamente ao julgado em matéria de direito, assim demarcando o objecto do recurso (art.412º, nº1, do CPP), tendo-se por definitiva a decisão proferida na 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Nestes termos, e tendo em consideração que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação, as questões que delas emergem e que reclamam solução consistem em saber:

1.º Se deve ser revogado o despacho que sancionou o arguido/recorrente no pagamento de 2 Ucs por ter faltado à sessão de julgamento que ocorreu em 14-01-2019 (despacho exarado na respectiva acta – fls.455 verso e 456).

2.º Se a factualidade sedimentada na sentença recorrida tem aptidão ou não para integrar o crime de burla, pp. pelo art.217º, nº1 do Código Penal.

Examinemos pela ordem indicada as questões enunciadas.
1.ª Questão: Se deve ser revogado o despacho que sancionou o arguido/ recorrente no pagamento de 2Ucs por ter faltado à sessão de julgamento que ocorreu em 14-01-2019.

O despacho sob censura exarado nessa sessão é do seguinte teor:
«O arguido encontra-se regularmente notificado na morada do TIR (conferir fls.406 e 407, não compareceu, nem justificou até à data a sua falta, pelo que ao abrigo, do artigo 116º do CPP, se condena, o mesmo numa multa de 2 UCs».

Liminarmente importa desde logo esclarecer, que o recorrente não aduz qualquer fundamento que invalide o despacho impugnado, limitando-se e manifestar o seu inconformismo com essa decisão.

Posto isto, também não vem posta em causa a regularidade da sua notificação para o acto.

Apesar disso e para dissipar alguma dúvida que subsista sobre a legalidade do despacho em causa sempre se dirá que a situação que emerge dos autos que o precedeu e relacionada com o assunto pode ser resumida da seguinte forma:

Em 10-01-2019 o arguido recorrente apresentou um requerimento, onde além do mais e para o que aqui ora releva pediu que fosse dispensado de comparecer ao julgamento, por não poder vir a pé e não ter meios económicos para pagar a quem o conduza para o tribunal, tal como para pagar a deslocação do seu mandatário (cfr.446 verso).

Essa pretensão foi indeferida por falta de fundamento legal pelo despacho exarado em 10-01-2018 (fls.449 verso) que é do seguinte teor:

«Quanto à requerida dispensa de comparecimento no julgamento, é sabido que a presença do arguido em julgamento corresponde, não apenas a um direito do mesmo (cfr. artigo 61º, nº1, al.a) do Código de Processo Penal), mas também a um dever processual [cfr. artigo 61º, nº3, alínea a), 332º, nº1 e 333º, nº1 do Código de Processo Penal (e não civil como por mero e evidente lapso foi consignado)], sendo certo que, se necessário e se tal for requerido fundamentadamente pelo arguido, o tribunal proporcionará àquele as condições para a sua deslocação, nos termos previstos no art.332º, nº3 do Código de Processo Penal.

O arguido pode, nos termos do nº2 do artigo 334ºdo Código de Processo Penal requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência, caso se encontre praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave, ou residência no estrangeiro, sendo certo que, neste caso, apenas se determinará a deslocação do arguido ao tribunal caso a presença deste seja absolutamente indispensável (artigo 334º, nº3 do Código de Processo Penal).

No caso, nem o arguido lançou mão do expediente previsto no nº3 do artigo 332º do Código de Processo Penal, nem os fundamentos invocados se enquadram no nº2 do artigo 334º do mesmo diploma.

Em face do exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se a requerida dispensa de comparência do arguido à audiência de julgamento».

Sendo-lhe notificado na pessoa do seu Exmº Defensor o arguido não reagiu a este despacho.

Assim, não tendo sido dispensado de comparecer, como havia requerido, nem tendo posteriormente requerido ao tribunal que lhe fossem proporcionadas condições à sua deslocação, sendo que em momento algum fez prova da sua invocada carência económica, e não tendo posteriormente feito qualquer outra comunicação com vista à eventual justificação da sua ausência, estando regularmente notificado, tinha o dever de comparecer à audiência, pela que a sua ausência foi injustificada, impondo-se nos termos dos arts.116º e 117º do CPP sancioná-lo por isso, com foi, no mencionado despacho.

Por todo o exposto e sem mais desenvolvidas considerações por desnecessárias, não nos merece censura o despacho impugnado que, por isso mantemos.

2.º Questão: Se a factualidade sedimentada na sentença recorrida tem aptidão ou não para integrar o crime de burla, pp. pelo art.217º, nº1 do Código Penal.

Pretende o arguido/recorrente que os factos sedimentados na sentença recorrida não integram o crime de burla, como foi considerado na sentença recorrida, constituindo antes ilícito de natureza cível.

Vejamos.
Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. Factos provados.
Da audiência de julgamento, resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. A sociedade arguida D…, Unipessoal, Lda. é uma sociedade comercial por quotas, com o NIF…, com sede no Edifício Malhoa Plaza, na Avenida José Malhoa… Lisboa, e que tem por objecto social o «comércio online e em loja de equipamentos domésticos, som, imagem, electrodomésticos, informática, jogos e consolas, comunicações, impressão digital, artigos de marketing e publicidade, artigos de moda e seus acessórios, perfumes, artigos de papelaria, marroquinaria, artigos de bricolage e jardim, concepção e gestão de websites», o que faz desde, pelo menos, 10 de Agosto de 2011, data da sua constituição.

2. A gerência de facto da sociedade arguida esteve, sempre e, pelo menos, até que esta foi declarada insolvente e lhe foi nomeada um administrador judicial, a cargo do seu único sócio gerente, o arguido JJ

3. No exercício das respectivas funções de gerência, era o arguido JJ quem, efectivamente, dirigia a actividade da sociedade arguida e que recepcionava e processava os pedidos de encomendas dos clientes e utilizadores do site denominado www.electropt.com, detido e gerido por si.

4. Cabendo-lhe ainda a tarefa de, relativamente a essas encomendas, efectuar a remessa dos bens e assegurar a sua entrega aos clientes que os encomendaram e pagaram.

5. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 13 de Novembro de 2013, os arguidos D…, Unipessoal, Lda. e JJ colocaram no referido site vários anúncios para venda de electrodomésticos para o lar.

6. No dia 17 de Novembro de 2013, cerca das 17h25m, a partir da sua residência, sita em Foros da Pereirinha…, em Vila Nova de Milfontes, MS, fazendo uso do seu computador pessoal, acedeu ao referido site e, depois de aí se registar como utilizador, fez a encomenda de um forno eléctrico de marca Zanussi, modelo ZOB 22601 XK, pelo preço de 209,10 Euros e de uma placa a gás, de marca Zanussi, modelo ZGG 66424 XA, pelo preço de 151,29 Euros, tendo a encomenda assumido o n.º 4743, com a mesma data.

7. MS dirigiu-se, em seguida, pelas 19h09m, ao MB mais próximo da sua casa e efectuou o pagamento daqueles electrodomésticos, a que acresceu o IVA e os portes de envio, o que perfez a quantia total de 390,39 Euros.

8. Os referidos electrodomésticos seriam, após confirmação do pagamento, remetidos para a casa de MS.

9. MS efectuou o pagamento dos 390,39 Euros por MB, utilizando, para tanto, a Entidade “11473” e a referência de pagamento “887 474 343” que lhe haviam sido fornecidas.

10. Os 390,39 Euros foram, inicialmente, creditados na conta da CGD, com o NIB 0035 ----, de que é titular a entidade “IFTHENPAY”, que age, exclusivamente, como intermediária entre o utilizador do serviço de pagamento e o fornecedor dos bens para quem envia os fundos na sequência da execução da operação de pagamento.

11. Posteriormente, a entidade “IFTHENPAY” creditou os 390,39 Euros na conta do Barclays, com o NIB ----, de que é titular a arguida D…, Unipessoal, Lda., representada pelo sócio-gerente e também arguido, JJ.

12. Dessa forma, os arguidos receberam aquela quantia de 309,39 Euros e fizeram-na sua.

13. Sucede, contudo, que os arguidos nunca expediram os referidos eletrodomésticos.

14. MS, confiando que os arguidos lhe remeteriam o forno eléctrico e a placa a gás, efectuou o pagamento daqueles 390,39 Euros, o que não faria caso suspeitasse que aqueles não lhe remeteriam tais itens.

15. Até ao momento, os arguidos não diligenciaram pela regularização da referida compra e venda e não entregaram a MS os electrodomésticos, nem lhe devolveram os 390,39 Euros que esta lhes pagou.

16. Os arguidos pretenderam, a pretexto de efectuarem uma compra e venda, levar MS a efectuar o pagamento da dita quantia de 390,39 Euros, para dela se apropriarem, fazendo-a sua.

17. Nunca foi sua verdadeira intenção procederem à entrega do forno eléctrico e da placa a gás, embora tenham feito crer a MS que o fariam.

18. Os arguidos actuaram com o propósito de obterem o pagamento de 390,39 Euros por parte de MS, fazendo-lhe crer que lhe remeteriam os electrodomésticos encomendados, o que nunca foi sua intenção, assim alcançando um benefício económico, com o correspondente prejuízo para aquela, que nunca recebeu os objectos que pretendia adquirir.

19. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei e, nem por isso, se abstiveram de a prosseguir.

Da contestação:
20. O processo n.º ---/14.9PYLSB veio a ser arquivado, por despacho de 21 de Junho de 2016.

Mais se provou que:
21. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
22. A sociedade arguida foi declarada insolvente, por sentença proferida a 19 de Maio de 2015, às 12h00m.

23. Consta do relatório social do arguido JJ que:
“(…)
Natural da Covilhã, o processo de socialização de JJ enquadrou-se num meio social de nível médio/baixo, sem registo de privações significativas de ordem económica e material. O sustento económico do agregado, composto pelos progenitores, arguido e um irmão mais novo, foi maioritariamente assegurado pelos rendimentos auferidos pelo pai, operário têxtil.

A dinâmica afectivo-relacional no seio familiar decorreu dentro de parâmetros adequados, havendo referências a vinculações significativas. De acordo com a informação apurada, os pais recorreram a um modelo de supervisão parental consonante com a transmissão de valores pró-sociais de cariz religioso/cristão, sendo o progenitor apontado como elemento disciplinador. Por sua vez, a mãe assumiu uma postura conotada com maior permissividade.

No plano escolar, JJ, após conclusão do primeiro ciclo, ingressou no curso comercial, o qual terminou com sucesso, tendo registado uma retenção causada por dificuldades na transição do respectivo ciclo de estudos.

No que diz respeito ao seu trajeto profissional, destaca-se o início de funções remuneradas na condição de trabalhador-estudante aos 16 anos de idade, como empregado de armazém e vendedor no sector têxtil.

Aos 23 anos constitui-se como empresário em regime societal com amigos, pese embora tenha procedido ao longo do seu trajeto, à transferência de setores funcionais de atividade, devido a flutuações no mercado e outros fatores estruturais e socioeconómicos. Deste modo, consolidou a sua atividade empresarial em áreas diversificadas, designadamente têxtil, comercialização de eletrodomésticos e metalomecânica/eletrónica. Salienta-se a assunção alternada de cargos dirigentes, tais como Diretor de Vendas, Diretor Geral, Sócio-Gerente e Administrador.

Porém, o surgimento de problemas de saúde de origem cardíaca bem como a sujeição a uma intervenção cirúrgica determinaram a atribuição de uma pensão de reforma por invalidez em 2003 e, consequentemente a suspensão temporária de funções executivas e/ou diretivas, até 2011, ano em que se assumiu como sócio-gerente da sociedade por quotas D…, Unipessoal Lda., igualmente coarguida no presente processo judicial.

Convém mencionar que no período compreendido entre 2003 e 2008, JJ investiu poupanças monetárias na criação/financiamento de uma empresa familiar – gerida pelo filho, dedicada à comercialização de artigos de decoração, entre outros produtos.

JJ contraiu matrimónio com a atual esposa aos 26 anos e tem dois descendentes, presentemente com 45 e 46 anos.
(…)
No período imediatamente precedente àquele a que reportam os alegados factos que compõem o actual processo judicial, JJ beneficiava de uma situação económica equilibrada e consistente, resultante do elevado volume de negócios detido pela empresa D…, Unipessoal Lda., a qual se destinava ao comércio online de eletrodomésticos. Ao rendimento próprio obtido na qualidade de sócio-gerente, acrescia a sua pensão de reforma, no valor de 1462 euros.

No entanto, em 2013 a mesma deparou-se com limitações financeiras, tendo-se então assistido à redução acentuada do respetivo provento. Em 2015 a empresa foi insolvida, sendo que o património (stock, viaturas e equipamentos de escritório) foi alvo de leilão público.

Refira-se que JJ atribui o eventual insucesso empresarial a fatores ou agentes externos, não identificando falhas de gestão na sua atuação individual enquanto gerente. Encontramo-nos perante um indivíduo que aparenta deter uma autoimagem favorável quanto ao seu percurso profissional e às suas competências de gestão.

À semelhança daquele período, o seu enquadramento familiar mantém-se inalterável porquanto reside com a esposa numa casa própria isenta de encargos fixos pelo facto de o crédito bancário se encontrar liquidado.

Apesar de o filho mais velho do casal se encontrar autonomizado, a filha encontra-se presentemente desempregada e apresenta problemas de saúde, tendo por isso passado a integrar o núcleo familiar do arguido, conjuntamente com a neta, presentemente com 9 anos de idade.

Atendendo ao agravamento do quadro económico, torna-se imperiosa a necessidade de contenção de custos e de gestão equilibrada do orçamento doméstico. Não obstante, os valores das pensões de reforma de ambos, num montante global de 1772 euros, revelam-se suficientes para fazer face aos encargos mensais existentes.

Por outro lado, JJ demonstra dificuldade em permanecer desocupado e presta informalmente serviços remunerados de consultadoria a antigos clientes/empresas, não tendo especificado o valor dos respetivos honorários.

Na dinâmica familiar perduram aspetos funcionais harmónicos, consubstanciados em laços que indiciam proximidade afetiva e solidariedade.

Os tempos livres do arguido são dedicados à família, privilegiando a realização de atividades recreativas com os três netos, as quais considera constituírem fonte de gratificação emocional.

No que alude a problemáticas de saúde, JJ encontra-se a aguardar uma nova cirurgia ao coração (angioplastia) e efetua terapêutica medicamentosa adequada.

Da articulação com a PSP, aferimos a existência de inúmeros processos judiciais associados ao envolvimento, entre maio de 2012 e março de 2014, em crimes de idêntica natureza – burla, dos quais se desvincula, sendo que apresentou comprovativos relativos a respetiva situação processual. Deste modo, os autos de inquérito foram arquivados por não terem sido reunidos indícios suficientes de prática criminal.
(…)

JJ destaca o efeito negativo da situação jurídico-penal no seu contexto vivencial, assinalando o desconforto emocional resultante do facto de se encontrar envolvido em processos judiciais.

Pese embora o arguido reconheça a existência de lesados, menciona que os atos alegadamente praticados não são consonantes com qualquer responsabilidade criminal ou obtenção de proveito próprio.

JJ mantém expectativa na absolvição e manifesta intenção de apresentar recurso, caso venha a ser condenado.
(…)
Do processo de socialização de JJ, destacam-se diversos fatores estruturantes, nomeadamente a aquisição precoce e manutenção de hábitos de trabalho consistentes, a exposição a padrões educativos securizantes e orientados por princípios pró-sociais. Por outro lado, as competências pessoais e sociais adquiridas permitiram-lhe a manutenção de um trajeto profissional gratificante bem como a assunção de cargos de direção.

No seu contexto vivencial atual, não obstante as atuais limitações económicas, o arguido não exerce funções diretivas, aparenta deter um papel de destaque junto de familiares e experiencia um quadro relacional e familiar harmonioso, aspetos que se poderão configurar como potencialmente dissuasores de comportamentos criminais futuros.

No processo judicial em referência, o arguido não se revê na acusação que sobre si impende, adotando uma postura desresponsabilizante face à alegada conduta criminal, o que em caso de condenação, poderá constituir variável de risco criminal.

Perante o atrás descrito, consideramos que JJ tem condições para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade sem necessidade de acompanhamento desta Direção-Geral.
(…)”.
2. Factos Não Provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa. Não se provou nomeadamente que:

1. A sociedade arguida D…, Unipessoal, Lda. adquiriu publicidade comercial da sociedade Paginadot – Sistemas de Informação, Lda., à qual pagava uma importância mensal, tendo as relações funcionado bem até Agosto de 2013.

2. A Paginadot – Sistemas de Informação, Lda. sentiu-se prejudicada pela D…, contra a qual apresentou imensas queixas, no processo n.º ---/14.5TAMAI, que correu termos pela 2.ª Secção do DIAP, Serviços do Ministério Público, do Tribunal Criminal da Maia, Comarca do Porto, acompanhada por outras pessoas ou entidades, que se queixavam de danos sem fim.

3. O mesmo aconteceu no processo n.º ---/14.9PYLSB.

4. Foi a KuantoKusta que, em Novembro de 2013, empurrou a D--- para a insolvência, fazendo-lhe passar as vendas da ordem dos 120.000,00 Euros mensais para 10.000,00 Euros mensais, pois, de 7 de Novembro a 29 de Novembro de 2013, as vendas passaram de 2.500.000,00 Euros para 42.564,63 Euros.

5. A D… não podia aumentar as receitas de exploração do seu negócio, ficando assim e apresentando-se à insolvência.

6. O arguido JJ foi prejudicado por uma actividade em que perdeu mais de 30.000,00 Euros».

A factualidade provada não deveria ter sido subsumida ao tipo legal do crime de burla?

Estatui o artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal:
«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa».

A verificação do tipo legal do crime de burla, pressupõe, portanto, a existência dos seguintes elementos típicos:

- A indução em erro ou engano de uma pessoa (o lesado e/ou burlado) sobre factos;

- O erro ou engano provocado com astúcia;

- Tendente a determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Com intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.

Na explicitação dos elementos constitutivos desse tipo legal de crime (burla) diz-se expressamente na sentença recorrida:

«Conforme salienta o Prof. ALMEIDA COSTA, A. M. (in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 275 e segs.) “(...) a burla recobre situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial”.

À semelhança do que sucede com o crime de furto, o bem jurídico aqui protegido corresponde ao património, globalmente considerado.

Trata-se de um crime comum, pois o agente do crime não necessita de possuir qualidades especiais, podendo ser cometido por qualquer pessoa.

Por outro lado, é um crime de dano, que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro e, nesse sentido é, ainda, um crime material ou de resultado. Não releva, para este efeito, o enriquecimento do agente criminoso.

No plano objectivo, basta o prejuízo patrimonial da vítima e, no subjectivo, requer-se uma intenção de enriquecimento que não carece de concretização objectiva (cfr. PALMA, Maria Fernanda e PEREIRA, Rui Carlos, in “O crime de burla no Código Penal de 1982-95”, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1994, vol. XXXV, pág. 323).

A respeito da concepção de património relevante para o crime em análise, têm sido colocadas dúvidas acerca da concepção de património, havendo quem sustente uma concepção jurídica, económica ou económico-jurídica.

A maioria dos autores propende para a concepção económico-jurídica, pois ao considerar o património como a globalidade dos bens economicamente valiosos que um indivíduo detém com a tutela do ordenamento jurídico, é a que melhor tutela a esfera patrimonial da vítima.

Afastam-se, desta forma, os subjectivismos da teoria jurídica, por demasiado ampla, e a eventual tutela de vantagens económicas ilícitas a que poderia levar a concepção económica de património.

A concepção económico-jurídica necessita, porém, de correctores. Assim, «(...) a via proposta remete, em suma, para um conceito jurídico-penal de património construído na base de uma casuística que, arrancando da citada teoria “económico-jurídica”, tende a circunscrever as posições merecedoras de tutela à luz da particular teleologia do direito criminal.”» (cfr. ALMEIDA COSTA, A. M., in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 282).

O crime de burla é, igualmente, um crime classificado como um delito de execução vinculada. Ou seja, a lesão do bem jurídico tutelado tem de resultar de uma particular actuação do agente. Esta consistirá na utilização de um meio ardiloso em ordem a induzir a vítima em erro, de forma praticar o acto de que resulta o prejuízo patrimonial.

Verifica-se, assim, que para a consumação deste crime importa uma participação da vítima, uma vez que é esta, que induzida em erro através da astúcia do agente pratica o acto adequado a causar-lhe o prejuízo patrimonial.

Em suma, como se diz na sentença recorrida citando PALMA, Maria Fernanda e PEREIRA, Rui Carlos, in “O crime de burla no Código Penal de 1982-95”, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1994, vol. XXXV, pág. 323), pode-se concluir que os elementos objectivos do crime de burla são os seguintes:

«a) Qualquer pessoa pode cometer o crime;
b) Requer-se o emprego de astúcia pelo agente;
c) O emprego da astúcia tem que induzir o erro ou engano da vítima;
d) O erro ou engano da vítima redundará, as mais das vezes, ainda que não necessariamente, na prática de actos pela vítima;
e) A prática de tais actos resultarão num prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro.

Desta forma, tratando-se de um crime de execução vinculada, para que haja consumação é necessário que se verifique um triplo nexo de imputação objectiva: i) entre a conduta astuciosa e o erro ou engano do sujeito passivo; ii) entre este erro ou engano e o cometimento de actos de diminuição patrimonial; e, iii) entre tais actos e o prejuízo patrimonial.

Existem autores que não se contentam com este triplo nexo de imputação objectiva, propondo um quádruplo nexo de causalidade: i) entre a conduta astuciosa e o erro ou engano; ii) entre o estado mental de erro ou engano do burlado e a alteração da sua capacidade volitiva; iii) entre este querer adulterado do sujeito passivo e a prática de actos de diminuição patrimonial; e, por fim, iv) entre tais actos e a ocorrência do próprio prejuízo patrimonial.

Outros autores perfilham um duplo nexo de imputação objectiva: i) o erro ou engano da vítima tem de ser causado pela astúcia do agente; e ii) os actos prejudiciais têm que ser determinados pelo erro ou engano (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/01/2006, proc. 0311081, Élia São Pedro, in www.dgsi.pt).

Por fim, trata-se de um crime doloso. Ou seja, não há lugar à punição por negligência. O dolo pode, nos termos do artigo 14.º do Código Penal, assumir as suas três formas, dolo directo, necessário ou eventual.

Ainda no campo dos elementos subjectivos do tipo, como acima se disse, associado ao dolo do tipo estará também a intenção do agente de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, intenção que não necessita, contudo de ser concretizada.

Isto posto, nos presentes autos resultou demonstrado, com pertinência para este efeito, que, em data não concretamente apurada, mas anterior a 13 de Novembro de 2013, os arguidos D…, Unipessoal, Lda. e JJ colocaram, no site www.electropt.com, vários anúncios para venda de electrodomésticos para o lar.

Mais se demonstrou que, no dia 17 de Novembro de 2013, cerca das 17h25m, a partir da sua residência, sita em Foros da Pereirinha…, em Vila Nova de Milfontes, MS, fazendo uso do seu computador pessoal, acedeu ao referido site e, depois de aí se registar como utilizador, fez a encomenda de um forno eléctrico de marca Zanussi, modelo ZOB 22601 XK, pelo preço de 209,10 Euros e de uma placa a gás, de marca Zanussi, modelo ZGG 66424 XA, pelo preço de 151,29 Euros, tendo a encomenda assumido o n.º 4743, com a mesma data.

MS dirigiu-se, em seguida, pelas 19h09m, ao MB mais próximo da sua casa e efectuou o pagamento daqueles electrodomésticos, a que acresceu o IVA e os portes de envio, o que perfez a quantia total de 390,39 Euros, sendo que os referidos electrodomésticos seriam, após confirmação do pagamento, remetidos para a casa de MS.

MS efectuou o pagamento dos 390,39 Euros por MB, utilizando, para tanto, a Entidade “11473” e a referência de pagamento “887 474 343” que lhe haviam sido fornecidas.

Os 390,39 Euros foram, inicialmente, creditados na conta da CGD, com o NIB ---, de que é titular a entidade “IFTHENPAY”, que age, exclusivamente, como intermediária entre o utilizador do serviço de pagamento e o fornecedor dos bens para quem envia os fundos na sequência da execução da operação de pagamento.

Posteriormente, a entidade “IFTHENPAY” creditou os 390,39 Euros na conta do Barclays, com o NIB ---, de que é titular a arguida D…, Unipessoal, Lda., representada pelo sócio-gerente e também arguido, JJ.

Provou-se, ainda, com relevância para o caso em apreço que os arguidos nunca expediram os referidos electrodomésticos e que MS, confiando que os arguidos lhe remeteriam o forno eléctrico e a placa a gás, efectuou o pagamento daqueles 390,39 Euros, o que não faria caso suspeitasse que aqueles não lhe remeteriam tais itens.

Finalmente, demonstrou-se também que, até ao momento, os arguidos não diligenciaram pela regularização da referida compra e venda e não entregaram a MS os electrodomésticos, nem lhe devolveram os 390,39 Euros que esta lhes pagou.

Ora, perante esta factualidade, não nos ficam dúvidas que os elementos do tipo objectivo do crime de burla se encontram preenchidos: a ofendida, nestes autos, foi vítima de um esquema ardiloso/astucioso (a promessa de compra e venda por via da internet) que a induziu em erro, na medida em que a realização da encomenda em causa levaram a ofendida MS a convencer-se de que receberia os objectos encomendados (nexo causal entre o esquema ardiloso e o erro); tal convencimento levou a ofendida a proceder ao pagamento da quantia de 390,39 Euros através de Multibanco, para o que a página da Internet onde haviam sido publicados os referidos anúncios geraram as respectivas referências de pagamento (nexo causal entre o erro e o acto da vítima); e, ao não receber os objectos encomendados e pagos, nem a devolução da quantia monetária paga, ficou a ofendida com um prejuízo patrimonial correspondente ao valor do pagamento realizado, ou seja, no valor de 390,39 Euros (nexo causal entre o acto da vítima e o prejuízo patrimonial da mesma).

Por outro lado, demonstrou-se também que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, não se abstendo de a concretizar, assim como também se provou que os arguidos pretenderam, a pretexto de efectuarem uma compra e venda, levar MS a efectuar o pagamento da dita quantia de 390,39 Euros, para dela se apropriarem, fazendo-a sua, nunca tendo sido sua verdadeira intenção procederem à entrega do forno eléctrico e da placa a gás, embora tenham feito crer a MS que o fariam.

E demonstrou-se ainda que os arguidos actuaram com o propósito de obterem o pagamento de 390,39 Euros por parte de MS, fazendo-lhe crer que lhe remeteriam os electrodomésticos encomendados, o que nunca foi sua intenção, assim alcançando um benefício económico, com o correspondente prejuízo para aquela, que nunca recebeu os objectos que pretendia adquirir.

Estamos, por conseguinte, perante uma conduta dolosa do arguido JJ, a título de dolo directo, tendo o mesmo agido orientado por uma intenção de obter, pelo menos, para a co-arguida D… e, na medida em que o mesmo era sócio-gerente único daquela sociedade arguida, de obter para si, um enriquecimento que representou ser ilegítimo, porquanto não era correspondido com a contraprestação prometida (traduzida nos bens encomendados pela ofendida através do site da Internet, www.electropt.com).

Encontram-se, por isso, também preenchidos os enunciados pressupostos do tipo subjectivo do crime de burla, não restando dúvidas que o mesmo se consumou.

Dir-se-á, no contexto da defesa apresentada pelo arguido JJ, que, sendo certo que os factos em apreço traduzem um incumprimento contratual, é também certo que tal incumprimento contratual, preenchendo os pressupostos objectivos e subjectivos previstos no tipo incriminador que lhe foi imputado, consubstancia a prática do referido crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal.

Ainda à luz dos factos dados como provados, verifica-se também que o arguido JJ teve o domínio da acção criminosa, isto é, que foi este arguido quem executou, por si próprio, os factos criminosos, agindo, por isso, como autor material da conduta criminosa (cfr. artigo 26.º, primeira parte, do Código Penal).

Agindo, contudo, o arguido JJ enquanto gerente da sociedade arguida D…, Unipessoal, Lda., importará atentar ao disposto no artigo 11.º do Código Penal, pelo qual:

“(…) 2. As pessoas colectivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas colectivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos (…) 217.º (…) , quando cometidos:

a) Em seu nome e no interesse colectivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança;
(…)
4. Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa colectiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua actividade.
(…)
7. A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.”.

Assim e considerando que o arguido JJ era o gerente de facto e de Direito da sociedade arguida D…, que foi em nome desta que o anúncio que foi publicado induziu a ofendida MS ao erro, que foi na conta bancária desta sociedade (ainda que gerida pelo co-arguido JJ) que a quantia monetária paga pela ofendida foi depositada (ainda que passando pela intermediária Ifthenpay), necessariamente se concluirá pelo preenchimento dos pressupostos decorrentes da alínea a) do n.º 2 e n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal, agindo o arguido JJ em nome e no interesse colectivo da sociedade arguida D…, Unipessoal, Lda..

Por conseguinte e considerando o disposto no n.º 7 do artigo 11.º do Código Penal, impõe-se condenar, a par do arguido JJ, a co-arguida D…, Unipessoal, Lda. pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal».

Merece a nossa inteira concordância as considerações expendidas pois caracterizam devidamente o crime de burla e os seus elementos constitutivos.

Acrescentamos ainda nós socorrendo-nos do Ac.STJ de 19-03-2009, proc.nº09P0392, disponível em www.dgsi.pt que consumação do crime exige, pois, o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular, com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro” (Cfr. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, págs. 276/277).

Por outro lado, como refere A. M. Almeida Costa (Ob cit pa.293 e ss), a «burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência (...) da utilização de um meio enganoso.

(....) Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial.

(...) A qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objectiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (art. 10.º, n.º 1 do CP)», sobre a base de uma prognose objectiva e posteriori, mediante o juízo atento de um observador objectivo que estabeleça se cabe contar com o resultado efectivamente produzido.

O engano determinante do prejuízo configura um dolo antecedente, causante e bastante.

«Antecedente porquanto tem que preceder e determinar o consequente prejuízo patrimonial, não sendo aptas para originar o delito de burla as hipóteses do denominado dolo subsequente”; causante, já que o engano deve achar-se ligado por um nexo causal com o prejuízo patrimonial, de tal forma que este haja sido gerado por ele; e bastante, no sentido da idoneidade do engano para viciar a vontade ou o consentimento concreto do sujeito passivo» (Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 07-06-2006, relatado pelo então Ex.mo Desembargador Gabriel Catarino, publicado em www.dgsi.pt).

O engano é o mais significativo dos elementos definidores da burla porque é ele que individualiza a burla das demais figuras jurídicas de enriquecimento ilícito.

No sentido semântico do termo, “engano” designa a acção e efeito de fazer crer a alguém, com palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade.

No quadro geral da nossa doutrina e jurisprudência, existe acção típica traduzida na conduta do agente do crime através de um processo enganatório astucioso em vista à manipulação psíquica do burlado quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo burlão factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com subtileza, sagacidade, engenho, habilidade, pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiros. (cfr.José António Barreiros, in Crimes Contra o Património, Ed. Universidade Lusíada, 1996, 148 e o Ac. do STJ de 20/03/2003, sumariado no Boletim Interno do STJ, n.º 69).

No que tange ao efectivo prejuízo patrimonial (do sujeito passivo ou de terceiro) deve o conceito ser delimitado por referência ao bem jurídico protegido no crime de burla.

A natureza do crime e os valores que protege apontam para um conceito específico jurídico-criminal de património (superando perspectivas estritamente económicas ou jurídicas), constituído pela globalidade das situações e posições com valor ou utilidade económica, detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cuja fruição não é desaprovada por essa mesma ordem jurídica, Vide Figueiredo Dias, Colectânea, Ano XVII – 1992, tomo III, pág. 68.

De modo sintético, o conceito abarca a totalidade dos bens (numa acepção ampla) economicamente valiosos, que um indivíduo detém com a aquiescência do ordenamento jurídico. (Figueiredo Dias, mesma obra, citando Cramer).

O “prejuízo patrimonial”, enquanto elemento do tipo objectivo da burla, tem de ser, pois, identificado como um conceito objectivo-individual de dano patrimonial, que traduza uma diminuição da posição económica efectiva do lesado em relação à posição em que se encontraria se não tivesse sido induzido em erro ou engano e realizado a conduta determinada por tal erro ou engano.

O prejuízo patrimonial relevante corresponde, assim, a um empobrecimento do lesado, que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão. A medida do empobrecimento efectivo será, deste modo, avaliada pela diferença patrimonial entre o “antes” e o “depois”, tendo como contraponto económico-material (e não típico nem jurídico) o enriquecimento, próprio ou de terceiro, procurado pelo agente do crime.

Com efeito, o crime de burla, como se disse já, constitui um delito de intenção em que o agente procura obter um enriquecimento ilegítimo” à custa de uma transferência de natureza de efeitos patrimoniais. Todavia, não obstante se exija que o agente actue com essa intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorre o prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro. …”.

Ora, os factos assentes na sentença recorrida, que atrás transcrevemos, sem margem para dúvidas que se subsumem ao tipo legal do referido crime de burla p. e p. pelo artigo 217º do Código Penal, pelo qual os arguidos foram condenados na sentença recorrida.

Ainda assim, e apesar do arguido/recorrente se limitar a afirmar, sem apoio de qualquer argumentação que lhe sirva de suporte, que no caso em apreciação se está perante uma mera situação de incumprimento contratual, a dirimir civilmente entre as partes, pela sua relevância, cita-se aqui o sumário do Ac. do STJ de 04-10-2007, proc.07P2599 de que foi relator Simas Santos), disponível in http://www.dgsi.pt/jstj sobre o critério a que se deve atender para se estabelecer a linha divisória entre a burla e o ilícito meramente civil.

Aí se diz a este propósito que “a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que o dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.

Há fraude penal:
- quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico;
- quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
- quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
- quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;
- quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;
- quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.

Nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal; mas pode também a fraude penal manifestar-se numa simples operação civil, quando esta não passa de engodo fraudulento usado para envolver e espoliar a vítima, com desprezo pelo princípio da boa fé, traduzindo-se num desvalor da acção que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.”.

Também no Ac. do STJ de 20.12.2006 (relator Santos Monteiro) disponível na mesma base de dados, se considerou que:

“O que verdadeiramente distingue o dolo civil do dolo criminal, na esteira de Chauveau e Hélie, ali citados, a págs. 275, é que no dolo civil se compreendem as manhas e artifícios que, embora, de per si, censuráveis, são no entanto empregados, menos com o intuito de prejudicar outrem, do que no interesse de quem faz uso deles.

É nessa categoria que se vem a integrar os actos mentirosos nos contratos, o exagero do preço ou das qualidades do objecto da venda.

A lei penal não atingiu essa imoralidade, por ser mais fácil a defesa contra ele e toda a tentativa de representação prejudicar a segurança das convenções.

O dolo criminal não se manifesta somente pela simulação, pela manha, pois na burla se procura enganar, enredar, prejudicar terceiros.

A astúcia, pressuposto de resto já consagrado no art.º148.º, do CP helvético, para configuração do crime de burla, com descritivo típico em tudo similar ao do nosso C.P actual, é algo que acresce à mentira, à dissimulação, ao silêncio, com carácter artificioso, reforçado habilmente com factos, atitudes e aproveitamento de circunstâncias que a tornem particularmente credível – nota 2, pág. 307.

A astúcia é um meio de enganar, com especial habilidade, direccionada ao aproveitamento ou mesmo criação de condições que lhe confiram particular credibilidade.

O embuste não tem que ser sofisticado, rebuscado, altamente engenhoso só apreensível por pessoas superiormente dotadas, deixando sem protecção, como intenta ver consagrado o arguido, o cidadão medianamente inteligente, pois o que se pretende é que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, seja idóneo a enganar a boa fé da vítima, de modo a convencê-la a praticar actos em seu prejuízo, limitando-se ao que se torna necessário ao seu objectivo. Esta a jurisprudência deste STJ, impressa, por, ex.º nos Acs. proferidos nos P.ºs n.ºs 3772/02 -5.ª Sec., de 8.2.2001, 2745 /01 -5.ª Sec. , CJ, STJ, Ano IX, I, 218 ”.

Com efeito, pese embora seja difícil estabelecer a linha divisória entre o ilícito civil, pois o dolo in contrahendo cível e a fraude constitutiva do crime de burla por haver entre ambas muitos pontos comuns, no caso vertente, salvo devido respeito por opinião diferente, entendemos que se encontram preenchidos todos os elementos estruturais desse crime, estando plenamente justificada a necessidade de aqui fazer intervir o direito penal.

No caso concreto, como é salientado com toda a propriedade na sentença recorrida “Relativamente à actuação livre e deliberada dos arguidos e à representação dos factos e à intencionalidade da acção dos mesmos (factos provados n.ºs 16 a 19), sendo certo que se trata de uma realidade interna do próprio arguido JJ e, nesse sentido, que não é passível de ser apreendida directamente – considerando-se aqui também que era aquele JJ quem, enquanto gerente e sócio único da sociedade arguida, determinava a vontade desta sociedade –, tal realidade infere-se do próprio modo de execução dos factos, conjugados com as regras da experiência comum, relevando aqui, enquanto pressupostos destas considerações, o período de tempo que foi decorrendo sem que à ofendida tivesse sido apresentada qualquer resposta às interpelações que a mesma procurava dirigir, por e’mail e telefone, à sociedade arguida; o próprio teor das respostas que foram dadas, ambíguas e sem nunca esclarecerem os motivos da não entrega dos produtos (verdadeiramente, à ofendida nunca ninguém esclareceu as razões da não entrega dos objectos encomendados); a própria dificuldade sentida pela ofendida em conseguir contactar com a sociedade arguida, notando-se que a mesma nunca conseguiu chegar à fala com o arguido JJ, mas apenas com uma funcionária que se encontrava de baixa médica e que remeteu qualquer acção para o próprio arguido João Saraiva – factores estes todos eles típicos de uma acção furtiva e fugidia dos agentes, após a recepção do dinheiro na sua conta bancária.

Aliás, sabendo o arguido JJ das dificuldades em dar resposta às encomendas que eram feitas (e as queixas foram múltiplas – cfr. fls. 189 a 272 e o testemunho de NB quanto aos motivos que levaram a “Ifthenpay” a cessar o contrato que haviam celebrado com a sociedade arguida –, não podendo as mesmas ser desconhecidas do arguido JJ), perante as regras da experiência comum, não se concebem aqui outras razões ou propósitos que justificassem que aquele arguido, por si e enquanto gerente da sociedade D…, tivesse mantido por vários meses e ao longo do tempo um anúncio, num site de comércio online, com oferta de produtos a preços reduzidos (neste sentido, foi o testemunho de MS), que induziria os respectivos frequentadores a comprar os produtos ali exibidos/expostos e que permitia a emissão de referências de pagamento válidas, viabilizando dessa forma a realização de pagamentos por multibanco e a entrada de dinheiro numa conta que era gerida pelo arguido, sem que o mesmo alguma vez se disponibilizasse para contactar directamente com aqueles clientes (nem numa fase anterior, nem numa fase posterior à encomenda e ao pagamento).

Outro propósito não se pode conceber aqui que não seja o de apropriação das quantias monetárias, no caso, pagas pela ofendida MS e de nunca entregar os electrodomésticos anunciados no site da internet indicado.”

Assim sendo, na linha da jurisprudência do STJ (Ac. de 04-10-2007, proc nº07P2599, acessível em www.dgsi.pt), que perfilhamos, no caso de que aqui nos ocupamos, estão reunidos os elementos estruturais do crime de burla e os requisitos que deve determinar a intervenção do direito penal, pois verifica-se que:

- ab initio o arguido/recorrente teve a intenção de não realizar a sua prestação, entregando os bens;

– verifica-se um dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

- verifica-se uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

– há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

– há uma impossibilidade de se reparar o dano; e
– há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.

Na verdade, a atitude, comportamentos e procedimentos adoptados pelo arguido ultrapassam os mecanismos da livre concorrência de mercado, traduzindo-se num engodo fraudulento para espoliar os potenciais adquirentes dos produtos anunciados, com desprezo pelo princípio da boa-fé, traduzindo-se num acção que pela sua intensidade e gravidade, deve corresponder-lhe uma reacção penal.

Em suma: os actos, comportamentos e procedimentos adoptados pelo arguido/recorrente que estão provados, traduzem indubitavelmente uma postura do arguido que se serve do erro causado e mantido, através da conduta astuciosa, e do engano deliberadamente provocado para, através desta falsa representação da realidade, insidiosamente induzir os potenciais adquirentes a defraudarem o seu património em benefício dos arguidos.

Encontrando-se preenchidos todos os elementos estruturais do crime de burla, pp. pelo art.217º do C. Penal e estando plenamente justificada a necessidade de aqui fazer intervir o direito penal, havemos de concluir que também não nos merece censura a condenação do arguido/recorrente pela prática desse crime, como foi decidido na sentença recorrida.

Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, o recurso deve improceder, mantendo-se na íntegra o despacho e a sentença recorridos.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos negamos provimento ao recurso, mantendo integralmente o despacho e a sentença recorridos.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s [arts.513º, nºs 1 e 3 e 514º, nºs 1 do CPP e art. 8º nº9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais].

Évora, 18 de Junho de 2019.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Gilberto Cunha

João Martinho de Sousa Cardoso