Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
210/23.2GFLLE.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VALORAÇÃO DO DEPOIMENTO INDIRETO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A tese segundo a qual a possibilidade de valoração do depoimento indireto depende da efetiva realização do depoimento da testemunha-fonte, assenta numa exigência que transcende a previsão do artigo 129º nº 1 do CPP. O que o que legislador visou garantir com tal previsão legal foi que, por imperativo do princípio da imediação, o juiz faça o que estiver ao seu alcance para confrontar o depoimento indireto com o que lhe deu origem, posto o que, cessará de imediato a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do CPP, mesmo que posteriormente à sua convocação a testemunha originária se recuse legitimamente a depor.
II - Entendimento diverso acabaria por se traduzir no reconhecimento à fonte de um poder de controlar a valoração da prova disponível, interferindo no ato de julgar que é exclusivo do tribunal, pelo que a faculdade conferida a algumas testemunhas de se recusarem a depor não poderá ter o alcance de impedir a valoração de todo e qualquer meio de prova que possa colidir com o exercício desse direito.

III - As testemunhas têm conhecimento direto dos factos quando os percecionaram de forma imediata, através dos seus próprios sentidos, sem qualquer intermediação e têm conhecimento indireto quando se aperceberam dos mesmos através de outros meios de prova, mas não imediatamente dos próprios factos.

IV - As palavras ditas na ocasião pela ofendida, proferidas ainda no contexto da agressão de que havia sido vítima, reveladoras da sua aflição, que a testemunha comprovou sensorialmente, são matéria relevantíssima para que o tribunal possa aperceber-se se houve crime. E o que foi comprovado pelos sentidos deve ser considerado em tribunal como depoimento direto.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz … do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 210/23.2GFLLE.E1, foi o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a … 1983, natural do …, solteiro, portador do C.C. nº …, válido até …2030, NIF …, residente no …, CXP …, …, atualmente preso preventivamente à ordem dos presentes autos no EP de …, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a), do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, a definir pela DGRSP e sob fiscalização desta entidade.

***

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“I. O arguido e ora Recorrente foi condenado na pena de 2 anos e 8 meses de prisão efectiva pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.152.º,n.º 1, alínea d), e n.º 2al. a), do Código Penal, pena com a qual, não se conforma, não obstante o profundo respeito que a mesma lhe merece.

II. A ofendida, avó do arguido sempre se recusou validamente a depor sobre os factos, prestando depoimento apenas quanto às suas condições pessoais e para dizer que o arguido é como se fosse seu filho, pois foi ela que o criou.

III. As únicas testemunhas ouvidas que tomaram contacto com os factos, para além da ofendida, foram as testemunhas DD e EE, militar da GNR.

IV. A douta sentença está ferida de nulidade, pois que usou para a condenação factos que não constavam na peça acusatória e fê-lo recorrendo a depoimentos indirectos das testemunhas DD e EE, militar da GNR, recorrendo a tais depoimentos indirectos para proceder a uma alteração não substancial de factos da qual deu conhecimento no dia 19-10-2022, no mesmo dia em que profere a sentença onde dá tais factos como provados.

V. A testemunha DD, tio do arguido, ora recorrente diz consistentemente diz em todo o seu depoimento – antes e depois da saída do arguido da sala de audiências - que apenas assistiu a uma situação (um toque na rua que viu a uma distância aproximada de 50 metros), situação essa que levou à deslocação da brigada da GNR ao local

VI. A brigada da GNR apenas se deslocou ao local uma vez, no dia 05-04-2023.

VII. Por outro lado, a testemunha EE - militar da GNR - que se deslocou ao local no dia 05-04-2023 refere no seu depoimento, que chegada ao local identificou todas as pessoas no local: a ofendida, o arguido e a testemunha DD;

VIII. Disse a militar da GNR:

a. que ofendida estava nervosa e chorosa;

b. que a ofendida disse não ter quaisquer marcas e também a militar não viu quaisquer marcas;

c. que a ofendida não quis ser assistida medicamente

d. que a ofendida (por livre vontade) disse não querer procedimento criminal contra o neto (arguido)

e. que o arguido negou ter agredido a ofendida;

f. que a testemunha DD disse, por várias vezes, não ter presenciado os factos;

g. disse que ainda assim, notificou a ofendida para se deslocar ao INML.

IX. Disse a testemunha DD, inquirida na presença e posteriormente na ausência do arguido em sala:

a. que apenas viu, uma única vez, um toque dado pelo arguido com a mão;

b. que esse toque foi na rua;

c. que viu o toque a certa de 50 metros, mais ou menos;

d. que na sequência desse toque a ofendida (sua sogra) caiu no chão;

e. que de seguida, a ofendida se levantou do chão sozinha;

f. que nunca viu marcas e que a mesma nunca precisou de ser assistida medicamente;

g. que nesse dia foi lá a patrulha da GNR;

h. disse ainda que por diversas vezes viu o arguido cuspir para a cara e para o corpo da ofendida;

i. bem como ouviu o arguido por diversas vezes dizer “vai para o caralho”,“vai-te foder”, “puta” e “vaca”;

j. que o arguido, ele próprio e um amigo (FF) bebiam diariamente cerca de 5 pacotes de 1 litro de vinho cada, num total de 5 litros, sendo que a ora testemunha beberia apenas cerca de um pacote.

X. Face à matéria de facto produzida em sede de audiência e acima transcrita de 14 a 19, o FP 6, deveria passar a ter a seguinte redacção: “6. O arguido ingeria diariamente cerca de 2 litros de vinho, e quando se embriaga tornava-se agressivo e violento para a sua avó.”

XI. Em relação ao FP 7, pelos motivos e pela matéria de facto transcrita de 7 a 18 supra, deve o mesmo considerar-se como Facto Não Provado (FNP), integrando o elenco daqueles.

XII. Já quanto ao FP8, por ser uma consequência directa do PF7, deve o mesmo ser dado como Não Provado, considerando-se não escrito.

XIII. Já quanto às expressões “vai para o caralho ”,“vai-te foder”, “puta” e “vaca” concretizada se dados como provadas no FP 9, embora também a testemunha DD tenha referido que eram frequentes, o certo é que a testemunha também por ser um “homem do norte” as relativizou dizendo que “é o mesmo que eu falo, são conversas portuguesas que a gente fala”, sendo esse vocabulário comum entre esta testemunha e o arguido também na presença da ofendida.

XIV. Ainda assim, o arguido assumiu que terá respondido à ofendida a propósito da comida que seria pouca (arroz que o arguido comeu): “não sejas gananciosa!”

XV. E mesmo que tivesse o arguido proferido as expressões que lhe atribuiu o seu tio dirigindo-as à ofendida (tal como escrito no FP 9), o que o arguido rejeita, ainda assim configuraria um crime de injuria,

XVI. Crime de injúria que, por falta de queixa da putativa injuriada, não pode ser objecto de processo por extinção do direito de queixa. Condenando-se, mostra-se violado o 115º do CP.

XVII. Relativamente ao FP 12, é certo que a testemunha DD sempre disse que viu apenas 1 “toque” do qual resultou a queda da ofendida, foi inequívoco ao longo do seu depoimento de mais de uma hora ao afirmar sempre e perenptoriamente que ocorreu apenas uma única vez e no dia em que a brigada se deslocou ao local, que ocorreu na rua, estando ele a cerca 50 metros da ocorrência,

XVIII. Quanto ao FP 13, o arguido confessou ter dito à sua avó “não sejas gananciosa”, nada mais.

XIX. Em relação à 2ª parte do FP. 13, a ofendida não apresentou queixa, quando a GNR se deslocou ao local, disse não desejar procedimento criminal, foi ouvida para memórias futuras e igualmente e validamente se recusou a depor, bem como validamente se recusou em sede de audiência de julgamento, pelo que não podem as declarações da testemunha EE incidir sobre o que ouviu a ofendida dizer, uma vez que esta ofendida sempre se recusou a fazê-lo no exercício dos direitos que lhe assistem.

XX. A ser assim, e em tudo o que se reporta a depoimento indirecto prestado pela testemunha EE, é prova inadmissível nos termos do preceituado nos artigos 129º e 134º ambos do CPP, não podendo por isso ser valorados nem tais factos de que possa alegadamente ter tido conhecimento podem ser carreados para os factos provados, nem para a motivação que dá por provado tal factualidade

XXI. Neste sentido e a título de exemplo os seguintes Acórdãos:

a. Ac. TRC, P. nº 63/10.0GJCTB.C1 de 19-09-2012,

b. Ac. TRC, P. nº 1517/17.5PBCBR.C1 de 06-11-2019

c. Ac. TRC, P. nº 155/13.4PBLMG.C1 de 10-12-2014

d. Ac. TRC, P. nº 94/21.5GATND.C1 de 21-06-2023

e. Ac. TRC, P. nº 39/14.9JACBR.C1 de 20-04-2016:

f. Ac. TRP, P. nº 67/19.8GBBAO.P1 de 15-12-2021:

XXII. Quanto ao FP 14, por resultar do depoimento e da prova gravada em audiência e transcrita acima, deverá incluir que no local se encontrava para além da ofendida, o arguido e a testemunha DD, e que todos foram identificados.

XXIII. Quanto ao FP15, por também ser conhecimento obtido por via indirecta: o que as testemunhas ouviram dizer, ou creem, reproduz-se o exposto de XX. a XXII., sem prescindir de referir que se considera de manifesta insuficiência afirmar a douta sentença recorrida que se considerou “provado o facto 15 na medida em que se afigura como perfeitamente conforme com as regras d experiência comum que a ofendida, até atenta a sua idade, tenha sentido dores em consequência da queda” (pag. 13, 2º paragrafo)

XXIV. Ao assim ter decidido como decidiu, o Tribunal violou o in dúbio pro réu, e uma vez mais o art. 127º, 129º e 134º todos do CPP.

XXV. Pelo que os FP 12, 13, 14 e 15, devem passar a ter a seguinte redacção:

12. No dia 05.04.2023, pelas 12h30, a GNR foi chamada e deslocou-se ao local.

13.A deslocação da GNR ao local foi no mesmo dia em que na cozinha ,ao fendida confrontou o arguido que não devia comer o arroz porque era para outra pessoa, e este disse-lhe “não sejas gananciosa”.

14. Quando a patrulha da GNR composta pela Guarda EE e GG chegaram ao local, identificaram o arguido e o tio deste DD, bem como a ofendida que se encontrava nervosa e a chorar, mas esta de livre vontade disse que não desejava procedimento criminal, nem necessitava de assistência médica.

15. A ofendida não ficou com marcas ou lesões visíveis, nem teve necessidade de ser medicamente assistida.

XXVI. O arguido nunca foi condenado pelo crime de violência doméstica.

XXVII. Em cerca de 39 anos de vivência em comum com a ofendida, nunca esta apresentou qualquer queixa ou correu outro processo contra o ora recorrente.

XXVIII. Apesar dos seus extensos antecedentes criminais (CRC com 24 condenações) atentam maioritariamente contra o bem jurídico da propriedade e condução sob o efeito do álcool.

XXIX. A vinculação afectiva entre o arguido e a ofendida é muito forte e positiva, gostando ambos muito um do outro reciprocamente (…, depoimento de DD, do arguido e da própria ofendida que diz «é como um filho»);

XXX. O recorrente entende que o que se apurou em sede de audiência e o que resultou da prova produzida não é o suficiente para subsumir a sua conduta ao crime de VD de que foi acusado e condenado.

XXXI. No entanto, e se o tribunal, assim não entender, sempre deveria a pena aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução.

XXXII. É entendimento pacífico que a condenação de um arguido em pena efectiva deve fundar-se no comportamento concreto do agente, de acordo com o qual a condenação anterior em pena não detentiva não foi bastante para conter o seu propósito, sempre repetido, do cometimento de novo crime de idêntica natureza.

XXXIII. Sucede que no caso dos presentes autos, é a primeira vez que o arguido e ora recorrente vem acusado e é efectivamente condenado pelo crime de VD, tendo sido condenado numa pena de prisão efectiva com a qual não se conforma.

XXXIV. A ser uma pena de prisão efectiva, sempre deverá a mesma ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, de modo a garantir que o arguido continua o seu processo de ressocialização com sucesso.”

Termina pedindo a declaração de nulidade da sentença recorrida, ou, subsidiariamente, a sua revogação e a substituição por outra que o absolva, ou, ainda subsidiariamente, caso seja mantida a condenação em pena de prisão, que seja a mesma suspensa na sua execução com sujeição a regime de prova.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência total do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, não tendo apresentado conclusões.

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado igualmente no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Apreciar se a sentença enferma do vício de contradição insanável da fundamentação, previsto no artigo 410º nº 2, alínea b) do CPP.

B) Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova produzida em audiência, com desrespeito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do CPP e com violação do princípio “in dubio pro reo”.

C) Determinar se existiu erro de julgamento da matéria de direito relativamente aos princípios e regras legalmente previstos para a determinação da medida da pena.

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos:

“III. FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

1.1. FACTOS PROVADOS

1. O arguido é neto da ofendida HH, nascida a … 1942, com quem, à data dos factos, residia na …, Cx. Postal …, ….

2. A ofendida reside na morada referida em 1 com o seu marido, II, avô do arguido, com 82 anos de idade e com grandes dificuldades de mobilidade, estando maioritariamente acamado.

3. A ofendida está reformada e apresenta dificuldades de locomoção atenta a sua avançada idade, sendo o arguido quem se deslocava para efectuar as compras de casa.

4. O arguido mede 1,72m e possui uma compleição física forte, enquanto a ofendida mede 1,55m e apesenta uma compleição física débil.

5. Com excepção dos curtos períodos referidos em 23, o arguido sempre viveu com os seus avós na morada referida em 1 desde que nasceu, tendo estado entregue aos cuidados da ofendida desde então, considerando-se ambos reciprocamente como mãe e filho, e existindo uma forte vinculação afectiva entre ambos.

6. O arguido é alcoólico, ingerindo diariamente cerca de 5 litros de vinho, e quando se embriaga torna-se agressivo e violento quer para a sua avó, quer para com terceiros.

7. Em data não concretamente apurada, mas situada entre o ano de 2022 e 06-06-2023 (data da detenção), o arguido, estando alcoolizado e no quintal da residência referida em 1, desferiu um empurrão na ofendida, provocando a sua queda no chão.

8. Como consequência dessa conduta do arguido, a ofendida sentiu dores e chorou.

9. Entre o ano de 2022 e o mês de Abril de 2023, em número de vezes não concretamente apurado, o arguido, quando alcoolizado e quer no interior, quer no quintal da residência referida em 1, discutia com a ofendida e dirigia-lhe as expressões “vai para o caralho”, “vai-te foder”, “puta” e “vaca”.

10. Entre o ano de 2022 e 06-06-2023, em número de vezes não concretamente apurado, mas não inferior a seis, e quer no interior, quer no quintal da residência referida em 1, o arguido cuspiu na face e corpo da ofendida.

11. Perante as condutas do arguido referidas nos dois pontos antecedentes, a ofendida sentia medo e perguntava “Porque é que ele é assim comigo? Fui eu que o criei”.

12. No dia 05.04.2023, pelas 12h30, a ofendida encontrava-se no interior da sua residência com o seu marido, com o arguido, que se encontrava embriagado, e com o seu genro, DD.

13. Na cozinha, como a ofendida confrontou o arguido que não devia comer o arroz porque era para outra pessoa, este disse-lhe “não sejas gananciosa”, cuspiu-lhe na face, desferiu-lhe um empurrão, o que provocou a sua queda no chão, e colocou-se em cima da mesma, impedindo-a de se levantar.

14. Chamada a GNR, a patrulha composta pela Guarda EE e GG deslocou-se ao local e identificou a ofendida que se encontrava bastante nervosa e a chorar.

15. Em consequência, a ofendida sofreu dores nas zonas do corpo atingidas, mas não ficou com marcas ou lesões visíveis, nem teve necessidade de ser medicamente assistida.

16. Em tudo, o arguido agiu com o propósito concretizado de lesar a ofendida, sua avó, a quem devia respeito e consideração, na honra, na integridade física e na dignidade enquanto pessoa humana, atingindo-a fisicamente debilitada atentas as dificuldades de mobilidade próprias da sua avançada idade, no seu corpo e na sua saúde, e também emocional e psicologicamente através de maus tratos, bem sabendo que as suas expressões, gestos e comportamentos eram adequados a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e receio pela sua vida e pela sua integridade física.

17. Bem sabia que a avó era uma pessoa que se encontrava numa situação de especial fragilidade devido à sua idade avançada, às suas dificuldades de locomoção, à sua compleição física e ao vínculo afectivo, bem como sabia que exercia sobre ela violência patentemente psicológica, a qual assumiu a forma de palavras, de ofensas à integridade física e ameaça à sua integridade física, assim como de injúrias, dirigindo-lhe, ao longo pelo menos do hiato temporal acima referido, palavras, formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, demonstrando elevado grau de descontrolo.

18. Bem sabia que, praticando tais actos no interior da habitação da ofendida, a privava do auxílio de terceiros, deixando-a vulnerável no interior do próprio lar.

19. Em tudo o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era censurável, proibida e punida por lei penal.

Condições pessoais e económicas:

20. O processo de socialização do arguido decorreu no agregado dos avós, por ausência de condições por parte dos progenitores, sendo que o pai se desvinculou das suas responsabilidades e a mão viria a falecer vítima de overdose de substâncias psicoactivas.

21. Arguido e ofendida exteriorizam sentimentos mútuos de afecto.

22. O arguido vivenciou relação marital (estabelecida em 2016 e integrado no agregado dos avós), tendo dois descendentes menores, na actualidade com 5 e 3 anos de idade. Na sequência de uma dinâmica marital disfuncional (sendo que os descendentes foram sinalizados, pele primeira vez, à CPCJ – …, em Setembro de 2020), a então companheira do arguido autonomizou-se em termos habitacionais no final do ano 2020.

23. Posteriormente, o arguido registou vários curtos períodos de aproximação com coabitação da mãe dos descendentes, seguidos de reintegração no domicílio de origem no âmbito da perpetuação do quadro de conflituosidade.

24. O arguido detém habilitações literárias ao nível do ensino secundário, adquirido em meio prisional, durante cumprimento de pena de prisão entre Julho de 2009 e Julho de 2015.

25. Tendo abandonado o sistema de ensino com 15 anos de idade (após a conclusão do 8º ano de escolaridade e por forma a iniciar actividade remunerada), o arguido concluiu o 3º ciclo de escolaridade (9º ano) mediante frequência de curso técnico profissional na área de informática.

26. O arguido integrou o mercado de trabalho, com cerca de 16 anos de idade, como ajudante de electricista, tendo ingressado, aos 22 anos de idade, na empresa …, como técnico de telecomunicações.

27. Esta estabilidade laboral viria a alterar-se na sequência de processo aditivo que culminaria na sua reclusão, aos 25 anos.

28. Desde Outubro de 2016, o arguido apresentava um percurso pautado pela alternância de períodos de actividade laboral (sem vínculo laboral e como ajudante de jardineiro, arborista/limpeza de terrenos), com períodos de inactividade.

29. Em termos económicos, desde 2016 que a avó do arguido tem constituído, na globalidade, um importante suporte a esse nível, face aos períodos de inactividade laboral sendo que os avós são beneficiários de pensões de reforma no valor actual de cerca de 480 Euros.

30. Quando activo, o arguido auferia o ordenado mínimo nacional, não apresentando, contudo, uma gestão responsável das mesmas, nomeadamente ao nível do cumprimento de compromissos, como regularização de multas/custas judiciais (sendo que a avó colmatou algumas dessas situações, regularizando plano de prestações mensais), ou da pensão alimentos, atribuída às descendentes, estimada no valor total de 200 Euros.

31. O contacto do arguido com o consumo de haxixe, cocaína e álcool remonta aos 19 anos de idade, o qual foi interrompido com o primeiro período de reclusão vivenciado

32. O arguido assume hábitos de consumo de bebidas alcoólicas (e o consumo muito pontual de cocaína), mas não em excesso.

33. Preso preventivamente desde 07 de Junho de 2023 à ordem dos presentes autos, em meio prisional o arguido tem registado um comportamento adequado às normas vigentes no mesmo.

34. O arguido não solicitou, por considerar desnecessária, intervenção por parte da Equipa Técnica Especializada no Tratamento – ETET, ….

35. Frequentou, em meio prisional, em Outubro de 2021, sessão sobre álcool e comportamento rodoviário – Taxa zero.

36. Ao nível das intervenções da DGRSP, em meio livre, o arguido denotou, na globalidade, dificuldades na consciencialização sobre os riscos psicossociais normativamente associados aos seus comportamentos de risco, minimizando o seu padrão de consumo de álcool.

37. Aderiu à intervenção da ETET, … (consulta de alcoologia) em 24.05.2022, no âmbito do acompanhamento da suspensão da execução de pena de prisão subsidiária no processo 518/18.9…, mas ausentou-se antes da consulta com médico (conforme lhe fora indicado na consulta com a terapeuta) e apenas compareceu a uma segunda consulta (psicologia e médica) em 18.07.2022, não voltando a efectuar novo agendamento após ausência em Outubro de 2022.

Antecedentes criminais:

38. O arguido foi condenado:

38.1. Por sentença transitada em julgado a 27/04/2001, no âmbito do Processo Sumário n.º 456/01.4… do ….º Juízo de …, na pena única de 120 dias de multa, à razão diária de 500$00 Escudos, pela prática, em 01/04/2001, de um crime de condução ilegal e um crime de desobediência, declarada extinta, pelo cumprimento, em 27/10/2004.

38.2. Por sentença transitada em julgado a 09/07/2004, no âmbito do Processo Comum n.º 579/01.0… do ….º Juízo de Competência Criminal de …, na pena única de 170 dias de multa, à razão diária de €2,00 Euros, pela prática, em 08/06/2001, de dois crimes de condução sem habilitação legal, declarada extinta, pelo cumprimento, em 11/09/2008.

38.3. Por sentença transitada em julgado a 24/11/2005, no âmbito do Processo Comum n.º 617/02.9… do ….º Juízo de Competência Criminal de …, na pena de 190 dias de multa, à razão diária de €2,00 Euros, pela prática, em 07/11/2002, de um crime de condução sem habilitação legal, declarada extinta, pelo cumprimento, em 22/02/2007.

38.4. Por sentença transitada em julgado a 30/05/2007, no âmbito do Processo Comum n.º 409/05.3… do ….º Juízo de Competência Criminal de …, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, pela prática, em 20/06/2005, de um crime de condução sem habilitação legal, extinta, pelo cumprimento, em 30/05/2010.

38.5. Por acórdão transitado em julgado a 02/07/2010, no âmbito do Processo Comum n.º 469/09.8… do …º Juízo de Competência Criminal de …, na pena de 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 11/07/2009 de um crime de roubo qualificado, de um crime de cultivo de estupefacientes para consumo e de um crime de detenção de arma proibida, declarada extinta, pelo cumprimento, em 21/01/2016, por referência a 16-07-2015.

38.6. Por acórdão transitado em julgado a 24/11/2011, no âmbito do Processo Comum n.º 490/09.6… do ….º Juízo de Competência Criminal de …, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, com sujeição a deveres, pela prática, em 11/07/2009 de quatro crimes de injúria agravados, declarada extinta, pelo cumprimento, em 13/01/2015.

38.7. Por sentença transitada em julgado a 30/09/2016, no âmbito do Processo Sumário n.º 142/16.0… do ….º Juízo Local Criminal de …, na pena de 55 dias de multa, à taxa diária de €5,00 Euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, pela prática, em 14/08/2016, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a pena de multa sido convertida em 36 dias de prisão subsidiária e declarada extinta, pelo pagamento da pena de multa, em 04/09/2018, e pena acessória sido declarada extinta, pelo cumprimento, em 08/01/2018. 7

38.8. Por acórdão transitado em julgado a 04/01/2018, no âmbito do Processo Comum n.º 491/16.8… do ….º Juízo Central Criminal de …, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, pela prática em 15/06/2016 e 16/05/2016, de dois crimes de injúria agravados, um crime de ameaça agravado e de um crime de desobediência, tendo a pena de prisão suspensa na sua execução sido declarada extinta em 11/03/2022 e a pena acessória em 08/01/2018.

38.9. Por sentença transitada em julgado a 03/10/2018, no âmbito do Processo Abreviado n.º 131/17.8… do ….º Juízo Local Criminal de …, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de €5,50 Euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, pela prática, em 16/04/2017, de um crime de desobediência, tendo a pena de multa sido convertida em 66 dias de prisão subsidiária e declarada extinta, cumprimento, em 29/11/2020 e a pena acessória sido declarada extinta, pelo cumprimento, em 19/08/2020.

38.10. Por sentença transitada em julgado a 03/10/2018, no âmbito do Processo Sumário n.º 183/17.0… do …º Juízo Local Criminal de …, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano com regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 12 meses, pela prática, em 28/05/2017, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a pena de prisão suspensa na sua execução sido declarada extinta em 03/10/2019 e a pena acessória em 18/02/2020.

38.11. Por sentença transitada em julgado a 17/02/2020, no âmbito do Processo Sumário n.º 475/18.1… do ….º Juízo Local Criminal de …, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à razão diária de €5,50 Euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses, pela prática, em 17/10/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a pena sido declarada extinta, pelo pagamento, em 09/08/2021. 7.12) e a pena acessória em 20/12/2020.

38.12. Por sentença transitada em julgado a 16/10/2020, no âmbito do Processo Sumário n.º 518/18.9… do …º Juízo Local Criminal de …, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, à razão diária de €5,50 Euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 meses, pela prática, em 12/11/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo a pena acessória sido declarada extinta, pelo cumprimento, em 21/09/2021.

38.13. Por sentença transitada em julgado a 16/10/2020, no âmbito do Processo Sumário n.º 187/17.3… do …º Juízo Local Criminal de …, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano com regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses, pela prática, em 31/05/2017, de um crime de desobediência, tendo a pena de prisão suspensa na sua execução sido declarada extinta, pelo cumprimento, em 16/10/2021, e a pena acessória em 24/11/2022.

38.14. Por sentença transitada em julgado a 17/03/2021, no âmbito do Processo Comum n.º 179/15.7… do ….º Juízo Local Criminal de …, na pena de 6 meses de prisão, pela prática, em 04/02/2015, de um crime de difamação agravado, tendo a pena sido declarada extinta, pelo cumprimento, em 13/12/2021, por referência a 23/11/2021.

1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a boa decisão da causa, resulta não provado que:

a) O arguido depende financeiramente da ofendida, uma vez que está desempregado e não faz qualquer tipo de trabalho para se sustentar.

b) No dia 23.02.2023 a ofendida encontrava-se, juntamente com o seu marido, no interior da residência quando o arguido, notoriamente embriagado, abordou aquela, pedindo-lhe que lhe desse € 5,00.

c) Como a ofendida lhe recusou dar dinheiro, porque no momento não tinha consigo qualquer quantia, o arguido exaltou-se e desferiu-lhe um número não determinado de empurrões, provocando a sua queda, desamparada, no sofá da sala onde se encontravam.

d) Acto contínuo, o arguido puxou os cabelos à ofendida, causando-lhe dores nas zonas do corpo atingidas.

e) A ofendida não necessitou de assistência médica.

f) No dia 05.04.2023, quando a ofendida estava na cozinha a preparar o almoço para o seu marido, o arguido, que se encontrava notoriamente embriagado, chegou, juntamente com um amigo de nome FF, e ambos comeram todo o arroz que havia na panela.

g) Na mesma ocasião, o arguido ainda apelidou a ofendida de “puta” e “cadela”.

h) Em momento não concretamente apurado, a ofendida conseguiu fugir para o exterior da residência e gritar por socorro.

i) No dia 23.04.2023, a hora não concretamente apurada, no quintal da residência da ofendida, o arguido empurrou-a, tendo-a feito cair desamparada no chão, causando-lhe dores nas zonas do corpo atingidas.

j) Acto contínuo, o arguido colocou o seu pé em cima da barriga da ofendida enquanto, de forma séria e intimidante, lhe proferia as seguintes palavras: “Agora não sais daqui, quem manda nesta merda sou eu”.

k) Nessa mesma ocasião, o arguido ainda dizia à ofendida “puta”, “vaca”, “a puta que te pariu”, “vai para o caralho” e “sai daqui”.

l) No dia 03.05.2023, por volta das 14h00, o arguido, notoriamente embriagado, chegou a casa onde se encontrava a ofendida e a testemunha DD.

M )O arguido começou a discutir com a testemunha DD, que se encontrava no quintal da residência da ofendida, e inopinadamente, na presença da ofendida, tentou agredi-lo.

n) Como a ofendida se interpôs entre a testemunha, seu genro, e o arguido, este de imediato empurrou-a, fazendo-a cair em cima de uns bidões que se encontravam no quintal, sofrendo dores nas zonas do corpo atingidas, designadamente no braço esquerdo, ficando com as pernas roxas.

o) No dia 10.05.2023, por volta das 8h30, o arguido começou, na presença da ofendida, a ingerir vinho de um pacote de papelão.

p) O arguido bem sabia que a avó era uma pessoa que se encontrava numa situação de especial fragilidade devido à sua dependência psíquica ao controlo quase diário por parte do mesmo, dela dependente financeiramente.”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Do invocado vício de contradição insanável

Invoca o recorrente na sua motivação a existência do vício que denominou de “contradição insanável da prova”. Ainda que não tenha incluído a alegação de tal vício nas conclusões do recurso e pese embora não tenha feito referência expressa ao artigo 410.º, nº 2, alínea d) do CPP, considerando que o vício aí previsto é de conhecimento oficioso, entendemos dever apreciar a contradição invocada reportando-a à previsão da aludida norma, prevenindo dessa a forma a possibilidade de ter sido essa a intenção subjacente à alegação do recorrente.

Vejamos.

Importa ter presente que a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita, não se confunde com a invocação de um erro de julgamento, ou seja, com a impugnação da matéria de facto em sentido amplo com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recurso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida e a sua verificação pelo tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida e atém-se à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.

A propósito do vício de contradição insanável alega o recorrente que:

“(…) 2. Desde logo o arguido e ora recorrente entende que existe uma divergência insanável (como oportunamente se demonstrará pela transcrição da prova produzida em sede de audiência) entre o depoimento da testemunha DD, seu tio que consistentemente diz em todo o seu depoimento que apenas assistiu a uma situação (um toque na rua que viu a uma distância aproximada de 50 metros), situação essa que levou à deslocação da brigada da GNR ao local; e por outro lado, o depoimento da militar da GNR, EE, que deslocou-se ao local nesse dia e inquirindo todos os presentes, disse que a testemunha DD lhe garantiu que não tinha presenciado quaisquer factos, (…)”

O vício da contradição insanável, tal como os demais previstos no nº 2 do artigo 410º, ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir ter-se verificado a referida contradição insanável. Ora, na situação vertente, não detetamos tal contradição.

Efetivamente, confrontando a sentença recorrida, nela se não descortina qualquer contradição lógica entre os factos provados, na sua fundamentação, nem entre aqueles e a decisão. Dito de outra forma, a conexão entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada e não provada, os meios de prova em que se baseou e a criteriosa valoração que fez dos mesmos, não se apresenta como logicamente inaceitável, nem manifestamente errada.

Analisando mais de perto a situação sinalizada pelo recorrente – alegada contradição entre os depoimentos das testemunhas DD (tio do arguido) e EE (militar da GNR que se deslocou ao local para tomar conta de uma das ocorrências) – parece-nos evidente não só que a invocada contradição se não verifica, como também que, a verificar-se, a mesma se não subsumiria ao vício de contradição insanável previsto na alínea b) do artigo 410º, nº 2 do CPP.

Na verdade, a alegada contradição não se reporta à decisão recorrida ou à fundamentação da mesma constante, mas sim ao conteúdo de dois depoimentos, pelo que, a verificar-se, a sempre teria que ser apreciada em sede de valoração e exame crítico das provas. Por outro lado, a conjugação dos conteúdos dos depoimentos das referidas testemunhas, DD – no sentido de que assistiu a uma situação entre o arguido e a ofendida – e EE, militar da GNR – referindo que no dia em que se deslocou ao local e aí inquiriu tal testemunha, a mesma lhe garantiu que não tinha presenciado quaisquer factos – não se nos afigura incompatível, nem encerra em si mesma qualquer contradição, pois que a militar da GNR se limitou a atestar, em depoimento indireto, o que lhe foi dito no local, tendo o depoente em julgamento, em depoimento direto, reafirmado que apenas presenciara uma situação que não coincidiu com a aquela na qual compareceu a militar da GNR. Não descortinamos, pois, qualquer contradição insanável que inquine a sentença recorrida.

De todo o modo, reiteramos, a apreciação crítica e a conjugação dos aludidos depoimentos deverá ser feita, como foi, em sede de exame crítico da prova, que apreciaremos no item seguinte.

*

B) Do invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. Sabendo-se que os recursos são soluções de natureza jurídico processual, que se encontram vocacionados para verificar a existência e, sendo caso disso, para corrigir erros de julgamento – quer os que resultam da violação de normas direito processual, quer os emergentes da não aplicação ou da aplicação incorreta de normas de direito substantivo – importa ter presente que no caso dos recursos sobre a matéria de facto, ao tribunal de recurso não cabe julgar novamente, devendo respeitar a liberdade de apreciação da prova que o legislador concedeu ao “juiz a quo”.

No presente recurso encontra-se impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, invocando-se, assim, a existência de um erro de julgamento. O erro de julgamento – que deverá ser invocado através da impugnação da matéria de facto em sentido amplo, com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 (1) – ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Relativamente à satisfação dos requisitos estabelecidos pelo artigo 412.º do CPP, escreve Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código de Processo Penal, em anotação à referida norma que “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (…) [m]ais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento”. “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.” (2)

Verificamos, pois, que para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis. Tal liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio. Por outro lado, a formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável. Assentamos, por isso, em que o princípio da livre apreciação da prova consignado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não representa a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável, de harmonia com as regras da lógica, da razão, da experiência e do conhecimento científico.

Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso. (3)

E foi isso que o recorrente fez nos presentes autos, pois que, pretendendo impugnar a matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, e em observância das exigências legais necessárias à impugnação da matéria de facto constantes do artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP acima explicitadas:

- Indicou os pontos concretos da sua discordância, que são os constantes dos pontos 6., 7., 8., 11., 12., 13.,14. e 15. dos factos provados.

- Especificou os pontos do suporte informático em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados de que se socorreu, passagens que transcreveu parcialmente na sua motivação de recurso;

- E explica as razões pelas quais, no seu entendimento, tal prova levaria a decisão diversa da recorrida.

Desde já se adianta que, pese embora tenhamos analisado cuidadosamente as considerações apresentadas pelo recorrente para fundamentar a sua discordância quanto ao juízo probatório exposto na sentença recorrida, cremos que não lhe assiste razão, pois que a prova produzida nos autos, a nosso ver, permite confirmar os termos da fixação factológica daquela constante. Realizando então a análise crítica das provas sobre as quais o recurso fez assentar o invocado erro de julgamento, importa atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão quanto aos factos provados e não provados e que mais adiante transcreveremos.

Analisada a prova produzida nos autos, constatamos que a referida motivação, no que diz respeito ao que foi relatado em audiência pelas testemunhas e pelo arguido, no primeiro interrogatório judicial e no final da audiência, está alinhada com o que foi efetivamente dito por cada uma delas.

As questões colocadas pelo recorrente reportam-se à alegada falta de credibilidade do depoimento da testemunha DD quanto aos factos que afirmou ter presenciado e, bem assim, à alegada impossibilidade de valoração do depoimento da testemunha EE, militar da GNR, quanto aos factos que lhe foram relatados pela ofendida aquando da deslocação da primeira ao local para tomar conta de uma ocorrência, em virtude de, na ótica do recorrente, se tratar de um depoimento indireto não corroborado pelo vítima, uma vez que esta, tendo exercido o direito que lhe é conferido pelo artigo 134, nº1 al, a) do CPP, se recusou a depor.

Mais alega que, face ao que qualificou como contradição insanável verificada entre os depoimentos das identificadas testemunhas, deveria o tribunal ter aplicado o princípio do in dubio pro reo e ter considerado como não provados os factos a que, alegadamente, se reporta tal contradição.

Mas, a nosso ver, não tem razão relativamente a nenhum dos fundamentos da impugnação que apresentou.

Antes de mais, importa realçar que, ao contrário do que afirma ou insinua o recorrente, o tribunal recorrido deixou claro na motivação da sua convicção probatória o que o levou a decidir no sentido da existência de prova bastante dos factos subjacentes à condenação. A leitura da sentença permite-nos apreender o raciocínio racional e lógico dedutivo subjacente a tal decisão. Aí se encontra explicado por que razão o tribunal recorrido, por referência à lógica e por apelo racional às regras de experiência comum, entendeu que a prova produzida em julgamento se revelou suficiente para firmar convicção relativamente aos aludidos factos. Com efeito, escrutinada a prova constante dos autos, concretamente ouvidos os depoimentos das testemunhas produzidos em audiência e, bem assim, as declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial e no final da audiência, nenhuma censura nos merece o juízo probatório realizado na sentença recorrida e consignado na motivação da convicção probatória, que passamos a transcrever: “(…) 1.3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO O arguido, em julgamento, apenas prestou declarações no final da produção de prova, negando jamais ter feito algum mal à ofendida e justificando as penas de prisão anteriormente cumpridas por injustiça nas condenações. Em sede de primeiro interrogatório judicial, cujas declarações foram reproduzidas em audiência (art. 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal e Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 5/2023), o arguido confirmou os factos 1 (cf., também, assentos de nascimento da ofendida de fls. 60 e do arguido de fls. 133-134), 2, 5, 12 (excepto quanto a estar embriagado) e 13 (até “gananciosa”). No mais, declarou genericamente nunca ter agredido a sua avó, embora tenha admitido a existência de discussões “normais”, e gostar “muito” da mesma por ter sido ela que o criou. Apresentou justificações para os diversos factos imputados, ora porque tropeçou na cadela e caiu em cima da ofendida, ora porque esteve em causa apenas um “toque para se desviar”, sem queda, e não um empurrão (episódio do arroz), ora porque a avó toma comprimidos e “fica assim a falar coisas estranhas”, ora porque os palavrões não eram dirigidos àquela e estava apenas a falar com o tio “que é do Norte”, ora porque, enfim, “a GNR levou-a e como ela é um bocado velha devem ter tentado convencê-la que coiso…”. Referiu também que apenas bebia “umas cervejinhas” após o trabalho. Ora, o teor destas declarações, por si só, é bem elucidativo sobre a credibilidade que as mesmas poderiam merecer. A ofendida recusou-se validamente a depor, mas referiu-se ao arguido como seu filho, e manifestou a vontade de não prosseguir com o procedimento criminal. Assim, a prova dos demais factos não admitidos pelo arguido (como também dos admitidos), concretamente os constantes dos pontos 3 e 6 a 11, assentou no depoimento da testemunha DD (tio do arguido), uma vez que ficou evidente, primeiro face à sua postura na audiência de julgamento (de reticência e hesitação nas respostas às perguntas formuladas quando implicavam um facto desfavorável ao arguido, de falta de vontade em esclarecer e descrever os factos, e de menorização e relativização de episódios) e depois, após a saída do arguido da sala de audiência, face ao seu desabafo (“agora que ele saiu já posso falar melhor, estava aqui com medo”), a ausência de qualquer propósito em prejudicar (o propósito foi exactamente o inverso) o arguido. Por isso que o seu depoimento se revelou perfeitamente isento e com justificada razão de ciência (era e é vizinho, e frequentava diariamente a casa da ofendida e arguido), não se suscitando quaisquer dúvidas quanto à veracidade e credibilidade do mesmo, expurgado das considerações notoriamente destinadas a atenuar a responsabilidade do arguido e sendo certo que para a delimitação temporal dos factos se considerou a data da última libertação do arguido constante do seu CRC – 23/11/2021 (“estas coisas começaram acontecer a partir dos 2 meses” após essa libertação). A testemunha JJ (tia do arguido), apesar de não ter nenhum conhecimento directo sobre os factos em causa, referiu que, quando passava em casa da ofendida, a via triste e a chorar, mas que ela não lhe dizia a razão, afirmando, ainda, ter medo que o arguido faça mal à sua mãe quando está bêbado. Os factos 12 e 14 resultaram, para além do que foi admitido pelo arguido, do depoimento da militar da GNR EE, que depôs de forma firme, objectiva e escorreita sobre o que ouviu dizer da ofendida, em consonância com o auto de notícia de fls. 63, sendo que o estado desta aquando da chegada daquela (bastante nervosa e a chorar) concorre no sentido da veracidade do relatado, nenhuma razão existindo para a ofendida efabular. Registe-se que, apesar de a ofendida se ter recusado validamente a depor, nada impede a valoração do depoimento indirecto de outra testemunha que incidiu sobre o que ouviu dizer daquela, pois o que o art. 129.º do Código de Processo Penal proíbe é a valoração desse tipo de depoimento quando o juiz não chame a depor a testemunha-fonte (neste sentido, Acs. do STJ de 12-12-2018, proc. n.º 3202/17.7TGMR.G1.S1, e de 23-10-2008, proc. n.º 08P1212; do TRC de 07-10-2015 proc. n.º 62/04.1JAGRD.C1; do TRP de 05-06-2015, proc. n.º 138/14.7GCSTS.P1, e de 25-05-2022, proc. n.º 71/20.3KRMTS.P1; e do TRG de 03-02-2014, proc. n.º 693/12.6JABRG.G1; todos em www.dgsi.pt). Considerou-se provado o facto 15 na medida em que se afigura como perfeitamente conforme com as regras da experiência comum que a ofendida, até atenta a sua idade, tenha sentido dores em consequência da queda. No que diz respeito aos factos de índole subjectiva, é sabido que, uma vez que o elemento subjectivo do tipo pertence à vida interior do agente e, por isso, é insusceptível de directa apreensão e demonstração, só é possível captar a sua existência (salvo confissão), mediante inferência, através de factos materiais dos quais o mesmo se possa concluir de acordo com as regras da normalidade e da experiência, nomeadamente, dos factos integrantes dos elementos objectivos da infracção. Ora, a partir do conjunto dos factos objectivos provados extrai-se com segurança, numa apreciação conforme as regras da experiência e atendendo à globalidade das condutas adoptadas pelo arguido (salientando-se, em especial, o acto de cuspir como acto especialmente degradante), a todo o seu circunstancialismo inerente, e à relação de comunhão de vida e de afectos existente entre o mesmo e a ofendida, a factualidade em referência. O facto de o arguido «se encontrar alcoolizado (…) não se compagina com uma incapacidade total e em que sejam ultrapassadas as barreiras da imputabilidade» (Ac. do TRL de 16-01-2019, proc. n.º 193/15.2PCLSB.L1-3, www.dgsi.pt), nada da prova produzida permitindo concluir por uma absoluta ausência de consciência e capacidade de determinação, tanto mais que a testemunha DD até referiu que, no primeiro empurrão, o arguido de imediato se “apercebeu” e se “arrependeu” do seu acto. Relativamente à matéria de facto atinente às condições de vida do arguido, o Tribunal atendeu ao relatório social junto, em conjugação com as declarações do próprio e os depoimentos das sobreditas testemunhas. Quanto aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos. Os factos não provados resultaram da ausência de prova a seu respeito, para além do que ficou provado. (…)” Subscrevemos integralmente a linha argumentativa exposta na sentença no que diz respeito à suficiência da prova produzida em audiência para formar convicção probatória segura relativamente à veracidade dos factos tidos por provados e que se encontram impugnados no recurso. Assim, ao contrário do que refere o recorrente, e conforme acima referimos, verificamos que entre os depoimentos das testemunhas DD (tio do arguido) e EE (militar da GNR que se deslocou ao local para tomar conta de uma das ocorrências) não se deteta qualquer contradição. Com efeito, referiu a testemunha DD, em julgamento, que assistiu a uma situação em que o arguido desferiu um empurrão à ofendida, concretamente a situação ocorrida no quintal consignada nos pontos 7. e 8. dos factos provados. Por seu turno, a testemunha EE, militar da GNR, referiu que no dia em que se deslocou ao local para tomar conta da ocorrência verificada no dia 05.04.2023, à qual se reportam os pontos 12. a 15., e aí inquiriu tal testemunha, a mesma lhe garantiu que não tinha presenciado quaisquer factos nesse dia. Ora, como está bom de ver, tais depoimentos reportam-se a ocasiões diferentes, não encerrando, pois, a sua conjugação qualquer contradição. Acresce que, ainda que se reportassem ao mesmo episódio – o que não se verifica – as eventuais diferenças reportar-se-iam a alterações no depoimento prestado, em momentos diferentes, pela testemunha DD, o que sempre se justificaria pelo receio que o mesmo manifestou de prejudicar o arguido, conforme se menciona na motivação constante da sentença recorrida (4).

É, aliás, precisamente o referido receio manifestado pela testemunha DD que reforça a credibilidade de tal depoimento nas partes em que confirmou as condutas do arguido, o que sucedeu relativamente: - Ao facto de arguido ser alcoólico, de ingerir diariamente 5 litros de vinho e de se tornar agressivo e violento quer para com a sua avó, quer para com terceiros, nos termos consignados no ponto 6. dos factos provados, sendo certo que, em resposta aos esclarecimentos pedidos pelo Mmº juiz, a testemunha refere com toda a clareza que o arguido é violento, não tendo restringido tal qualificativa à violência para com a avó, tanto mais que refere que nem ele próprio tem capacidade para se defender dele. Relativamente à quantidade de vinho ingerida, a testemunha referiu a ingestão de 5 pacotes de 5 litros por dia, sendo que, pese embora tenha referido que poderiam ser três pessoas a consumir tal quantidade de vinho, acabou por referir que “se calhar até era mais….”. Não vemos, por isso, razão para alterar a redação do facto 6. no que tange à quantidade de vinho ingerida diariamente pelo arguido, uma vez que aí se consignou uma quantidade aproximada e não exata. - À expressão utilizada pela ofendida e ao medo que sentia do arguido, nos termos que se encontram consignados no ponto 11., não tendo a testemunha manifestado qualquer dúvida quanto a tais factos. - Ao empurrão que aquele deu à ofendida no quintal (5) desta e, bem assim, ao facto de a mesma ter chorado e ter sentido dores após a queda, nos termos consignados nos pontos 7. e 8. dos factos provados. Quanto à sustentação probatória relativa às dores sofridas pela ofendida, a mais de, tal como se exarou na decisão recorrida, se mostrar conforme com as regras da experiência comum que a ofendida, até atenta a sua idade, tenha sentido dores em consequência da queda, a testemunha atestou que a mesma se queixou de dores. Por outro lado, não procede, de todo, a objeção apresentada no recurso relativamente à circunstância de terem sido consideradas provadas duas situações com empurrão, tendo a testemunha DD apenas admitido ter presenciado uma. Na verdade, apenas a situação descrita em 7. foi considerada provada com base no depoimento de tal testemunha, sendo que a prova da situação consignada nos pontos 13. e 14. se arrimou no auto de notícia constante dos autos e no depoimento da testemunha EE, militar da GNR que tomou conta da referida ocorrência e elaborou o referido auto. No que tange à alegação de que o depoimento desta última testemunha não poderia ter sido valorado por se tratar de depoimento indireto prestado sobre factos relativamente aos quais a testemunha originária se recusou validamente a depor, não acompanhamos a posição defendida no recurso e que, estamos em crer, se apresenta atualmente como minoritária no seio da jurisprudência portuguesa.

Vejamos.

O depoimento indireto como meio de prova encontra-se regulado no artigo 129º do CPP, que dispõe da seguinte forma: “Artigo 129.º Depoimento indireto 1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. 3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.”

É verdade que a doutrina e a jurisprudência têm divergido sobre a interpretação deste preceito, sendo certo, porém, que, ao nível jurisprudencial, tem sido possível constatar uma convergência no sentido de limitar a impossibilidade de valoração do depoimento indireto prevista no seu nº 1 às situações em que, podendo fazê-lo, o tribunal decide não chamar a depor a testemunha fonte. (6)

E não temos dúvida que apenas esta interpretação se contém na letra e no espírito da norma. Ao nível da doutrina, no sobredito sentido, que sufragamos, pronuncia-se Carlos Adérito Teixeira (7), nos termos que pela sua assertividade e relevância para a questão decidenda, passamos a transcrever: “Se o legislador pretendesse impedir a utilizibilidade do depoimento indirecto ou restringir, drasticamente, o seu âmbito e valor deveria fazer depender o mesmo – para além das considerações procedimentais expressas na lei (indicação da testemunha-fonte e seu chamamento a depor) – de três condições adicionais que ali não constam: primeira, exigir a efectividade da prestação de depoimento directo, requisito que implicaria a irrelevância dos depoimentos indirectos cujas testemunhas-fonte não comparecessem ou, comparecendo, se recusassem, legitima ou ilegitimamente a depor, não podendo o tribunal socorrer-se, por coerência, do mecanismo previsto no art. 135.º do CPP; segunda, exigir a confirmação pela testemunha-fonte da existência da conversa com a testemunha indirecta ou reconhecimento de que prestara (perante esta ou por forma que esta pudesse ter ouvido) as declarações cuja autoria lhe é atribuída, havendo muitas situações reais em que a testemunha-fonte não se recorda ou não está em condições de garantir ter feito o relato à testemunha indirecta; terceira, exigir a confirmação pela testemunha-fonte do conteúdo do depoimento indirecto no sentido de se tornar necessário estabelecer uma sobreposição coerente e perfeita entre ambos os depoimentos, sendo certo que, as mais das vezes, ocorrerão imprecisões, incoerências e contradições.” Em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque defende que, para se poder valorar um depoimento indireto, as exigências do princípio da imediação impõem não só que a testemunha-fonte seja chamada a depor, mas que deponha efetivamente e ainda que, ao depor, confirme tal depoimento indireto, considerando, por isso, que não pode ser valorado o depoimento indireto quando a testemunha-fonte se recusa a depor. (8) (9) Não podemos concordar com esta última tese, pois que, tal como acima enunciámos, a mesma assenta numa exigência que transcende a previsão do artigo 129º nº 1 do CPP, não encontrando apoio nem na letra nem no espírito de tal norma. Na verdade, o que aí se exige para que o depoimento indireto possa ser valorado é tão somente que a testemunha-fonte seja chamada a depor – exceção feita aos casos de morte, de anomalia psíquica superveniente e de impossibilidade de a testemunha ser encontrada – não se exigindo que o depoimento daquela seja efetivamente prestado, nem que o mesmo confirme o depoimento indireto. Com efeito, o que o que legislador visou garantir com tal previsão legal foi que, por imperativo do princípio da imediação, o juiz faça o que estiver ao seu alcance para confrontar o depoimento indireto com o da testemunha-fonte, mas já não que tal confronto venha, efetivamente, a concretizar-se. Dito de outro modo, a lei não faz depender a possibilidade de valoração de um depoimento de ouvir dizer do conteúdo do depoimento da testemunha-fonte, limitando-se a exigir que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento desta, posto o que, cessará de imediato a proibição de valoração inerente ao artigo 129.º do CPP, mesmo que posteriormente à sua convocação a testemunha originária se recuse legitimamente a depor. Entendimento diverso acabaria por se traduzir no reconhecimento à fonte de um poder de controlar a valoração da prova disponível, interferindo ato de julgar que é exclusivo do tribunal. Não terá, certamente, sido esse o propósito visado pelo legislador com a consagração do direito de se recusarem a depor conferido a certas pessoas devido a laços familiares que tenham com o arguido. O que com tal previsão legal, constante do artigo 134º, nº 1 do CPP, se terá pretendido não terá sido mais do que “(…) poupar a testemunha ao conflito de consciência que resultaria de ter de responder com verdade sobre os factos imputados a um arguido com quem tem parentesco ou afinidade próximos (…)” (10). Assim, a faculdade conferida a algumas testemunhas de se recusarem a depor não poderá ter o alcance de impedir a valoração de todo e qualquer meio de prova que possa colidir com o exercício desse direito. E nem se diga que tal entendimento se traduz num alargamento do campo de aplicação da norma que permite a valoração do depoimento indireto, que sabemos assumir natureza excecional (11). Ao invés, o mesmo assenta na única interpretação que se no afigura conforme à letra do artigo 129.º, n.º 1, do CPP, respeitando as exigências que a mesma postula, mas não indo além das mesmas. Assim, desde que tenha havido convocação da testemunha-fonte, os elementos probatórios recolhidos através de depoimento indireto, uma vez submetidos na audiência a ampla discussão e ao princípio do contraditório, podem ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida ou examinada, em conformidade com o princípio geral da livre apreciação da prova. Ou seja, uma vez garantida a possibilidade de exercício do direito ao contraditório quanto ao conteúdo do depoimento indireto e de apresentação de meios de prova tendentes a infirmar a fidedignidade do mesmo, a sua valoração não contende de forma intolerável com os princípios do processo justo e equitativo, nem com o direito de defesa do arguido, garantidos pelos artigos 20º, nº 4 e 32º, nºs 1 e 5 da Constituição, tal como, aliás, foi já considerado pelo Tribunal Constitucional, quando referiu no seu acórdão nº 213/94 (12) que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º CPP “(…) reflete uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).” Na situação dos autos, está em causa saber se o tribunal recorrido poderia ter valorado, como valorou, o depoimento indireto da testemunha EE relativamente ao conteúdo do que lhe foi dito pela ofendida, sendo certo que esta, sendo avó do arguido, quando chamada a depor, recusou fazê-lo ao abrigo da prerrogativa que lhe é concedida pelo artigo 134.º, n.º 1, do CPP.

Pelas sobreditas razões, somos a concluir que não merece qualquer reparo tal valoração.

A este propósito cumpre ainda referir que no mencionado depoimento podemos descortinar algumas partes em que o mesmo se consubstanciou num depoimento direto, relativamente ao qual nenhum tipo de exigência existirá no que tange à legalidade da sua valoração. Com efeito, as testemunhas têm conhecimento direto dos factos quando os percecionaram de forma imediata, através dos seus próprios sentidos, sem qualquer intermediação e têm conhecimento indireto dos factos quando se aperceberam dos mesmos através de outros meios de prova, mas não imediatamente dos próprios factos. (13) Como refere Germano Marques da Silva (14), “O objeto da prova testemunhal são, essencialmente, os factos juridicamente relevantes, de que a testemunha tenha conhecimento. O conhecimento, por via de regra, provém da visão, ou audição, mas é igualmente testemunho o que provenha dos demais sentidos, quando apropriado para a prova dos factos”. Ora, na situação que nos ocupa, a testemunha EE, chamada ao local na qualidade agente de autoridade, quando aí chegou, pode ainda presenciar parte dos factos que motivaram a sua intervenção, designadamente o cenário em que haviam ocorrido as agressões e o estado de exaltação e nervosismo em que se encontrava a vítima. Por conseguinte, as palavras ditas na ocasião pela ofendida, proferidas ainda no contexto da agressão de que havia sido vítima, reveladoras da sua aflição, que a testemunha comprovou sensorialmente, são matéria relevantíssima para que o tribunal possa aperceber-se se houve crime ou se a queda se tratou de um mero acidente, como narra o arguido. E o que foi comprovado pelos sentidos deve ser considerado em tribunal como depoimento direto. Os factos juridicamente relevantes não se esgotam no momento em que se agride, pois que toda a sua envolvência – abrangendo esta necessariamente os momentos antecedentes e os subsequentes à agressão – assume importância para o apuramento do que verdadeiramente se passou. E tal envolvência foi diretamente percecionada pela depoente, conforme a mesma, de forma clara e isenta, transmitiu ao tribunal no seu depoimento. Conforme pertinentemente se refere no acórdão da Relação do Porto de 24.09.2008, relatado António Gama e disponível em www.dgsi.pt: “O critério operativo da distinção entre depoimento direto e indireto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é direto, se não, é indireto.” É certo que a testemunha não viu a conduta perpetrada pelo arguido, e, nessa parte, o seu depoimento é indireto. Contudo, o seu depoimento é direto na parte em que descreveu o que viu no local dos factos, e, ainda, no tocante ao que, nessa altura, ouviu da ofendida relativamente ao que ali acontecera imediatamente antes de a testemunha chegar. Ora, conjugado o que a testemunha EE percecionou diretamente com o que “ouviu dizer” da ofendida e considerada a restante prova produzida, é indubitável a conclusão de que foi o arguido o autor das agressões perpetradas sobre a pessoa da sua avó, nos precisos termos dados como provados nos pontos 13. e 14. Quanto às dores referidas no ponto 15., bem andou, a nosso ver, o tribunal em considerá-las provadas, na medida em que as regras da experiência comum nos permitem inferir a sua verificação, partindo dos factos objetivos que se consubstanciaram na queda da ofendida – não olvidando a sua idade – e na colocação do arguido em cima da do corpo da mesma e levando ainda em consideração o estado de choro e nervosismo em que aquela se encontrava (facto 14.). Finalmente, as declarações do arguido, prestadas no primeiro interrogatório judicial e reproduzidas em audiência e, bem assim, as prestadas no final do julgamento – nas quais, conforme se refere na sentença, o mesmo confessou os factos constantes do ponto 12. dos factos provados e parte do facto exarado no ponto 13. – não se revelam suficientes para infirmar o teor dos mencionados depoimentos, desde logo atendedo às circunstâncias indicadas na sentença para pôr em causa a sua credibilidade. (15)

Consabidamente, as dificuldades de prova surgem com maior frequência nos julgamentos dos crimes não presenciados por terceiros, entre os quais se inclui o crime de violência doméstica praticado na residência comum do agressor e da vítima. Porém, pese embora não descuremos tais circunstancialismos específicos, que se verificam também na situação presente, temos para nós que os mesmos não poderão legitimar a não valoração adequada e conjugada dos restantes meios de prova disponíveis, analisados à luz das regras da experiência comum – o que as alegações de recurso parecem pressupor – com inevitável recurso ao princípio do in dubio pro reo. Na verdade, o que se impõe ao julgador é que, não perdendo de vista o circunstancialismo dificultador da prova a que acima nos reportámos, cuide de justificar a maior ou menor credibilidade que conferiu quer às declarações do arguido, quer aos depoimentos das testemunhas. E foi o que fez o tribunal recorrido no caso presente. Entendeu o julgador que as declarações do arguido se mostraram inverosímeis e não credíveis e que, em contraponto, as declarações das testemunhas se revelaram absolutamente credíveis e bastantes para sustentar a prova de todos os factos imputados ao arguido e que se encontram impugnados no recurso. E explicou as razões pelas quais assim entendeu. Verificamos, pois, que foi da conjugação de todas as provas que se inferiram os factos dados como provados e impugnados no recurso, não podendo esquecer-se, ademais, que o ato de julgar é exclusivo do tribunal. Acresce que, a mais de valorizarmos a importância da imediação na apreciação da prova, que, incontornavelmente, coloca o juiz de julgamento numa posição privilegiada para proceder à sua apreciação – conquanto o mesmo tem acesso não só à expressão verbal, escrutinada pelo tribunal de recurso através da audição das gravações, mas também às expressões não verbais a que aquele não tem acesso – a audição da integralidade da prova produzida em audiência permite-nos atestar a naturalidade e a coerência dos depoimentos das testemunhas que corroboraram os factos tidos por provados, sufragando-se, por isso, a valoração de tal prova efetuada na sentença recorrida.

Vale o mesmo por dizer que não concordamos com a alegação da recorrente no sentido de que a prova constante dos autos não permite formular um juízo probatório positivo sobre os factos tidos por provados e impugnados no recurso. Afigura-se-nos, ao invés, que o que legitimamente fez o tribunal “a quo” foi analisar a prova produzida de acordo com um critério lógico e, com auxílio das regras da experiência comum, realizar as devidas inferências, sendo que estas lhe permitiram chegar à autoria dos factos por parte do arguido. Em rigor, em nenhum passo do recurso é apresentada qualquer prova ou conjunto de provas que possa consistentemente contrariar aquelas em que o tribunal a quo firmou a sua convicção. O mesmo sucedendo relativamente às operações de valoração das provas expostas na motivação respetiva. Em suma, ao contrário do propugnado no recurso, não tendo subsistido ao tribunal qualquer dúvida sobre os factos que decidiu considerar provados, inexistiu fundamento para convocar o princípio do in dubio pro reo.

*

Quento a tal princípio, invocando o arguido que a sentença recorrida o desrespeitou, deixamos uma breve nota.

O princípio da livre apreciação da prova, a que se refere o artigo 127.º CPP, constitui uma concretização do princípio da presunção de inocência – maxime na sua dimensão in dubio por reo – que encontra referência normativa expressa no artigo 6.º, nº 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14.º, nº 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Retenhamos, porém, que «o princípio da presunção de inocência excede em significado e consequências o princípio in dubio pro reo, constituindo este apenas um critério de decisão em caso de dúvida quanto à verificação dos factos. (16)» ou seja, uma «regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos» (17). De acordo com tal regra, que inevitavelmente se conexiona com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, determina-se que a dúvida seja resolvida a favor do réu. O seu âmbito reconduz-se, pois, à valoração pelo julgador de toda a prova produzida. Se o resultado desse processo de valoração for uma dúvida – uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos – o juiz terá que decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Voltando ao caso em apreciação nos presentes autos, verificamos que os princípios explanados se mostram devidamente observados. Efetivamente, analisada a sentença recorrida, constata-se que, após o processo de valoração da prova, não subsistiu ao julgador qualquer dúvida razoável, não surgiu o non liquet que impusesse a aplicação do princípio do in dubio pro reo e que determinaria que alguns dos factos considerados provados devessem ser julgados não provados. Deverão, pois, manter-se nos factos provados os factos impugnados no recurso, nenhuma censura nos merecendo o juízo probatório realizado pelo tribunal “a quo”, nada havendo a alterar a tal respeito.

*

Propugna o recorrente que a factualidade a seu ver apurada nos autos não permite concluir pela prática do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado. Considerando que o recurso fez assentar o pedido de absolvição na impugnação da decisão quanto à matéria de facto, a improcedência de tal impugnação acarreta, naturalmente, a improcedência de tal pedido, conquanto os factos provados se subsumem ao crime da condenação nos termos consignados na sentença e não questionados no recurso.

***

D) Da medida da pena.

O recorrente questiona o processo de determinação da medida concreta da pena, alegando que o tribunal não teve em consideração determinadas circunstâncias atenuantes relativas às suas condições pessoais.

Analisemos então se lhe assiste razão.

Retenhamos que no caso dos recursos sobre a pena ou sobre a medida da pena, ao tribunal ad quem caberá verificar o respeito pelas normas e pelos princípios gerais que regulam tal matéria. E tão somente isso.

Conforme é amplamente aceite pela jurisprudência dos tribunais superiores, o sistema de recursos no processo penal português tem como escopo a correção dos erros ocorridos na primeira apreciação judicial dos factos e na sua subsunção ao direito. Daqui resulta que o tribunal de recurso só deve intervir na escolha da pena e da sua medida concreta quando detetar incorreções no processo da sua determinação, quer ao nível da valoração factual, quer no que diz respeito à aplicação das normas legais que regem a matéria em causa. Tal sindicância não abrange, pois, a fiscalização do quantum exato de pena, na perspetiva da realização de uma nova determinação da mesma, devendo manter-se a pena concretamente aplicada sempre que se verifique que a sua fixação assentou numa correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais e que, consequentemente, não se revela desajustada, nem desproporcionada.

Estabelecida a margem de atuação deste tribunal da Relação no presente recurso, será importante recordar os princípios basilares e orientadores da matéria que temos em análise. Assim, estabelece o artigo 40º do CP que a finalidade das penas é a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena exceder a medida da culpa do infrator. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º e 40.º do CP, se os crimes forem puníveis alternativamente com pena de prisão ou com pena de multa, o tribunal deve dar preferência à pena de multa, desde que a mesma realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com respeito pelos critérios definidos pelo artigo 71.º do CP.

Realizado o enquadramento normativo, analisemos então as circunstâncias do caso em apreço e, bem assim, o processo de escolha e de determinação das penas concretas realizado pelo tribunal a quo, na perspetiva da realização da sindicância com a abrangência acima delineada.

Sendo o crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado punido apenas com pena de prisão e contendo-se a sua moldura abstrata entre os 2 (dois) a 5 (cinco) anos, a sentença recorrida fixou a pena concreta em 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica, a definir pela DGRSP e sob fiscalização desta entidade.

Pensamos, porém, que, ao contrário do que sustenta o recorrente, o fez com justificação bastante.

Vejamos.

Devemos em primeiro lugar atentar na factualidade provada – que acima transcrevemos e para a qual remetemos – na qual se descreve a atuação do arguido, as consequências da mesma, o contexto em que ocorreu e as suas motivações e, bem assim, os elementos relativos às condições pessoais do primeiro.

A este propósito, conclui o recorrente que:

“(…)XXVI. O arguido nunca foi condenado pelo crime de violência doméstica.

XXVII. Em cerca de 39 anos de vivência em comum com a ofendida, nunca esta apresentou qualquer queixa ou correu outro processo contra o ora recorrente.

XXVIII. Apesar dos seus extensos antecedentes criminais (CRC com 24 condenações) atentam maioritariamente contra o bem jurídico da propriedade e condução sob o efeito do álcool.

XXIX. A vinculação afectiva entre o arguido e a ofendida é muito forte e positiva, gostando ambos muito um do outro reciprocamente (…, depoimento de DD, do arguido e da própria ofendida que diz «é como um filho»);

XXX. O recorrente entende que o que se apurou em sede de audiência e o que resultou da prova produzida não é o suficiente para subsumir a sua conduta ao crime de VD de que foi acusado e condenado.

XXXI. No entanto, e se o tribunal, assim não entender, sempre deveria a pena aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução.

XXXII. É entendimento pacífico que a condenação de um arguido em pena efectiva deve fundar-se no comportamento concreto do agente, de acordo com o qual a condenação anterior em pena não detentiva não foi bastante para conter o seu propósito, sempre repetido, do cometimento de novo crime de idêntica natureza.

XXXIII. Sucede que no caso dos presentes autos, é a primeira vez que o arguido e ora recorrente vem acusado e é efectivamente condenado pelo crime de VD, tendo sido condenado numa pena de prisão efectiva com a qual não se conforma.

XXXIV. A ser uma pena de prisão efectiva, sempre deverá a mesma ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, de modo a garantir que o arguido continua o seu processo de ressocialização com sucesso. (…)”

Mas não tem razão. Efetivamente, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, todas as circunstâncias indicadas no artigo 71º do CP, foram tidas em conta na sentença, conforme se atesta pela leitura das considerações aí tecidas relativamente à determinação das medidas das penas, que passamos a transcrever (expurgando-se a transcrição das considerações exclusivamente teóricas):

“(…) O crime de violência doméstica agravado é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos (art. 152.º, n.º 2, do Código Penal).

Cumpre, então, determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

(…)

Descendo ao caso dos autos, o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido é de considerar o típico num juízo de relatividade dentro do que este tipo de crime pode abarcar, atendendo à natureza, diversidade e gravidade das mesmas (por um lado, violência física que, apesar de se consubstanciar em empurrões, é agravada por a vítima ter 79/80 anos de idade e incluir o acto de colocação em cima da mesma de modo a impedir o seu levantamento, e, por outro lado, vexame verbal e manifesto rebaixamento através do acto de cuspir – acto este que, como se já referiu supra, representa «um sinal maior de desprezo, uma manifestação da intenção de anular a humanidade da existência alheia, de ódio, de desamor ou de rejeição total» - Ac. do TRL de 30-09-2020, proc. n.º 260/18.0SELSB.L1-3, www.dgsi.pt), à sua reiteração, ao lapso temporal em causa e às suas consequências (a ofendida sofreu dores, chorou, sentiu medo e incompreensão, ofensa na sua honra e consideração, saúde física e psíquica, e dignidade, tudo isto contextualizado por ser a avó do arguido e dele ter cuidado desde a infância).

Pondera-se, ainda, a desconsideração pelo arguido dos deveres de respeito e solidariedade que devem presidir a uma relação entre avó e neto que, na caso concreto, se assemelha a uma relação paterno-filial.

Relativamente aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, os factos denotam uma atitude por parte do arguido demarcada por um sentimento de domínio e desrespeito, e evidenciam qualidades muito desvaliosas da sua personalidade, reveladoras de absoluta ausência de contenção perante o consumo de álcool, agressividade, impulsividade, desumanidade, total desprezo pela integridade física e psíquica da ofendida, e crueldade. E, note-se, que este é o tratamento dado pelo arguido a uma pessoa que o próprio considera uma mãe e de quem declara repetidamente “gostar muito”.

A intensidade do dolo é elevada, porquanto o arguido actuou com dolo directo, ou seja, na modalidade do dolo que representa um maior desvalor jurídico-social e o mais alto grau de censura jurídico-penal.

A conduta anterior aos factos é marcada pelos firmes antecedentes criminais que o arguido possui, sustentadora de uma patentíssima indiferença à censura penal. Está em causa a prática pelo arguido de 24 crimes (5 crimes de condução sem habilitação legal, 4 crimes de condução em estado de embriaguez, 4 crimes de desobediência, 1 crime de roubo qualificado, 1 crime de cultivo de estupefacientes para consumo, 1 crime de detenção de arma proibida, 6 crimes de injúria agravada, 1 crime de difamação agravada, 1 crime de ameaça agravada), tendo o mesmo já sido condenado em 2 penas de prisão efectiva (quanto aos crimes de roubo qualificado, cultivo e detenção de arma, e quanto ao crime de difamação, sendo esta a última pena aplicada), numa pena de prisão substituída por multa e em 4 penas suspensas na sua execução.

Saliente-se que o arguido vem sucessivamente praticando crimes desde o ano de 2001 quando tinha apenas 17 anos de idade e que os presentes factos ocorreram pouco tempo após sua libertação em 23-11-2021.

No que tange à conduta posterior do arguido, o mesmo, em audiência de julgamento e em sede de 1º interrogatório judicial, não revelou qualquer arrependimento, nem auto-censura sobre o seu comportamento, não demonstrando capacidade para proceder a um juízo crítico e reflexivo relativamente aos factos por si praticados, optando por apresentar uma narrativa na qual acaba por imputar responsabilidades à vítima.

A situação pessoal do arguido descrita na matéria de facto permite concluir por um percurso de vida pautado pela precariedade laboral e pela instabilidade familiar e relacional, sendo que a integração na residência dos avós foi impulsora dos factos ora julgados.

Ademais, em processos anteriores em que ocorreram intervenções da DGRSP em liberdade, o mesmo apresentou dificuldades na consciencialização sobre os riscos associados aos seus comportamentos de risco, minimizando o seu padrão de consumo de álcool e demostrando reduzida adesão ao tratamento nesse âmbito, posição que mantém actualmente, não tendo, de resto e neste presente período de privação de liberdade, procurado realizar qualquer tratamento a esse nível.

As exigências de prevenção geral do crime de violência doméstica são muito elevadas, pois que as condutas do arguido atingiram bens jurídicos de nuclear importância comunitária, como sejam a saúde e a dignidade da pessoa com quem se estabelece uma relação de proximidade existencial, sendo premente o reforço quer da consciência jurídica da sociedade, quer do sentimento de segurança face à violação da norma, considerando a persistência e a disseminação do fenómeno da violência doméstica, cujo correspondente delito constitui um dos mais reconhecidos pela sociedade, mostrando-se necessário desincentivar definitivamente a sua prática.

Sopesados todos os aspectos vindos de referir, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

2.2.2. DA PENA DE SUBSTITUIÇÃO

A determinação da pena completa-se com uma última operação, consistente na ponderação da substituição da pena principal aplicada por uma das penas de substituição previstas na lei, as quais, actualmente, constituem todas elas penas não detentivas. No caso da pena de prisão, o Código Penal prevê como penas de substituição as penas de multa (art. 45.º do Código Penal e arts. 489.º a 491.º-A, do Código de Processo Penal), de proibição do exercício de profissão, função ou actividade (art. 46.º do Código Penal), de suspensão da execução da pena de prisão (arts. 50.º a 57.º do Código Penal e arts. 492.º a 495.º do Código de Processo Penal) e de prestação e trabalho a favor da comunidade (arts. 58.º e 59.º do Código Penal).

Dos arts. 45.º, n.º 1, 46.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, do Código Penal, resulta um poder-dever do tribunal de ponderação da substituição da pena de prisão aplicada, segundo o qual o tribunal dá preferência a alguma das penas de substituição (necessariamente não privativas de liberdade), em detrimento daquela pena privativa de liberdade, «sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, as finalidades preventivas referidas no art. 40.º, n.º 1, do Código Penal (não relevando a culpa).

Nos termos do art. 50.º, n.º 1, do Código Penal, «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Assim, para além do pressuposto formal referente à pena de prisão aplicada em medida igual ou inferior a 5 anos, a suspensão da execução da pena de prisão exige, em termos de pressuposto material, que, atendendo à personalidade do arguido (designadamente, ao seu carácter e inteligência), às suas condições pessoais (inserção familiar, social e profissional), às circunstâncias do facto, e à sua conduta anterior (antecedentes criminais, respectiva natureza e penas aplicadas) e posterior (nomeadamente, confissão, arrependimento e reparação de danos) ao facto, a tutela dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade se afigurem como possíveis com a simples censura do facto e com a ameaça da prisão

Trata-se de realizar um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, formular um juízo de que o mesmo não praticará novos crimes, juízo este reportado ao momento da decisão (e não da prática do crime).

A suspensão da execução da pena de prisão tem «na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito. Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos» (Ac. do TRP 16-12-2020, proc. n.º 829/18.3GBAMT.P1, www.dgsi.pt).

Portanto, exige-se a expectativa fundada de que a ressocialização em liberdade pode ser alcançada, com base em razões sérias que levam a acreditar na capacidade do delinquente para a autoprevenção do cometimento de novos crimes.

O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos, de acordo com o disposto no art. 50.º, n.º 5, do Código Penal.

Ora, assim não sucede no presente caso.

Apesar das 24 anteriores condenações sofridas (relembremos: 5 crimes de condução sem habilitação legal, 4 crimes de condução em estado de embriaguez, 4 crimes de desobediência, 1 crime de roubo qualificado, 1 crime de cultivo de estupefacientes para consumo, 1 crime de detenção de arma proibida, 6 crimes de injúria agravada, 1 crime de difamação agravada, 1 crime de ameaça agravada), o arguido voltou a delinquir, indiferente às advertências que lhe tinham sido feitas, indiferente às oportunidades que lhe foram sendo dadas, sem qualquer mudança do seu comportamento.

O arguido patenteia, pois, uma indesmentível propensão para praticar crimes, propensão essa que não foi sequer refreada pelas condenações em duas penas de prisão efectiva (uma das quais foi a última pena aplicada).

O que fica dito é demonstrativo do alheamento do arguido à censura que lhe que vem sendo dirigida perante a mais gravosa reacção criminal decorrente dos distintos crimes cometidos e da sua incapacidade para se afastar do cometimento de futuros ilícitos.

A frustração das anteriores penas aplicadas inviabiliza um juízo de prognose positivo sobre a possibilidade de uma ressocialização do arguido em liberdade à luz das exigências de prevenção especial. A ameaça da prisão não iria impeli-lo a não voltar a praticar crimes, como até agora as últimas quatro penas de prisão suspensas não o fizeram. Que sentido faria mais uma suspensão de uma pena de prisão? E se dúvidas houvessem quanto a tal facto, as mesmas ficam dissipadas com a circunstância de o arguido ter praticado o crime aqui em causa pouco tempo após a sua última libertação.

Com o devido respeito por opinião diversa, do facto de o arguido não ter antecedentes criminais pela prática do mesmo crime não decorre atenuante que mitigue estas exigências de prevenção especial, muito menos ao ponto de justificar uma suspensão da pena.

Desde logo, porque estando em causa um crime que visa tutelar a saúde física, psíquica, emocional e moral, também os crimes de injúria, difamação, ameaça tutelam bens jurídicos conexos (estando, inclusivamente, em relação de concurso aparente), sendo que o crime de roubo também protege reflexamente a liberdade individual de decisão e acção, a integridade física e a vida.

Em todo o caso, temos para nós que a circunstância de o arguido percorrer vários capítulos da Parte Especial do Código Penal e de legislação avulsa, incorrendo na prática dos mais variados crimes, se alguma coisa é capaz de denunciar é uma personalidade manifestamente antijurídica e insensível a uma pluralidade de bens jurídicos. Personalidade esta que não vislumbramos como possa ser segmentada de forma a afirmar-se que, pela singeleza de os crimes ora em causa não serem os mesmos que os anteriores, então o arguido já conseguirá ser influenciado positivamente por esta pena substitutiva, sobretudo se o cumprimento da pena mais gravosa que lhe podia ser aplicada (por outros crimes) não logrou impedi-lo de retomar a sua incursão criminosa.

E, na verdade, o arguido vem sucessivamente praticando crimes desde o ano de 2001 quando tinha apenas 17 anos de idade, incursão criminosa esta que foi apenas interrompida pelo primeiro período prolongado de reclusão.

Acresce que, conforma também já se aludiu, a personalidade documentada nestes factos pelo arguido é reveladora de manifesta agressividade, irascibilidade, impulsividade, desumanidade e crueldade, visando uma pessoa que o próprio considera uma mãe e de quem declara repetidamente “gostar muito”. Aliás, mesmo na audiência de julgamento foi por demais perceptível a incapacidade de contenção e auto-controlo do arguido, bem como a sua irascibilidade, irritando-se com as perguntas formulados à testemunha DD pelo Ministério Público e chegando mesmo a pedir para abandonar a sala por não se conseguir suster.

A situação pessoal do arguido, descrita na matéria de facto, não permite concluir por uma real inserção social e profissional da sua parte, não se lhe conhecendo actividade laboral regular, sendo que a integração familiar que possuía, primeiramente, no agregado materno foi pautada pelo conflito relacional e, posteriormente, com a ofendida foi marcada pela instabilidade residencial e a insuficiência económica, culminando com a prática dos factos aqui em causa.

O arguido apresenta um percurso de vida, como se disse, pautado pela precariedade laboral e pela instabilidade familiar e relacional, sendo que a integração na residência dos avós foi impulsora dos factos ora julgados.

Tão-pouco revela crítica para o consumo abuso de álcool e para a necessidade de tratamento.

Como conduta posterior aos factos, o arguido não beneficia de arrependimento ou de juízo de auto-censura, não interiorizando a ilicitude dos factos sob julgamento.

A personalidade do arguido tem-se revelado refractária a uma normal convivência na comunidade de acordo com o dever-ser jurídico-penal, sendo certo que nem o cumprimento anterior de penas de prisão efectiva serviu de suficiente advertência e inibição à prática de crimes de múltipla natureza.

O arguido não evidencia interiorização de valores que possam sustentar mudanças efectivas no seu comportamento futuro, de modo adequado a evitar a repetição de condutas delituosas.

Em suma, do ponto de vista preventivo-especial, os antecedentes criminais do arguido (cujas penas não foram suficientes para o refrear na prática dos factos agora em julgamento), a conduta anterior e posterior ao ilícito, as condições da sua vida e, bem assim, a gravidade dos factos praticados e a personalidade por eles revelada (vincada por incapacidade de autodomínio), inviabiliza um juízo de prognose positivo sobre a possibilidade de uma ressocialização do arguido em liberdade.

Convocando ainda que o supra se expôs em sede de exigências de prevenção geral, também resulta que o sentimento comunitário de vigência das normas violadas numa situação, como a dos autos, de crime de dirigido contra a saúde e dignidade da avó de avançada idade, praticado por arguido com sucessivas condenações penais, por variados tipos de crime, com benefício anterior de suspensão de pena e com cumprimento de penas de prisão efectiva, ficaria irremediavelmente afectado pela aplicação desta pena substitutiva.

Nesta confluência, na consideração de que, por apelo aos critérios da razoabilidade e boa prudência, a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não se determina a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

2.2.3. DAS PENAS ACESSÓRIAS

O Ministério Público indicou na acusação o normativo referente às penas acessórias previstas no art. 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal.

As penas acessórias são penas cuja aplicação pressupõe a prévia determinação de uma pena principal ou de substituição, mas esta não é condição suficiente, pois «torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 197).

A sua fixação é realizada de acordo com uma valoração autónoma dos critérios gerais de determinação das penas previstos no art. 71.º do Código Penal e de acordo com pressupostos autónomos ligados aos factos praticados.

De acordo com o disposto no art. 152.º, n.º 4, do Código Penal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de (i) proibição de contacto com a vítima, (ii) proibição de proibição de uso e porte de arma (ambas pelo período de seis meses a cinco anos) e (iii) obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

Como se aduz no Acórdão do TRP de 16-03-2011 (proc. n.º 607/09.0PPPRT.P1, www.dgsi.pt), «O impacto dos números deste tipo de criminalidade e a gravidade de certos atos facilitados pela proximidade do agressor em relação à vítima, justificam uma abordagem punitiva alargada [“um tratamento holístico – transversal e integrado” nas palavras da exposição de motivos do III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2009)] que procure garantir não só a segurança, a tranquilidade e o restabelecimento da vítima mas, também, a recuperação física e psicológica do agressor, através de adequado tratamento e acompanhamento médicos».

Relativamente à pena acessória de proibição de contacto com a vítima, ela engloba qualquer tipo de contacto, seja presencial ou por meio de comunicação à distância.

No caso em apreço, considerando que foi aplicada pena de prisão, que os factos surgem em contexto de consumo abusivo de álcool (que inexistirá num estabelecimento prisional), que se mantém o forte vínculo afectivo entre arguido e vítima, tendo esta manifestado não desejar prosseguir com o procedimento criminal (e «não se pode aplicar, nessas circunstâncias, a pena acessória de proibição de contactos com a vítima (…), sob pena de ilegítima ultrapassagem da liberdade e da autonomia de vontade da própria ofendida» - Ac. do TRE de 29-11-2016, proc. n.º 195/15.9GCCUB.E1, www.dgsi.pt), afigura-se-nos não se justificar a aplicação desta pena acessória.(…).”

Nenhum reparo nos merece a sentença recorrida também neste temário. Subscrevemos integralmente todas as considerações transcritas, que, a mais de exaustivas, se nos afiguram acertadas e respeitadoras dos critérios legais. Assim, e ao contrário do que propugna o recorrente, a elevadíssima censurabilidade que nos merecem as suas condutas, associada à grave ilicitude dos factos e às intensas necessidades de prevenção especial e geral, que se mostram corretamente avaliadas pelo tribunal a quo, sustenta totalmente as penas de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão e de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica. Por outro lado, revela-se manifestamente desadequada a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão em virtude de o juízo de prognose que a sua aplicação demanda se revelar claramente desfavorável pelas razões que o tribunal recorrido muito bem explicou, nada mais se nos oferecendo acrescentar a tal respeito, atenta a completude da fundamentação constante da sentença. Na verdade, o tribunal recorrido, quanto à determinação da medida da pena, disse tudo e disse bem, pelo que qualquer outra consideração a este propósito se revelaria repetitiva.

Nesta conformidade, sopesadas todas as circunstâncias enunciadas, entendemos revelarem-se adequadas e proporcionais as penas principal e acessória aplicadas ao arguido, consignando-se o acerto no processo aplicativo desenvolvido na sentença, na qual avulta uma ponderação correta dos factos e uma adequada valoração dos mesmos à luz das regras e dos princípios que regem a escolha e a determinação da medida concreta da pena acima enunciados, pelo que o recurso deverá improceder também quanto a este aspeto.

Pelas razões expostas, improcedendo todos os fundamentos do recurso – com exceção dos erros materiais que importa retificar, nos termos acima explicitados – nenhum reparo nos merece a decisão recorrida, pelo que a mesma se manterá integralmente no que tange ao que aí se encontra decidido.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 6 de fevereiro de 2024

Maria Clara Figueiredo

Maria Filomena Soares

J. F. Moreira das Neves

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1 preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:

“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a ) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b ) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c ) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas , as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

2 3.ª edição, página 1121.

3 Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques in Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 9.ª edição, 2020, página 109.

4 Na sessão da audiência de julgamento realizada em 10.10.2023, afirmou o arguido, após a saída do arguido da sala: “Agora já saiu, já posso falar melhor! Eu estava aqui com medo…” E mais à frente: “Ele estava aqui a prender-me!”

5 Clarifica-se que, em esclarecimentos pedidos pelo Mmº juiz, a testemunha clarificou que a rua a que se havia reportado era o quintal da vítima.

6 Neste sentido decidiram, entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt.: acórdãos do STJ de 12.12.2018, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça e de 18.10.2018, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota; acórdão da Relação de Guimarães de 03.02.2014, relatado pela Desembargadora Teresa Baltazar; acórdãos da Relação de Lisboa de 23.11.2016, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, de 01.07.2021, relatado pelo Desembargador Abrunhosa de Carvalho e de 12.01.2021, relatado pelo Desembargador Paulo Barreto; acórdãos da Relação do Porto de 15.12.2021, relatado pela Desembargador Eduarda Lobo, de 25.02.2022, relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e de 18.01.2023, relatado pela Desembargadora Liliana de Pária Dias; acórdãos da Relação de Évora de 10.01.2017, relatado pelo Desembargador António João Latas e de 14.07.2020, relatado pelo Desembargador João Amaro.

7 Carlos Adérito Teixeira, in “Depoimento Indireto e Arguido: Admissibilidade e Livre Valoração versus Proibição de Prova”, Revista do CEJ, 1º semestre 2005, nº 2, páginas 140 e 141.

8 Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, nota 2 ao artigo 129.º, páginas 360. No mesmo sentido se pronunciou Luís Lemos Triunfante na anotação ao artigo 129º do CP no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª edição, tomo II, Almedina, abril de 2021, páginas 95 a 101.

9 Defendendo esta visão restritiva das possibilidades de valoração do depoimento indireto encontramos também os acórdãos da Relação de Guimarães de 11.02.2008, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, o acórdão da Relação do Porto de 10.09.2008, relatado pela Desembargadora Olga Maurício e o acórdão da Relação de Coimbra de 22.02.2023, relatado pelo Desembargador Vasques Osório (este restringindo a proibição em caso de recusa de depoimento da testemunha fonte às situações de recusa legítima), todos acessíveis in www.dgsi.pt.

10 Santos Cabral in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 531.

11 Uma vez que a regra na produção da prova testemunhal é a de que a testemunha é inquirida quanto aos factos sobre os quais possui conhecimento direto (artigo 128º, nº 1, do C. Processo Penal).

12 Acórdão do TC nº 213/94, publicado no D.R. II série, de 23 de agosto de 1994, acessível in www.tribunalconstitucional.pt.

13 Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 3ª Edição, 2008, pág. 158. Assim decidiram também os acórdãos da Relação de Coimbra de 07.10.2015, relatado por Vasques Osório; da Relação de Évora de 14.07.2020, relatado pelo Desembargador João Amaro e da Relação de Lisboa de 23.11.2016 e de 12.01.2021, relatados, respetivamente, pelos Desembargadores João Lee Ferreira e Paulo Barreto, disponíveis em www.dgsi.pt.

14 Ob cit, páginas 180 e ss.

15 Refere a este propósito a sentença que “(…) No mais, declarou [o arguido] genericamente nunca ter agredido a sua avó, embora tenha admitido a existência de discussões “normais”, e gostar “muito” da mesma por ter sido ela que o criou.

Apresentou justificações para os diversos factos imputados, ora porque tropeçou na cadela e caiu em cima da ofendida, ora porque esteve em causa apenas um “toque para se desviar”, sem queda, e não um empurrão (episódio do arroz), ora porque a avó toma comprimidos e “fica assim a falar coisas estranhas”, ora porque os palavrões não eram dirigidos àquela e estava apenas a falar com o tio “que é do Norte”, ora porque, enfim, “a GNR levou-a e como ela é um bocado velha devem ter tentado convencê-la que coiso…”. Referiu também que apenas bebia “umas cervejinhas” após o trabalho.

Ora, o teor destas declarações, por si só, é bem elucidativo sobre a credibilidade que as mesmas poderiam merecer. (…)”~

16 Helena Bolina, Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de inocência, Boletim da Faculdade de Direito, 70, 1994, pp. 433.

17 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pp. 215.