Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | MARIA DOMINGAS SIMÕES | ||
| Descritores: | PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO | ||
| Data do Acordão: | 11/27/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | I. Decorrência do princípio dispositivo, incumbe ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido, conforme impõe o artigo 552.º, n.º 1, alíneas d) e), do CPCivil. II. Diversamente das situações em que a petição inicial é inepta, o que configura nulidade insuprível, a prolação de despacho de aperfeiçoamento encontra-se reservada para os casos de mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida, afastando o juízo de ineptidão, pressupondo assim que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso. III. Do princípio consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do CPCiv. decorre, para além do mais, o dever de “o tribunal analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais”, esgotando “todas as possibilidades de procedência da acção”. (Sumário da Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Tribunal Judicial da Comarca de Santarém Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 3 Proc. 249/19.2T8STR.E1 I – Relatório (…) e mulher, (…), instauraram contra (…) e mulher, (…), e (…) e marido, (…), a presente acção declarativa de condenação, a qual segue termos apenas para apreciação do pedido subsidiário de condenação dos RR. no pagamento da quantia de € 648.200,00 para reparação dos danos de natureza patrimonial e € 60.000,00 para compensação dos danos não patrimoniais sofridos em consequência de, por ação dos demandados, terem ficado impedidos de utilizar as procurações por estes outorgada em seu favor, o que configuraram como ilícita revogação do mandato que lhes fora conferido. Em obediência ao acórdão proferido nos autos por este TRE – fls. 230 a 244 do PF –, foi proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial (cfr. o despacho com a Ref.ª 89425812), vindo os AA. a apresentar, assim acatando o convite, o articulado aperfeiçoado que faz fls. 319 e seguintes dos autos. Na petição aperfeiçoada alegaram os AA. ser o autor marido o dono, por lhe ter sido adjudicado em partilha de herança, do prédio misto sito na freguesia de (…), concelho de Salvaterra de Magos, com a área total de 12.030 m2, encontrando-se a parte rústica inscrita na matriz respetiva sob o n.º (…), da secção (…) e a parte urbana, compreendendo três edifícios destinados a habitação, inscrita sob os artigos (…), (…) e (…). O mesmo prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…) e aí inscrito a favor do demandante marido (Ap. …, de …), sobre ele incidindo usufruto a favor de (…), mãe do titular. Por ser desejo dos RR., seus filhos e genros, construir uma moradia no aludido prédio, decidiram os AA. ceder-lhes em doação terreno para o efeito. Face à impossibilidade, de que tomaram conhecimento, da desanexação em simultâneo de duas parcelas de terreno, e à necessidade, por exigência da instituição bancária que iria financiar a construção, de que o terreno se mostrasse registado em favor dos mutuários, mediante escritura pública outorgada no dia 8/2/2008 o A. marido declarou doar à sua mulher, a demandante (…), metade indivisa da nua propriedade do identificado prédio, tendo declarado doar a outra metade ao seu filho, o aqui 1º R. marido, (…). Em ato subsequente, a donatária mulher declarou doar à sua filha, a 2ª R. mulher (…), a metade indivisa que recebera, tendo os donatários reservado para si o usufruto do prédio doado, a constituir aquando do falecimento da primitiva usufrutuária e para o caso de lhe sucederem. Mais alegaram que no dia 19/2/2008 os donatários e ora RR. (…) e (…), com o consentimento dos respetivos cônjuges, outorgaram a favor dos AA. procuração irrevogável – porque outorgada também no interesse dos mandatários –, conferindo-lhes poderes para doarem a si próprios, por conta das quotas disponíveis de cada um dos doadores, a metade indivisa da nua propriedade que daqueles haviam recebido em doação formalizada pela escritura celebrada em 8 de Fevereiro. Com a outorga das procurações e reserva de usufruto ficava salvaguardada a posição dos AA. como donos da nua propriedade e futuros usufrutuários da parcela sobrante, intenção comum aos RR., uma vez que, conforme todos sabiam, os primeiros apenas quiseram doar as parcelas para construção das moradias, com a área de 1.127 m2 cada, localizadas na confinância com a via pública. Sucede que sem o conhecimento ou consentimento dos AA., os RR. levaram a cabo a desanexação de um terreno para construção com a área de 6.015 m2, que se autonomizou do prédio original e deu origem ao urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos sob o n.º (…), da freguesia de (…). Por força dessa operação passaram a existir dois prédios distintos, encontrando-se inscrito em favor do 1º R. marido o descrito sob o n.º (…) e em favor da 2ª R. mulher o descrito sob o n.º (…), metade adquirida por doação dos AA. e a outra metade por permuta dos donatários. Os RR. vieram posteriormente a justificar a desanexação e negócios de permuta, alegando que se destinaram a satisfazer exigências das entidades bancárias, e porque a realização de novo destaque resultava impedida pelo período de 15 anos acordaram na celebração com os AA. de contratos promessa, nos termos dos quais prometiam vender a estes as parcelas de terreno e urbanos que, na verdade, nunca deixaram de lhes pertencer, promessas de venda que assim eram, também elas, simuladas. Acresce que os AA. emigraram para o Brasil no final de 2008 e aí se mantiveram durante 9 anos. No entanto, quando se deslocavam a Portugal, continuaram a usar e fruir o prédio, com exceção da parte onde os RR. implantaram as moradias. Em 2017 os AA. regressaram definitivamente a Portugal, tendo sido confrontados com alteração do comportamento até aí assumido pelos RR., que passaram a arrogar-se os únicos donos de todo o prédio, declarando que só por mera tolerância permitiam que aqueles residissem num dos imóveis edificados, impedindo-os todavia de acederem ao pavilhão industrial ou à parte rústica do prédio. Os AA., visando a salvaguarda do seu património, tentaram utilizar as procurações irrevogáveis, o que resultou inviabilizado pela transformação do prédio originário em dois prédios autónomos e distintos daquele. A operação de destaque e subsequentes permutas realizadas pelos RR. conduziram à inutilização da procuração, permitindo que se apoderassem do imóvel pertencente aos AA. e construções nela implantadas, isto com exceção das parcelas ocupadas pelas moradias por aqueles construídas, únicas que foram objeto de doação, e cujo valor global ascende aos reclamados € 598.200,00, a que acresce indemnização pelos danos de natureza patrimonial, a qual deve ser fixada no montante de € 60,000,00. Na contestação, vieram os RR. invocar a ineptidão da petição inicial, que é causa de nulidade de todo o processo, tendo todavia oferecido impugnação especificada, refutando a versão dos factos apresentada pelos demandantes. Os AA. responderam, pronunciando-se no sentido de não se verificar a arguida exceção dilatória. * Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se considerou que, tendo sido formulado convite ao aperfeiçoamento “que os AA. não aproveitaram, estamos agora perante uma ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, que gera a nulidade de todo o processo”, tendo de seguida declarado “nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir”, absolvendo em consequência os RR. da instância. Ainda irresignados apelaram novamente os AA. e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formularam a final as seguintes conclusões: “a) Do Acórdão proferido em 15/04/2021 por este Venerando Tribunal, resulta que a Sentença então objecto de recurso não considerou matéria controversa entre as partes, pelo que a decisão de mérito tomada quanto à matéria então sub judice, absolvição dos Apelados dos pedidos subsidiários sobrantes deduzidos pelo Apelante e A. mulher, fosse prematura; b) Por outro lado, sinaliza que o devido escrutínio daqueles, por já o indiciarem, poderá levar a verificação de excepção dilatória de conhecimento oficioso por o negócio, doações, se poder qualificar de simulado; c) Em decisão, julgou-se procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deveria ser substituída por despacho convite ao aperfeiçoamento, prosseguindo depois os autos a sua normal tramitação; d) No seguimento desta decisão foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, a 09/03/2022, com o seguinte teor: “Tendo em consideração o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, notifique os AA. para alegarem factos integradores da causa de pedir relativa ao pedido subsidiário de condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização no valor de € 648.200,00 por prejuízos causados e de uma indemnização no valor de € 60.000,00 por danos não patrimoniais”; e) Os autores deram satisfação a este despacho 28/03/2022, apresentando nos autos a sua petição aperfeiçoada; f) Não obstante, entendeu o Tribunal a quo, em saneador sentença proferido a 21 de Junho, declarar nulo todo o processo por ineptidão da petição inicial, por falta da causa de pedir; g) Salvo melhor opinião, esta decisão da 1ª Instância não toma em devida consideração o factualismo apresentado pelo Apelante na sua petição aperfeiçoada, nomeadamente o referido nestas alegações sob o capítulo B), n.º 1, alíneas (i) a ( x), de fls. 20 e 21, e n.º 3, alíneas (i) a (iv), de fls. 22 a 23; h) Pelo que, se tendo dada integral satisfação ao despacho referido em c) das “Conclusões”, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, consequentemente, por Douto Acórdão, ser a Sentença revogada e ordenado que o processo retome os seus trâmites normais”. * Assente que pelo teor das concussões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se, conforme se entendeu na decisão recorrida, a petição inicial é inepta. * II. Fundamentação Interessam à decisão os factos constantes do relatório que antecede. Mostrando-se transitada em julgado a decisão proferida, no segmento em que julgou improcedentes os pedidos formulados em a) e b) (que fosse declarado que os mandatos conferidos pelos 1º Réu marido e 2ª Ré mulher, com o consentimento dos respetivos cônjuges, não haviam sido revogados, podendo ser exercitados, de forma a que a nua propriedade dos prédios ficasse a pertencer aos AA (a); e fossem declaradas nulas as declarações de renúncia aos usufrutos futuros b)), pretendem agora os demandantes, conforme pediram subsidiariamente, a condenação dos RR. no pagamento de indemnização correspondente ao valor do prédio àqueles pertencente e de que ilicitamente se apropriaram. Tal apropriação, dizem, foi resultado da “inutilização”, por causa que aos demandados é imputável, da procuração irrevogável emitida a favor dos primeiros, e de que resultou impedimento à acordada reversão do negócio de doação, ainda que limitada à parte sobrante, que os doadores não quiseram doar, conforme era de todas as partes conhecido. A petição inicial veio a ser julgada inepta por falta de causa de pedir, por se entender que os AA., pese embora o convite formulado, continuaram a omitir factos relevantes para a decisão e que, sujeitos à previsão normativa, permitiriam qualificá-los juridicamente, não tendo ainda concretizado os prejuízos graves que, em consequência da atuação dos RR, teriam sofrido. Vejamos se tal entendimento é de secundar. O princípio dispositivo – enquanto “liberdade das partes na decisão de propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar)”[1] – pese embora a ausência de referência explícita ao mesmo, vigora na nossa lei processual civil (cfr. o artigo 3.º e n.º 1 do artigo 5.º). É decorrência do mencionado princípio a incumbência do autor de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e formular o pedido, conforme impõe o artigo 552.º, n.º 1, alíneas d) e), do CPC. A propósito da causa de pedir, o STJ esclareceu no acórdão de 18 de Setembro de 2018 (proferido no processo 21852/15.4 T8PRT.S1, acessível em www.dgsi.pt. que “(…) a causa de pedir, legalmente definida (artigo 581.º, n.º 4, do CPC) como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do artigo 5.º, n.º 3, e nos limites do artigo 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor (…). É o que se designa por princípio da causa de pedir abertas. Nessa conformidade, a causa de pedir pode ser, analiticamente, configurada por dois vetores complementares: a) – o seu perfil normativo, que a doutrina designa por causa de pedir próxima (…), traçado não em função da qualificação jurídica dada pelo autor, mas à luz do quadro das soluções de direito plausíveis que ao tribunal cumpre, a final, convocar, em função do efeito prático-jurídico pretendido; b) – o seu substrato factológico, também designado por causa de pedir remota (…), o qual é preenchido, segundo um critério empírico-normativo, em função do tipo de factualidade desenhada, em abstrato, na factis species aplicável, tendo ainda em conta os critérios de repartição do ónus da prova formulados a partir do sobredito efeito prático-jurídico”. E com recurso à lição do Prof. Miguel Teixeira de Sousa (Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Iuridica 2013, tomo LXII, n.º 332, págs. 395 e ss, págs. 401-402), acrescenta-se que “A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. O critério para delimitar a causa de pedir é necessariamente jurídico. É a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir. (…) Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica: eles não são factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demonstra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstrato, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais. (…) Assim, embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir. (…) Em suma, sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.”. É certo que, conforme se refere na decisão recorrida em citação de A. Geraldes, P. Pimenta e Pires de Sousa, in CPC Anotado, ocorre ainda falta de causa de pedir se a alegação não permitir identificar o tipo legal aplicável, situação completamente diversa daquela outra em que, coincidindo ou não com a indicação do A., e sendo a alegação mais ou menos completa, é possível identificar o quadro normativo aplicável. A este propósito assume ainda relevância o disposto no n.º 3 do citado artigo 5.º, nos termos do qual o juiz não se acha vinculado às alegações das partes no que toca à indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis (cfr. acórdão do STJ de 16/2/2023, processo 3063/18.9T8PTM.E2.S1). Quanto ao alcance do princípio em causa, explicou-se, por apelo à lição do Prof. MTS (CC anotado), que se refere “(…) tanto à admissibilidade do processo, como à admissibilidade e validade dos actos processuais, como ainda à apreciação do mérito da causa. Deste postulado decorrem três corolários: - Um de carácter negativo: o tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo por um acordo destas) quanto ao direito aplicável na decisão da causa; daí que o tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes; - Um outro igualmente de carácter negativo: as partes não podem afastar a aplicação pelo tribunal das regras de carácter imperativo, apesar de, naturalmente, poderem dispor das regras de natureza supletiva através das estipulações que as substituam; assim, por exemplo, as partes não podem pretender que o tribunal aprecie apenas a justificação para o incumprimento de um contrato se o mesmo for considerado inválido por violação da forma legal; - Finalmente, um outro de carácter positivo: o tribunal deve analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais; este dever de esgotamento das qualificações jurídicas é, em regra, irrelevante quando a acção proceder, porque para o autor é, em princípio, indiferente o fundamento desta procedência, mas é sempre relevante quando a acção houver de ser julgada improcedente, porque, neste caso, há que esgotar todas as possibilidades de procedência da acção”. Em suma, e conforme se conclui no citado aresto, “Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar”. Por outro lado, importa ter presente que a prolação de despacho de aperfeiçoamento encontra-se reservada para os casos de mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida, afastando o juízo de ineptidão, ou seja, pressupõe que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso. Por isso, conforme sinalizam os autores citados (Código Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 679), “O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos”. Diversamente, a petição inicial inepta – com fundamento, para além do mais, na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CPCiv. – não é suscetível de ser salva e, portanto, não pode ser objeto de despacho de aperfeiçoamento, configurando uma nulidade insuprível (cfr., por todos, o acórdão do TRL de 20/12/2022, no proc. 20802/21.3T8LSNB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt). Daqui decorre que, não sendo acatado o convite ao aperfeiçoamento ou sendo-lhe dado cumprimento deficiente, a inconcludência da alegação conduzirá, em princípio, a um julgamento de (de)mérito, e não à absolvição da instância. Revertendo ao caso dos autos, e tendo presente que o objeto do processo se encontra agora circunscrito ao pedido formulado em via subsidiária e causa de pedir que o sustenta, resulta da narrativa vertida na petição inicial aperfeiçoada, independentemente de corresponder ou não à realidade, o que por ora não releva, que entre AA. e RR., pais e filhos, foi celebrado negócio de doação, nos termos do qual os primeiros declararam doar aos segundos a nua propriedade do prédio que identificaram, de composição mista, que o A. marido havia adquirido por partilha a que se procedera por herança de seu pai. Todavia, e sempre segundo os AA., na verdade queriam doar apenas e só duas parcelas confinantes com a via pública, onde cada um dos casais RR. pretendia edificar uma moradia para nela passar a residir, operação de desanexação que não se mostrava possível, por de um destaque resultarem apenas e necessariamente dois prédios. Assim, e em ordem a contornar a interdição legal, os AA. declararam doar a totalidade do prédio, mas por acordo com os RR. e visando salvaguardar o seu direito de propriedade sobre o remanescente, logo os donatários outorgaram procurações irrevogáveis a favor dos primeiros, concedendo-lhes poderes para, por conta da QD dos mandantes, fazerem doação do mesmo prédio “a eles próprios, mandatários”. Sucede, porém, que por força das renúncias aos usufrutos, posterior operação de destaque e negócios de permuta celebrados entre os RR., de que resultaram dois prédios distintos, lograram cada um dos demandados (…) e (…) consolidar na sua titularidade exclusiva o direito de propriedade sobre cada um dos prédios autónomos. E porque de tais operações resultou uma realidade jurídica diversa, não puderam os AA., mandatários, fazer uso da procuração outorgada a seu favor para reaver o prédio, assim se concretizando a apropriação pelos RR. da totalidade do mesmo, ficando aqueles impedidos de o usar e fruir. Parece aqui pertinente observar que a invocação dos contratos promessa visou apenas a demonstração de que os AA. quiseram apenas doar as parcelas onde os RR. vieram a edificar as moradias, com a área ali indicada, o que era do conhecimento dos donatários, e tanto assim que se vincularam a (re)transmitir aos doadores o prédio sobrante. Está assim em causa a alegação de meros factos instrumentais com relevância para a decisão, que sempre poderiam ser considerados caso resultassem da discussão da causa (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPCiv.) e não o alargamento não autorizado da causa de pedir, conforme entendeu a 1ª instância. Face a tal narrativa, radicando os AA. o seu direito a serem indemnizados pelo valor do prédio – o qual, como alegado e não impugnado, deu origem a dois prédios autónomos, os quais, deste modo, concedem que permaneçam em poder dos demandados- no incumprimento, a estes imputável, do mandato conferido pela procuração, decorrente da “inutilização” deste instrumento, estamos no domínio da responsabilidade contratual, afigurando-se que, independentemente do mérito, se encontra suficientemente individualizada a causa de pedir, através da alegação dos factos essenciais que a conformam. Com efeito, determinar se os factos alegados, caso se venham a provar, integram uma revogação sem justa causa ou configuram antes extinção da procuração por se ter extinguido a relação base com fundamento em perda do objeto, aqui também imputável aos mandantes, enquanto fontes da obrigação de indemnizar, integra já as operações de indagação, interpretação e normas jurídicas, na execução das quais o juiz goza de ampla liberdade. Mas uma razão mais existe para que não possa subsistir o despacho recorrido: atentando no teor da contestação, revela a mesma terem os contestantes interpretado cabal e convenientemente a petição inicial aperfeiçoada, tendo impugnado de forma competente a factualidade alegada (cfr. o artigo 186.º, n.º 3, do CPCiv.). Assim, tendo embora admitido que, conforme alegado pelos AA., as moradias foram construídas e a renúncia aos usufrutos, existente e a constituir, ocorreu por imposição da instituição bancária financiadora, ao exigir que o prédio estivesse desonerado, contrapuseram que de tudo aqueles tiveram prévio e completo conhecimento, avançando ainda uma outra e diversa justificação para a outorga da procuração irrevogável, tendo finalmente invocado o abuso de direito, subsistindo deste modo, conforme se tinha já assinalado no acórdão anteriormente proferido, matéria controvertida com relevância para a decisão. Por último, e quanto aos danos cujo ressarcimento vem pedido, tendo os AA. alegado que, em razão da conduta dos RR. se viram ilícita e injustamente privados do prédio de que eram proprietários, com exceção da parcela na qual foram por estes edificadas as moradias, único objeto da doação pretendida, tendo reclamado o valor que ao mesmo atribuem, tal corresponde ao dano efetivo, ainda que obviamente dependente de demonstração. Decorre de todo o exposto não poder manter-se a decisão recorrida, impondo-se o prosseguimento dos autos com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.º do CPC. * Sumário: (…) * III. Decisão Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que promova os ulteriores termos do processo, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.º do CPC. Custas a cargo dos RR., que decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.). Évora, 27 de Novembro de 2025 Maria Domingas Alves Simões Isabel de Matos Peixoto Imaginário Mário João Canelas Brás __________________________________________________ [1] Prof. Dr.ª Mariana França Gouveia, “O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, in “Estudos em Homenagem aos Profs. Palma Carlos e Castro Mendes”, acessível em http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.p |