Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
281/04.0TALGS.E2
Relator:
JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: PERÍCIA
VIOLAÇÃO DAS ``LEGES ARTIS´´
REENVIO
Data do Acordão: 10/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Dada a importância de que se reveste a perícia, com a presunção de que o seu juízo se presume subtraído à livre apreciação do julgador - salvo discordância expressa na mesma área material do juízo técnico-científico emitido - o legislador português optou claramente por um modelo de perícia pública, oficial, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência.

2. A Inspecção Geral de Saúde não é uma entidade pública a quem o instituto da perícia processual penal reconheça competência para nomear peritos em substituição do Ministério Público ou do Tribunal.

3. Se os “peritos” não foram nomeados pelo Ministério Público ou pelo Tribunal e não prestaram compromisso não lhes pode ser reconhecida a especial qualidade que é inerente à figura do perito em processo penal.

4. O mesmo ocorre com os médicos que sejam ouvidos no decorrer da audiência de julgamento. São meras testemunhas que emitiram “pareceres” numa área técnico-científica, passe a estranheza, face à estreita previsão de meios de prova do nosso Código de Processo Penal.

5. Em termos processuais penais não são peritos e os seus pareceres não adquiriram a qualidade de juízo científico para os efeitos do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal. Logo, todos esses pareceres – mesmo que documentados - devem ser apreciados livremente no conjunto da prova produzida.

6. São três as etapas essenciais no caminho a percorrer pelo emitente de um juízo científico: os factos; a razão científica ou, se se preferir, a metodologia científica, e suas relações com a conclusão, o juízo científico emitido.

7. Uma base factual irrepreensível será condição essencial do acerto do “juízo científico” e da sua aceitabilidade judicial. A exposição pública e compreensível da metodologia utilizada é outro requisito essencial.

8. Ao julgador será não apenas possível, também imposto, que controle, para além dos factos que determinam a emissão de um “juízo científico” e a própria metodologia do “juízo científico” emitido, o “nexo lógico entre as premissas de facto dessas perícias e as suas conclusões”. Determinante nesta análise será, pois, a relação lógica, científica, que se estabelece entre os fundamentos e as conclusões do relatório.

9. Os fundamentos de facto, “os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz”.

10. Face à legislação processual penal portuguesa e perante os novos desenvolvimentos jurisprudenciais e à própria metodologia de busca da verdade material, os passos reconhecidos como essenciais para a aceitação de um juízo científico são quatro: saber se existe perícia reconhecida e se estão cumpridos os requisitos formais atinentes às notificações e exercício possível do contraditório (possibilidade de indicação de consultores técnicos); saber se o parecer assenta em factos e dados suficientes e judicialmente aceites; se foram utilizados princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança; se esses princípios e métodos foram devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado.
11. Um juízo emitido sem o cabal esclarecimento de todos os factos e causas, não é um juízo científico, é uma mera opinião. E uma opinião é aquilo que, de intermédio, fica entre a ignorância e a ciência, no dizer de Platão uma faculdade – diferente da ciência – capaz de fazer juízos sobre a aparência. Nenhuma decisão judicial se pode basear em opiniões. As opiniões têm o seu espaço informal próprio. Uma opinião é apenas uma afirmação mal pensada ou, para a lógica, uma atitude não crítica ou pouco crítica, uma crença no meramente provável.

12. O tratamento abusivo de uma testemunha como perito e a inexistência de factos de exposição metodológica num parecer são irregularidades mas de conhecimento oficioso – artigo 123.º do Código de Processo Penal – pois que a qualificação de uma testemunha como perito e a inexistência daqueles factos e metodologia afectam, sobremaneira, o valor dos actos praticados pela atribuição abusiva de uma qualidade científica a pareceres que não têm essa qualidade e pela atribuição a uma testemunha de uma qualidade que não têm: a de perito.

13. O mesmo ocorre se a opinião é prestada extra-processo, mesmo que na qualidade de perito reconhecida por outra entidade, designadamente entidades administrativas, mas em que não tenha sido cumprido o formalismo de nomeação previsto nos artigos 151.º e segs. do Código de Processo Penal.

14. Não basta afirmar que as condutas estão de acordo com as leges artis: é necessário dizer quais elas sejam (dá-las como provadas ou não provadas) para que o tribunal possa formular um juízo (o seu próprio juízo) de adequação das condutas dos arguidos ao seu dever de agir.

15. As leges artis são soft law (mollis lex), instrumentos normativos, por natureza não vinculativos, a que o direito constituído, o hard law (dura lex), recorre para definir parâmetros de comportamento seguro, fiável ou desejável, dessa forma conformando aspectos relevantes do dever de agir.

16. No caso do direito penal português e para o que releva no caso sub judicio, é o próprio legislador, de forma expressa, a fazer apelo às leges artis no artigo 150.º do Código Penal e a conformar o tipo penal ao seu cumprimento.

17. É tarefa do tribunal apurar qual seja essa lex artis ad hoc (a aplicável ao caso concreto), explaná-la de forma clara e compreensível e, após, formular o seu próprio juízo sobre o seu cumprimento ou incumprimento. Porque esse juízo é determinante no apuramento da verificação da ilicitude e da culpa, tendo presente que a obrigação médica é uma obrigação de meios e de diligência e não uma obrigação de resultado.

18. E é, necessariamente, um juízo judicial. Assim como é, necessariamente, uma questão de facto, não uma questão de direito, de interpretação ou de opinião.

19. Para apurar as legis artis e a lex artis ad hoc deve o tribunal fazer uma análise profunda das causas e efeitos dos actos médicos, obrigando-o a mergulhar na análise precisa de todos os factos e a exigir, para todos eles, uma explanação e explicação exaustiva que fundamente o seu conhecimento de facto, arredando-o de uma simples operação de análise aritmética de opiniões médicas, o melhor caminho para a actuação de opiniões corporativas.

20. Deve entender-se como causa de morte a doença (substantiva) ou actuação que directa ou indirectamente desencadeia mecanismos de morte e, sendo estes alterações físico – patológicas irreversíveis que conduzem à morte, não se levantam dúvidas sobre a afirmação de que uma actuação da arguida durante o episódio anestésico pode surgir como a causa de morte, surgindo a insuficiência respiratória e a paragem cardíaca como mecanismos de morte.

21. Logo, a análise dos procedimentos da arguida médica é parte essencial do estabelecimento do nexo causal entre a sua conduta e as mortes ocorridas (conduta/ causa de morte – mecanismo de morte – morte).

22. Essa análise passa por uma contra-posição entre o agir efectivo e o dever-ser em termos de conduta médica.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual são arguidos:

ML, solteira, médica, e
FC, casado, médico,
A quem havia sido imputada a prática:
- à arguida ML, de dois crimes de homicídio por negligência p. e p, pelos arts. 137º, nº 1 e 30° 1 do Cód. Penal; e
- ao arguido FC, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do Cód Penal.
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A assistente M.S, e M.G, pais do falecido RG, deduziram pedido de indemnização civil contra ambos os arguidos e contra o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE, …, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhes a quantia de 190.000,00 € a título de indemnização por danos morais, acrescida de juros vincendos contados a partir da notificação do pedido indemnizatório.
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O assistente AE, viúvo, e RE e GE, viúvo e filhos da falecida AE, deduziram pedido de indemnização civil contra ambos os arguidos e contra o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE, …, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe a quantia de 291.180,70 € a título de indemnização por danos sofridos, acrescida de juros vincendos contados a partir da notificação do pedido indemnizatório.
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Em contestação, os arguidos ofereceram o merecimento dos autos e afirmaram a sua inocência, pois agiram de acordo com todas as regras de cuidado e todas as regras técnicas.

Deduzem ainda incidente de intervenção acessória provocada de "…, Companhia de Seguros, SA", por, para esta seguradora, terem transferido a sua eventual responsabilidade civil decorrente da sua actividade clínica.
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Admitida a intervir, "… Companhia de Seguros, SA", excepcionou a competência do tribunal para conhecer dos pedidos de indemnização e impugnou pontos da matéria sustentadora dos pedidos cíveis.
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O Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE, contestou o pedido de indemnização civil contra si deduzido, excepcionando também a competência do tribunal para conhecer dos pedidos de indemnização. Refere que os factos pelos quais os arguidos vêm pronunciados não constituem crime.
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Recurso interlocutório
Entretanto, em recurso interlocutório, a assistente MS recorreu do despacho lavrado na acta de audiência de julgamento de 22-04-2008, a fls. 2.512, apresentando as seguintes conclusões:

I - Durante a sessão de julgamento do passado dia 22 de Abril de 2008 a testemunha AC prestou declarações que entravam em discrepância parcial com o depoimento que prestou na fase instrutória (cfr. fls. 1.502).
II - Durante a audiência de julgamento a supra referida testemunha admitiu ter visto no Hospital de Lagos, por mais do que uma vez, dois anestesistas vindos de Portimão, mas fê-lo sem a convicção manifestada durante a instrução e sem referir que tal facto era uma regra ou que acontecia sempre, dando a entender que aquilo que observara (dois anestesistas) poderia ser uma situação ocasional ou uma coincidência e não a regra.
III - As declarações prestadas na fase de Instrução foram muito mais incisivas sobre essa matéria, o que levou à assistente, aqui recorrente, a requerer ao abrigo do artigo 356.°, n.º 3 al. b) do CPP, a leitura em audiência das mesmas.
IV - Um dos factos a provar pela acusação, e que consta expressamente do despacho de pronúncia, é o seguinte: "É sempre aconselhada a actividade do anestesista no bloco operatório com a presença de outro anestesista na proximidade para intervir em situações como as que o presente processo vieram a revelar" (ponto 13).
V - O facto dos anestesistas de Portimão apenas se deslocarem para o Hospital de Lagos quando acompanhados por um colega da mesma especialidade revela que estes profissionais de saúde, ao contrário da arguida, tomavam as precauções que lhes eram exigíveis minimizando dessa forma os riscos inerentes à sua actividade.
VI - O despacho recorrido violou o art 356.°, n.º 3 al. b) do CPP,
VII - bem como violou o princípio da investigação e o dever de descoberta da verdade material.
VIII - A omissão de diligências de produção de prova, que se possam ter como essenciais para a descoberta da verdade, o que aconteceu no presente caso, configura uma nulidade processual cfr. art. 120° nº 1 al. d) do CPP.
IX - Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que seja substituído por outro que admita a leitura do depoimento prestado em sede de instrução pela testemunha AC. Se assim se fizer será feita JUSTIÇA
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A final - por acórdão lavrado a 17/07/2008 - veio a decidir o Tribunal recorrido julgar a pronúncia improcedente e em absolver ambos os arguidos e, igualmente, julgar os pedidos de indemnização civil improcedentes, deles absolvendo os demandados.
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Recursos principais
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MS, assistente, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

I – A recorrente mantém interesse na apreciação do recurso interlocutório por si interposto durante a fase de julgamento.
II – Foram indevidamente considerados como não provados, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes pontos da matéria de facto:
5 – que o doente RM se tenha extubado devido à metabolização do indutor mais rápida do que o normal (esta causada pelos hábitos alcoólicos do doente, tendo ainda presente a dose administrada em conjugação com o peso do doente), tendo ocorrido uma superficialização da consciência que foi o que causou o movimento tipo convulsão do doente;
7 – que os arguidos tenham decidido actuar mesmo sendo previsível a ocorrência de complicações anestésicas e que estas fossem previsíveis;
8 - que a arguida não tenha actuado com o devido cuidado, administrando medicamento em tempo oportuno que obviasse a possibilidade de superficialização mais rápida do indutor;
9 – que a inobservância das regras de cuidado elencadas determinaram a precipitação dos acontecimentos nos termos narrados;
11 – que o arguido PC, quando dispensou a colaboração que os médicos anestesistas de Portimão vinham prestando no HDL, tivesse plena consciência que o HDL ficaria a breve prazo com apenas uma anestesista (provou-se que tinha apenas consciência que essa era uma possibilidade);
12 – que a arguida fosse uma jovem sem experiência;
13 – que o arguido PC, pelas funções que desempenhava, pela sua experiência de vida e profissional, pelos conhecimentos específicos da sua especialidade clínica e, sobretudo, pelo conhecimento do número de cirurgias que se faziam no bloco operatório do HDL e das respectivas condições de funcionamento, devesse saber e soubesse efectivamente, que a arguida, indo trabalhar sozinha, iria fazê-lo em condições de muita pressão psicológica, sem tempo para preparar adequadamente as suas intervenções ou de proceder às adequadas avaliações clínicas aos doentes que iriam ser anestesiados por ela, sendo que o arguido não só não ignorava todas estas circunstâncias como fora expressamente alertado para elas por vários colegas;
14 – que tudo isso tenha sido deliberadamente ignorado pelo arguido, que ao agir desta forma colocou conscientemente em situação de risco toda a actividade anestésica do HDL, comprometendo, nomeadamente a segurança técnica dos actos anestésicos;
15 – que, por outro lado, a arguida não se tenha oposto, como devia, a essa situação, antes a aceitando com a consciência plena de que passaria a trabalhar em situação de risco para os doentes, pois não estaria à altura de, sozinha, responder adequadamente a situações de emergência;
19 – que a arguida trabalhasse em pressão psicológica agravada pelo facto de ser pouco experiente e de não ter mais nenhum anestesista no HDL com que pudesse discutir os casos mais complicados;
20 – que desde a saída da Dr.ª I, ou mesmo só a partir do início de Fevereiro de 2004, a arguida tenha deixado praticamente de fazer consultas pré-anéstesicas, circunstância que levava a que não fossem devidamente despistadas patologias ou outras situações de risco anestésico dos doentes a submeter a cirurgias e que os poderiam pôr em perigo de vida durante as anestesias que se iriam seguir;
21 – que após a morte de AE, a arguida devesse ter auto suspendido a sua actividade e ter tido a humildade de reconhecer as suas próprias limitações, até porque era evidente que essa morte só resultara da sua imperícia, tendo a jovem e inexperiente anestesista plena consciência de que essa pessoa morreu por ter sido anestesiada;
22 – que o arguido, apesar das suas funções, idade e experiência, não tenha tomado, como lhe cabia, em face da falta de perícia e da inexperiência da arguida, as medidas necessárias (e que lhe eram exigíveis) para obstar a que fosse posta em perigo a vida do paciente, não só não tendo tomado medidas que obstassem a que a arguida continuasse a trabalhar, mas sobretudo incentivando-a a continuar a trabalhar tendo o arguido o dever de prever que continuando a trabalhar naquelas condições, voltaria a colocar em perigo a vida dos pacientes;
23 – que após o RM se ter extubado, a arguida não tenha tido capacidade nem perícia para responder adequadamente à situação;
III – Apesar do tribunal a quo ter reconhecido que a arguida ficou abalada emocionalmente com a morte de AE (facto provado sob a designação ar), tal facto foi desvalorizado ao ponto do Acórdão não ter censurado a continuação da actividade anestésica no dia seguinte.
IV – Porém, convém não esquecer que não se tratou de uma morte previsível mas antes do trágico desaparecimento de uma mulher saudável que numa pequena cirurgia de rotina morre literalmente asfixiada na mesa de operações, antes ainda de iniciada a intervenção, tendo a arguida plena consciência de que essa pessoa apenas morreu por ter sido anestesiada.
V – Vejamos o depoimento prestado pelo Dr. AM (testemunha arrolada pela defesa dos arguidos), médico psiquiatra, ouvido na sessão de 19/06/2008, das 11:45:11 até às 12:01:48 (depoimento gravado no único CD), especialista que acompanhou clinicamente a arguida depois dos acontecimentos descritos no despacho de pronúncia.

Meritíssima Juíza
Portanto, foi um acompanhamento, foi psicoterapeuta que disse, percebi bem?
testemunha
Exactamente.
(…)
Advogado
Sim senhor. Senhor Professor, a questão concretamente é a seguinte, de um ponto de vista Médico, a opção que foi tomada, e sabemos que o foi, houve um…houve trabalho prestado no segundo dia, e houve também problemas anestésicos no segundo dia, para si, na sua opinião, essa decisão tomada de continuar a actividade anestésica, no caso da Doutora ML, é certa, é errada, foi perigosa?

Testemunha
É errada.
(…)
Advogado
Senhor Professor, dito o que me acaba de referir pergunto-lhe, na sua prática clínica, e no conhecimento que tem da vida hospitalar, entre nós, em Portugal até esta data, e particularmente no ano de 2004, ou até ao ano de 2004, havia, há por regra esse obstáculo, essa paralisação da actividade depois de um incidente?

Testemunha
Oh senhor Doutor, o que há normalmente é o bom senso das pessoas

VI – No caso sub iudice a arguida não teve o bom senso de deixar de anestesiar a seguir a um evento traumático daquela natureza, nem o arguido teve a lucidez suficiente para preventivamente a impedir (pelo contrário, a incentivou a continuar a anestesiar apesar de desconhecer os motivos da morte ocorrida na véspera).

VII – O tribunal a quo discordou dos pareceres emitidos pelos especialistas que apontam no sentido de uma superficialização da anestesia do infeliz RM.

“Como se vê, alguns dos pareceres e perícias partem do princípio que o doente se auto-extubou, ou seja, levou a mão ao tubo e ele próprio o arrancou. Contudo, essa conclusão não pode ser retirada nem das declarações da arguida nem dos depoimentos das testemunhas presentes no bloco operatório” (pág. 24 do Ac.).
Ora se a conclusão de que o doente superficializou assenta na circunstância de que ele se auto-extubou e se esta circunstância não pode ser tida como assente, fica desde logo inquinado o processo lógico da conclusão por não verificação da premissa.

Assim, também neste segundo caso não pode o tribunal concluir que a arguida não agiu de acordo com as regras tidas como boas na prática da medicina, desde logo porque, sabendo da superficialização mais rápida do indutor, não actuou com o cuidado devido, administrando medicamento em tempo oportuno que obviasse tal resultado”.

VIII – O tribunal incorreu num erro grosseiro na valoração da prova ao afirmar que os peritos partiram do pressuposto de que auto-extubação do paciente foi feita com a mão.

IX – Os peritos partiram do pressuposto (correcto e confirmado pelas testemunhas) de que a auto-extubação foi fruto de um movimento da própria vítima do tipo contracção-convulsão, isto é, fala-se apenas de auto-extubação por oposição a uma extubação originada por terceiros (por exemplo, um membro do pessoal tropeçar e provocar, sem querer, a saída do tubo).

X – O Tribunal de 1.ª instância partiu do falso pressuposto de que os peritos partilhavam a sua definição restrita de auto-extubação (extubação feita pelo próprio paciente com a mão).

XI – O Dr. LO, a Dr.ª MD, o Dr. JL, o Dr. JP e o Dr. CG partiram, todos sem excepção, da base factual fornecida pela IGS que refere na história clínica do evento (ponto 5.1.3) que: “Pouco tempo depois, o doente tem um movimento anormal tipo convulsão ou contracção, tendo-se auto-extubado e ficado com uma cianose acentuada”.

XII – Pelo que o raciocínio do Colectivo que permitiu a absolvição dos arguidos relativamente ao segundo homicídio se encontra inquinado por ter partido, ele sim, duma falsa premissa: a de que os peritos estavam convencidos que o falecido RM arrancou o tubo com a mão.

XIII – Cai assim por terra a argumentação despendida no Acórdão para justificar o afastamento dos pareceres relativamente à superficialização da anestesia em virtude da dose de fármaco ministrada pela arguida se ter revelado insuficiente.

XIV – Ao longo do texto de todos os relatórios periciais são apontadas falhas graves à actuação da arguida, apesar das conclusões dos mesmos nem sempre reflectirem essa evidência.

XV – A Dr.ª MD no seu relatório pericial (fls. 1295 e SS.) refere que o filho da assistente se terá auto-extubado em virtude de estar num nível muito superficial de anestesia.

“A auto-extubação, é uma situação que raramente acontece, mas que necessita duma actuação imediata e ao mesmo tempo calma para se decidir rapidamente qual a opção a tomar, o que só se adquire com a experiência ao longo dos anos. A anestesista que se encontrava na sala é nova, com pouca experiência, pelo que deveria ter o apoio de um colega mais velho, para ajudar nestas situações de extrema gravidade”.
(…)

“19 - Não considero razoável, nem tecnicamente segura a actividade anestésica desenvolvida no hospital, segundo os parâmetros descritos.

É uma anestesista com o internato complementar concluído há pouco mais de um ano e que não tem a desenvoltura e rapidez para actuar em situações muito graves, necessitando do apoio de um colega mais experiente.

20 – Não posso considerar razoável, nem seguro, a programação cirúrgica referida para um dia, tendo a mesma anestesista realizado 8 anestesias. É extremamente cansativo e a partir de certa altura as condições físicas encontram-se diminuídas e o raciocínio torna-se mais lento, dificultando uma actuação correcta numa situação de urgência.

21 – Seria aconselhável e tecnicamente seguro, que a médica anestesista tivesse suspendido a sua actividade anestésica a partir e 30/03/04.”
XVI – Relatório Pericial do Dr. JAVL (cfr. fls. 1.291 e ss.).

8 - A assistência prestada no H.D. Lagos foi a possível tendo em conta a sua interioridade (falta de meios e de pessoal diferenciado em número suficiente).
A anestesista, embora com pouca experiência, foi, mais uma vez, uma das vítimas do sistema assistencial, isto é: A anestesiologia moderna é, cada vez mais, uma especialidade exigente, desgastante que requer o apoio dela própria. Apenas um anestesista pode ajudar um anestesista.
(…)
Não posso deixar de lamentar e criticar a entrega de um anestesista a si próprio, à mercê das leis naturais da matemática/estatística e permanentemente com a cabeça sob a benevolência da guilhotina social e judicial.
11 - (…) Se, teoricamente, a dose de Propofol (200mg) eram suficientes, o doente apresentava patologia associada (hábitos alcoólicos marcados) que alertavam para uma metabolização rápida do fármaco, logo insuficiente. Considero pois, que o movimento convulsivo/contracção terá a ver com a pouca dose de fármaco e não com uma reacção adversa ao mesmo.

13 - Esta anestesia fracassou pela dose insuficiente de indutor (Propofol), tendo em conta o peso e a presença de um fígado deficiente.

16 - A assistência prestada no H.D. Lagos foi a possível tendo em conta a sua falta de meios e de pessoal diferenciado em número suficiente. Assim, a maior crítica que posso fazer é ao sistema assistencial ao permitir uma anestesista estar a actuar só, em permanência e em precariedade. Muitas vezes os Conselhos de Administração estão alertados para esse facto ou para as carências existentes mas continuam a pressionar. Daí uns técnicos, neste caso anestesistas, saírem e outros terem de ficar. Falhas de intubação traqueal ou dificuldade de manutenção da via aérea são frequentes na vida de um anestesista; novas tentativas de intubação também são normais, mas é necessário que haja apoios. Naquelas condições poucos doentes poderiam ser anestesiados em segurança.

19 - A anestesista em causa teria cerca de dois anos de autonomia directa na Especialidade e, eventualmente, habituada a ter apoio quando necessário. No entanto participou em centenas de intervenções sem intercorrências.

Uma média de quatro cirurgias/dia, sem outra actividade assistencial ou de descompressão, acabaria por acabar, mais cedo ou mais tarde, menos bem

21 - Visto a esta distância também acho que a anestesista deveria ter interrompido a sua actividade no dia do primeiro acidente. Mas….para o retomar quando? Em que condições? No mesmo bloco, que não tinha o mínimo de condições aceitáveis? Ter-se-ia feito uma análise tão exaustiva àquele hospital? Iam lá colocar mais anestesistas?

É evidente que terá sido com grande pressão e depressão que a Anestesista actuou no dia 30.03.2004.

XVII – Parecer do Dr. LO (Parecer de fls. 1.275 e ss.).
16 – (…) Parece ter havido uma superficialização do doente correlacionada com dose administrada versus peso versus aumento de metabolização.
19 – Todo o especialista recentemente credenciado tem o seu grau de maturação que só lhe pode ser conferido com o tempo, mesmo como especialista e por melhor formação técnica que possua. A actividade anestésica deve ser efectuada em meio hospitalar onde o enquadramento com outros especialistas em anestesia proporciona uma capacidade superior para ultrapassar dificuldades.
21 A referida anestesista não deveria de forma alguma ter anestesiado depois do sucedido na véspera. A perda de um doente é sempre em anestesia uma situação muito dolorosa e com grau de implicação psicológica marcado. Dever-se-ia ter suspenso o programa do dia seguinte e dar à especialista uma oportunidade de descanso.

XVIII – Relatório do Dr. JP, Catedrático em anestesiologia, junto do decorrer do julgamento (fls. 2.847 ss.).

“Em primeiro lugar devo esclarecer que pelo menos no consenso Europeu é inaceitável um anestesista continuar a anestesiar em seguida a um acidente anestésico do qual resultou a morte de um doente (ref. 2). O anestesista envolvido não deverá voltar à sua actividade até ficarem totalmente esclarecidas, com todo detalhe, as causas do desastre. Surpreende-me constatar que a própria anestesista se sentiu e se declarou capaz e confiante de continuar o seu trabalho no dia seguinte ao primeiro desastre. Aqui levanta-se de novo a questão da competência da especialista, que deveria reconhecer os limites das suas próprias capacidades, quer técnicas quer psicológicas.

O meu parecer neste segundo caso diz respeito em primeiro lugar à gestão das doses dos agentes da anestesia. Como a própria anestesista relata, foram dadas as mesmas doses iniciais de anestésico à utente A (do sexo feminino, de 44 anos, com 64 kg, que se apresentava calma, sem hábitos etílicos) que foram dadas ao utente B, do sexo masculino, de 35 anos, com 110 kg de peso e com hábitos tabágicos e etílicos “marcados” e que se apresentava “muito agitado e verborreico”. Ambos receberam 200 mg de propofol e 0,1 mg de fentanil, doses manifestamente inadequadas para o utente B. Os movimentos descritos como “tipo convulsão” são reconhecidamente os movimentos desesperados de um doente que está parcialmente paralisado (por cisatracurium 10 mg) mas consciente. Aqui a situação a meu ver agrava-se consideravelmente pela distinta possibilidade de este doente ter sofrido uma morte por asfixia tendo estado acordado e sem analgesia, devido à naxolona, durante as manobras de reanimação, até ao desfecho final”.

XIX – O Dr. CG, apesar de ser o autor do parecer mais favorável à arguida não deixou de considerar que esta deveria ter cessado a sua actividade depois da primeira morte e que o fracasso se deveu: “à falta de ajuda de um colega na mesma área (fls. 683)”.

XX – O reconhecimento unânime pelos peritos da necessidade de ajuda de um colega pressupõe que essa ajuda faria a diferença, para melhor naturalmente, o que significa que as manobras desenvolvidas pela arguida eram passíveis de serem melhor executadas por um outro colega da especialidade.

XXI – Depois da primeira morte, resultado de um irresponsável e constante andar “no fio da navalha”, a arguida deixou de ter condições psicológicas para enfrentar lucidamente e com frieza objectiva uma nova situação de emergência, acabando por continuar a anestesiar “sem rede” provocando assim a morte do infeliz RM.

XXII – É esta intolerável assunção de um risco acrescido para o bem jurídico vida que está na matriz da responsabilidade criminal dos arguidos.

XXIII – A irresponsabilidade do arguido PC chegou ao ponto de discordar do fecho do bloco operatório do Hospital de Lagos, bloco que nunca mais foi aberto, mesmo depois da segunda morte!

XXIV – Nesse sentido vai o depoimento da MA, testemunha arrolada pela defesa, ouvida na sessão de dia 23-06-2008 entre as 16:26:56 e as 16:46:44, com depoimento gravado no CD.
Advogado

senhora doutora, a… quando determinou, na ocasião, sobre os acontecimentos, o encerramento do bloco, a… qual foi a reacção do doutor PC?
MA
Eu penso que o doutor PC, a… tanto quanto eu me lembro é assim, ele não concordou logo com esta minha decisão. Eu acho que ele não concordou, porque ele achou que não havia razões para … (imperceptível) … para se encerrar o bloco operatório.

XXV – O tribunal ao afirmar, referindo-se especificamente ao caso sub iudice, que: “Os mais cépticos dirão que não há coincidências; os mais criteriosos dirão que coincidências não bastam para fundamentar uma condenação” esqueceu que toda a prova legalmente válida que é produzida em julgamento é valorada em função das leis da (im)probabilidade e não em função da quimérica obtenção de certezas absolutas.

XXVI – A inocência da arguida equivaleria a homologar uma situação inédita nos anais da medicina: a morte de duas pessoas nas mãos do mesmo anestesista em menos de 24 horas (e com apenas uma anestesia bem sucedida pelo meio) por complicações anestésicas que lhe são absolutamente alheias e em que simultaneamente não existe qualquer outra explicação plausível que seja exterior ao própria anestesista (o equipamento utilizado não apresentou qualquer falha e o INFARMED excluiu a hipótese de terem sido os medicamentos ministrados os responsáveis pela mortes).
XXVII – Todos estes factores somados revelam um erro notório na valoração da prova produzida em julgamento e, como consequência necessária, determinam a condenação dos arguidos pelos crimes constantes na pronúncia.

XXVIII – O pedido cível apenas foi julgado improcedente por ter sido considerado pelo tribunal a quo que inexistia culpa dos Demandados, cenário que julgamos ter afastado em função das considerações supra expostas.

XXIX – Os factos que diziam respeito exclusivamente ao pedido cível formulado pela assistente foram considerados como provados em: aaav), aaax) e aaaz).

XXX – Relativamente ao dano morte, que se transmite à Demandante por via sucessória na qualidade de ascendente, (art. 496.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil) deverá ser arbitrada uma compensação pecuniária nunca inferior aos € 100.000,00 (cem mil euros).

XXXI – Deverá ainda ser arbitrada à recorrente uma indemnização/compensação pelos danos morais, por ela pessoalmente sofridos, nunca inferior a € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), nos termos conjugados do art. 483.º e n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil.

XXXII – Termos em que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por Acórdão deste Tribunal que condene os arguidos ML e FC pela prática dos crimes de homicídio por negligência pelos quais vinham pronunciados e, ainda, que conceda total provimento ao pedido de indemnização civil deduzido pela recorrente contra os vários Demandados no valor total de € 145.000,00. Se assim se fizer será feita JUSTIÇA.
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AE e outros, Assistentes e demandantes cíveis, não se conformando com a decisão, interpuseram recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1. Os arguidos ML e FC, foram julgados e absolvidos, ela da prática de dois crimes de homicídio por negligência, ele, da prática de um crime de homicídio por negligência, decisão esta com a qual os Recorrentes não concordam e ora impugnam;
2. Foi feita prova no processo da prática - no que aos ora Recorrentes concerne - de que a Arguida efectivamente praticou um crime de homicídio por negligência, na pessoa de A E;
3. Impõe-se a modificação da decisão proferida sobre os factos provados am), an), ap), aaab) e não provados n.º 7, n.º 19 e n.º 20, atenta a argumentação e prova apresentada ao longo das presentes alegações.
4. A avaliação da doente e a opção da técnica anestésica não foram correctas;
5. Impunha-se à Arguida que submetesse a paciente a uma consulta de anestesiologia, com vista a, nomeadamente, conhecer a doente, despistar possíveis dificuldades na administração da anestesia, escolher a técnica mais adequada às exigências do caso concreto e a prever técnica alternativas, minimizando, tanto quanto possível, o risco inerente à prática de uma acto anestésico;
6. Cujos benefícios a própria Arguida reconhece: “se bem que eu considero que todos os doentes deveriam ser consultados em consulta de anestesia”. Não obstante, não a realizou por não ter tido tempo nem capacidade física e psicológica para o efeito;
7. Facto provado i)” nos meses de Fevereiro e Março de 2004, também devido ao volume de cirurgias a realizar e à falta de tempo inerente, a arguida não dava por rotina consulta de anestesia a todos os pacientes, mas apenas àqueles que fossem referenciados pelos médicos cirurgiões, …”
8. “Há exames prévios que são obrigatórios e sem os quais não pode começar uma anestesia. Se estes não forem efectuados e, como consequência disso se vier a produzir uma lesão na saúde de uma pessoa, o anestesista assumirá a respectiva responsabilidade.” - vide Fabiana Diez, in Responsabilidad del Anestesista in Responsabilidad Profisional (AA.VV.) sob direcção de Carlos Alberto Ghrsi, ed. Astrea, Buenos Aires, 1996, pp 55.
9. Tendo diagnosticado a paciente de Mallampati III, por existência de uma glote muito anterior, a técnica que elegeu não foi adequada ao caso concreto, atenta a dificuldade previsível de colocação da máscara laríngea e de intubação da paciente;
10. A Arguida, para além de ter pouca experiência profissional, enquanto médica especialista de anestesiologia, sabia que não podia contar com o apoio de outro colega da sua área, caso se deparasse com dificuldades na administração da anestesia, e conformou-se com tal realidade;
11. Ao optar por proceder a anestesia geral sob máscara laríngea, a arguida previu a possibilidade de se verificarem dificuldades de colocação da referida máscara;
12. Atento o seu grau de especialista em anestesiologia, a Arguida tinha a obrigação, e era-lhe exigível, que previsse as complicações que poderiam advir da colocação da dita máscara laríngea (inerentes a qualquer técnica anestésica), mais a mais associada à existência de uma glote muito anterior associada a peso excessivo, que não só dificultava a intubação, mas também a própria aplicação de uma máscara laríngea.

13. “Meritíssima Juíz: Olhe doutora, relativamente à colocação da máscara laríngea, é comum não se conseguir colocar correctamente uma máscara laríngea, ou nem por isso? MD: Comum não é, mas às vezes acontece, depende da anatomia da doente, se o doente tem uma glote extremamente anterior, às vezes a colocação da máscara laríngea pode ser difícil.

14. Atenta a classificação da paciente de Mallampati III, por glote muito anterior, os hábitos tabágicos daquela e o seu excesso de peso e por ser previsível a dificuldade de intubação da mesma, a Arguida tinha a obrigação de ter interrompido a anestesia e acordar a paciente;

15. A Arguida sabia que a paciente não estava a ventilar e ainda assim decidiu-se pelo aprofundamento anestésico e pela intubação, a qual veio a dar origem a broncoespasmo - previsível em pacientes com hábitos tabágicos;
16. Á estimulação da zona laríngea sem ter sucesso na permeabilização da via aérea, maior é a hipoxia e hipercapnia com cianose;
17. “Na altura em que se procedeu à cricotiroidectomia e à traqueostomia, o período de hipóxia/anóxia era longo, tendo já contribuído para a deterioração do quadro clínico da paciente;
18. Call for help – “pedir ajuda” – é o primeiro passo a dar quando uma técnica de anestesiologia se depara com uma complicação anestésica. E a Arguida não o fez, teve que ser o cirurgião presente, de mote próprio, e atentas as dificuldades que o caso clínico apresentava, a tomar a iniciativa de realizar a última das manobras que poderiam permitir salvar a vida de AE.
19. A actuação da Arguida e a cronologia dos factos demonstra má gestão daquela dos tempos de intervenção;
20. Se na teoria, no papel, todos os procedimentos adoptados pudessem ser considerados os correctos – o que de todo se concede – na prática, o tempo que a Arguida terá levado a executar esses mesmos procedimentos, foi longo demais, entendimento este corroborado pelas declarações supra transcritas do cirurgião que realizou, já em desespero de causa, a traqueostomia;
21. “Não posso chegar a outra conclusão que não seja a incompetência técnica da anestesista para resolver um problema raro mas bem reconhecido da prática da especialidade” - vide parecer do Dr. JP;
22. “ (…) A forma rápida como utente como a utente A evoluiu para uma hipoxia extrema, como descrito pela própria anestesista, leva-me a concluir que a pré-oxigenação não foi efectiva”;
23. A Arguida, quando decidiu actuar, previu complicações que pudessem levar à morte da doente, ainda que não se tenha conformado com tal resultado;
24. É o próprio colectivo que, no facto seguinte, dá como provado em aaac) que quanto à primeira situação, a arguida sabia do volume e carga de trabalho que assumira, da inexistência de colega anestesista na proximidade para acorrer a situação de dificuldade e que a doente tinha características anatómicas que à partida faziam prever uma intubação difícil e assim comprometer essa possibilidade alternativa, pois a classificação da doente, como Mallampati III fazia prever uma intubação difícil.
25. A Arguida trabalhava sob pressão psicológica, agravada pelo facto de ser pouco experiente e de não ter, no Hospital Distrital de lagos, um outro colega anestesista, a quem pudesse pedir ajuda, nos casos mais complicados;
26. Desde a saída da Dra. I e atento o volume de trabalho, a Arguida deixou praticamente de fazer consultas de anestesiologia, o que inviabilizava a despistagem de patologias ou outras situações de risco anestésico dos doentes a submeter a cirurgia;
27. Caso a Arguida tivesse tido ajuda de um colega da mesma especialidade, mais experiente, concluem os peritos que a morte de AE teria sido evitada;
28. Causa alguma estranheza aos ora Recorrentes como é possível concluir que a Arguida realizou correctamente todos os procedimentos e manobras anestésicas e de life-saving, e ao mesmo tempo concluir que, se existisse, no local um outro Colega, ele conseguiria fazer o que ela não teve capacidade de fazer e seria possível salvar a vida de AE!!! A não ser que se entenda ser indispensável a existência na sala de operações de um Anestesiologista competente para se aferir da incompetência da Arguida!!!
29. Falha o Colectivo, salvo melhor opinião, a nosso ver, de uma maneira grosseira, ao não destrinçar entre os pareceres e esclarecimentos que foram feitos de forma incondicionada e sem pudores nem receios e aqueles que, pelo contrário, denotavam um compromisso com o espírito corporativista.
30. Caso a Arguida não tivesse actuado e anestesiado ou tentado anestesiar a vítima AE, teria esta morrido? Não, obviamente!
31. Para que se possa concluir pela existência de um conduta conforme ao dever de cuidado, necessário se mostra que o médico proceda a uma ponderação dos interesses em jogo, atendendo à necessidade de actuação no caso concreto; à avaliação do risco provável da actuação referida; à avaliação do risco decorrente da omissão de tal actuação e ao equacionamento crítico dos riscos/ benefícios do tratamento ou intervenção médica;
32. O homicídio por negligência reporta-se à violação de um dever objectivo de cuidado, ao qual o agente se encontra sujeito ou obrigado, que se analisa em função da capacidade individual do agente para o observar. ”Fala-se, como se sabe, no cuidado de que o agente é capaz, suporte de um dever subjectivo de cuidado, a cumprir pelo mesmo, como base a partir da qual actua, ou não, o apontado dever objectivo.” (…) Pois há confiança e excesso de confiança, não podendo haver confiança atendível onde não houver cuidado efectivo. E não raro (ou mesmo em regra), a confiança descuidada funciona como causa em relação a sequentes resultados danosos, se não se sobrepuser (…) efeito oriundo de outra série causal. - vide anotação n.º 4 ao artigo 137º do Código Penal, in Código Penal Anotado e Comentado e Legislação Conexa e Complementar, Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, pp 359;
33. “se é certa a circunstância de um médico ser frequentemente colocado perante situações limite e autênticos dilemas, exigindo respostas imediatas, em termos pouco propícios a uma apreciação, à posteriori, numa perspectiva de responsabilização penal; se é certo igualmente, que a intervenção do legislador penal, neste campo, deve processar-se em “doses homeopáticas” num plano muito restritivo, não é menos verdade que o acto médico não pode ser completamente insindicável pela lei penal e que o rigor na construção dos tipos penais correspondentes não possa manter essa indispensável margem de risco tolerado ao acto médico” – vide, Maria de Fátima Galhardas, in Negligência Médica no Código Penal Revisto, Sub Júdice, n.º 11, 1996, p. 166.
34. Não subsistem dúvidas de que a arguida assumiu, para si, responsabilidades e tarefas para as quais sabia não se encontrar preparada – conduta que a nossa doutrina, prevê e classifica como culpa na assumpção!
35. No que se refere à vítima A e também em relação a RG, a Arguida ao agir como agiu não o fez com os cuidados nem com os conhecimentos que lhe eram exigíveis ter e de que era (ou devia) capaz e bem assim que, embora representando mentalmente que da sua conduta poderiam advir danos na saúde da falecida ou mesmo a sua morte, agiu da forma supra descrita, conformando-se com essa realização, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida;
36. Como tal, necessariamente terá que ser proferido acórdão que revogue o acórdão ora recorrido e que condene a Arguida, pela prática de um crime de homicídio por negligência, na pessoa de AE;
37. Mais se impõe a condenação da Arguida e demais demandados cíveis, no pedido de indemnização civil deduzido pelos ora Recorrentes, nos seus precisos termos e quantitativos, atento ter o Colectivo entendido como provados os factos no mesmo invocados – vide factos aaaab) a aaaaq).
38. O acórdão ora recorrido violou, nomeadamente, os artigos 15º e 137º do Código Penal e artigo 163º n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.
Termos em que o presente recurso deverá ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser:
a) Alterada a resposta à matéria de facto dada como provada e não provada, em conformidade com o supra exposto;
b) A arguida ML, condenada pela prática, na pessoa de AE, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º n.º 1 do Código Penal;
c) Os demandados cíveis condenado no pagamento, aos ora Recorrentes, de indemnização cível, nos precisos termos e quantitativos descritos no pedido de indemnização civil, para o qual se remete.
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Responderam ao recurso o Ministério Público junto do Tribunal de Lagos, ambos os arguidos e o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, defendendo o decidido, com as seguintes conclusões (não se referem as conclusões deste Centro já que não fez juntar aos autos cópia digital da respectiva peça processual,

Resposta do Ministério Público
1. O dever de motivação da decisão de facto concretiza-se através do exame crítico das provas e traduz-se na obrigação do julgador expressamente consignar os elementos de prova que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a sua convicção se formasse em determinado sentido e valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados e produzidos no decurso do contraditório.

2. No caso dos autos a formação da convicção do Tribunal baseou-se, no conjunto da prova testemunhal produzida em audiência, conjugada com o teor dos documentos, essencialmente, clínicos, juntos aos autos e ponderando todas as perícias efectuadas.

3. O Tribunal refere especificadamente quais as provas que relevaram ou assumiram maior peso na consideração de determinados factos como provados ou não provados.

4. E entendeu que, sopesadas as declarações da arguida, os documentos, os depoimentos das testemunhas, as perícias e os pareceres, a única pessoa que afirmou que a arguida procedeu contra as “legis artis” da medicina, foi o Dr. JL e o Dr. JP, mas cujo parecer o Tribunal entendeu ter sido dado com base “em especulações”.

5. E explica que estes dois pareceres, em confronto com todos os outros eram insuficientes para concluir que os arguidos não agiram de acordo com as regras tidas como boas na prática da medicina.

6. A convicção do Tribunal foi devidamente fundamentada, dando, assim, adequado e cuidadoso cumprimento ao dever de fundamentação.

7. Inexistindo igualmente qualquer erro notório na apreciação da prova, mostrando-se correctamente aplicadas todas normas legais.

8. O tribunal aprecia livremente as conclusões dos exames periciais, não ficando adstrito aos pareceres dos peritos, ainda que especializados, decidindo em desconformidade com os mesmos quando o processo lhe forneça outros elementos de prova, que contrariem a factualidade sobre que assentaram tais exames.

9. In casu o Tribunal Colectivo não divergiu dos juízos técnico-científicos realizados, limitando-se a afastar algumas perícias com fundamento noutras (logo prova de idêntica natureza).

10. O Tribunal Colectivo “a quo” não divergiu dos juízos técnico-científicos realizados, limitando-se a afastar algumas perícias com fundamento noutras (logo prova de idêntica natureza) fazendo-o através da interpretação desses dados com outros elementos de prova carreados para os autos, apreciados segundo a sua livre convicção.

11. O Tribunal recorrido avaliou e ponderou o teor de todas as perícias realizadas e decidiu, valorando-as de forma distinta, umas em detrimento de outras, mas explicando porque o fez, sem nunca esquecer a restante prova produzida já que os pareceres técnicos constantes dos autos se debruçaram “sobre uma realidade que os subscritores não verificaram, mas que lhes foi comunicada de acordo com elementos previamente existentes”.

Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso, mantendo-se o douto acórdão recorrido.

Resposta dos arguidos:
A) Os recursos escolhem uma afirmação de certa testemunha, desenquadrando-a do mais disponível, ou pelo mesmo declarado, ou das explicações, interpretações ou opiniões de ciência de todos os outros, de sentido diametralmente oposto;
B) A Consulta técnico-científica do Instituto Nacional de Medicina Legal, de 8.VII.2005, foi apreciada em reunião do Conselho, obtendo aprovação “por unanimidade” dos seus membros;
C) Desta Consulta, diflúi, com meridiana clareza, que: “os actos médicos realizados foram os indicados”;
D) Que “no que respeita à observação prévia do doente, selecção de monitorização, equipamentos, fármacos anestésicos e sua forma de administração, os dados disponíveis indicam que tudo foi feito de acordo com as leges artis”;
E) Que “o mesmo aconteceu no que respeita às atitudes tomadas face à emergência resultante da incapacidade de ventilar o doente e nas manobras de ressuscitação após paragem cardíaca”;
F) Que “de todo o processo parece visível que a Médica anestesista usou todos os seus conhecimentos, competências e faculdades para tentar resolver as situações críticas que se lhe depararam e, nestas circunstâncias, não parece que se possa considerar que existe qualquer violação das leges artis”;
G) Que “… foi correcta a aceitação dos doentes para cirurgia e anestesia”.
H) E que “… qualquer dos fármacos anestésicos utilizados pode desencadear reacções adversas letais, embora isso seja extremamente raro”;
I) Nos dois casos clínicos dos autos, o juízo técnico-científico que é “subtraído à livre apreciação do julgador”, é-o pela entidade que, entre todas, em Portugal possui a mais alta craveira para as matérias clínicas e deontológicas, próprias do âmbito sujeito à sua apreciação, no contexto judicial – o Instituto Nacional de Medicina Legal;
J) Pois se ambos os arguidos fizeram, e nenhum omitiu, o que deles se espera enquanto médicos no exercício das suas respectivas funções, como os presentes autos permitem concluir, nenhuma sanção lhe é imponível.
Termos em que, negando provimento com o presente recurso, far-se-á a costumada justiça.
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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
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B - Fundamentação:
B.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

a) a arguida ML é médica anestesiologista, tendo realizado Internato Complementar no Hospital de São João, no Porto, entre 1999 e 2002 e concluído o Exame de Avaliação Final do Internato Complementar de Anestesiologia em 14.02.2003;
b) permaneceu no Hospital de São João mediante contrato a termo certo e em 22 de Julho de 2003 iniciou funções no Hospital Distrital de Lagos como assistente eventual de anestesiologia, tendo sido colocada ao abrigo do regime denominado "estabelecimentos/especialidades carenciados" através de contrato administrativo de provimento;
c) trabalhava no HDL em regime de tempo completo de 35 horas de trabalho normal por semana, acrescendo mais algumas horas semanais no âmbito do PECLEC e outras em prevenção (urgências internas);
d) o quadro do HDL previa dois anestesiologistas, aí também exercendo funções a médica anestesiologista IN que desenvolveu um acordo atinente a consultas de anestesia;
e) no início de funções no Hospital Distrital de Lagos, a arguida assistiu a algumas intervenções efectuadas pela médica anestesiologista IN, após o que passou a ser integrada sozinha na escala de serviço;
f) o arguido PC, assistente graduado de cirurgia geral, director e director-clínico e Presidente do Conselho de Administração, no Verão de 2003 dispensou a colaboração que os anestesiologistas de Portimão vinham prestando dois dias por semana e, em regra, em número de um, como forma do HDL assegurar o cumprimento do Programa de recuperação de listas de espera (PECLEC);
g) tal decisão foi determinada pelo preenchimento da segunda vaga de anestesiologista do quadro do HDL, verificada com a chegada da arguida, e foi contestada junto do arguido pela Sra. Administradora Delegada então em funções, que lhe chamou à atenção para a possibilidade da Ora. IN sair do HDL, por haver rumores que ela tinha concorrido para outro lugar, mas ele não voltou atrás;
h) a médica anestesiologista IN, que pertencia ao quadro, saiu do HDL a 31 de Janeiro de 2004 e, em virtude desta saída, a arguida passou a ter um horário mais alargado relativamente às horas de prevenção, passando a ser a única anestesista pertencente ao quadro a exercer funções no HDL e passando a realizar mais anestesias do que até aí, nunca chamando a atenção do director clínico do HDL para dificuldades que sentisse ou aumento do trabalho que lhe era proposto, até porque não sentiu dificuldades;
i) nos meses de Fevereiro e Março de 2004, também devido ao volume de cirurgias a realizar e à falta de tempo inerente, a arguida não dava por rotina consulta de anestesia a todos os doentes, mas apenas àqueles que fossem referenciados pelos médicos cirurgiões, como aliás já era procedimento habitual no HDL, vindo do passado anterior ao seu exercício de funções;
j) embora não realizando por rotina consulta de anestesia, a arguida efectuava a observação de cada um dos doentes não consultados, realizando uma rápida abordagem da condição do doente antes da entrada para o bloco operatório mas sem que se efectuasse qualquer registo;
l) desde Março de 2003 até 29 de Março de 2004, a arguida participou em centenas de anestesias, sendo que no HDL, de Julho de 2003 a Março de 2004, realizou por mês, respectivamente, 0, 51, 57, 39, 61, 28, 45, 65 e 94 consultas de anestesia, tendo participado em 18, 0, 23, 21, 17, 10, 9, 2 e 23 cirurgias no âmbito do PECLEC e 132, 60, 124,130,97,77, 106, 106 e 139 cirurgias programadas;
m) desde finais de 2003 que o HDL tinha ao serviço quatro cirurgiões, sendo eles quem semanalmente programava as cirurgias, não tendo a arguida qualquer intervenção nesse processo de decisão;
n) essa programação compreendia cirurgias de doentes programados de manhã e PECLEC à tarde;
o) no dia 29 de Março de 2004, a arguida participou como anestesista em quatro cirurgias programadas da parte de manhã;
p) à tarde, estavam programadas quatro cirurgias no âmbito do Programa de combate às listas de espera designado por PECLEC, tendo participado em todas;
q) a última das intervenções (a oitava) visava AE apresentada a cirurgia para correcção cirúrgica de fístula perianal e estava marcada para as 17H00;
r) a equipa era constituída pela arguida, enquanto anestesista, pela enfermeira CP que a apoiava, pelo cirurgião ED e pela enfermeira instrumentista SO que, por sua vez, o apoiava;
s) AE tinha 44 anos de idade e pesava 64,800 kg;
t) foi sujeita a consulta pré-operatória por assistente eventual de cirurgia geral do HDL no dia 3 de Março de 2004, que confirmou diagnóstico de fístula perianal, pesquisou antecedentes patológicos e requisitou Rx de tórax, ECG e controle analítico (hemograma, bioquímica e estudo de coagulação), constando do registo dessa consulta: "sem patologia associada, nega diabetes, hipertensão arterial, nega alergias medicamentosas";
u) não foi realizada consulta de anestesia em dia anterior ao da cirurgia, sendo que só antes de entrar para o bloco é que a arguida analisou os resultados dos exames requisitados na consulta pré-operatória do dia 3 de Março e conversou com a doente, tendo apurado que tinha hábitos tabágicos (20 cigarros/dia) e que, como medicação habitual, tomava contraceptivo oral;
v) a arguida integrou a doente na classe Mallampati III, verificando "glote muito anterior", prevendo ser a intubação difícil;
x) a arguida optou por proceder a anestesia geral da doente sob máscara laríngea e iniciou a indução anestésica administrando 0,1 mg de Fentanil e 200 mg de Propofol (genérico);
z) o processo de monitorização da ventilação da doente era assegurado por capnografia e oximetria de pulso;
aa) a arguida colocou na doente máscara laríngea mas, por motivos de não obtenção de capnografia, dessaturação e confirmação auscultatória de não ventilação da doente, tentou recolocar a máscara, sem sucesso;
ab) dado o insucesso da recolocação da máscara laringea, a arguida procedeu a aprofundamento anestésico, com mais de 100 mg de Propofol e 75 mg de succinilcolina, e tentou a intubação endotraqueal da doente sem êxito, devido à glote muito anterior (circunstância que, com efeito, constitui factor de dificuldade para uma intubação eficaz);
ac) a doente entrou em bradicárdia pelo que fez atropina, 1 mg;
ad) a arguida aspirou as secreções e utilizou laringoscópio de McGoy após o que efectuou duas novas tentativa de intubação mas sem sucesso por broncoespamo;
ae) entre tais tentativas ventilou manualmente a doente sem eficácia pela dessaturação crescente da mesma;
af) ainda administrou 200 mg de hidrocortisona;
ag) com vista a assegurar a via aérea procedeu a cricotiroidectomia e o cirurgião presente ED, com a ajuda do colega JLD, acabou por realizar uma traqueostomia, que foram seguidas de enfisema sub-cutâneo generalizado;
ah) a doente entrou em paragem cardíaca, em assistolia, e procedeu-se a manobras de reanimação com administração de adrenalina (total de 4 mg) e atropina (total de 6 mg), com a colaboração da equipa de urgência e após mudança de ritmo para fibrilhação ventricular, fez-se lidocaína (100 mg) e cardioversão (200 + 200 + 360 joules), seguida de dopamina (400 mg em 50 cc de soro fisiológico a correr 5 cc/h) mas sem sucesso;
ai) o óbito da doente foi verificado às 18HOO;
aj) foi realizada autópsia clínica onde não foi identificada uma causa directa da morte (cfr. fls. 160 e 161) e, chamado a pronunciar-se perito do Gabinete Médico Legal de Portimão, concluiu o mesmo que o resultado do estudo dos registos clínicos e do relatório de autópsia está de acordo com a hipótese de acidente anestésico (cfr. fls. 613 a 615);
al) não se verificou qualquer falha de equipamento;
am) a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica foram correctas;
an) ao optar por proceder a anestesia geral da doente sob máscara laríngea, a arguida não previu, nem lhe era exigível que previsse, dificuldade de colocação da máscara laríngea;
ao) em face do quadro de dificuldade ventilatória, a opção de tentar recolocar a máscara foi correcta, com vista a assegurar imediatamente ventilação;
ap) à estimulação da zona laríngea sem ter sucesso na permeabilização da via aérea, maior é a hipoxia e hipercápnia com cianose e nestas situações a ventilação com máscara facial é assaz difícil e ineficaz, pelo que se impunha a intubação da doente;
aq) na altura em que se procedeu à cricotiroidectomina e à traqueostomia o período de hiopoxia/anóxia era longo, tendo já contribuído para a deterioração do quadro clínico da doente;
ar) em consequência da morte de AE nas circunstâncias referidas, a arguida sentiu abalo emocional;
as) a enfermeira directora que, com o arguido integrava a direcção técnica do hospital, manifestou ao mesmo o seu entendimento de que as cirurgias agendadas não deviam prosseguir;
at) no dia seguinte de manhã, no hospital, enfermeiros conversavam sobre o sucedido, também na presença da arguida, que manifestou disponibilidade para cumprir o programa em função do que fosse decidido e posto que a equipa mantivesse confiança nela, tendo o arguido PC, verificando a predisposição de todos os elementos das equipas médicas e de enfermagem para continuar, referindo-se à morte ocorrida no dia anterior, dito qualquer coisa como "mortes acontecem" e "vamos continuar a trabalhar", sendo que ninguém presente se manifestou contra e que as expressões do arguido foram entendidas como palavras de ânimo, tendo todos avançado;
au) essa decisão não foi comunicada pelo arguido à enfermeira directora, a qual não tinha competência para participar no processo deliberativo conducente à resolução de continuar, ou não, o programa operatório;
av) na manhã de 30 de Março de 2004, a arguida participou, como anestesista numa outra intervenção (que envolveu um doente que sofria de mongolismo) sem qualquer intercorrência;
ax) RG tinha cirurgia marcada, também no âmbito do PECLEC, para o dia 30 de Março de 2004 pelas 15H 15, consistindo na excisão de sinus pilonidal na região sacro-coccígea;
az) a equipa era integrada pela arguida, como anestesista, o enfermeiro AS que a apoiava e pela cirurgiã MR e enfermeiro-instrumentista, HL;
aaa) RG tinha 35 anos de idade e pesava 101 kg:
aab) tinha sido sujeito a consulta pré-operatória no HDL no dia 22 de Março de 2004, por parte de assistente de cirurgia geral daquele hospital, AD tendo aí sido confirmado o diagnóstico de sinus pilonidal sacro­coccígeo e requisitados exames complementares de diagnóstico como Rx de tórax, ECG e controle analítico (hemograma, bioquímica e estudo de coagulação);
aac) a arguida não fez consulta de anestesia em dia anterior ao da cirurgia;
aad) foi imediatamente antes da hora marcada para a cirurgia que, em conversa com o doente, a arguida lhe propôs a raquianestesia, que foi recusada, tendo o mesmo dito que queria ficar a dormir;
aae) a arguida ponderou o facto de o doente ter hábitos tabágicos (40 cígarros/dia) e etílicos marcados, além de revelar estar agitado e verborreico e ainda de os exames pré-operatórios revelarem alterações de TGP (53 UI) e gama-GT (259 UI) e ácido úrico (Bmg/di);
aaf) este comportamento não foi observado no internamento pré-operatório, altura em que o doente se apresentava calmo, consciente e orientado;
aag) a arguida iniciou a indução anestésica pelas 15H15 com 200 mg de Propofol e 100 mg de Succinilcolina;
aah) após a intubação orotraqueal com tubo aramado, antes de o doente se encontrar em decúbito ventral, foi-lhe administrado Fentanil e Cisatracúrio e manutenção com 02/N20 e Sevoflurano;
aai) pouco depois o doente ficou extubado e com cianose central acentuada;
aaj) por duas vezes foi tentada a reintubação, dificultada por excesso de secreções que foram aspiradas, e entre essas tentativas fez-se ventilação manual, sendo que o doente levou cerca de 10 minutos a ser reintubado;
aal) como a cianose não cedesse, fez Naloxona que melhorou a cianose e a ventilação;
aam) pouco depois o doente entrou em instabilidade hemodinâmica e cardíaca;
aan) fez variação entre assistolia fibrilhação ventricular, taquicardia ventricular e dissociação electro-mecânica e procedeu-se a massagem cardíaca, oxigenação, administração de atropina (13 ampolas), adrenalina (16 ampolas), Iidocaína (300 mg), sulemedrol (2 g) e bicarbonato de sódio a 8,4% (40 cc) e a cardioversão;
aao) as manobras de reanimação duraram cerca de duas horas, sendo que às 17H30 o ritmo cardíaco estabiliza e inicia-se Iidocaína (1g em 50 cc a correr a 6 cc/h) e dopamina (400 mg em 50 cc a correr a 5,5 cc/h) em perfusão por hipotensão;
aap) pelas 18H40, o doente foi transferido em coma (Glasgow 3) para o Hospital de Portimão, então Hospital do Barlavento Algarvio, com os parâmetros: TA 145/81, SP 02 96%, FC 121, diurese, desde as 18H às 18H20: 200 cm3; e deu entrada no serviço de Urgência daquele hospital às 19H13;
aaq) faleceu no Hospital de Portimão no dia 2 de Abril de 2004;
aar) após a extubação, impunha-se prosseguir com a intubação orotraqueal, não sendo viável a interrupção do procedimento e protelamento da cirurgia para outra data;
aas) atentos os hábitos tabágicos do doente eram previsíveis problemas respiratórios no processo de indução anestésica como broncoespasmo e secreções abundantes;
aat) a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica e respectivos procedimentos foram correctos;
aau) foram correctos os fármacos e as doses bem como o material usado na monitorização e controlo do doente;
aav) na sequência do segundo incidente, a ARS decidiu pelo encerramento do bloco operatório que não foi até hoje reaberto;
aax) por despacho do Ministro da Saúde foram instaurados processos disciplinares aos arguidos (Procs. Nºs 41/04-0 e 42/04-0) com dedução de acusação, tendo sido aplicada à arguida suspensão preventiva de 90 dias, e aguardando agora esses processos disciplinares resultado dos presentes autos;
aaz) após o decurso do período de suspensão preventiva, foi decidido proporcionar à médica anestesiologista um enquadramento e desenvolvimento da sua especialidade numa equipa de anestesia, tendo a mesma iniciado a sua actividade integrada na equipa de anestesia do então HBA, com início a partir de 5 de Julho de 2004 e encontrando-se desde Junho de 2007 no Hospital de Portalegre onde vem desempenhando funções de forma correcta;
aaaa) o arguido sabia que a actividade do anestesista no bloco operatório, sempre que possível, deve ser acompanhada da presença de outro anestesista na proximidade para ultrapassar situações difíceis, comuns na actividade anestésica e conhecia os factos acima descritos anteriores ao segundo incidente;
aaab) a arguida conhecia os factos acima descritos anteriores a cada um dos incidentes e decidiu actuar, pois não previu complicações que pudessem levar à morte dos doentes;
aaac) quanto à primeira situação, a arguida sabia do volume e carga de trabalho que assumira, da inexistência de colega anestesista na proximidade para acorrer a situação de dificuldade e que a doente tinha características anatómicas que à partida faziam prever uma intubação difícil e assim comprometer esta possibilidade alternativa, pois a classificação da doente como Mallapanti III faz prever uma intubação difícil mas não impossível;
aaad) os arguidos sabiam do incidente que havia ocorrido no dia 29 e das suas consequências, mas mesmo assim a arguida aceitou prosseguir, cumprindo o programa nas circunstâncias acima referidas, determinadas pelo arguido na qualidade de director-clínico, pois que a restante equipa manifestou que mantinha confiança nela;
aaae) é desde sempre aconselhada a actividade do anestesista no bloco operatório com a presença de outro anestesista na proximidade para intervir em situações como as que o presente processo vieram a revelar;
aaaf) na verdade, falhas de intubação traqueal ou dificuldades na manutenção da via aérea são frequentes na actividade anestésica;
aaag) não é lex artis da medicina a exigência de que existam disponíveis, pelo menos, dois especialistas de anestesiologia para que possa ter lugar a actuação própria da especialidade em sala cirúrgica;
aaah) no meio, constava a reestruturação dos serviços com a criação de um centro hospitalar que integraria o HBA e o HDL, o que se veio a confirmar com a constituição do Centro Hospitalar da Barlavento Algarvio;
aaai) a circunstância de se tratar de doentes de menos de 60 anos e sem antecedentes patológicos ou não haver referência a hábitos alcoólicos ou tabágicos acentuados, critérios usados para a decisão de referenciar os doentes, não constitui critério clínico consensualmente aceite;
aaaj) a consulta de anestesia constitui a primeira etapa na cadeia de segurança que envolve o acto anestésico e consiste na entrevista do doente (para conhecimento da situação cínica, antecedentes e patologias associadas), exame físico (com avaliação indirecta da via aérea para apuramento sobre a existência de dismorfias no pescoço, mobilidade cervical, abertura da boca e classificação na classe Mallampati; auscultação cardiopulmonar e avaliação a coluna lombar quando ponderada uma anestesia loco-regional) e na observação dos exames complementares de diagnóstico (hemograma, bioquímica, ECG e Rx do tórax) e tem por finalidade, além avaliar o risco (com vista a minimizar a incidência de complicações), assegurar o conforto do doente durante o período pré-operatório;
aaal) essa consulta é objecto de registo e integrada no processo clínico do doente;
aaam) a visita pré-anestésica é efectuada na véspera da intervenção e destina-se a avaliar o estado do doente e a confirmar os resultados da consulta assim como conferir confiança ao doente e pré-medicá-lo;
aaan) nesta sequência, no dia da intervenção deve fazer-se uma rápida abordagem da condição do doente;
aaao) a programação cirúrgica razoável e tecnicamente segura não se rege tanto pelo número de intervenções mas deve ter mais em conta a carga horária, pausas para descanso, cirurgia minor, média ou grande com cargas de empenho diversas;
aaap) no entanto, em vista de um programa intenso, é normal que as condições físicas do anestesista se encontrarem diminuídas assim como o raciocínio mais lento, dificultando uma actuação correcta e rápida numa situação de urgência;
aaaq) a glote é uma estrutura anatómica que não se visualiza facilmente a não ser através de manobras agressivas com laringoscopia, no entanto, o acto de observação permite avaliar a possibilidade de o doente ter glote anterior;
aaar) há grande probabilidade de um fumador de vir a desencadear um broncoespasmo ou laringoespasmo;
aaas) a perda de um doente em anestesia é rara e constitui uma situação muito dolorosa e com grau psicológico marcado;
aaat) a metabolização mais rápida do indutor é ultrapassada com a administração de mais hipnótico com vista a promover a inconsciência ou com a sua administração precoce de modo a poder fazer efeito antes que a superficialização ocorra;
aaau) é contra indicado o transporte de qualquer doente em situação de instabilidade hemodinâmica;
aaav) o falecido RM era alegre, dinâmico, extrovertido, trabalhador e empreendedor, explorando um bar;
aaax) a morte do RM causou à demandante, sua mãe, um desgosto indescritível e ainda hoje não superado, chorando ainda a morte do filho e visitando constantemente a sua campa;
aaaz) a relação do RM com a mãe era de grande proximidade e cumplicidade;
aaaaa) o RM já não morava com nenhum dos progenitores;
aaaab) a falecida AE era uma mulher alegre, dinâmica extrovertida e com vontade de viver e apreender, exercendo a actividade profissional de auxiliar de educação na Escola Primária dos Olhos d'Água, onde era muito estimada, e estudando à noite, tendo completado o 9° ano de escolaridade e ambicionando completar o 12° ano;
aaaac) não lhe era conhecida qualquer patologia que condicionasse a sua esperança de vida;
aaaad) às 22H30 do dia 29.08.2004, o demandante foi informado por um militar da GNR de que deveria contactar o Hospital de Lagos e, ao fazê-lo, foi-lhe então comunicado que a esposa falecera no bloco operatório, sem uma palavra de justificação ou conforto;
aaaae) o demandante AME era casado com a falecida AE há 21 anos, tendo perdido a sua companheira, a mãe dos seus filhos, a sua confidente;
aaaaf) o demandante AME sofreu um enorme desgosto com a morte prematura e inesperada da sua mulher, ainda hoje não superado;
aaaag) durante cerca de 3 meses não conseguia dormir, acordando sobressaltado;
aaaah) não foi capaz de tratar do funeral da esposa, tarefa desempenhada pelo filho mais velho e pelo compadre;
aaaai) pediu uma licença sem vencimento por um mês, pois não conseguia trabalhar;
aaaaj) os demandantes não recorrem a médicos, tendo perdido a confiança na medicina;
aaaal) perderam qualquer vontade de comemorar datas festivas;
aaaam) RE e GE são filhos da falecida AE, tendo o primeiro 19 anos de idade à data da morte da mãe e o segundo 15 anos de idade, tendo ambos uma relação de grande cumplicidade com a mãe e tendo sofrido enorme desgosto e amargura;
aaaan) durante cerca de 4 meses os filhos tinham muita dificuldade em dormir e pernoitavam na cama do pai para se sentirem protegidos, sendo que o mais novo só adormecia agarrado à mão do pai;
aaaao) GE teve acompanhamento psicológico durante cerca de 6 meses, recusava-se a entrar em casa sozinho, ficando sentado à porta à espera que o pai ou o irmão chegassem;
aaaap) na sequência da morte da mãe GE desistiu de ir estudar para Faro, optando por ir estudar para Beja e sair de casa;
aaaaq) à data da morte AE auferia mensalmente a título de retribuição a quantia líquida de 621,46 €, auferindo o seu marido a quantia líquida de 390,71 €, sendo estas apenas as fontes de rendimento do casal e com as quais faziam face a todas as despesas inerentes à manutenção do lar e dos filhos;
aaaar) os arguidos transferiram para "… Companhia de Seguros, SA", a sua eventual responsabilidade civil decorrente da sua actividade clínica;
aaaas) nenhum dos arguidos regista antecedentes criminais;
aaaat) o arguido é bem conceituado pessoal e profissionalmente.
*
E como não provados os seguintes factos:
1- que a arguida tenha participado nas primeiras 24 intervenções acompanhada pela médica anestesiologista IN, após o que por decisão unilateral do arguido PC, passou a trabalhar autonomamente;
2- que a arguida tenha chorado após a morte de AE e na manhã seguinte;
3- que no dia seguinte de manhã, no hospital, quatro enfermeiros conversassem com a predisposição para não avançar com as cirurgias agendadas;
4- que a enfermeira directora tenha tido conhecimento da decisão de continuar o programa através de telefonema que efectuou para o bloco operatório;
5- que o doente RM se tenha extubado devido a metabolização do indutor mais rápida do que o normal (esta causada pelos hábitos alcoólicos do doente, tendo ainda presente a dose administrada em conjugação com o peso do doente), tendo ocorrido uma superficialização da consciência que foi o que causou o movimento tipo convulsão do doente;
6- que o doente RM tenha sido entubado com a ajuda da médica cirurgiã MR;
7- que os arguidos tenham decidido actuar mesmo sendo previsível a ocorrência de complicações anestésicas e que estas fossem previsíveis;
8- que a arguida não tenha actuado com o cuidado devido, administrando medicamento em tempo oportuno que obviasse a possibilidade de superficialização mais rápida do indutor;
9- que a inobservância das regras de cuidado elencadas determinaram, a precipitação dos acontecimentos nos termos narrados;
10- que o movimento tipo convulsão do doente RM, que se extubou, tenha sido causado por reacção adversa ao Propofol;
11- que o arguido PC, quando dispensou a colaboração que os médicos anestesistas de Portimão vinham prestando no HOL, tivesse plena consciência que o HDL ficaria a breve prazo com apenas uma anestesista (provou-se que tinha apenas consciência que essa era uma possibilidade);
12- que a arguida fosse uma jovem sem experiência;
13- que o arguido PC, pelas funções que desempenhava, pela sua experiência de vida e profissional, pelos conhecimentos específicos da sua especialidade clínica e, sobretudo, pelo conhecimento do número de cirurgias que se faziam no bloco operatório do HDL e das respectivas condições de funcionamento, devesse saber e soubesse efectivamente, que a arguida, indo trabalhar sozinha, iria fazê­lo em condições de muita pressão psicológica, sem tempo para preparar adequadamente as suas intervenções ou de proceder às adequadas avaliações clínicas aos doentes que iriam ser anestesiados por ela, sendo que o arguido não só não ignorava todas estas circunstâncias como fora expressamente alertado para elas por vários colegas;
14- que tudo isso tenha sido deliberadamente ignorado pelo arguido, que ao agir desta forma colocou conscientemente em situação de risco toda a actividade anestésica do HDL, comprometendo, nomeadamente, a segurança técnica dos actos anestésicos;
15- que, por outro lado, a arguida não se tenha oposto, como devia, a essa situação, antes a aceitando com a consciência plena de que passaria a trabalhar em situação de risco para os doentes, pois não estaria à altura de, sozinha, responder adequadamente a situações de emergência;
16- que o bloco operatório do HDL não dispusesse de todo o material necessário para situações de emergência que pudessem ocorrer durante as induções de anestesias;
17- que a existência de um broncoscópio rígido e de um combitube pudesse ter salvo pelo menos uma vida naquele bloco operatório;
18- que nem o arguido tenha providenciado para que esses equipamentos fossem disponibilizados no bloco operatório, nem a arguida os tenha pedido em tempo oportuno, como lhe competia;
19- que a arguida trabalhasse em pressão psicológica agravada pelo facto de ser pouco experiente e de não ter mais nenhum anestesista no HDL com que pudesse discutir os casos mais complicados;
20- que desde a saída da Dra. I, ou mesmo só a partir do início de Fevereiro de 2004, a arguida tenha deixado praticamente de fazer consultas pré­anestésicas, circunstância que levava a que não fossem devidamente despistadas patologias ou outras situações de risco anestésico dos doentes a submeter a cirurgias e que os poderiam pôr em perigo de vida durante as anestesias que se iriam seguir;
21- que após a morte de AE, a arguida devesse ter auto suspendido a sua actividade e ter tido a humildade de reconhecer as suas próprias limitações, até porque era evidente que essa morte só resultara da sua imperícia, tendo a jovem e inexperiente anestesista plena consciência de que essa pessoa morreu por ter sido anestesiada;
22- que o arguido, apesar das suas funções, idade e experiência, não tenha tomado, como lhe cabia, em face da falta de perícia e da inexperiência da arguida, as medidas necessárias (e que lhe eram exigíveis) para obstar a que fosse posta em perigo a vida do paciente, não só não tendo tomado medidas que obstassem a que a arguida continuasse a trabalhar, mas sobretudo incentivando-a a continuar a trabalhar - diga-se e esclareça-se que palavras de ânimo, como se provou, são diferentes de palavras de incentivo, que não se provaram - tendo o arguido o dever de prever que continuando a trabalhar naquelas condições, voltaria a colocar em perigo a vida de pacientes;
23- que após o RM se ter extubado, a arguida não tenha tido capacidade nem perícia para responder adequadamente à situação;
24- que a morte do RM tenha causado ao demandante, seu pai, um desgosto indescritível e ainda hoje não superado, chorando ainda a morte do filho e visitando constantemente a sua campa;
25- que a relação do RM com o pai fosse de grande proximidade e cumplicidade;
26- que o RM visitasse os progenitores com frequência e que programassem frequentemente saídas;
27 - que o broncoespasmo tido por AE tenha ocorrido na altura do enfisema subcutâneo generalizado e após a cricotiroidectomia e traqueostomia;
*
E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:
A fixação dos factos provados e não provados baseou-se na globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e de acordo com a livre convicção que o tribunal formou sobre a mesma (sempre tendo em atenção as regras da experiência), atendendo-se à prova pericial, documental e oral que foi produzida e aferindo-se, quanto a esta, da razão de ciência e da isenção de cada um dos depoimentos prestados.
No caso em análise, e dado o objecto do processo, assume particular relevância a prova pericial, sabido que, conforme dispõe o art. 1630 do Cód. Proc. Penal, o juízo técnico ou científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, que tem que fundamentar a divergência se a sua convicção o levar a afastar-se do juízo contido no parecer dos peritos.
Concretizando ...
Em relação aos factos dados como provados nas alíneas de o) a aq) e aaab) e aaac) ...
Como já se disse, em face do objecto do processo, assume particular relevâncía o teor das várias Perícias e Pareceres juntos aos autos, que cumpre analisar. Porém, teremos que ter sempre presente que tais Perícias e Pareceres se debruçam sobre uma realidade que os subscritores não verificaram, mas que lhes foi comunicada de acordo com elementos previamente existentes.
Assim, quanto ao que se passou no bloco operatório do Hospital Distrital de Lagos com a doente AE, o tribunal fundamentou a sua convicção no teor dos elementos clínicos constantes dos documentos juntos a fls. 212 ss, com particular atenção para o Diário Clínico junto a fls. 221 ss, confirmado pelas declarações da arguida e não infirmado pelos depoimentos das testemunhas que naquela altura se encontravam no bloco operatório
Com efeito, o Dr. JD, presente na qualidade de médico cirurgião e que integrava a equipa que ia intervencionar a doente, declarou não ter visto o acto anestésico por haver um pano a separar a zona anestésica (onde se encontrava a arguida) da zona cirúrgica (onde ele próprio se encontrava), sentindo apenas alguma agitação e só se apercebendo efectivamente da gravidade da situação quando o pano abre e vê que a arguida está a fazer uma cricotiroidectomia, altura em que ele, sem que a arguida lhe tenha pedido, realiza a traqueostomia, no que foi ajudado. Disse que entre a preparação anestésica e a traqueostomia terão decorrido 3 ou 4 minutos. Referiu ainda a testemunha que a arguida ficou emocionada e surpreendida, como se "aquilo" não pudesse ter ocorrido.
A testemunha SO, enfermeira que igualmente integrava a equipa, declarou que estava a desinfectar os instrumentos e que se apercebeu que havia dificuldade na colocação da máscara, depois na intubação e em manter a oxigenação da doente. Confirmou terem sido realizadas cricotiroidectomia e traqueostomia, em que colaborou. Realçou que durante todo o período, que não soube quantificar, a arguida manteve a calma.
A testemunha CP, enfermeira que também integrava a equipa, dando assistência à arguida nos procedimentos anestésicos, confirmou os fármacos ministrados e que a doente não ventilava quando a arguida colocou a máscara laríngea, pelo que a arguida tentou a recolocação, mantendo-se a doente sem ventilar; confirmou que a arguida tentou entubar sem conseguir, a que se seguiram a cricotiroidectomia e traqueostomia, esta realizada pelo Dr. D. Referiu também que a arguida pareceu sempre muito calma.

Vejamos agora as Perícias e Pareceres técnicos, escritos, que se encontram juntos aos autos ...

O Dr. CG, na qualidade de Presidente do Colégio de Anestesiologia, em 20 de Abril de 2004, emitiu o Parecer junto a fls. 36 ss (concretamente 39 e 40) e veio a elaborar Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 680 ss) conclui que nada há a referir negativamente quanto aos procedimentos, fármacos administrados, técnica e material utilizado e que o fracasso na situação deveu-se à falta de ajuda de um colega na mesma área (fls. 683).
O Dr. LO, assistente graduado de anestesiologia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1275 ss) conclui que muito embora todos os doentes devam passar por uma consulta de anestesia prévia, não vê no caso isso alterasse o curso dos acontecimentos; refere que se após a colocação da máscara laríngea a doente inicia um quadro de dificuldade ventilatória, é correcta a opção pela recolocação da máscara, pois tem que se assegurar imediatamente a ventilação, sendo que mantendo-se a dificuldade ventilatória e sem possibilidade de ventilar com máscara facial, foi correcto aprofundar a doente para tentar melhor relaxamento muscular e entubá-la orotraquealmente como foi tentado; diz que a indução anestésica não falhou e que a dificuldade ventilatória desenvolvida pode dever-se a aparecimento de laringoespasmo, que tem múltiplas causas e surge na maioria das vezes de forma súbita; refere que não pode ser imputada má prática à médica e que é aconselhada a actividade do anestesista no bloco operatório com a presença de outro na proximidade para situações como a que se configura no processo (fls. 1280 ss).
A Drª, MD, assistente graduada de anestesiologia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1290 ss) conclui que a observação pré-anestésica foi adequada; refere que o procedimento adoptado na indução anestésica foi correcto, visto ter optado pela colocação da máscara laríngea evitando a intubação orotraqueal, sendo que os fármacos e respectivas doses foram adequados, bem como a monitorização, desencadeando-se o problema com o insucesso na colocação da máscara laríngea; refere que após a segunda tentativa de colocação da máscara laríngea e dado que a ventilação manual com a máscara facial não era eficaz, não se deveriam ter ministrado mais fármacos e tentado a intubação orotraqueal, mas interromper a anestesia e acordar a doente ou chamar um anestesista mais experiente que poderia ter tentado uma intubação vigil pelo nariz (fls. 1295 ss). Porém, a Dra. MD veio posteriormente apresentar esclarecimentos adicionais à Perícia (fls. 672 ss), referindo que se a saturação de oxigénio permanece muito baixa, o doente está com broncoespasmo e a ventilação com máscara facial é difícil e ineficaz, é uma urgência a intubação orotraqueal e se a tentativa falhar, tem que se avançar para uma cricotirotomia e de seguida para uma traqueostomia, sendo que apesar da previsível dificuldade de intubação, esta deve ser sempre tentada; confirma que todos os procedimentos adoptados foram tecnicamente correctos e os fármacos administrados em doses adequadas, tanto na fase de indução como na de reanimação e que a médica anestesista não cometeu nenhum erro técnico (fls. 672 e 673).

O Dr. JL, chefe de serviço de anestesio/agia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1290 ss) refere que a observação pré anestésica efectuada está de acordo com a generalidade dos critérios; não considera incorrecta a opção pela máscara laríngea mas diz que perante um doente com Mallapanti III a médica deveria ter efectuado uma ligeira sedação prévia de forma a poder efectuar uma laringoscopia directa com a doente em respiração espontânea e não conseguindo visualizar qualquer estrutura anatómica de referência, deveria ter acordado a doente e protelado a intervenção, reencaminhando-a para centro mais equipado; como a médica decidiu avançar, a dificuldade na colocação da máscara laríngea determinou o aparecimento de espasmo laríngeo e brônquico com consequente dessaturação, tendo depois utilizado dose excessiva de succinilcolina que prolongou o estado de apneia, agravando a hipoxia, com consequente bradicardia que levou à paragem cardíaca (fls. 1310 ss).

Já no decurso da audiência foi apresentado Parecer pelo Dr. JP, professor catedrático convidado da Universidade do Algarve, onde refere que não considera que os fármacos ou as doses administradas tenham tido qualquer relevo no caso, nem critica a técnica de anestesia escolhida, considerando antes que a situação que surgiu é rara mas bem reconhecida e definida como "incapaz de ventilar e incapaz de intubar", devendo prosseguir-se sem demora para a cricotiroidectomia ou traqueostomia; considera que a forma rápida como a doente evoluiu para uma hipoxia extrema, tal como a médica refere, embora não se sabendo o tempo, leva-o a concluir que a pré-oxigenação não foi efectiva; por outro lado, o aparecimento de enfisema subcutâneo na autópsia sugere dificuldade técnica na execução da cricotiroidectomia e da traqueostomia; conclui pela incompetência técnica da médica para resolver um problema raro mas bem reconhecido da prática da especialidade (fls. 2844 ss).

Por último, refira-se o Parecer do Conselho Médico-Legal, elaborado pelo Relator Prof. Dr. JV e aprovado por unanimidade, onde se lê que a morte de ambos os doentes resultou, provavelmente, da indução anestésica, por não ter sido possível manter a permeabilidade das vias aéreas ou ventilar adequadamente o doente; e em resposta à pergunta se as mortes se deveram a acto médico que se não mostrou indicado ou não foi levado a cabo de acordo com as "legis artis", referem que os actos médicos realizados foram os indicados, sendo que no que respeita à observação prévia do doente, selecção de monitorização, equipamentos, fármacos anestésicos e sua forma de administração, tudo terá sido feito de acordo com as "legis artis", o mesmo acontecendo no que respeita às atitudes tomadas face à emergência resultante da incapacidade de ventilar o doente e nas manobras de ressuscitação após paragem cardíaca. Referem que a médica anestesista parece ter usado todos os seus conhecimentos, competências e faculdades para tentar resolver as situações críticas que se lhe depararam e que ambos os doentes apresentavam factores de risco que podem ter contribuído para o desenlace fatal, pois ambos eram fumadores pesados, o que lhes diminuía a resistência respiratória e aumentava o risco de broncoespasmo, a que acrescia o facto do segundo doente ser obeso, o que acresce dificuldades técnicas na manutenção da via aérea. Contudo, foi correcto aceitar estes doentes para cirurgia e anestesia pois os referidos factores, embora aumentem o risco, não são contra-indicações absolutas até pela sua elevada prevalência na população (fls. 1032 a 1034).

De referir ainda que foram ouvidas algumas testemunhas que deram a sua opinião técnica sobre os eventos, embora também sem os terem observado. Foi o caso da dra. LC, da dra. MB e da dra. IN, todas médicas anestesistas, e que referiram, em síntese, que foram correctos os fármacos, as doses, a avaliação da doente, a opção da técnica anestésica e todos os procedimentos, nada apontando à arguida.

Ou seja, sopesadas as declarações da arguida, os documentos, os depoimentos das testemunhas, as perícias e os pareceres, temos que a única pessoa que afirmou que a arguida procedeu de forma incorrecta, ou sem estar de acordo com as "legis artis" da medicina, foi o Dr. JL (conforme se descreveu supra), sendo que também o Dr. JP parece apontar alguns erros à médica mas com base em especulações, porque refere que a pré-oxigenação não terá sido bem feita e que as cricotiroidectomia e traqueostomia não terão sido feitas atempadamente, mas ressalvando que não tem conhecimento do factor "tempo" que terá levado cada uma das técnicas.

Ora estes dois pareceres, em confronto com todos os outros (e mais a mais, não sendo coincidentes) são insuficientes para o tribunal concluir que a arguida não agiu de acordo com as regras tidas como boas na prática da medicina. Aliás, nem tal acusação consta da pronúncia, talvez porque, em concreto, nenhum acto foi possível imputar à arguida como determinante do desenlace fatal, sendo certo que também não sabemos quanto tempo demorou a realizar a traqueostomia, nem se houve dificuldades técnicas nesta realização (e agora não imputáveis à arguida) que tenham levado ao desfecho.

De resto, ainda em relação aos factos dados como provados nas alíneas de o) a aq), o Tribunal teve em consideração, para além dos elementos referidos, o que consta dos documentos de fls. 601, 160 ss e 613 ss.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas ar) a au) e aaad), concretamente quanto à opção de manter o bloco em funcionamento, não obstante a morte ocorrida no dia anterior.

O arguido assumiu ter sido dele essa decisão, não obstante a conversa tida com a enfermeira directora, mas disse que o fez depois de ouvir a arguida e todos os intervenientes. Afirmou também que não deu ordens para trabalhar, mas que disse que se estivessem preparados trabalhariam e ninguém colocou qualquer obstáculo.

As declarações do arguido foram confirmadas pelas testemunhas AS, SO, CP, HG e Dr. AD.

Também a arguida declarou que muito embora tivesse ficado abalada com a primeira morte, considerou que estava em condições para trabalhar e sentiu o apoio da equipa que manifestou continuar a ter confiança nela.

A conversa tida pelo arguido com a enfermeira directora também foi confirmada pela própria, a testemunha FF.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas av) a aau), referentes aos acontecimentos envolvendo o doente RG, repete-se novamente que, embora em face do objecto do processo, assuma particular relevância o teor das várias Perícias e Pareceres juntos aos autos, que cumpre analisar, teremos que ter sempre presente que tais Perícias e Pareceres se debruçam sobre uma realidade que os subscritores não verificaram, mas que lhes foi comunicada de acordo com elementos previamente existentes.

Assim, em relação ao que se passou no bloco operatório do Hospital Distrital de Lagos, o tribunal fundamentou a sua convicção no teor dos elementos clínicos constantes dos documentos juntos a fls. 262 ss (complementados com os documentos de fls. 1540 ss) e repetidos a fls. 1682 ss, com particular atenção para o Diário Clínico junto a fls. 267 e 1684, nas declarações da arguida e nos depoimentos das testemunhas que naquela altura se encontravam no bloco operatório. Neste âmbito, oferece apenas algumas divergências a extubação do doente, já que quanto às restantes ocorrências as declarações são todas coincidentes.

A arguida confirma o que consta no Diário Clínico, onde, além do mais, refere que o doente se extubou por contracção muscular.

A Dra. FR, presente na qualidade de médica-cirurgiã e que integrava a equipa que ia intervencionar o doente, disse que falou com a arguida antes da entrada para o bloco e que ela lhe pareceu serena. Mais referiu que após a indução da anestesia e do doente estar entubado, ele teve uma convulsão e expulsou o tubo, tendo ficado roxo, e a arguida tentou reintubar o doente, mas foi difícil, muito embora a arguida tenha mantido sempre o discernimento. Referiu que foi após a reintubação com êxito que o doente entrou em paragem cardíaca, tendo-se seguido as tentativas de reanimação.

A testemunha AS, enfermeiro que igualmente integrava a equipa, dando assistência à arguida nos procedimentos anestésicos, declarou que apenas recorda que a arguida procedeu como normalmente e que de repente o doente ficou totalmente cianosado, não sabendo esclarecer se nesta altura o doente ainda tinha o tubo ou já não. Referiu que a arguida nunca perdeu a calma e manteve sempre o doente com expansão torácica até que ele foi reintubado e começou a ventilar. Referiu que não viu o doente ter nenhuma convulsão.

A testemunha HG, enfermeiro da cirurgia, afirmou que a arguida estava calma (sendo que tinha intervindo numa cirurgia da parte da manhã, com um doente de risco por ser mongolóide) e que o doente RM, depois de estar entubado, fez uma tentativa de levante, tipo convulsão ou espasmo e o tubo saiu. Refere que o doente estava cianosado na cara, pescoço e tronco. Pensa que lhe foi dada mais medicação, foi feita ventilação manual e o doente foi entubado passadas 2 ou 3 tentativas. Referiu que a arguida manteve sempre capacidade de decisão, não mostrando dificuldade em gerir a situação.

Vejamos agora as Perícias e Pareceres técnicos, escritos, que se encontram juntos aos autos ...

O Dr. CG, na qualidade de Presidente do Colégio de Anestesiologia, em 20 de Abril de 2004, emitiu o Parecer junto a fls. 36 ss (concretamente 37 e 38) e veio a elaborar Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 681 ss) conclui que nada há de incorrecto que mereça ser citado, tendo sido correctos os procedimentos e fármacos adoptados; refere que as razões que levaram ao movimento anormal do doente podem ser várias: superficialização por patologia hepática que metabolizasse mais rápido os fármacos, ou patologia cardíaca sem repercussão do ECG; e à pergunta sobre o motivo da falha da indução anestésica, responde que o aparecimento súbito e localizado da cianose faz prever uma patologia clínica não detectada (que levou quase de imediato à instabilidade cardíaca) e o insucesso nas tentativas de entubação, agravadas pelos factos do dia anterior e que não deveriam ter tido continuidade nesse dia (fls, 683 e 684),

O Dr. LO, assistente graduado de anestesiologia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1276 ss) conclui que muito embora todos os doentes devam passar por uma consulta de anestesia prévia, não vê no caso isso alterasse o curso dos acontecimentos; refere que os procedimentos adoptados na indução anestésica e na fase se tentativa de reanimação e estabilização do doente foram os correctos, assim como os fármacos utilizados, doses, material utilizado, monitorização e controlo do doente; refere que parece ter havido um superficializar da anestesia (por metabolização mais rápida do indutor devido a hábitos alcoólicos) e subcurarização, não havendo outra hipótese que não a intubação orotraqueal; refere que a indução anestésica não pode considerar-se um fracasso e que a médica arguida não devia ter anestesiado depois do sucedido na véspera dado ter sido uma situação dolorosa e com grau de implicação psicológica marcado (fls. 1282 ss).

A Dra, MD, assistente graduada de anestesiologia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção Geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1291 ss) conclui que a observação pré-anestésica foi adequada; refere que os procedimentos adoptados na indução anestésica foram correctos, quer em relação aos fármacos suas doses, quer à monitorização, embora a administração do Fentanil e Cisatracúrio devesse ter sido mais precoce; refere que um doente que se auto-extuba está num nível muito superficial de anestesia e que após tal situação tem que ser reintubado; considera que a indução anestésica fracassou por ter havido 3 tentativas de reintubação durante um período de 10 minutos e entre elas a ventilação manual sob máscara facial não foi eficaz devido às secreções abundantes; diz que a anestesista deveria ter o apoio de colega mais experiente para agir rapidamente; e refere que seria aconselhável e tecnicamente seguro que a médica tivesse suspendido a sua actividade anestésica a partir de 30 de Março (fls. 1297ss).

O Dr. JL, chefe de serviço de anestesiologia, elaborou Perícia Médica, no âmbito dos autos disciplinares intentados pela Inspecção-geral da Saúde, em que, respondendo a questionário formulado (fls. 1291 ss) refere que a observação pré anestésica efectuada está de acordo com a generalidade dos critérios; considera que os procedimentos e escolha dos fármacos adoptados para a indução anestésica foram correctos; refere que um doente se auto-extuba quando não está curarizado (relaxado) e não está suficientemente aprofundado (adormecido) e no caso, devido aos hábitos alcoólicos, terá havido uma metabolização rápida do Propofol, que se teoricamente era suficiente acabou por revelar-se insuficiente devido a essa metabolização rápida; a situação foi agravada pelo laringoespasmo e dificuldade em manter a via aérea permeável, que demorou 10 minutos e levou a hipoxia, bradicardia e paragem cardíaca; entende que houve falta de apoio e diz que visto à distância, também acha que a anestesista devia ter interrompido a actividade no dia do primeiro acidente, mas não sabe para o retomar quando e em que condições (fls. 1313 ss).

Já no decurso da audiência foi apresentado Parecer pelo Dr. JP, professor catedrático convidado da universidade do Algarve, refere que no consenso europeu é inaceitável que um anestesista continue a anestesiar em seguida a um acidente anestésico do qual resultou a morte de um doente, sem que estejam totalmente esclarecidas as causas do desastre; considera que as doses de Propofol e Fentanil foram manifestamente inadequadas para o doente, sendo que o movimento descrito como convulsão será o movimento desesperado de quem está consciente mas parcialmente paralisado pelo cisatracurium; refere também que não devia ter sido ministrada a este doente Naloxona, porque foi essa a causa da instabilidade hemodinâmica do doente; conclui que houve uma clara incompetência técnica na gestão da anestesia (fls. 2847 ss).

Neste segundo caso cumprirá ainda referir que realizada autópsia médico-legal, concluiu o Sr. Perito que a morte foi devida a anóxia cerebral, pneumonia maciça bilateral com edema pulmonar acentuadíssimo, isquémia do miocárdio e shock, na sequência de complicação de acidente anestésico (fls. 447 ss). Estas conclusões foram postas em causa no relatório de Exame Histopatológico, que claramente refere que não se documentam lesões de isquémia aguda, nem crónica e levanta a hipótese de a lesão pulmonar se dever a ventilação artificial (fls. 607) e ainda pela Perícia médica elaborada pelo Dr. JP, especialista e consultor em Medicina Legal, que não resulta claro do relatório de autópsia, nem está médico-legalmente justificado que o doente tenha morrido das causas ali mencionadas (fls. 685 a 695).

Por último, refira-se de novo o Parecer do Conselho Médico-Legal, elaborado pelo Relator Prof. Dr. JV e aprovado por unanimidade, onde se lê que a morte de ambos os doentes resultou, provavelmente, da indução anestésica, por não ter sido possível manter a permeabilidade das vias aéreas ou ventilar adequadamente o doente; e em resposta à pergunta se as mortes se deveram a acto médico que se não mostrou indicado ou não foi levado a cabo de acordo com as "legis artis", referem que os actos médicos realizados foram os indicados, sendo que no que respeita à observação prévia do doente, selecção de monitorização, equipamentos, fármacos anestésicos e sua forma de administração, tudo terá sido feito de acordo com as "legis artis", o mesmo acontecendo no que respeita às atitudes tomadas face à emergência resultante da incapacidade de ventilar o doente e nas manobras de ressuscitação após paragem cardíaca. Refere que a médica anestesista parece ter usado todos os seus conhecimentos, competências e faculdades para tentar resolver as situações críticas que se lhe depararam e que ambos os doentes apresentavam factores de risco que podem ter contribuído para o desenlace fatal, pois ambos eram fumadores pesados, o que lhes diminuía a resistência respiratória e aumentava o risco de broncoespasmo, a que acrescia o facto do segundo doente ser obeso, o que acresce dificuldades técnicas na manutenção da via aérea. Contudo, foi correcto aceitar estes doentes para cirurgia e anestesia pois os referidos factores, embora aumentem o risco, não são contra-indicações absolutas até pela sua elevada prevalência na população (fls. 1032 a 1034).
Como se vê, alguns dos pareceres e perícias partem do principio que o doente se auto-extubou, ou seja, levou a mão ao tubo e ele próprio o arrancou. Contudo, esta conclusão não pode ser retirada nem das declarações da arguida nem dos depoimentos das testemunhas presentes no bloco operatório.
Repare-se que arguida refere que o doente se extubou por contracção muscular; a Dra. MR, que o doente teve uma convulsão e expulsou o tubo; o enfermeiro AS, que de repente o doente ficou totalmente cianosado, não sabendo esclarecer se nesta altura o doente ainda tinha o tubo ou já não; e o enfermeiro HG, que o doente depois de estar entubado, fez uma tentativa de levante, tipo convulsão ou espasmo e o tubo saiu. Todos referem que o doente estava cianosado.

Ora estas declarações não apontam para uma auto-extubação, podendo apenas o tribunal concluir que o tubo saiu. Por outro lado, é impossível ao tribunal concluir se o movimento tipo convulsão ocorreu antes, ao mesmo tempo, ou depois do tubo sair. Aliás, a existência deste movimento qua tale, suscitou alguma perplexidade durante a audiência nas pessoas ouvidas. Veja-se que nos esclarecimentos prestados, o Dr. LO, diz não compreender como é que existiu uma convulsão; a Dra. LC, diz que quando um doente superficializa mexe a cabeça, abre os olhos ou a boca, mas não se levanta, acrescentando a testemunha que um toque no doente, ou nos fios, ou no tubo, por qualquer das pessoas presentes, pode causar uma extubação; também a Dra. MB afirmou que um movimento brusco da parte de um doente que está entubado não é típico de uma superficialização. Ficou assim o tribunal com sérias dúvidas de que tenha ocorrido uma superficialização da anestesia, nomeadamente por metabolização mais rápida do indutor (a maior parte dos chamados a pronunciar-se sobre as doses de fármacos ministrados concorda com elas) e que tenha sido esta a causa do tubo sair.

Ora se a conclusão de que o doente superficializou assenta na circunstância de que ele se auto-extubou e se esta circunstância não pode ser tida como assente, fica desde logo inquinado o processo lógico da conclusão por não verificação da premissa.

Assim, também neste segundo caso não pode o tribunal concluir que a arguida não agiu de acordo com as regras tidas como boas na prática da medicina, desde logo porque, sabendo da superficialização mais rápida do indutor, não actuou com o cuidado devido, administrando medicamento em tempo oportuno que obviasse tal resultado. Diga-se ainda, e não obstante o devido respeito por opinião contrária, que a pronúncia parece entrar em contradição ao afirmar (como se provou) que a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica e respectivos procedimentos foram correctos e que foram correctos os fármacos e as doses bem como o material usado na monitorização e controlo do doente. É que se foram correctos os fármacos e as doses, e os procedimentos, não se pode também dizer que era necessário ministrar medicamento em tempo oportuno que obviasse a superficialização, na medida em que, se esta tivesse ocorrido, seria porque as doses e os procedimentos não foram correctos - sabendo-se que uma dose só é correcta se for dada no momento certo, ou seja, oportuno, de acordo com o correcto procedimento.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas a) a n) e aaaa), o tribunal teve em conta as declarações dos arguidos, conjugadas com a prova documental e testemunhal que infra se explicita.

De referir no que concerne às habilitações, funções e trabalho realizado pela arguida, o que consta dos documentos de fls. 2961, 1539 e 914.

No que concerne ao modo como ocorria a colaboração dos médicos anestesistas que vinham do Hospital de Portimão, foi dada particular atenção ao Protocolo e documentação contabilística juntos aos autos a fls. 1693 ss, bem como ao depoimento da testemunha Dr. IC. E quanto à contestação sobre a dispensa deste médicos, foi dada atenção à acta de fls. 1465 ss, sobretudo ao ponto 18, conjugada com os depoimentos das testemunhas Dra. AC, Dr. EB e Dra. FF.

No que se refere à integração da arguida efectuada pela Dra. IN, e ao modo como era o procedimento habitual dos anestesistas no Hospital Distrital de Lagos, foi dada particular atenção ao depoimento da testemunha Dra. IN.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas aav) a aaz) o Tribunal teve em conta o teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a certidão dos Processo disciplinares, e o depoimento das testemunhas Dr. PN, actual Bastonário da Ordem dos Médicos e, à data, Presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos, e Dra. MM, Presidente do Conselho de Administração da ARS do Algarve, conjugado também com o doc. de fls. 823. Foi ainda considerado o depoimento abonatório das testemunhas Dr. AA e Dra. AS, o primeiro chefe de serviço de cirurgia e a segunda médica anestesiologista, ambos em exercício de funções no Hospital de Portalegre.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas aaae) a aaau), referem-se os mesmos a considerações e conclusões, retiradas dos Pareceres e Perícias juntas aos autos. A título de exemplo, repare-se que as considerações explanadas nas alíneas aaai), aaao) e aaas) são da autoria do Dr. LO (fls. 1280 e 1282, e 1283); e as considerações explanadas nas alíneas aaap) e aaar) são da autoria da Dra. MD (fls. 1299 e 1296, respectivamente).

Em relação aos factos dados como provados nas alineas aaav) a aaaaa) atendeu-se ao depoimento da assistente e demandante MS, que não obstante a sua qualidade prestou declarações de forma isenta e sincera, declarações estas que foram confirmadas pelos depoimentos das testemunhas JC e MS, que conheciam bem a demandante (não o demandante) e o falecido RM e de quem eram amigos. Foi ainda tido em consideração o doc. de fls. 81.

Em relação aos factos dados como provados nas alíneas aaaab) a aaaaq) atendeu-se ao depoimento dos demandantes AM, R e GE, que não obstante a sua qualidade prestaram declarações de forma isenta e sincera, declarações estas que foram confirmadas pelos depoimentos das testemunhas MS, VO, CC, FV e AS, todos familiares e amigos dos demandantes, que demonstraram ter conhecimento directo dos factos que relataram. Foi ainda tido em atenção o teor dos documentos de fls. 2220, 2221 e 2686 ss.

Abonaram a favor da personalidade e das condições profissionais do arguido as testemunhas Dr. LB, Dr. JB e Dr. EA.

Em referência a outra matéria dada como provada, o Tribunal teve ainda em consideração a documentação existente no processo, nomeadamente as apólices de seguro e o teor dos certificados de registo criminal.

A matéria considerada não provada resultou da circunstância de quanto a ela não ter sido apresentada prova ou ser a mesma insuficiente para fundamentar a convicção do Tribunal de acordo com as regras da experiência comum.

Uma vez que supra já se deixou justificado porque razão não ficou o tribunal convencido que o doente RM se extubou por superficialização da anestesia, dispensamo-nos agora de repetir o que ali se disse.
Assim, nesta sede cumpre apenas realçar que o tribunal não se convenceu que os doentes tenham tido (os dois, ou só um deles) reacção adversa ao Propofol, não obstante o teor dos documentos de fls. 1748 ss e 2604 ss, em face do teor dos documentos de fls. 369, 371 ss (v. 376, 378 e 379) e de fls. 1034.

Quanto ao volume e carga de trabalho assumida pela arguida, nenhuma das pessoas ouvidas a tal matéria, nomeadamente os Srs. Peritos referidos, afirmaram que a arguida estava sobrecarregada (cfr., por todos, o Dr. LO, que refere que a programação cirúrgica razoável e tecnicamente segura não se rege tanto pelo número de intervenções mas deve ter mais em conta a carga horária, pausas para descanso, cirurgia minor, média ou grande com cargas de empenho diversas - fls. 1283) e mesmo a Dra. IN, que tinha antecedido a arguida no Hospital Distrital de Lagos, ao ser confrontada com o número de intervenções realizadas, considerou o mesmo normal.

Quanto à inexistência de colega na proximidade para acorrer a situação de dificuldade muito embora todas as pessoas ouvidas tenham dito que essa é a situação desejável, também todos disseram que um especialista, a partir do momento em que adquire tal grau, tem competência para anestesiar sozinho e tem que estar preparado para o fazer, sendo que o facto de não existir colega na proximidade para acorrer a situação de dificuldade não pode ser motivo justificado para não anestesiar um doente.

Quanto ao avançar para a anestesia sabendo que a doente tinha características anatómicas que à partida faziam prever uma intubação difícil e assim comprometer esta possibilidade alternativa, referiram também todas as testemunhas ouvidas a esta questão, médicos da especialidade, que nada apontava para a dificuldade, que se veio a verificar, de colocação da máscara laríngea, e que o facto de se antever uma intubação difícil não significa que essa intubação seja impossível, não sendo também este (a previsão de intubação difícil) um motivo justificado para adiar uma anestesia”.

***
Do recurso interlocutório

B.2 - Da acta de audiência de julgamento de 22-04-2008, a fls. 2.512, consta:

“A assistente MSS, ao abrigo do art. 356º, nº 3 al. b) do CPP, requer que sejam lidos os primeiros três parágrafos de fls. 1502 do depoimento da testemunha prestado perante a Mm. a Juíza de Instrução, uma vez que parece evidente ressaltar uma contradição entre esse depoimento e o que ora presta”.

Seguidamente a Mm." Juíza Presidente, após conferência, proferiu o seguinte Despacho:
Considerando que analisadas as declarações prestadas agora pela testemunha e as prestadas pela mesma a fls. 1502 não existe uma verdadeira contradição, uma vez que nesta matéria os depoimentos são imprecisos baseando-se o testemunho em "ideias" entende o Tribunal não haver contradição entre as declarações que justifique a possibilidade de leitura”.
*
Cumpre conhecer.
O requerido pela assistente em acta assentou na eventual contradição entre depoimentos prestados pela mesma testemunha em momentos diferentes, a audiência de julgamento e a instrução.

No desenvolvimento das suas motivações de recurso, a contradição transmutou-se em discrepância. Essa discrepância transformou-se numa dualidade incisivo/tímida dos depoimentos prestados: incisivo na instrução, tímido na audiência.

Pode haver estados de alma contraditórios, admite-se. Mas não constituem nulidades processuais.
Quanto ao teor dos depoimentos, eles assentam numa mesma realidade: a testemunha “tinha ideia” de que vinham dois anestesistas de Portimão para Lagos. Disse o mesmo nos dois momentos. Mas disse-o com diferentes estados de alma: admite-se.

Caberia ao tribunal apreciar esses diferentes estados de alma, porém não se conseguiria que a testemunha dissesse algo de diferente, pois que não houve contradição no teor dos seus depoimentos.

É, assim, improcedente o recurso interlocutório.
*
Dos recursos principais
B.3 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.

Logo, são questões a apreciar:
O erro na apreciação da prova (de ambos os recursos);
Da procedência do pedido cível (de ambos os recursos);
*
B.4.1 – Do erro na apreciação da prova no recurso de M.S.

É evidente a existência de erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal recorrido.
Esse erro assenta na consideração de que a auto-extubação de que falam as testemunhas tem um sentido de acto voluntário do paciente que leva a mão ao tubo e o extrai.

Essa fundamentação e entendimento são claros no seguinte excerto da fundamentação do tribunal recorrido:

Como se vê, alguns dos pareceres e perícias partem do princípio que o doente se auto-extubou, ou seja, levou a mão ao tubo e ele próprio o arrancou. Contudo, esta conclusão não pode ser retirada nem das declarações da arguida nem dos depoimentos das testemunhas presentes no bloco operatório.

Repare-se que arguida refere que o doente se extubou por contracção muscular; a Dra. MR, que o doente teve uma convulsão e expulsou o tubo; o enfermeiro AS, que de repente o doente ficou totalmente cianosado, não sabendo esclarecer se nesta altura o doente ainda tinha o tubo ou já não; e o enfermeiro HG, que o doente depois de estar entubado, fez uma tentativa de levante, tipo convulsão ou espasmo e o tubo saiu. Todos referem que o doente estava cianosado.

Ora estas declarações não apontam para uma auto-extubação, podendo apenas o tribunal concluir que o tubo saiu. Por outro lado, é impossível ao tribunal concluir se o movimento tipo convulsão ocorreu antes, ao mesmo tempo, ou depois do tubo sair. Aliás, a existência deste movimento qua tale, suscitou alguma perplexidade durante a audiência nas pessoas ouvidas. Veja-se que nos esclarecimentos prestados, o Dr. LO, diz não compreender como é que existiu uma convulsão; a Dra. LC, diz que quando um doente superficializa mexe a cabeça, abre os olhos ou a boca, mas não se levanta, acrescentando a testemunha que um toque no doente, ou nos fios, ou no tubo, por qualquer das pessoas presentes, pode causar uma extubação; também a Dra. MB afirmou que um movimento brusco da parte de um doente que está entubado não é típico de uma superficialização. Ficou assim o tribunal com sérias dúvidas de que tenha ocorrido uma superficialização da anestesia, nomeadamente por metabolização mais rápida do indutor (a maior parte dos chamados a pronunciar-se sobre as doses de fármacos ministrados concorda com elas) e que tenha sido esta a causa do tubo sair.

Ora se a conclusão de que o doente superficializou assenta na circunstância de que ele se auto-extubou e se esta circunstância não pode ser tida como assente, fica desde logo inquinado o processo lógico da conclusão por não verificação da premissa”.

Esta conclusão do tribunal recorrido está notoriamente errada.

O sentido dado pelas testemunhas - médicos e enfermeiros presentes no hospital e testemunhas que emitiram parecer médico - parte de outro significado do conceito de auto-extubação. E esse conceito, por todos utilizados – já que de facto não há prova de acto consciente e voluntário – tem o sentido de “auto-extubação por contracção muscular ou convulsão”.

Ora, o tribunal recorrido apreciou todo o episódio como se o conceito de auto-extubação exigisse um acto voluntário do paciente, com este a levar a mão ao tubo e a retirá-lo.

Este erro de análise do conceito inquinou toda a análise factual do tribunal recorrido quanto ao episódio anestésico relativo a RG.

Se é um dado assente que o tubo saiu, que nenhum dos presentes o retirou, que o paciente teve uma convulsão ou contracção muscular, altura (no momento ou pouco antes, tanto faz) da saída do tubo, é lícito concluir que foi essa contracção muscular ou convulsão que determinou a saída do tubo.

Aliás, duas das testemunhas presentes na sala afirmam-no peremptoriamente, como é realçado pelo tribunal recorrido: as testemunhas drª MR e o enfermeiro HG – ver fundamentação a fls. 21 do acórdão.

E depois basta ler os pareceres médicos constantes dos autos para perceber que as testemunhas que o tribunal refere como espantadas, não tinham razão para espanto. Motivos temos nós para ficarmos espantados com o espanto das testemunhas indicadas pelo tribunal face ao teor dos pareceres do Dr. JP (fls. 2847), MLD (fls. 1297) e JL (1314).

Este erro de análise com base em diferença conceptual inquina parte da matéria de facto dada como provada ou não pelo tribunal recorrido.

Quais sejam esses factos, é matéria a apreciar em conjunto com as restantes questões que se irão analisar infra.

De qualquer forma, como mera decorrência do que se acabou de expor e face à prova produzida, a auto-extubação por convulsão ou contracção muscular tem que ser dada como provada, o que se concretiza em dar como provado o facto ora dado como não provado em 5).
*
B.5Recurso de AMGE e outros.
No presente recurso, não obstante não existir erro notório na apreciação da prova, haverá que apreciar a prova produzida – os recorrentes recorreram de facto - em função da fundamentação factual do tribunal recorrido.
Destes e da própria configuração dos factos haverá que concluir que houve erro na apreciação da prova e resultam contradições e insuficiências que se analisarão infra.
*
B.6.1 – Das perícias

Dispõe o artigo 154.º, nº 1 do CPP, sob a epígrafe “Despacho que ordena a perícia” que esta é “ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo o nome dos peritos e a indicação sumária do objecto da perícia, bem como, precedendo audição dos peritos, se possível, a indicação do dia, hora e local em que se efectivará”, sendo da praxis que os peritos são ajuramentados (o compromisso a que se refere o artigo 156º do Código de Processo Penal).

Por sua vez o artigo 153.º dispõe que o perito é obrigado a desempenhar a função para que tiver sido competentemente nomeado, sendo-lhe aplicável, por extensão, o regime de impedimentos, recusas e escusas previsto nos artigos 39.º e no número seguinte e pode ser “substituído pela autoridade judiciária que o tiver nomeado quando não apresentar o relatório no prazo fixado ou quando desempenhar de forma negligente o encargo que lhe foi cometido. A decisão de substituição do perito é irrecorrível” – nº 3 do preceito.

Durante o inquérito a nomeação de peritos incumbe ao Ministério Público enquanto autoridade judiciária – artigos 154º e 1º, al. b) do Código de Processo Penal.

Por fim (artigo 152.º, sob a epígrafe “Quem a realiza”), a perícia é, preferencialmente, “realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa” e, quando se “revelar de especial complexidade ou exigir conhecimentos de matérias distintas, pode ela ser deferida a vários peritos funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares”.

Parece-nos evidente que, dada a importância de que se reveste a perícia, com a presunção de que o seu juízo se presume subtraído à livre apreciação do julgador - salvo discordância expressa na mesma área material do juízo técnico-científico emitido - o legislador português optou claramente por um modelo de perícia pública, oficial, regra que apenas é afastada por impossibilidade ou inconveniência.

Mas, mesmo nestes casos, de impossibilidade ou inconveniência (v. g. artigos 152º, nº 2, 159º, ns. 2, 3, 4, 5 e 160º-A do Código de Processo Penal) a intervenção de entidades terceiras é claramente subsidiária e sujeita às mesmas regras de forma, designadamente a nomeação por autoridade judiciária, juramento e aplicação do regime de impedimentos, recusas e escusas, excepto a prévia ajuramentação decorrente de lei.

Aliás, a especial relevância do juízo científico que se vê reflectida no artigo 163º do Código de Processo Penal está necessariamente associada à especial credibilidade da perícia, que o legislador entendeu, bem a nosso ver, estar ligada à sua natureza oficial.

Isto é, o legislador português, por obrigação sistemática decorrente da atribuição ao juiz de julgamento de um poder-dever de investigação, excluiu frontalmente um regime de perícias adversariais, privadas, assente na possibilidade de as “partes” no processo, designadamente assistentes e arguidos, apresentarem as suas próprias perícias ou de serem outras entidades, que não as designadas pelo tribunal ou por estabelecimentos oficiais reconhecidos por lei, a realizar as perícias.

A esses, assistentes e arguidos, bem como ao Ministério Público se não for ele a ordenar a perícia em inquérito, é aberta a possibilidade de designarem um consultor técnico da sua confiança, como claramente se extrai do disposto no artigo 155º do Código de Processo Penal. Esta é a forma de o legislador português consagrar – se ainda for tecnicamente possível – o exercício do contraditório na realização da perícia.

Ou seja, o meio de prova “perícia” não tem forma livre mas vinculada, de cariz marcadamente público. E a única liberdade de actuação concedida pela lei está reservada ao tribunal que pode ordenar oficiosamente perícias (bem como ao Ministério Público em inquérito) e às entidades oficiais reconhecidas, designadamente o Instituto de Medicina Legal.
Ora, que se passa nos autos?

Só há duas perícias e um parecer pericial: as duas autópsias e o parecer do Conselho Médico Legal. Não há perícia sobre a essência dos factos discutidos nos autos.

O Ministério Público em inquérito tentou obter tal perícia (IV-930) mas uma interpretação muito discutível (IV-983) do Director do Instituto de Medicina Legal deitou tudo a perder e deixou os autos sem perícia.

Com a agravante de que foram enviados ao CML os documentos constantes do despacho e ofício de fls. (IV-985 e 987), com vários meios de prova que apenas deveriam ter sido objecto de apreciação pelo tribunal recorrido e não pelo CML, incorrendo-se no ridículo de o CML ter emitido parecer sobre a apreciação que o próprio organismo fez de defesas administrativas, depoimentos e declarações da arguida.

O Tribunal, por seu turno, deixando passar em branco tal situação, embarcou no trabalho feito pela Inspecção Geral de Saúde.

A Inspecção Geral de Saúde (que, diga-se em abono da verdade, fez um trabalho notável), não é uma entidade pública a quem o instituto da perícia processual penal reconheça competência para nomear peritos em substituição do Ministério Público ou do Tribunal. Os peritos por si nomeados apenas desempenharam as suas funções para o inquérito levado a cabo por tal entidade e a qualidade de peritos que tinham nesses autos não se transmitiu ao processo penal sub judicio. Esgotou-se naquele processo.

Não foram, tais “peritos”, nomeados pelo Ministério Público ou pelo Tribunal, não prestaram compromisso e, portanto, não lhes pode ser reconhecida a especial qualidade que é inerente à figura do perito em processo penal. O mesmo ocorre com os médicos que não emitiram parecer para a IGS mas que foram ouvidos nos autos como peritos.

A conclusão óbvia é que tais pessoas – cuja honorabilidade pessoal e competência técnica não é posta em causa – são meras testemunhas que emitiram “pareceres” numa área técnico-científica, passe a estranheza face à estreita previsão de meios de prova do nosso Código de Processo Penal na contraposição peritos/testemunhas, por referência à sua credibilidade processual e ao objecto da prova.

Em termos processuais penais não são peritos e os seus pareceres não adquiriram a qualidade de juízo científico para os efeitos do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal.

Logo, todos esses pareceres devem ser apreciados livremente no conjunto da prova produzida.

Veja-se, por exemplo, o caso do “parecer” junto a fls. 2844 a 2848. Vem identificado como “Peritagem médica pedida a 23 de Maio de 2008 pelo Tribunal Judicial de Lagos”.

Verificada a acta desse dia da audiência de julgamento (fls. 2616) constata-se que a mesma pessoa foi arrolada e iria ser ouvida como testemunha e até se prescindiu do seu depoimento em troca de um parecer escrito, a pedido do advogado de um assistente. O tribunal não o nomeou perito.

Constata-se, pois, que esse médico não foi nomeado perito pelo tribunal e, consequentemente, não assumiu essa qualidade especial, de onde resulta que o seu “parecer” não tem a qualidade de perícia científica.

Os “peritos” da Inspecção Geral de Saúde foram ouvidos nos autos como peritos do Tribunal, pelo menos assim resulta das actas da audiência de julgamento:

Fls. 2.598 – JP e MD;
Fls. 2.615 – LO, na dupla qualidade de perito e testemunha;
Fls. 2.616 – CO.

Todos inquiridos como peritos, qualidade que não têm, no sentido processual penal atribuído ao conceito. Todas estas pessoas só podem ser testemunhas nos autos. Peritos nomeados pelo Tribunal não são certamente.
Os documentos que juntaram aos autos são isso mesmo: documentos. Não são perícias. Estão, igualmente, sujeitos à regra da livre apreciação da prova.

É ver, a este respeito o acórdão do STJ de 18-06-2009 (Proc. nº 1248/07.2PAALM.S1, sendo relator o Exmº Cons. Fernando Fróis). . [1]


Assim, não existe perícia nos autos relativamente a questões centrais para conhecer do caso dos autos.

Referimo-nos às três etapas do juízo médico em áreas essenciais para a análise do caso concreto: causa da morte no episódio anestésico; doses adequadas de Propofol em relação com a idade/peso/condição clínica do doente e sua relação com a superficialização; os procedimentos e a adequação de paragem do acto durante os episódios anestésicos; as leges artis. [2]

*
B.6.2 - O juízo científico
Resta-nos, pois, a emissão do parecer do Conselho Médico Legal como juízo científico emitido.

Mas, nesta sede, será a questão tão simples? Será caso de apenas olhar para e analisar a emissão de um juízo científico? Quer-nos parecer que não.

E quer-nos parecer que não por uma razão essencial: o “perito” deve (tem que…) percorrer um caminho para chegar à sua conclusão “científica”.

Nesse caminho debruçar-se-á, inicialmente, sobre os factos que estarão na base daquele juízo final. Não há ciência sem factos, pelo menos ao nível que tratamos (não há, que saibamos, equivalente médico de Albert Einstein). Depois, terá que racionalizar a conclusão com conhecimentos e métodos científicos.

São, pois, três as etapas essenciais no caminho a percorrer pelo emitente de um juízo científico: os factos; a razão científica ou, se se preferir, a metodologia científica, e suas relações com a conclusão, o juízo científico emitido.

Portanto, uma base factual irrepreensível será condição essencial do acerto do “juízo científico” e da sua aceitabilidade judicial.

A exposição pública e compreensível da metodologia utilizada é outro requisito essencial.

Mas, indubitavelmente, ao julgador será não apenas possível, também imposto, que controle, para além dos factos que determinam a emissão de um “juízo científico” e a própria metodologia do “juízo científico” emitido, o “nexo lógico entre as premissas de facto dessas perícias e as suas conclusões”. [3]

Determinante nesta análise será, pois, a relação lógica, científica, que se estabelece entre os fundamentos e as conclusões do relatório.

De facto, não faria qualquer sentido a aceitação de um juízo científico assente na ilogicidade ou na incerteza das conclusões ou dos seus fundamentos de facto.

Pior, na inexistência dos fundamentos que permitam a conclusão. São os fundamentos fácticos e metodológicos que conduzem à conclusão que permitirão ao tribunal o referido controle entre as premissas e as suas conclusões.

E, convém recordar, esses fundamentos de facto, “os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz”. [4]

Só com esses fundamentos será possível ao tribunal verificar e, caso se justifique, aceitar, aquela relação lógica, científica, que se estabelece entre os fundamentos e as conclusões do relatório, sem cair numa mera adesão acrítica de uma qualquer crença numa subjectiva cientificidade.

Num caso desses, as conclusões da perícia, revestidas embora de cientificidade “subjectiva” (o autor é um perito na área científica “medicina” ou biologia humana), não apresentam cientificidade “objectiva” e mais não são do que um pré-juízo extrajudicial, realizado por entidade sem competência para emitir um juízo judicial e conduzindo ao incumprimento das regras de processo respectivas, designadamente, o contraditório.
*
B.6.3 - O que já se pensou e disse e por cá se vai timidamente percebendo.

Neste particular ponto é de suma importância constatar que a jurisprudência portuguesa se começa a aproximar, em termos conceptuais e de resguardo perante juízos científicos, das conclusões da jurisprudência americana que labora nesta matéria desde 1923, com a prolação do seu acórdão Frye (Frye v. US, 293 F.1013, DC Circuit Court of Appeals, 1923) e suas sequelas.

Estas, as decisões nos casos Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, inc., 509 u.s. 579 (1993), General Electric Co. et al . v. Joiner, 000 u.s. 96-188 (1997) e Kumho Tire Co., ltd., et al. v. Carmichael et al., 000 u.s. 97-1709 (1999), vieram a definir as linhas de orientação para a admissão de pareceres científicos (“scientific expert testimony”), nos seguintes termos: o juiz de julgamento é o garante de que a prova apresentada provém, realmente, de conhecimento científico; o juiz de julgamento deve garantir que o parecer científico é relevante e que assenta em fundamentos fiáveis; o conhecimento científico é produto de “metodologia científica” pela utilização de método científico; a metodologia científica é o processo de formulação de hipóteses e de posteriores experiências que provam, ou não, a hipótese. Deve ser sujeita a testes empíricos; deve ser conhecida a sua ratio de erro; sujeita a “peer review” (revisão paritária ou revisão pelos pares) e publicação; deve ser ponderado o seu grau de aceitação pela comunidade científica.

Estas linhas de orientação jurisprudenciais – características de um modelo de perícias não públicas e diversas das nossas - foram, na maioria dos Estados, complementadas pelas recentes alterações das Federal Rules of Evidence.

De facto, as recentes alterações às “Federal Rules of Evidence” consagraram na rule 702 (já com as alterações introduzidas em 2000) os passos essenciais na análise da cientificidade das conclusões dos peritos científicos.

É este o teor da Rule 702 (Testimony by Experts):

If scientific, technical, or other specialized knowledge will assist the trier of fact to understand the evidence or to determine a fact in issue, a witness qualified as an expert by knowledge, skill, experience, training, or education, may testify thereto in the form of an opinion or otherwise, if (1) the testimony is based upon sufficient facts or data, (2) the testimony is the product of reliable principles and methods, and (3) the witness has applied the principles and methods reliably to the facts of the case”.

Temos, assim, que os passos reconhecidos como essenciais pelas rules of evidence para a aceitação de um juízo científico são três:

Saber se o parecer assenta em factos e dados suficientes;
Se foram utilizados princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança;
Se esses princípios e métodos foram devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado.

Apesar de a Rule of Evidence 702 ter sido pensada para um sistema adversarial puro de apresentação de juízos científicos privados contraditórios pelas partes, isso não invalida o seu acerto metodológico mesmo num sistema diverso, pois que expõe boa metodologia de apreciação e de racionalização das perícias técnicas ou científicas apresentadas ao tribunal e que se torna independente do sistema de perícias utilizado.
Nesta senda de exigência metodológica têm seguido alguns recentes acórdãos do STJ.

É ver o acórdão do STJ de 20-12-2006: (sendo relator o Exmº Cons. Sousa Fonte, proc. 06P3505), [5] ou o acórdão do STJ de 11-07-2007 (sendo relator o Exmº Cons. Armindo Monteiro, proc. 07P1416). [6]

Face à legislação processual penal portuguesa, perante estes desenvolvimentos jurisprudenciais e à própria metodologia de busca da verdade material, esses passos reconhecidos como essenciais para a aceitação de um juízo científico são quatro:

Saber se existe perícia reconhecida e se estão cumpridos os requisitos formais atinentes às notificações e exercício possível do contraditório (possibilidade de indicação de consultores técnicos);
Saber se o parecer assenta em factos e dados suficientes e judicialmente aceites;
Se foram utilizados princípios e métodos (científicos ou técnicos) de confiança;
Se esses princípios e métodos foram devidamente aplicados aos factos do caso a ser julgado.

Nenhum desses pontos está verificado no caso em análise, como veremos infra.

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B.6.4 – O caso sub judicio.
Este estado de coisas é agravado no presente caso, onde apenas um juízo pericial foi produzido, o do Conselho Médico Legal, pela circunstância de o próprio Conselho ter partido do princípio de que existiam perícias nos autos e se limitou, por isso, a emitir um parecer genérico e conclusivo.

Este – o juízo emitido pelo Conselho Médico Legal – está inquinado pelos vícios apontados supra.

O juízo emitido pelo Conselho Médico Legal partiu do princípio de que a documentação que lhe foi apresentada era resultante de perícias realizadas nos autos. Mas, para além das autópsias, não houve qualquer perícia.

Não se preocupou com uma exposição detalhada de factos e metodologia que supunha adquirida nos autos.

Assim, o parecer do CML não tem um acervo completo dos factos pertinentes (por exemplo, não explicita quais sejam as leges artis nos dois episódios anestésicos), parte dos factos que refere não são dados como provados ou são mesmo dados como estando em dúvida por este tribunal e, maxime, para chegar às conclusões apreciou elementos processuais probatórios de análise judicial exclusiva, designadamente a defesa apresentada pela arguida no processo disciplinar, declarações da arguida e depoimentos de testemunhas.

Ou seja, o CML comportou-se como um órgão judicial antecipando-se ao juízo do Tribunal apreciando prova pessoal, quando se deveria ter limitado às perícias e à documentação clínica, não emitindo parecer se entendesse que as mesmas eram insuficientes.

Assim, é um conjunto de opiniões não assentes em factos e explicitação cabal de todas as circunstâncias atendíveis e leges artis. Como tal não é um juízo científico. E, assim sendo, as suas conclusões não são atendíveis.

Embora livremente apreciável, as premissas insuficientes não permitem basear qualquer convicção.

Com a pretensão de ser a emissão de um juízo pericial é um acto irregular, vício de conhecimento oficioso – artigo 123º, nº 2 do Código de Processo Penal.

As restantes opiniões médicas não são juízos científicos na acepção do artigo 163.º do Código de Processo Penal, já que prestados extra processo ou no processo sem a qualidade de peritos.

A maioria dos médicos ouvidos não se preocupou em exibir ao Tribunal recorrido aquelas etapas do juízo científico em áreas essenciais para a análise do caso concreto: causa da morte no episódio anestésico; doses adequadas de Propofol; adequação de procedimentos dos actos durante os episódios anestésicos; leges artis.

Por outro lado, partem de factos cuja aceitabilidade é discutível ou cuja certeza é contrariada por elementares princípios de apreciação da prova.

O parecer mais completo, abrangente e mais sistematizado é o do Dr. J.L. (fls. 1310 a 1316), cujas conclusões não foram bem acolhidas pelo tribunal recorrido que se limitou a somar pareceres, sem exercer espírito crítico sobre os pareceres emitidos.

Assim, temos as conclusões, apenas. Melhor, nem isso! Temos as opiniões!

Porque um juízo emitido sem o cabal esclarecimento de todos os factos e causas, não é um juízo científico, é uma mera opinião. E uma opinião é aquilo que, de intermédio, fica entre a ignorância e a ciência, no dizer de Platão uma faculdade – diferente da ciência – capaz de fazer juízos sobre a aparência.

Ora, se a causa de morte (das mortes) não pode ser melhor investigada, mas o já assente indica com alta probabilidade (é uma certeza judicial face às conclusões das autópsias) o acidente anestésico como causa da morte, haverá que esclarecer porque razão se deram esses acidentes anestésicos sendo eles tão raros.

Já as doses adequadas de Propofol devem ser devidamente investigadas por relação com o peso dos doentes, idade e tolerância às mesmas (hábitos alcoólicos),

A adequação de paragem do acto anestésico (versus necessidade de prosseguir) durante os episódios anestésicos deve ser devidamente esclarecida com a exposição clara das razões a favor e contra cada uma das hipóteses.

Aqui as opiniões estão claramente divididas, mas é certo que o Dr. J.L. e o Dr. J.P.(e a Dr. D. no seu parecer, de onde excluímos o suspeito esclarecimento posterior) expõem de forma cabal e clara, mas não unânime e focalizada, as razões e o como das mortes.

De facto, são esses pareceres que apresentam uma coerência interna, lógica e factual explicativa das mortes ocorridas no HDL.

O tratamento abusivo de uma testemunha como perito e a inexistência de factos de exposição metodológica no parecer do Conselho Médico Legal são irregularidades mas de conhecimento oficioso – artigo 123.º do Código de Processo Penal – pois que a qualificação de uma testemunha como perito e a inexistência daqueles factos e metodologia afectam, sobremaneira, o valor dos actos praticados pela atribuição abusiva de uma qualidade científica a pareceres que não têm essa qualidade e pela atribuição a uma testemunha de uma qualidade que não têm: a de perito.
O mesmo ocorre se a opinião é prestada extra-processo, mesmo que na qualidade de perito reconhecida por outra entidade, designadamente entidades administrativas, mas em que não tenha sido cumprido o formalismo de nomeação previsto nos artigos 151º e segs. do Código de Processo Penal.

Essas irregularidades tiveram como consequência inquinar a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, que tratou como perícias e como perícias adequadas aquilo que eram meros pareceres e prova documental, sem qualquer vinculação probatória.

O Tribunal recorrido auto-limitou-se na sua apreciação probatória por via da aplicação do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal em vez de fazer uso do princípio da livre apreciação da prova.
Tais irregularidades impõem a livre apreciação da prova sobre tais elementos probatórios, o que será feito por este tribunal e enquanto lhe for possível.

Na medida em que não seja possível, por falta de esclarecimento factual, impõe-se sujeitar parte de tais ideias a perícia e a outros meios de prova.
*
B.6.5 – As leges artis médicas
E as leges artis devem ser cabalmente expostas e esclarecidas.

Neste particular ponto não basta afirmar que as condutas estão de acordo com as leges artis: é necessário dizer quais elas sejam (dá-las como provadas ou não provadas) para que o tribunal possa formular um juízo (o seu próprio juízo) de adequação das condutas dos arguidos ao seu dever de agir.
Por outro lado, leges artis não são a prática diária constatada noutros hospitais, que podem ser práticas negligentes e que não servem de exemplo.

Como se afirma no acórdão desta Relação de 8 de Abril de 2010 (Processo n.º 683/05.5 TAPTG.E1, sendo relator o Des. Correia Pinto),

«As leges artis são as “regras da arte”. Nos termos consignados na decisão recorrida, “reconduzem-se a normas escritas (não jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos e destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, designadamente, a evitar o desenvolvimento de perigo ou a ocorrência de danos que tais ofícios são naturalmente hábeis a produzir”.

O respeito pelas leges artis, no caso específico da medicina, impõe a execução dos cuidados médicos de acordo com a técnica mais apurada, segundo os processos e regras oferecidas pela ciência médica, quer quanto à técnica da intervenção ou do tratamento médico-cirúrgicos, quer quanto à sua oportunidade e conveniência no caso concreto e à idoneidade dos meios utilizados.

As leges artis constituem, em suma, “um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais. (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científica, mas também deontológicas ou de ética profissional, pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica” – Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, página 54».

Ou seja, as leges artis [7] são soft law (mollis lex), instrumentos normativos, por natureza não vinculativos, a que o direito constituído, o hard law (dura lex), recorre para definir parâmetros de comportamento seguro, fiável ou desejável, dessa forma conformando aspectos relevantes do dever de agir.

Apesar da discutibilidade dos conceitos e da não-aceitação da sua vigência e da própria contraposição conceptual mollis lex/dura lex em variadíssimos campos do direito, [8] certo é que outros ramos do direito não o dispensam, como o direito internacional ou o direito administrativo.
No caso do direito penal português e para o que releva no caso sub judicio, é o próprio legislador, de forma expressa, a fazer apelo às leges artis no artigo 150.º do Código Penal e a conformar o tipo penal ao seu cumprimento.

E, para o caso concreto, em se tratando de crime de homicídio negligente e impondo-se ao tribunal apurar se ocorreu uma violação de um dever objectivo de cuidado (apurar se os arguidos, em função da sua profissão, experiência e saber agiram com a diligência exigida segundo as circunstâncias para evitar o evento, segundo “o cuidado a que estavam obrigados”) e, em sede de culpa, se houve a violação de um dever subjectivo de cuidado [saber se seria exigível aos arguidos que adoptassem um comportamento que evitaria a produção do resultado típico (censurabilidade), se houve uma atitude pessoal descuidada ou leviana face à violação do bem jurídico protegido, em suma, se os arguidos agiram com o cuidado de que eram capazes], esse conceito, o dever de cuidado, tem que ser enformado pelas leges artis. Ou seja, estas conformam, de forma indirecta, o próprio tipo penal.

Sendo assim, como é, é tarefa do tribunal apurar qual seja essa lex artis ad hoc (a aplicável ao caso concreto), explaná-la de forma clara e compreensível e, após, formular o seu próprio juízo sobre o seu cumprimento ou incumprimento. Porque esse juízo é determinante no apuramento da verificação da ilicitude e da culpa, tendo presente que a obrigação médica é uma obrigação de meios e de diligência e não uma obrigação de resultado.

E é, necessariamente, um juízo judicial. Assim como é, necessariamente, uma questão de facto, não uma questão de direito, de interpretação ou de opinião. [9]


Na formulação da Sentença do Tribunal Supremo espanhol (STS 7801/2006 [10] ) "lex artis ", é “o criterio valorativo para calibrar la diligencia exigible en todo acto o tratamiento médico, en cuanto comporta no sólo el cumplimiento formal y protocolar de las técnicas previstas con arreglo a la ciencia médica adecuadas a una buena praxis, sino la aplicación de tales técnicas con el cuidado y precisión exigible de acuerdo con las circunstancias y los riesgos inherentes a cada intervención según su naturaleza y circunstancias (STS 23 mayo 2006)”, de forma a determinar qual a actuação médica correcta, independentemente do resultado produzido.

E lex artis ad hoc será a forma adequada de tratar um concreto episódio médico, a aplicação daquelas regras médicas a um caso concreto.

Logo, haverá que ouvir pessoas que as delimitem de forma clara e isenta e/ou juntar linhas de orientação ou guidelines de actuação no campo da anestesiologia aceites ao menos no panorama europeu, já que, ao que parece, a Ordem dos Médicos portuguesa não se preocupou em estabelecê-las ou, se o fez, não consta que estejam nos autos. [11]

Assim um parecer sobre o cumprimento das leges artis é um nada jurídico se emitido por entidade – médico – que não tem competência (a competência judicial) para as apreciar, para sobre elas emitir juízo sobre o dever-ser, sobre o dever de agir.

Não passa de uma opinião, que pode inclusive ser emitida por quem tem todo o interesse em não esclarecer o conteúdo dessas leges artis, uma porta aberta à “opinião” corporativa e desculpabilizante.

E é nesses momentos que devemos ter presente um aviso sério relativamente à ética profissional de quem emite tais opiniões, que não surge como um aviso individualmente direccionado, mas de consideração global:

O antigo imperativo para os intelectuais, é: sê uma autoridade! Sabe tudo no teu domínio!

Quando um dia a tua autoridade for reconhecida, será defendida pelos teus colegas e, naturalmente, terás de proteger também a autoridade dos teus colegas.
A antiga ética, que descrevi, proíbe que se cometam erros. O erro é absolutamente interdito. Assim, os erros não podem ser confessados. Não preciso de assinalar que a antiga ética é intolerante. E era também intelectualmente desonesta: leva ao encobrimento dos erros por amor da autoridade, e muito especialmente no campo da medicina [12]


Esta ética antiga, de que não estamos imunes enquanto sociedade, obriga o tribunal a uma análise profunda das causas e efeitos dos actos médicos, obrigando-o a mergulhar na análise precisa de todos os factos e a exigir, para todos eles, uma explanação e explicação exaustiva que fundamente o seu conhecimento de facto, arredando-o de uma simples operação de análise aritmética de opiniões médicas, o melhor caminho para a actuação da referida “ética antiga”.

E o tribunal recorrido, aceitando opiniões, foi omisso na crítica a fazer a alguns dos pareceres juntos aos autos por estas testemunhas, designadamente a contradição evidente entre o que a Drª MD afirmou à IGS e o papel que juntou a fls. II-672 e 673, ou à credibilidade de um parecer que aparece apresentado como sugerido pelo Sindicato dos Médicos (fls. II-692 a 695). Este deve ser, aliás, caso raro em que um “perito” do Tribunal é designado ou sugerido pelo Sindicato dos Médicos.

Por outro lado, nenhuma decisão judicial se pode basear em opiniões. As opiniões têm o seu espaço informal próprio. Uma opinião é apenas uma afirmação mal pensada ou, para a lógica, uma atitude não crítica ou pouco crítica, uma crença no meramente provável.

Haverá, pois, que estabelecer como provadas quais sejam as leges artis que enformam a conduta da arguida, a lex artis ad hoc para cada um dos episódios anestésicos (já que quanto ao pré-anestésico elas estão provadas nos autos), assim como quanto à matéria referente ao facto não provado 21 (“que após a morte de AE, a arguida devesse ter auto suspendido a sua actividade”).
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B.6.6 – As autópsias e o nexo causal

Aqui haverá que recordar que «o conhecimento melhor provado é aquele que se erige sobre as “causas” e o “como”». [13]

Vamos, pois, às causas e ao como.

Relativamente às autópsias elas cumprem, parcialmente, a sua função probatória.

Concluem ambas pela atribuição a “incidente anestésico” o papel essencial como causa de morte.

Numa delas apenas nos esclarecimentos adicionais e, em ambas, há a lamentar a inexistência de exames que permitam uma maior especificidade atributiva de causas. Esta é uma característica típica de todos os processos de negligência médica sobre os quais se debruçou o relator. Uma espécie de destino inexorável da ocasional omissão focalizada.

Ainda tentou o Digno magistrado do MºPº realizar exumação para obter respostas mas, como é óbvio, “uma autópsia mal feita não pode voltar a ser feita” (Prof. Daniel Serrão) e nas exumações pouco se pode fazer, para além de pesquisa de projécteis, fracturas e pouco mais, o que é confirmado pelo parecer médico de fls. IV-925,926.

Daqui não resulta que a causa de morte não possa ser determinada, pois que a verdade obtida num processo não é apenas a verdade cientificamente comprovada, a verdade absoluta e cientificamente inatacável.

O cientista, para quem se trata sempre apenas do conhecimento, teria aqui de dizer que já lhe não é possível um juízo seguro, porque a pauta é excessivamente imprecisa ou porque o estado do conhecimento lho não permite. O juiz não pode permitir-se um tal non liquet; ele está ao contrário do cientista, sobre uma obrigação de resolver. Tem que chegar a uma resolução do caso que lhe foi submetido e, por isso, tem que decidir-se a julgar de um ou outro modo, a situação de facto que lhe foi submetida [14] .

Ao tribunal impõe-se uma decisão em função de toda a prova produzida e a falência parcial de uma delas, mesmo que seja a tecnicamente mais adequada, não o inibe (e até se lhe impõe) de indagar se as restantes provas produzidas permitem uma certeza no processo.

Essa verdade tem que ser a verdade judicial, obtida num processo, através de meios suficientes e apropriados para convencer o Tribunal da sua verificação.

A verdade (material) é “a realidade, aquilo que tem efectiva existência, com exclusão do meramente possível [15] , a verdade que, “não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial prática[16] , assente em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”.

Resta saber se esses elementos existem nos autos.

A autópsia relativa a AE (I, 17 a 20) e esclarecimentos adicionais (III, 613 a 615) e RG (II, 447 a 451) são claros na afirmação de que a morte se ficou a dever a “morte na sequência de complicação de acidente anestésico” ou que “o relatório de autópsia está de acordo com a hipótese de acidente anestésico”.

Está, pois, delimitado o campo das hipóteses de morte, sendo de afastar a hipótese de morte natural defendida pelos arguidos, quer pelas conclusões dos relatórios das autópsias, quer pela circunstância de as mortes atribuíveis a acidentes anestésicos serem uma raridade estatística.

E sendo “acidentes” raros, não deixam de ser acidentes no sentido de algo que ocorreu e não deveria ter ocorrido. Na “linguagem do erro”, acidente é “um evento não esperado e não desejado mas que determina necessariamente danos gerais e altera o resultado final da acção, comprometendo o todo”. [17]
Bem como a tese inicial defendida pela Ordem dos Médicos (ver comunicação e nota prévia ao relatório de fls. I-29-32) de implicação causal de uma menor eficácia de um medicamento (o Propofol) no ocorrido. A este respeito, o Relatório de Análise do Infarmed (III-541 e segs.) é claro na exclusão de causalidade medicamentos-morte: “o resultado do processo de imputação de causalidade para os 2 casos em apreço não aponta para que as mortes verificadas se devam a reacção adversa aos medicamentos em questão” (fls III-552), isto é, os administrados.

De forma mais específica para cada um dos casos (fls. III-554 e 555), o grau de probabilidade entre os medicamentos administrados e a insuficiência respiratória, a paragem cardíaca e a morte é qualificado como “improvável”.

E aqui convém esclarecer um ponto essencial.

Deve entender-se como causa de morte a doença (substantiva) ou actuação que directa ou indirectamente desencadeia mecanismos de morte e, sendo estes alterações físico – patológicas irreversíveis que conduzem à morte, não se levantam dúvidas sobre a afirmação de que uma actuação da arguida durante o episódio anestésico pode surgir como a causa de morte, surgindo a insuficiência respiratória e a paragem cardíaca como mecanismos de morte.

Logo, a análise dos procedimentos da arguida nos episódios anestésicos é parte essencial do estabelecimento do nexo causal entre a sua conduta e as mortes ocorridas (conduta/ causa de morte – mecanismo de morte – morte).
Essa análise passa por uma contra-posição entre o agir efectivo e o dever-ser em termos de conduta médica. Em termos concretos: que fez a arguida que não deveria ter feito ou que não fez e que deveria ter feito? Essa questão é essencial na imputação dos factos. E não está esclarecida.

A este respeito dúvidas se levantam em ambos os episódios anestésicos que merecem um aprofundar dos conhecimentos.

No primeiro episódio – o de AE – impõe-se apurar se a arguida, sabendo que a paciente tinha a classificação Mallampati III – indicação de maior dificuldade de intubação - e glote anterior, deveria ter prosseguido com o episódio anestésico após a falência na colocação da máscara, sabendo que não beneficiaria de ajuda de outro colega mais experiente, ajuda essa que aqueles dois elementos já indiciavam e que as leges artis parecem indicar. Em breve, a sua actuação ao prosseguir sabendo das dificuldades de intubação e ausência de ajuda fez acrescentar um risco acrescido de ocorrência do resultado?

De facto, a fundamentação factual do tribunal recorrido é contraditória (fls. 27 do acórdão), pois que se afirma que todas as pessoas ouvidas estão de acordo que a existência de um colega na proximidade para acorrer a situação de dificuldade é a situação desejável, isso só nos permite afirmar que essa é uma “lex artis”. Se houve médicos a afirmar que o não fazem, a única coisa que se pode concluir é que não cumprem essa lex artis. O que essas testemunhas não cumprem não pode passar a ser norma aceitável, o que seria a mera homologação de um comportamento negligente, mesmo que generalizado. A negligência, por muito generalizada que esteja, não é lex artis.

Ainda nessa parte da fundamentação factual, a previsível dificuldade de intubação pode não ser motivo justificado para adiar uma anestesia, desde que verificadas todas as condições de segurança. Mas, não verificadas essas condições ideais, o prosseguir para a intubação será um acréscimo de risco inaceitável?

No segundo episódio – o de RG – saber se face à extubação e à superficialização (por metabolização mais rápida do indutor) não seria mais aconselhável não prosseguir com o episódio anestésico. Ou actuar de forma diversa, [“com a administração de mais hipnótico com vista a promover a inconsciência ou com a sua administração precoce de modo a poder fazer efeito antes que a superficialização ocorra”, como provado em aaat)], tendo em conta a superficialização que existiu face aos pareceres médicos mais consistentes.

A ligação, neste segundo caso, entre a sub-dosagem, a superficialização e a auto-extubação por contracção muscular é evidente à luz das mais elementares regras da lógica e dos fundamentos médicos expostos nos pareceres.

Em ambos os casos, saber porque razão a arguida não parece ter critério na administração da dose do medicamento, já que atribui inicialmente a ambos os pacientes a mesma dose de Propofol (200 mg) para pesos e condições clínicas que se apresentam bastante diferentes.

Aliás, para RG, com hábitos alcoólicos, a dose administrada é de 2mg/kg (101 Kg) e para AE parece ser de 5 mg/Kg para uns 64,800 Kg, como bem salienta o Infarmed.

Estas questões exigem – para além de uma tomada de posição actual deste tribunal em função dos pareceres existentes e pela aplicação do princípio da livre apreciação da prova até onde for possível - uma peritagem isenta de suspeitas de parcialidade, exigem uma perícia no estrito cumprimento das normas processuais penais, a emissão de parecer colegial a realizar por entidade cuja competência técnica e isenção esteja acima de suspeitas.
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B.6.7 – Factos e apreciação
E como se pode fundamentar dessa forma face ao provado em aaaa), aaae) e aaaf), factos que dão como assentes que a actividade do anestesista deve ser sempre acompanhada da presença de outro anestesista, por serem comuns as situações difíceis?

Desde logo o “sempre que possível” do facto provado aaaa) é discutível. Ou é “sempre” [facto provado aaae)], ou é “sempre que possível”. E os depoimentos convergem no acerto do dado como provado em aaae).
Logo, o facto provado aaaa) deve ser extirpado da expressão “sempre que possível”.

E como compatibilizar esses factos com o provado em aaag)? A contradição parece evidente!

É que o provado em aaae) é a consagração de uma lex artis.

Aliás, para a fase pré anestésica, as leges artis estão bem expostas nos factos provados aaaj) a aaan). E essas foram claramente violadas em ambos os casos imputados à arguida.

O único sentido útil do facto provado em aaag) é: “não era uso da prática médica quotidiana no HDL a exigência de que existissem disponíveis, pelo menos, dois especialistas de anestesiologia para que pudesse ter lugar a actuação própria da especialidade em sala cirúrgica”. Mas essa é uma conduta arriscada que, face ao provado em aaae), assume um risco de responsabilização, não uma lex artis.

Acresce que não é possível dar como provado que:

aat) a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica e respectivos procedimentos foram correctos;
aau) foram correctos os fármacos e as doses bem como o material usado na monitorização e controlo do doente”.

pontos que, necessariamente, deverão permanecer em dúvida e devem ser objecto de avaliação pericial, pois que estão em dúvida a dosagem de Propofol e os procedimentos durante o acto anestésico, em ambos os episódios.

Aliás, esses mesmos elementos, designadamente o depoimento da Drª Ivone Nabais, negam a parte final do facto provado em i) “como aliás já era procedimento habitual no HDL, vindo do passado anterior ao seu exercício de funções”, pois que aquela médica é clara no descrever dos seus cuidados na consulta anestésica e pré-anestésica.

E como esta médica era a única anestesista em serviço no HDL, o seu depoimento é relevantíssimo no que à consulta de anestesiologia diz respeito na prática anterior no HDL.

E deste depoimento ressalta que, nos casos mais complicados e já referenciados pelo cirurgião, se procedia a consulta anestésica com, pelo menos uma semana de antecedência para dar tempo à realização de exames, como a consulta pré-anestésica era efectuada na véspera. A testemunha é clara na afirmação de que só em último recurso é que apenas se vê o doente à porta do bloco operatório.

Isto é, a arguida elegeu como regra na sua prática médica a excepção anterior e aquele excerto do facto tem que ser dado como não provado.

Acresce que o facto provado ab) deve ver a sua redacção corrigida para ”a arguida procedeu a aprofundamento anestésico com mais 100 mg de Propofol” e não “com mais de 100 mg de Propofol”, já que as provas apontam para dose certa e não variável.

Na sequência destes considerandos e por decorrência da lógica, subsistem fatos que, consequencialmente, não podem ser dados como provados ou não provados, sobre os quais passa a existir dúvida (insolúvel por este tribunal) e que, consequentemente, devem ser objecto do reenvio.

Estão nestas condições os factos que infra se indicam.
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B.6.8 – Do arguido PC

Já quanto ao arguido PC várias são as perplexidades a fazer notar.

Uma delas já referida, a do facto provado aaaa), que deve ser analisado em contraposição com outros dados como não provados, designadamente os dados como não provados em 11), 13), 14) e 15).

Aliás, o facto provado em 11) é, só por si, alvo de críticas, já que dá como provado um facto em sede de factos não provados (“provou-se que tinha apenas consciência de que essa era uma possibilidade”). Este facto, que se provou, deve ser assumido como provado.

Convém ter presente que aquilo que aqui se pede, em sede de crime negligente, não é que o arguido tenha “plena consciência” de que algo vai acontecer, mas que haja a previsibilidade da ocorrência de um facto. Quanto ao elemento previsibilidade do perigo, se houve efectiva previsão do tipo e não conformação do arguido com o resultado previsto - negligência consciente - ou se ocorreu mera previsibilidade do tipo (possibilidade de prever) - negligência inconsciente.

Determinando-se a adequação da acção apta a evitar o resultado por um juízo de prognose póstuma reportado ao momento da omissão, por um critério geral e objectivo e referindo-a a todo o processo causal, tendo presente os conhecimentos concretos do arguido não se pretende apurar se o arguido previu pessoalmente o resultado, mas sim, objectivamente, se, para um médico com as suas capacidades profissionais, tal resultado era previsível ou se, pelo contrário, tal resultado era, objectivamente, anómalo e imprevisível.

Ora, ao dar-se como provado que o arguido ”tinha apenas consciência de que essa era uma possibilidade”, está a dar-se como provado o elemento caracterizador da negligência inconsciente.

E, pelo que sobressai do depoimento da Drª IN, não só o arguido sabia porque ela própria lhe havia comunicado a sua saída, como tal era do conhecimento geral.

Acresce que o arguido não só era o Director Clínico, como Director do Hospital e Presidente do Conselho de Administração [facto provado f)], sendo difícil de aceitar que não soubesse o que se passava naquele Hospital.

Aliás, o facto provado sob g), onde é patente que o arguido sabia que a Drª IN iria sair do HDL e, mesmo, assim, não voltou atrás na sua decisão é, por si, elucidativo e está em contradição com os referidos factos não provados.

Este facto provado e o depoimento da Drª IN na audiência de julgamento de 23-06-2008 (v.g. acta de fls. 2.978 e CD respectivo), deitam por terra o frágil argumento do ponto 18 da acta de fls. 1.465 e ss.

Por isso que os factos não provados 11), 13), 14) e 15) tenham que ser dados como provados, com excepção da parte final do facto 13) (“como fora expressamente alertado para elas por vários colegas”), que permanece em dúvida.

Por outro lado, o facto at) parece sugerir que a decisão de prosseguir para o segundo episódio anestésico terá sido democrática, sujeita a um quase referendo de “corredor”, no qual teriam participado, o arguido, a arguida e o restante pessoal da equipa (“tendo todos avançado”).

Essa impressão é negada pelo facto aaad), [determinadas pelo arguido] e pela circunstância de o arguido ser Director Clínico, Director do Hospital e Presidente do Conselho de Administração, para além de ser o cirurgião a liderar a equipa.

Mas o próprio tribunal o diz na sua fundamentação: “O arguido assumiu ter sido dele essa decisão, não obstante a conversa tida com a enfermeira directora, mas disse que o fez depois de ouvir a arguida e todos os intervenientes. Afirmou também que não deu ordens para trabalhar, mas que disse que se estivessem preparados trabalhariam e ninguém colocou qualquer obstáculo”.

Neste país e ao nível organizacional não é comum que os subordinados contrariem o chefe, nem é comum que o chefe goste de ser contrariado, já que as qualidades de liderança se confundem com as qualidades de imposição.

Ora, se o arguido admitiu que a decisão foi dele e, legalmente, a decisão teria que ser dele, não se vê como não se deva dar como provado que a decisão foi dele. O que se fará.
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B.6.9 – Os factos não provados
Quanto aos factos não provados - para além da notória falta de fundamentação do tribunal recorrido - pelo que se acaba de fundamentar, pela decorrência das mais elementares regras da lógica e das presunções hominis, haverá que proceder à mesma destrinça entre factos que se mostram provados e factos que se impõe provar, para além da posição já assumida quanto aos factos não provados 11), 13), 14) e 15).

Quanto ao facto nº 1 é evidente que essa decisão, a ser tomada, teria que o ser pelo Director Clínico. A decisão foi, de facto, tomada e a Drª IN é clara na afirmação de que essa foi uma decisão do arguido.

Logo, o facto não provado sob 1) deve ser dado como provado apenas na parte referente à decisão do arguido, pois que a parte restante do facto já se encontra exposta de forma adequada no facto provado e).

O mesmo ocorre com o facto não provado sob 20), pois que isso mesmo já decorre dos factos provados sob i) e j). Dar o facto 20) como não provado é afirmar uma contradição com os referidos factos provados e com os meios de prova produzidos.

Os factos não provados sob 7), 8), 9) têm, face ao que se fundamentou supra, que permanecer em dúvida.

Quanto aos factos não provados 19), 21), 22) e 23), haverá que, primeiro, extirpá-los das afirmações inúteis, redundantes e conclusivas, depois, expô-los de forma seca à dúvida.

Por fim, o facto não provado sob 12) para além de inócuo é conclusivo e a experiência da arguida já está sobejamente caracterizada nos factos provados a), b), c), e), h) e l). É, pois, um “facto” inútil.
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B.6.10 – Do poder-dever de investigação

É sabido que o processo penal português está balizado pelo princípio do acusatório com forte pendor de operacionalidade do princípio de investigação.

Nos pareceres médicos juntos aos autos são indicadas causas explicativas possíveis das ocorrências nos dois episódios anestésicos que não foram objecto de análise – pelo menos não foram na fundamentação - pelo tribunal recorrido.

Assim, há factos que, na sequência do poder-dever de investigação se consideram relevantes e que, não extravasando do objecto do processo, se acrescentam para esclarecimento.

São esses os factos, constantes do parecer médico do Dr. JP, que se acrescentam em B.6.11.5 e que não constam dos factos provados e não provados e que se podem revelar essenciais para o esclarecimento dos dois episódios anestésicos e o nexo causal entre a conduta da arguida e as mortes ocorridas, a saber:

A pré-oxigenação de AE, prevendo-se uma intubação difícil, deveria ter sido feita de forma diversa?

A forma rápida como AE evoluiu para uma hipoxia extrema leva a concluir que a pré-oxigenação não foi efectiva?

200 mg de Propofol e 0,1 mg de Fentanil foram doses manifestamente insuficientes no episódio anestésico de RG?

Os movimentos descritos como “convulsão” ou “contracção muscular” são os movimentos desesperados de um doente que está parcialmente paralisado (por cisatracurium 10 mg) mas consciente?

A noloxona nunca deveria ter sido utilizada neste contexto?

No consenso europeu é inaceitável que um anestesista continue a anestesiar em seguida a um acidente anestésico do qual resultou a morte de um doente até ficarem totalmente esclarecidas as causas do ocorrido?
B.6.11 – Se a ausência de fundamentação do tribunal recorrido quanto aos factos não provados conduziria à nulidade do acórdão lavrado, e apenas, já a existência dos vícios de apreciação da prova nos reconduz à própria audiência de julgamento e à necessidade de produção de prova suplementar.

Assim, ocorreu erro notório na apreciação da prova, erro na apreciação de vários elementos de prova, contradição entre factos provados e não provados e de ambos com a fundamentação e insuficiência da matéria de facto provada quanto aos deveres de agir da arguida nos dois episódios anestésicos e quanto ao dever de suspensão da actividade, pelo que se impõe o reenvio parcial dos autos ao tribunal recorrido, nos pontos que infra se indicam.

Este reenvio é ordenado porquanto é inviável dar cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 430.º do Código de Processo Penal.

De todo o exposto resulta que:
*
B.6.11.1 -factos provados cujo teor é alterado, nos seguintes termos:

i) Nos meses de Fevereiro e Março de 2004, também devido ao volume de cirurgias a realizar e à falta de tempo inerente, a arguida não dava por rotina consulta de anestesia a todos os doentes, mas apenas àqueles que fossem referenciados pelos médicos cirurgiões

ab) dado o insucesso da recolocação da máscara laríngea, a arguida procedeu a aprofundamento anestésico, com mais 100 mg de Propofol e 75 mg de succinilcolina, e tentou a intubação endotraqueal da doente sem êxito, devido à glote muito anterior (circunstância que, com efeito, constitui factor de dificuldade para uma intubação eficaz);

at) no dia seguinte de manhã, no hospital, enfermeiros conversavam sobre o sucedido, também na presença da arguida, que manifestou disponibilidade para cumprir o programa em função do que fosse decidido e posto que a equipa mantivesse confiança nela, tendo o arguido PC, verificando a predisposição de todos os elementos das equipas médicas e de enfermagem para continuar, referindo-se à morte ocorrida no dia anterior, dito qualquer coisa como "mortes acontecem" e "vamos continuar a trabalhar", sendo que ninguém presente se manifestou contra e o arguido PC, decidiu prosseguir com o acto cirúrgico;

aaaa) o arguido sabia que a actividade do anestesista no bloco operatório deve ser acompanhada da presença de outro anestesista na proximidade para ultrapassar situações difíceis, comuns na actividade anestésica e conhecia os factos acima descritos anteriores ao segundo incidente;

aaag) não era uso da prática médica quotidiana no HDL a exigência de que existissem disponíveis, pelo menos, dois especialistas de anestesiologia para que pudesse ter lugar a actuação própria da especialidade em sala cirúrgica.
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B.6.11.2 - factos não provados que devem ser dados como provados:

1- A arguida, por decisão unilateral do arguido PC, passou a trabalhar autonomamente;

5 – O doente RM extubou-se devido a metabolização do indutor mais rápida do que o normal (esta causada pelos hábitos alcoólicos do doente, tendo ainda presente a dose administrada em conjugação com o peso do doente), tendo ocorrido uma superficialização da consciência que foi o que causou o movimento tipo convulsão do doente;

11- O arguido PC, quando dispensou a colaboração que os médicos anestesistas de Portimão vinham prestando no HOL, tinha consciência da possibilidade de o HDL ficar a breve prazo com apenas uma anestesista;

13- O arguido PC, pelas funções que desempenhava, pela sua experiência de vida e profissional, pelos conhecimentos específicos da sua especialidade clínica e, sobretudo, pelo conhecimento do número de cirurgias que se faziam no bloco operatório do HDL e das respectivas condições de funcionamento, devia saber e sabia efectivamente, que a arguida, indo trabalhar sozinha, iria fazê-lo em condições de muita pressão psicológica, sem tempo para preparar adequadamente as suas intervenções ou de proceder às adequadas avaliações clínicas aos doentes que iriam ser anestesiados por ela, sendo que o arguido não ignorava todas estas circunstâncias;

14- Tudo isso foi deliberadamente ignorado pelo arguido, que ao agir desta forma colocou conscientemente em situação de risco toda a actividade anestésica do HDL, comprometendo, nomeadamente, a segurança técnica dos actos anestésicos;

20- Desde a saída da Dra. I, ou mesmo só a partir do início de Fevereiro de 2004, a arguida deixou praticamente de fazer consultas pré anestésicas, circunstância que levava a que não fossem devidamente despistadas patologias ou outras situações de risco anestésico dos doentes a submeter a cirurgias e que os poderiam pôr em perigo de vida durante as anestesias que se iriam seguir;
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B.6.11.3 -factos provados que devem ser dados como não provados:

i) – in fine - Que era procedimento habitual no HDL a inexistência de consulta de anestesia ou pré-anestesia, vindo do passado anterior ao exercício de funções da arguida;
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B.6.11.4 -factos sobre os quais subsistem dúvidas (algumas logicamente consequenciais) e sobre os quais se impõe seja produzida prova:

am) a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica foram correctas;

an) ao optar por proceder a anestesia geral da doente sob máscara laríngea, a arguida não previu, nem lhe era exigível que previsse, dificuldade de colocação da máscara laríngea;

ao) em face do quadro de dificuldade ventilatória, a opção de tentar recolocar a máscara foi correcta, com vista a assegurar imediatamente ventilação;

ap) à estimulação da zona laríngea sem ter sucesso na permeabilização da via aérea, maior é a hipoxia e hipercápnia com cianose e nestas situações a ventilação com máscara facial é assaz difícil e ineficaz, pelo que se impunha a intubação da doente;

aat) a avaliação do doente e a opção da técnica anestésica e respectivos procedimentos foram correctos;

aau) foram correctos os fármacos e as doses bem como o material usado na monitorização e controlo do doente;

aaab) a arguida conhecia os factos acima descritos anteriores a cada um dos incidentes e decidiu actuar, pois não previu complicações que pudessem levar à morte dos doentes;

Facto não provado sob 7) - Os arguidos decidiram actuar mesmo sendo previsível a ocorrência de complicações anestésicas e que estas eram previsíveis;

Facto não provado sob 8) - A arguida não actuou com o cuidado devido, administrando medicamento em tempo oportuno que obviasse a possibilidade de superficialização mais rápida do indutor;

Facto não provado sob 9) - A inobservância das regras de cuidado determinaram a precipitação dos acontecimentos nos termos narrados;

Facto não provado sob 13) – O arguido foi expressamente alertado para as dificuldades que iriam ser sentidas pela arguida por vários colegas;

Facto não provado sob 15) - A arguida não se opôs, como devia, a essa situação, antes a aceitando com a consciência plena de que passaria a trabalhar em situação de risco para os doentes, pois não estaria à altura de, sozinha, responder adequadamente a situações de emergência;

Facto não provado sob 19) – que a arguida trabalhasse em pressão psicológica agravada pelo facto de ser pouco experiente e de não ter mais nenhum anestesista no HDL com que pudesse discutir os casos mais complicados;

Facto não provado sob 21) - que após a morte de AE, a arguida devesse ter auto suspendido a sua actividade;

Facto não provado sob 22) - que o arguido, apesar das suas funções, idade e experiência, não tenha tomado, como lhe cabia, em face da inexperiência da arguida, as medidas necessárias (e que lhe eram exigíveis) para obstar a que fosse posta em perigo a vida do paciente, não só não tendo tomado medidas que obstassem a que a arguida continuasse a trabalhar, mas sobretudo incentivando-a a continuar a trabalhar, tendo o arguido o dever de prever que continuando a trabalhar naquelas condições, voltaria a colocar em perigo a vida de pacientes;

Facto não provado sob 23) - que após o RM se ter extubado, a arguida não tenha tido capacidade nem perícia para responder adequadamente à situação;
*
B.6.11.5 - Factos que, na sequência do poder-dever de investigação se consideram relevantes e que, não extravasando do objecto do processo, se acrescentam para esclarecimento devido:

A pré-oxigenação de AE, prevendo-se uma intubação difícil, deveria ter sido feita de forma diversa?

A forma rápida como AE evoluiu para uma hipoxia extrema leva a concluir que a pré-oxigenação não foi efectiva?

No consenso europeu é inaceitável que um anestesista continue a anestesiar em seguida a um acidente anestésico do qual resultou a morte de um doente até ficarem totalmente esclarecidas as causas do ocorrido?

200 mg de Propofol e 0,1 mg de Fentanil foram doses manifestamente insuficientes no episódio anestésico de RG?

Os movimentos descritos como “convulsão” ou “contracção muscular” são os movimentos desesperados de um doente que está parcialmente paralisado (por cisatracurium 10 mg) mas consciente?

A noloxona nunca deveria ter sido utilizada neste contexto?
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B.6.11.6 - Objecto de perícia (colegial e a realizar por especialistas de anestesiologia, não intervenientes nos autos anteriormente, de reconhecido mérito e isenção e a designar pelo tribunal, vista a falência da actuação do IML):

Devem ser objecto de perícia médica os factos ainda em dúvida, designadamente os elencados em B.6.11.4 e B.6.11.5 que, por sua natureza, possam ser objecto de perícia, para além das seguintes questões:

No primeiro episódio – o de AE – impõe-se apurar se a arguida, sabendo que a paciente tinha a classificação Mallampati III – indicação de maior dificuldade de intubação - e glote anterior, deveria ter prosseguido com o episódio anestésico após a falência na colocação da máscara, sabendo que não beneficiaria de ajuda de outro colega mais experiente?

Em ambos os episódios anestésicos é adequado administrar a ambos os pacientes a mesma dose de Propofol (200 mg) para pesos e condições clínicas que se apresentam bastante diferentes? Qual deveria ter sido a dose em ambos os caos? Quais as consequências, em ambos os episódios, da administração de dose insuficiente?
*
B.6.11.7 - De prova através de qualquer meio de prova:

Os factos elencados em B.6.11.4 e B.6.11.5 que, por sua natureza, não possam ser objecto de perícia;

Além disso, haverá que estabelecer como provadas ou não provadas quais sejam as leges artis que se aplicam à conduta da arguida em ambos os episódios anestésicos, assim como quanto ao eventual dever de auto suspender a sua actividade após o primeiro episódio anestésico, esta última pela seguinte formulação: ”No consenso europeu é inaceitável que um anestesista continue a anestesiar em seguida a um acidente anestésico do qual resultou a morte de um doente até ficarem totalmente esclarecidas as causas do ocorrido”?
*
Por tudo são os recursos procedentes no seu objecto crime.

Quanto ao objecto cível dos recursos, a decisão ora tomada é prejudicial ao seu conhecimento.
*
***
C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento parcial aos recursos interpostos e em determinar o reenvio parcial dos autos para apreciação das matérias supra expostas em B.6.11.4 a B.6.11.7 e em determinar a realização de perícia colegial a realizar por especialistas de anestesiologia, de reconhecido mérito e isenção, não intervenientes nos autos anteriormente.

Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 21 de Outubro de 2010

João Gomes de Sousa

António Alves Duarte




___________________________________

[1] III - O juízo técnico-científico que, nos termos do art. 163.º do CPP, é subtraído à apreciação do julgador é o que foi recolhido segundo as regras do art. 151.º e ss. do mesmo diploma legal. O tribunal não se encontra vinculado aos exames/pareceres médicos emitidos fora do âmbito daqueles normativos, pois os relatórios médicos assim emitidos não consubstanciam uma verdadeira prova pericial, mas antes e apenas prova documental, podendo, por isso, ser livremente apreciados e valorados pelo tribunal.
[2] Estas últimas, naturalmente, a poderem ser objecto de prova testemunhal ou documental.
[3] Dr. Pedro Soares de Albergaria in “Da inimputabilidade por anomalia psíquica; aspectos processuais e substantivos” – Comunicação apresentada ao CEJ em 5 de Julho de 2000 – Brochura do CEJ – “O portador de anomalia psíquica na jurisdição Penal”.
[4] Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 2004, pag. 209.
[5] “XIII - A adesão às conclusões do perito, neste particular, não tem em si ou só por si, nada de ilícito ou de processualmente incorrecto, já se vê. Mas não poderá deixar de ser criticada se tiver aceitado essas conclusões quando o relatório pericial não fornece os factos indispensáveis à sua compreensão ou quando os fornecidos não apontam nesse sentido. Nessas circunstâncias, impõe-se que o juiz, sem necessidade de qualquer sugestão das partes ou mesmo contra a sua passividade, exercite aquele poder/dever de investigação oficiosa. Não o actuando, a matéria de facto em que assentam as conclusões poderá não constituir base suficiente para a decisão de direito ou mesmo inviabilizar essa decisão, caso em que o STJ terá o dever de, também ele, accionar os seus poderes de declaração oficiosa desses vícios, como impõem os arts. 410.º, n.º 2 e 434.º do CPP, e 729.º, n.º 3, do CPC, e o Acórdão de fixação de jurisprudência de 19-10-1995 (in DR, Série I-A, de 28-12-1995)”.
[6] XX - A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.

XXI - No que concerne à validade, deve aferir-se se a prova foi produzida de acordo com a lei ou se não foi produzida contra proibições legais – v.g., se as partes foram notificadas do despacho que ordenou a prova (n.º 2 do art. 154.º) ou se os peritos prestaram o devido compromisso (n.º 1 do art. 156.º). Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.

XXII - No que respeita à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, dado que não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.

XXIII - Quando os peritos não conseguirem alcançar um parecer livre de dúvidas, quando nas conclusões do relatório pericial se conclui por um juízo de mera probabilidade ou opinativo, incumbe ao tribunal tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos.
[7] Sendo um dado assente que não estão regulamentadas.
[8] V. g. Resolução do Parlamento Europeu, de 4 de Setembro de 2007, sobre as implicações institucionais e jurídicas da utilização de instrumentos jurídicos não vinculativos ("soft law") (2007/2028(INI)
[9] No sentido da questão de facto, v. g. a STS espanhol nº 938/2010, de 02-03-2010, recurso 5436/2005.
[10] De 18-12-2006, recurso nº 59/2000.
[11] V. g., a respeito das relações cirurgião/anestesiologista, “Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa”, Sónia Fidalgo, Coimbra Editora, 2008, pag.s 196 e ss.
[12] Karl Popper, “Tolerância e responsabilidade intelectual”, in “Em busca de um mundo melhor”, Editorial Fragmentos, 1992, pag. 181.
[13] Fernando Gil, in “Provas” – Estudos Gerais, Série Universitária, IN-CM, 1986, pag. 28.
[14] Karl Larenz, in “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, pags. 353-354.
[15] Prof. Castro Mendes – “Do conceito de prova em Processo Civil”
[16] Prof. Fig. Dias, in Direito Processual Penal, 1º, 194
[17] In “O erro em medicina”, José Fragata e al., Almedina, 2008, 311.