Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/17.0GTPTG.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL NO SANGUE
RECUSA
TESTEMUNHA DE JEOVÁ
PROVAS
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – O disposto no n.º3 do artigo 41.º da Constituição da República Portuguesa, obsta a que o Tribunal no exercício dos seus poderes de investigação oficiosa possa obrigar uma comunidade ou congregação religiosa a fornecer informação sobre a pertença de determinada pessoa à mesma, à revelia da vontade ou do consentimento do interessado.

II – Por isso, o carreamento para o processo de meios de prova tendentes a demonstrar a qualidade de crente na religião das Testemunhas de Jeová, por parte do arguido, sempre teria de partir da iniciativa deste.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Sumário nº 23/17.0GTPTG, que correu termos no Juízo Local Criminal de Portalegre Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, em 4/7/2017 foi proferida sentença, com o seguinte segmento decisório:

Pelos fundamentos expostos, julgo integralmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:-

- condeno o arguido DD, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n.º 1, al. a) do Código Penal com referência ao artigo 152,°, n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 10 € ( dez euros), o que perfaz o montante global de 1200,00 € (mil e duzentos euros):-

- condeno igualmente o arguido, na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor por um período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69º n.º 1, alínea a) do Código Penal.-

- para cumprimento da proibição de condução de veículos com motor, determino que o arguido apresente a sua carta de condução na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias, após o trânsito, atento o disposto nos artigos 69,°, n.º 3 do Código Penal e 500º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punida pelo artigo 348,°, n.º 1, alínea b) do Código Penal;-

- condeno o arguido, nas custas criminais, nos termos dos artigos 513º, n.º 1, e 524º, n.º 1 do CPP, fixando-se em 2 UC, o valor da taxa de justiça ( cfr. artigo 8,°, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa ao mesmo regulamento).

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados (de acordo com transcrição da sentença oralmente proferida, constante de fls. 82 a 84):

- No dia 24 de Junho de 2017, pelas 14:05, o arguido conduziu o veículo com a matrícula --TV-- e circulava com o mesmo na Av. Da Liberdade de Ponte-de-Sor, foi alvo de operação de fiscalização pelos militares da GNR de Ponte-de-Sor, que se encontravam devidamente uniformizados no exercício das funções de fiscalização do trânsito em geral.

- Quando o arguido, conduzia o veículo, os militares da GNR, ao ser fiscalizado, solicitaram que efectuasse o teste de despistagem de álcool no sangue, através de aparelho de DRAGER, ao que o arguido acedeu, o arguido ainda efectuou 3 sopros, mas de forma insuficiente, pelo que, alegou condições de saúde para não conseguir realizar o teste de forma completa.

- Solicitou aos militares da GNR, a realização de teste de análise sanguínea, solicitando para tanto, a deslocação ao Hospital de Portalegre.

- Já no Hospital de Portalegre, quando se estava para começar a proceder à recolha de sangue para análise, o arguido recusou-se alegando motivos de natureza religiosa para efeito, dizendo ser Testemunha de Jeová praticante.

- Face à recusa do arguido o mesmo foi advertido pelos militares da GNR que a sua conduta de recusa a submeter-se a um teste constituía crime de desobediência, o arguido ficou ciente que se encontrava legalmente obrigado a, a ser realizado o teste de alcoolemia, a sua recusa a submeter-se ao teste constitui crime de desobediência, e mesmo assim, recusou-se a realizar o teste.

- O arguido agiu com intenção de não efectuar o teste, bem sabendo que a ordem dada pelo militar do GNR era legítima, produzida pela autoridade competente no âmbito restrito das suas funções e que lhes estava a ser categoricamente comunicada, sabia o arguido ainda que a recusa de se submeter ao teste de álcool era punido por desobediência, o que lhe foi transmitido pelo militar da GNR.

- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida pela lei penal, o que quis foi … imperceptível … o exame de detecção de álcool no sangue.

- O arguido é empresário, trabalha por conta própria no ramo das cortiças, lenhas e carvão, tem 6 empregados, vive em casa própria paga a título de prestação relativo a empréstimo bancário 580,00 euros por mês, vive com uma companheira, tem 2 filhos, com 16 e 10 anos de idade respectivamente.

- Do certificado de registo criminal do arguido, consta a condenação, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, por factos praticados em 27/09/2009, a prática de um crime de detenção ilegal de armas, por factos praticados em 31/03/2000, e a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário praticado em 24/05/2003.

Da referida sentença o arguido DD veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

A) O Arguido veio a interpor o presente recurso, em virtude de não concordar com a Sentença proferida;

B) A qual imputa ao Arguido a prática do crime de desobediência, e que pela prática do mesmo veio a ser julgado, junto do Tribunal de Portalegre;

C) Só que a prática do ilícito teve como origem a cidade de Ponte de Sôr, Comarca de Ponte de Sôr;

D) Na verdade o Arguido só se deslocou à cidade de Portalegre, em virtude de a Guarda Nacional Republicana, Destacamento de Trânsito, ali o ter levado, mais concretamente à Unidade de Saúde, afim de ser submetido a novo teste, vulgo contra prova;

E) O Arguido professa a religião JEOVÁ, e de tal circunstância quer junto da Unidade de Saúde, quer aos elementos da G.N.R.;

F) Religião esta que não permite quer transfusões quer análises ao sangue, quer qualquer outra circunstância relacionada com a parte sanguínea da pessoa;

G) O mesmo permitiria tal exame, desde que ou a Unidade de Saúde ou as forças da GNR, lavrassem um documento a retratar a situação para que o mesmo Arguido desta viesse a fazer uso junto da Igreja;

H) Ambos se recusaram a emitir o referido documento;

I) Assim e não só pelo facto de a eventual infracção ter tido lugar na cidade de Ponte de Sôr, após em operação STOP ter o Arguido sido fiscalizado, a verdade é que veio a ser configurado como local a da infracção a Unidade de Saúde de Portalegre;

J) Mais acresce o facto de o Arguido, em bom rigor não ter desobedecido às Autoridades, o que o mesmo sempre afirmou era de que seguindo a Religião Jeová, permitiria a obtenção do sangue por parte da Unidade de Saúde desde que viesse a ser emitido a declaração declaração em causa;

K) Finalmente e atento a toda esta questão temos que, de acordo com o nº 2 do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a influência de álcool e Substâncias Psicotrópicas aprovada pela Lei nº 18/2007,“ …não ser um dever de um cidadão se deslocar para além da localidade onde um provável ilícito foi praticado…” .

L) Por fim temos que, a pena aplicada será sempre desajustada à situação, verificada, tendo presente que a mesma, será considerada, não merecendo acolhimento por parte deste Venarando Tribunal, as questões anteriormente suscitadas;

M) O dolo elemento objectivo e determinante para a aplicação da moldura penal verificada não existiu;

N) O Arguido, nunca disse que não faria o exame;

O) O Arguido sempre deixou a hipótese de o efectuar mediante a condição de existir uma declaração a ser emeitida e a justificar tal situação, atento á Religião que o mesmo professa;

P) Poderia existir sim negligência, mas esta não será punida;

Q) Demasiada penalizadora, para a prática do ilícito criminal que supostamente o Arguido cometeu, desproporcionada, e que se pretende seja revista, caso não seja dado acolhimento à pretensão do Arguido e escopo de todo o presente recurso;

R) Temos assim, que e caso a pretensão deduzida pelo Arguido venha a ter o devido acolhimento por parte deste Venerando Tribunal, todos os atos processuais decorrentes de outro declarado nulo, também serão reconhecidos como nulo, face à invocada incompetência territorial, a qual a ser reconhecida levará à nulidade de todo o processo e a remessa para novo julgamento junto da Comarca de Ponte de Sôr, o que se requer;

S) Veja-se Art. 573, § 1° do CPP: “A nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dele diretamente dependam ou sejam consequência”.

T) Ao decidir conforme decidiu o Tribunal “a quo” violou por erro de interpretação o disposto nos Artº 119 alinea e) do C.P.P..

Deve assim ser julgado procedente o presente Recurso, e em consequência ser nula a sentença ora recorrida, com as legais consequências.

Se assim não se entender deverá a mesma ser alterada e em consequência o Arguido ver revista a pena que lhe veio a ser aplicada, pelos factos e fundamentos anteriormente descritos.

COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA,

O recurso interposto foi admitido com subida imediata nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado nestes autos da prática de um prática um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de multa de 120 dias à taxa diária de € 10,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses;

2. Não conformado com a condenação, recorreu o arguido, pugnado pela nulidade do julgamento por incompetência territorial;

3. O crime de desobediência consuma-se no local onde o arguido se recusar a cumprir a ordem que lhe é dada.

4. O local onde o arguido se recusou a cumprir a ordem legítima foi no Hospital de Portalegre, pelo que o Tribunal a quo era o territorialmente competente.

5. A incompetência territorial teria de ser invocada antes do início da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto no artigo 32.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal.

6. A invocação pelo arguido da qualidade de crente de Testemunha de Jeová só pode ser entendida como um expediente utilizado para se eximir ao cumprimento de uma ordem, a que necessariamente sabia dever obediência.

7. Entende ainda o Recorrente que a pena de multa é desproporcional, excessiva e penalizadora bem como a pena acessória.

8. O Ministério Público entende que as penas foram adequadas e proporcionais à culpa e às necessidades de prevenção geral e, principalmente, especial, pelo que devem ser mantidas nos seus exactos termos.

Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmado a douta sentença recorrido nos seus precisos termos.

Vªs Exªs, porém, melhor decidirão e farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, defendendo a respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado ao arguido, a fim de se pronunciar, o que ele não fez.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da sentença recorrida, expressa pelo recorrente nas suas conclusões, centra-se, essencialmente, nas seguintes questões:

a) Invocação da incompetência do Tribunal em razão do território, com a arguição da consequente nulidade do processado;

b) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com pedido de absolvição da acusação;

c) Subsidiariamente, impugnação da medida das penas principal e acessória, em que foi condenado.

Iremos conhecer das diferentes questões suscitadas pelo recorrente, pela ordem em que foram enunciadas.

Alega o recorrente que a operação de fiscalização, levada a efeito pela GNR e que deu origem aos factos por que responde, ocorreu na área da «comarca» de Ponte de Sor, pelo que era ao respectivo Tribunal e não ao de Portalegre, que incumbia competência para o seu julgamento.

Mobiliza em apoio da sua posição a disposição do art. 119º al. e) do CPP.

O referido artigo tipifica diversas situações processuais como nulidades insanáveis, cognoscíveis a todo momento e independentemente de arguição, sendo a sua al. e) do seguinte teor:

e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º.

O nº 2 do art. 32º do CPP reza:
Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada:
a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou
b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.

Como pode verificar-se, a norma do nº 2 do art. 32º do CPP situa-se numa relação de especialidade para com a do art. 119º al. e) do CPP, pelo que a primeira deverá sempre prevalecer sobre a segunda.

Compulsados nos autos, constata-se que o arguido DD só na motivação do recurso interposto da sentença suscitou a questão da incompetência territorial do Tribunal de julgamento.

Assim sendo, tal invocação é manifestamente extemporânea, pelo que qualquer invalidade do processado decorrente da falta de competência do Tribunal, em razão do território, necessariamente se sanou.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

Ainda que o sentido da motivação do recurso e das suas conclusões não seja perfeitamente claro, entendemos que aquilo contra que o arguido se insurge reside em não ter o Tribunal «a quo» dado como provado que ele é membro da comunidade religiosa denominada Testemunhas de Jeová.

Uma vez estabelecida a sua invocada filiação religiosa, defende o recorrente que deve o Tribunal retirar os necessários corolários ao nível da factualidade subjectiva e censurabilidade jurídico-criminal da sua conduta objectiva, absolvendo-o.

Na sentença recorrida, o Tribunal não emitiu juízo probatório expresso sobre a eventual qualidade de fiel das Testemunhas de Jeová, por parte do arguido.

Contudo, na fundamentação oral do juízo probatório, transcrita nos autos, o Tribunal «a quo» debruça-se longamente sobre as declarações do arguido, na parte em que invoca a referida filiação religiosa, em termos de lhe denegar qualquer credibilidade.

Não descortinamos razão para nos afastarmos do ajuizamento formulado pelo Tribunal recorrido, quanto a tal meio de prova.

De resto, não deixa de ser sintomático da falta de credibilidade da postura do arguido o modo como se refere à comunidade religiosa de que diz ser membro, na motivação do recurso e suas conclusões, designando-a por «Igreja de Jeovás» e «religião Jeová» (sic).

Como é sabido, a comunidade religiosa em questão denomina-se «Testemunhas de Jeová» e a sua doutrina tem como principais implicações na ordem temporal um pacifismo rigoroso, que inibe os fiéis de prestar qualquer serviço em força armada e a recusa de transfusões sanguíneas.

Seguramente, nunca um crente das Testemunhas de Jeová seria capaz de se referir à Igreja de que é seguidor com tanta impropriedade, mesmo numa peça processual subscrita por um ilustre advogado, que constituiu seu mandatário.

Também reveladora da falta de seriedade da posição do arguido o facto, por ele esgrimido em sua defesa, na motivação do recurso de não ter recusado terminantemente sujeitar-se à análise ao sangue, mas antes «condicionou» o seu consentimento a tal acto à emissão de um documento, pela GNR ou pelo Hospital de um «documento», que ele pudesse apresentar depois junto da sua Igreja.

Se a sua não sujeição à recolha de sangue para análise fosse para o arguido um verdadeiro imperativo de consciência religiosa, é óbvio que não seria a emissão deste ou daquele documento que resolveria o que quer que fosse.

Antes de mais, convirá salientar que o Colectivo de Juízes, que subscreve o presente acórdão, viu-se confrontado com duas situações factuais muito idêntica à dos presentes autos, nos Acórdãos desta Relação de Évora de 21/10/14 e de 6/6/16, proferidos nos processos nºs 68/13.0GTSTR.E1 e 127/16.7PAVNO.E1 respectivamente, ambos subscritos pelo mesmo Relator e Adjunto (disponíveis em www.dgsi.pt).

Nesses outros processos, apurou-se que os arguidos se submeteram a três tentativas de exame ao álcool expirado, com um alcoolímetro quantitativo, que deu invariavelmente o resultado «sopro insuficiente», após o que foram confrontados com a necessidade de realização de uma análise ao sangue, a que eles se recusaram, invocando a qualidade de Testemunha de Jeová.

Sendo certo que este Tribunal da Relação terá de dirimir a impugnação da matéria de facto deduzida pelo arguido recorrente apenas com base na prova existente nos autos e nada mais, a análise crítica da prova não poderá deixar de tomar em consideração que a inviabilização do exame ao ar expirado, seguida da invocação da condição de crente da referida confissão religiosa, como justificação para se opor à recolha de sangue para análise, constitui um expediente esgrimido por alguns condutores, para tentar evitar a descoberta da taxa de álcool no sangue de que são portadores.

Relativamente ao facto essencial à defesa do arguido, que é a sua pertença à comunidade religiosa Testemunhas de Jeová, afigura-se-nos que o Tribunal «a quo» decidiu correctamente ao não ter julgado o mesmo provado apenas com base nas declarações do interessado, cujo poder de convicção, para mais, é nenhum.

Ainda que, em processo penal, não impenda sobre o arguido qualquer tipo de ónus probatório, mesmo de factos que possam ser-lhe favoráveis, o ora recorrente, caso fosse efectivamente crente das Testemunhas de Jeová, seguramente não teria tido dificuldade em fazer atestar tal qualidade por parte de pessoas afectas a essa comunidade religiosa.

O Relator do presente acórdão tem ainda memória da disponibilidade manifestada pelos pastores das Testemunhas de Jeová para deporem a favor dos seus correligionários, nos antigos processos tendentes à obtenção do estatuto de objector de consciência com vista ao não cumprimento do serviço militar obrigatório, no tempo em que este vigorava.

Se tivesse sido esse o caso do arguido, certamente não o teriam deixado desapoiado.

Neste ponto, é legítimo sustentar que nos encontramos perante um limite ao exercício pelo Tribunal dos poderes de investigação oficiosa, que lhe são reconhecidos pelo art. 340º do CPP.

O nº 3 do art. 41º da CRP dispõe:
Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

O comando constitucional agora reproduzido obsta a que o Tribunal possa obrigar uma comunidade ou congregação religiosa a fornecer informação sobre a pertença de determinada pessoa à mesma, à revelia da vontade ou do consentimento do interessado.

Nesta conformidade, o carreamento para o processo de meios de prova tendentes a demonstrar a qualidade de crente na religião das Testemunhas de Jeová, por parte do arguido, sempre teria de partir da iniciativa deste.

Como tal, e sem necessidade de ulteriores considerações, não se justifica a alteração da matéria de facto fixada pela primeira instância, nos termos pretendidos pelo recorrente.

Nesse sentido, terá de improceder a pretensão recursiva, quanto ao pedido de absolvição do arguido da acusação.

Passaremos agora a conhecer da vertente subsidiária da pretensão recursiva.

Nesta parte, o recorrente alega, sem outra especificação, que é demasiado severa a medida das sanções que lhe foram aplicadas.

O tipo fundamental do crime de desobediência é definido pelo nº 1 do art. 348º do CP, como segue:

Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

A sede legal da pena acessória é nº 1 do art. 69º do CP, que estatui:
É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) (…);
b) (…); ou
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

Os critérios, que devem presidir à quantificação da pena concreta, são os estabelecidos pelo art. 71º do CP, o qual, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», estatui:

1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

O nº 1 do art. 40º do CP estabelece como finalidade da aplicação de penas a protecção de bens jurídicos, que se reconduz, essencialmente, à prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 do mesmo normativo prescreve que em caso algum a pena ultrapasse a medida da culpa.

A determinação da duração temporal quer da pena principal quer da pena acessória segue os critérios definidos pelo nº 2 do art. 71º do CP.

No caso, impressiona-nos, em sentido desfavorável ao arguido, o elevado de ilicitude da conduta por que ele responde e a intensidade do dolo com que actuou, não só por integrar a modalidade mais grave de dolo directo, mas também porque o «modus operandi» por ele seguido é revelador de reflexão prévia, pelo que, no caso, a resolução de desacatar a ordem que lhe foi dirigida não pode ser levada à conta, como muitas vezes sucede, de um impulso momentâneo, despoletado por uma situação de conflito.

Em reforço do que ficou dito oferece-se-nos ainda dizer que os crimes de condução em estado de embriaguez suscitam fortes exigências de prevenção geral, quanto mais não seja, pela deficiente interiorização pelos membros da sociedade portuguesa da regra comportamental, de aceitação geral noutros países, segundo a qual a condução de veículos e o consumo de bebidas alcoólicas são actividades incompatíveis entre si.

Tais imperativos de prevenção são extensivos aos crimes de desobediência cometidos com a finalidade de o agente se subtrair à fiscalização tendente à detecção de álcool no sangue, recusando-se a efectuar o exame ao ar expirado ou a consentir na recolha de sangue para análise.

Inexiste qualquer circunstância atenuante, que o arguido possa mobilizar a seu favor.

A medida da pena acessória foi quantificada em 4 meses, dentro de uma moldura que vai de 3 meses a 3 anos (36 meses), pelo que o Tribunal «quo» usou seguramente de moderação nessa operação.

Quanto à medida da pena principal, a sentença recorrida fixou-a em 120 dias, o que corresponde ao limite máximo da moldura abstractamente aplicável que vai de 10 a 120 dias.

Não se nos afigura que os quantitativos temporais das penas, em que o arguido foi condenado, excedam o seu grau de culpa, mas a sua ulterior compressão correria o risco de comprometer as finalidades da punição, no domínio da prevenção geral e também especial, não sendo o recorrente delinquente primário.

Nesta conformidade, impõe-se a manutenção da medida das penas aplicadas, improcedendo o recurso, por completo.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Notifique.
Évora, 11/7/18 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)