Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA REQUISITOS | ||
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Data do Acordão: | 11/07/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - se a contabilidade nem sequer é efetuada, verifica-se o incumprimento, mesmo em termos formais (quanto mais em termos substanciais), previsto na al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE; - o prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor releva para efeitos de caraterização de irregularidade cometida ao nível da contabilidade que tenha sido efetuada como conduta culposa e causal da insolvência; se a contabilidade nem sequer foi efetuada, não há que apreciar se, na execução da mesma contabilidade, foi cometida irregularidade que acarrete tal prejuízo; - a existência de crédito de, pelo menos, € 110.000,00 em carteira da sociedade insolvente, que vem a ser reduzido a € 20.000,00 no âmbito de acordo celebrado entre esta sociedade e o respetivo devedor decorridos que estavam mais de 3 anos desde a data em que a sociedade insolvente não dispunha de património nem liquidez para satisfazer as obrigações, revela que, quer o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência quer o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais agravou a situação de insolvência da sociedade devedora. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Afetado pela qualificação da insolvência como culposa: (…) Recorridas / Requerentes: … (Administradora da Insolvência) e (…) e Filhos – Comércio e Indústria de Materiais de Canalização, Lda. Os presentes autos consistem no incidente pleno de qualificação de insolvência suscitado pelas alegações da Administradora da Insolvência e pela credora (…) e Filhos, Lda. à luz do disposto no art. 188.º, n.º 1, do CIRE com vista à qualificação da insolvência de (…), Lda. como culposa e na pessoa dos sócios gerentes (…) e (...). Invocaram, para tanto, a ocorrência de factos relevantes que se enquadram no disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, als. a), d), h) e n.º 3, al. a), do CIRE. O Ministério Público emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, aludindo ao disposto nos arts. 185.º e 186.º, n.º 1 e 2, als. a), d), h) e i) e n.º 3, als. a) e b), do CIRE. Em sede de oposição, os visados pelo citado incidente invocaram que (…) nunca acompanhou o exercício da atividade da insolvente, que desconhecia, e não praticou quaisquer atos de gestão relativamente à vida económica, financeira e administrativa da sociedade em causa. Mais impugnaram a factualidade alegada, sustentando inexistir fundamento para a qualificação da insolvência como culposa. II – O Objeto do Recurso Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando o incidente procedente, tendo o Tribunal de 1.ª Instância decidido: «a) Qualificar a insolvência de (…), Lda. como culposa, tendo a insolvente atuado com culpa grave; b) Absolver (…) da declaração de afetada pela qualificação da insolvência; c) Declarar (…) afetado pela qualificação da insolvência de (…), Lda. como culposa, em virtude de atuação com culpa grave; d) Declarar (…) inibido para administrar patrimónios de terceiros durante um período de dois anos; c) Declarar (…) inibido para o exercício do comércio durante um período de dois anos, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer créditos de (…) sobre a insolvente e sobre a massa insolvente; e) Condenar (…) a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, sendo a referida indemnização relegada para liquidação de sentença; e f) Condenar a insolvente nas custas do incidente.» Inconformado, (…), afetado pela qualificação, apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que considere fortuita a insolvência, absolvendo o Recorrente. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos: «Impugnação da matéria de facto 1 – O recorrente entende, salvo o devido respeito por melhor opinião, que, por se mostrarem essenciais, necessários e relevantes para a justa composição do litígio e para a boa decisão da causa, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos: A – Os documentos (a que se refere o artigo 24.º do CIRE) apresentados pela Insolvente auxiliaram a Senhora Administradora de Insolvência e foram decisivos para completar o seu relatório (5:20 a 8:22). B – Todos os bens móveis penhorados no âmbito da ação executiva n.º 2487/13.2TBFAR foram entregues pelo (…) à Senhora Administradora da Insolvência (14:20 a 15:40). C – O veículo agrícola com a matrícula (…)-86-82 foi vendido para a sucata vários anos antes do início do processo de insolvência (10:50 a 14:30). D – A insolvente não ocultou nem dissipou quaisquer bens (16:00 a 16:45). E – O (…) teve sempre um comportamento cooperante com a Senhora Administradora da Insolvência (24:10 a 26:45). F – Todos os bens imóveis da insolvente estavam hipotecados (15:37 a 15:44). 2 – Esta ampliação à matéria de facto fundamenta-se no depoimento da Senhora Administradora da Insolvência que prestou declarações (gravadas em suporte digital de 10:36:45 a 11.04.21, do dia 03.04.2019) credíveis, lógicas, objetivas e consistentes, tendo relatado todos os factos indicados em 11.º das alegações. 3 – Assim, entende o recorrente que tais factos (os referidos em 11.º) devem ser dados como provados, acrescentando-os aos factos provados, uma vez que não existem quaisquer dúvidas quanto à credibilidade que merecem as declarações da Senhora Administradora da Insolvência. Qualificação da insolvência como culposa 4 – O recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, entende que não deve ser qualificada como culposa a insolvência da (…), Lda. por não se encontrarem preenchidos os pressupostos estabelecidos nos n.ºs 1, 2, alínea h) e 3, alíneas a) e b), do artigo 186.º do (CIRE). A insolvente não incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada e não se ter apresentado voluntariamente à insolvência ou elaborado as contas anuais não criou nem agravou a situação. 5 – É certo que resulta dos autos que o ano de 2011 é o último que se encontra contabilisticamente encerrado; que foram apresentadas as declarações de modelo 22 até 2016 e que as declarações de IES deixaram de ser apresentadas desde 2012. 6 – No entanto, também se deverá ter em conta que a (…), Lda. cessou a sua atividade em Fevereiro de 2013 e durante o ano de 2013 e até Fevereiro de 2014, manteve apenas uma atividade de microgeração de energia através de uns equipamentos que tinha instalados no seu estaleiro. Não existiu contabilidade organizada apenas durante um. 7 – Para além do referido em 5 e 6 nada mais resulta provado. 8 – A falta de contabilidade organizada durante o ano de 2012 não poderia nunca ser causa da insolvência e tal facto não comprometeu o entendimento da situação patrimonial da insolvente. 9 – Nada sendo dito acerca das circunstâncias em que esse incumprimento ocorreu, não se verifica o pressuposto contido na alínea h), do n.º 2, do artigo 186.º, do CIRE no que concerne à exigência de o ser em “termos substanciais”. 10 – Também não se verificou que o incumprimento em causa tenha ocasionado prejuízo relevante para a compreensão patrimonial e financeira do devedor. 11 – Da matéria de facto provada não se constata a existência de factos que indiciem a existência de prejuízo para a compreensão patrimonial e financeira do devedor. Pelo contrário, foi possível apurar quais os credores, os bens, as ações judiciais, sem necessidade de recurso à contabilidade. Em face da matéria dada como provada temos claramente uma situação de irregularidade já que a última IES que foi entregue nas Finanças tinha por referência o exercício do ano de 2011. Passo seguinte é a determinação de se tal prejudicou a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, sendo que nesse aspeto nenhum facto se provou que permita chegar a essa conclusão, nomeadamente, se olharmos para o relatório elaborado pela Senhora Administradora da Insolvência, a qual com os dados disponíveis fez a análise da situação económica e financeira da mesma. 12 – Por outro lado, na sentença recorrida não existe factualidade provada que permita concluir com segurança que o comportamento do gerente (…) deu causa ou agravou a insolvência da sociedade ou que que tenha sido praticado um comportamento de tal modo grave (desvio de bens, decisões irracionais, etc.) que tenha causado a mesma. 13 – Pelo contrário, está provado que desde o ano de 2011/2012 a sociedade insolvente já não dispunha de património nem liquidez para satisfazer as obrigações que tinha contraído. Ou seja, a inexistência de contabilidade organizada num ano em nada contribuiu para a criação da situação de insolvência uma vez que já em 2011/2012 a situação da insolvente era difícil. 14 – A difícil situação financeira da (…), Lda., que laborava no ramo da construção civil, ficou a dever-se à grave crise no sector imobiliário e de construção que se instalou em Portugal desde 2007 que frustrou um projeto da insolvente assente num grande esforço financeiro e que era vital para a sustentabilidade da empresa. 15 – O recorrente também não agravou essa situação de insolvência uma vez que, apesar da insolvente ser proprietária de bens imóveis com o valor patrimonial total de € 1.161.463,33 (um milhão cento e sessenta e um mil quatrocentos e sessenta e três euros e trinta e um cêntimos), seria o credor hipotecário (Montepio Geral) o único a ser ressarcido uma vez que o capital devido acrescido de juros era de cerca de € 1.200.000,00. Os bens imóveis da insolvente não poderiam servir de garantia a outros credores para além do credor hipotecário. 16 – Deve, assim, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra em que se declare o carácter fortuito da insolvência e se subtraia o recorrente às consequências da afetação.» O Ministério Público, em sede de contra-alegações, pugna pela manutenção da decisão recorrida. Sustenta que, tendo o tribunal recorrido dado como provados factos, que, no seu entender, apenas preenchem os pressupostos estabelecidos no n.º 1 e 2, al. h) e nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art.º 186º do CIRE, são irrelevantes os factos que o Recorrente pretende sejam considerados, não se vislumbrando qualquer utilidade na pedida ampliação. Para além disso, certo é que se verifica o incumprimento da obrigação de manter a contabilidade organizada desde 2012 até 2016, a falta de apresentação da sociedade à insolvência e a violação do dever de elaboração das contas e registo das mesmas, não tendo o gerente provado, relativamente a estes 2 itens, que a causa da insolvência foi uma razão independente da sua vontade. Cumpre conhecer das seguintes questões: - da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; - da falta de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa. III – Fundamentos A – Os factos provados em 1.ª Instância 1 - A 09/12/2016 (…) requereu a declaração de insolvência de A. M. Matias, Lda. 2 - Regularmente citada, a sociedade (…), Lda. não contestou e foi declarada insolvente por sentença de 09/01/2017, transitada em julgado. 3 - A sociedade (…), Lda. foi constituída em 14/01/1993, com um capital social de € 100.000,00 repartido por duas quotas de € 50.000,00 cada, pertencendo uma a (…) e outra a (…), que exerceram conjuntamente a gerência desde a constituição da sociedade. 4 - A sociedade(…), Lda. tem como objeto social “construção civil, obras públicas, compra e venda de propriedades, representação e comercialização de materiais de construção, ferragens e afins”. 5 - A Insolvente apenas apresentou os documentos a que se refere o artigo 24.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a 24/02/2017, isto é, três dias antes da assembleia de apreciação do relatório. 6 - A Insolvente cessou a sua atividade em Fevereiro de 2013. 7 - Em virtude de falta de informação prestada pela Insolvente, o seu contabilista certificado não teve elementos para encerrar contabilisticamente o ano de 2012, sendo que o ano de 2011 é o último que se encontra contabilisticamente encerrado. 8 - Durante o ano de 2013 e até Fevereiro de 2014, a Insolvente manteve apenas uma atividade de micro geração de energia através de uns equipamentos que tinha instalado no seu estaleiro. 9 - Na ação executiva n.º 2487/13.2TBFAR, foram penhorados bens móveis da insolvente correspondentes a mobiliário de escritório e outros artigos análogos. 10 - Na ação executiva n.º 927/14.2TBFAR, foi penhorado o veículo agrícola com a matrícula (…)-86-82. 11 - Tal veículo nunca foi localizado na ação executiva e não dispunha de seguro válido. 12 - Nessas ações executivas, (…) foi constituído fiel depositário de tais bens. 13 - Após a declaração de insolvência, (…) foi notificado para entregar à Senhora Administradora da Insolvência os referidos bens, por carta de 15/03/2017. 14 - A carta foi recebida e assinada pelo insolvente em 16/03/2017. 15 – (…) declarou à Senhora Administradora da Insolvência que o referido veículo tinha sido já vendido cerca de três anos antes da declaração de insolvência da sociedade. 16 - No ano de 2013, a sociedade (…), Lda. intentou uma ação declarativa para pagamento de quantia certa contra (…) e (…), Lda., que pendeu sob o número 107485/13.7YIPRT, no atual Juízo Central Cível de Faro – J3. 17 - Nessa ação declarativa, o Tribunal homologou um acordo de transação entre as partes pelo qual: i) A sociedade (…), Lda. reduziu a quantia peticionada para € 110.000,00; ii) A sociedade (…) e (…), Lda. obrigou-se a pagar tal quantia em prestações. 18 - Este acordo não está refletido na contabilidade da sociedade (…), Lda., nem qualquer eventual pagamento efetuado no âmbito do acordo. 19 - A 18/09/2015, a sociedade (…), Lda. e a sociedade (…) e (…), Lda. celebraram um acordo de alteração à referida transação, pelo qual a sociedade (…) declarou reduzir a quantia ainda em dívida em € 20.000,00, e declarou ter recebido essa quantia, nada mais tendo a receber da sociedade (…) e (…), Lda. 20 - Este acordo não está refletido na contabilidade da sociedade (…), Lda., nem qualquer eventual pagamento efetuado no âmbito do acordo. 21 - Desde constituição da sociedade, foi apenas (…) quem desenvolveu a atividade e que exerceu de facto a gerência da sociedade, nomeadamente contactando clientes e fornecedores, fazendo compras, contratando o que fosse necessário, dando ordens e instruções aos trabalhadores, procedendo a pagamentos, decidindo investimentos e planos de atividade. 22 – (…) apresentava-se e era considerado como gerente e sócio da sociedade perante terceiros. 23 – (…) sempre assinou os documentos relativos à vida da sociedade, que lhe eram dados a assinar por (…). 24 - A sociedade Insolvente apresentou as declarações modelo 22 até 2016, mas deixou de apresentar as declarações de IES desde 2012. 25 - Desde o ano de 2011/2012 a sociedade Insolvente já não dispunha de património nem liquidez para satisfazer as obrigações que tinha contraído. B – O Direito Na ótica do Recorrente, por se mostrarem essenciais, necessários e relevantes para a justa composição do litígio e para a boa decisão da causa, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos: A – Os documentos (a que se refere o artigo 24.º do CIRE) apresentados pela Insolvente auxiliaram a Senhora Administradora de Insolvência e foram decisivos para completar o seu relatório. B – Todos os bens móveis penhorados no âmbito da ação executiva n.º 2487/13.2TBFAR foram entregues pelo (…) à Senhora Administradora da Insolvência. C – O veículo agrícola com a matrícula (…)-86-82 foi vendido para a sucata vários anos antes do início do processo de insolvência. D – A insolvente não ocultou nem dissipou quaisquer bens. E – O (…) teve sempre um comportamento cooperante com a Senhora Administradora da Insolvência. F – Todos os bens imóveis da insolvente estavam hipotecados. Como bem assinalou o Ministério Público, tais factos são totalmente irrelevantes para o conhecimento do objeto do recurso. Não obstante o teor do parecer apresentado pela Administradora da Insolvência nos termos do disposto no art. 188.º, n.º 1, do CIRE, constata-se que a decisão proferida qualificou como culposa a insolvência ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.ºs 1, 2, al. h) e 3, als. a) e b), do CIRE, ou seja, com fundamento no incumprimento, por parte da gerência e em termos substanciais, da obrigação de manter a contabilidade organizada, do dever de requerer a declaração de insolvência e da obrigação de elaborar as contas anuais, submetendo-as a fiscalização e ao depósito. A decisão judicial que o Recorrente pretende reverter tem como fundamento os ora citados incumprimentos que se imputam ao Recorrente, na qualidade de gerente da sociedade insolvente. Por conseguinte, para que o recurso alcance o almejado sucesso, caberá ao Recorrente demonstrar que o Tribunal de 1.ª Instância errou ao qualificar a insolvência como culposa e ao identifica-lo como afetado pela qualificação, pondo em evidência que não se verificam as circunstâncias previstas no art. 186.º, n.º 1, n.º 2, al. h) e n.º 3, als. a) e b), do CIRE. Para o efeito, não releva que o Recorrente, na qualidade de gerente da insolvente, tenha apresentado à Administradora de Insolvência os documentos por esta solicitados, que com esta tenha sempre cooperado, que os bens móveis penhorados tenham sido entregues pelo Recorrente à Administradora da Insolvência, que o veículo agrícola com a matrícula (…)-86-82 tenha sido vendido para a sucata vários anos antes do início do processo de insolvência, que a insolvente não tenha ocultado nem dissipado quaisquer bens, que todos os bens imóveis da insolvente estivessem hipotecados. Ora, se o facto versado na impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto; logo, a impugnação não deve ser conhecida. Na verdade, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos arts. 2.º, n.º 1 e 137.º do CPC.[1] Termos em que não se toma conhecimento da pretensão do Recorrente de acrescentar ao rol dos factos provados aqueles que enuncia. Importa apreciar se, tal como sustentado pelo Recorrente, inexiste fundamento para a qualificação da insolvência como culposa e para a sua identificação como afetado pela mesma, tal como sentenciado em 1.ª Instância. A insolvência foi qualificada como culposa nos termos do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1, 2, al. h) e 3, als. a) e b), do CIRE. O Recorrente alicerça a sua pretensão na alegação de que não se verificam os pressupostos estabelecidos nas mencionadas disposições legais, pois a falta de contabilidade organizada durante o ano de 2012 não poderia nunca ser causa da insolvência nem tal facto comprometeu o entendimento da situação patrimonial da insolvente, não se provou que tal falta tenha ocorrido em termos substanciais nem que tenha acarretado um prejuízo relevante para a compreensão patrimonial e financeira do devedor, antes se constata que foi possível apurar quais os credores, os bens, as ações judiciais, sem necessidade de recurso à contabilidade; embora a última IES que foi entregue nas Finanças tenha por referência o exercício do ano de 2011, não se provou que a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora ficasse por via disso comprometida; inexiste factualidade provada que permita concluir com segurança que o comportamento do gerente (…) deu causa ou agravou a insolvência da sociedade ou que que tenha sido praticado um comportamento de tal modo grave que tenha causado a mesma. Ora vejamos. Nos termos do disposto no art. 185.º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência – artigo 186.º, n.º 1, do CIRE. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º, conforme dispõe o n.º 2 do citado art. 186.º do CIRE. Por via do disposto no n.º 3, alínea a), da mesma disposição legal, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência; já a al. b) presume a existência dessa culpa grave por via do incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo predial. Ora, os atos enunciados no n.º 2 do art. 186.º do CIRE consubstanciam uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, ou seja, a verificação de alguma das situações a que alude o n.º 2 do referido art. 186.º do CIRE, determina, inexoravelmente, a atribuição de caráter culposo à insolvência.[2] Verificada a existência de factos que se reconduzam às situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do CIRE, extrair-se-á, em princípio (a lei extrai, ficciona) a ilação da verificação da insolvência culposa, sem necessidade de comprovação (ou alegação) de outros factos. «Em princípio» porquanto, analisadas as situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, se constata que, em algumas das situações aí previstas, será preciso alegar algo mais – v. previsão das als. h) e i) do n.º 2 do citado art. 186.º do CIRE, já que a referência a «incumprimento substancial» ou «reiterado» pressupõe a sua concretização em termos de facto que conduzam a essa conclusão.[3] O n.º 3 consagra a presunção de culpa grave nas indicadas situações fácticas. O que admite prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, do CC. No caso em apreço, os factos provados revelam que se verifica a previsão plasmada na al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE: é que o gerente da sociedade incumpriu, em termos substanciais (e em termos formais), a obrigação de manter a contabilidade organizada. Na verdade, embora a sociedade tenha cessado a sua atividade em Fevereiro de 2013, certo é que, em virtude de falta de informação prestada pela Insolvente, o seu contabilista certificado não teve elementos para encerrar contabilisticamente o ano de 2012, sendo que o ano de 2011 é o último que se encontra contabilisticamente encerrado. Ora, se o ano de 2012 não foi encerrado contabilisticamente e nenhuma operação de contabilidade se registou daí em diante, é manifesto que, mesmo em termos formais (não se colocando sequer questões atinentes à substância…), não foi organizada a contabilidade. O que se impunha por via do disposto no art. 65.º do Código das Sociedade Comerciais, não obstante a data de encerramento da atividade, desde logo por se verificarem factos posteriores contabilisticamente relevantes: para além da microprodução de energia, apurou-se, pelo menos, a existência de um crédito cujo valor foi reduzido a € 110.000,00, que veio ainda a ser reduzido a € 20.000,00. Assim, por via da citada disposição legal, e a par das situações em que é mantida contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou em que é praticada irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor[4], implica na afirmação de culpa grave e de nexo de causalidade da conduta com a ocorrência da insolvência, com a consequente qualificação da insolvência como culposa. Mais revelam os factos provados que se verifica a previsão plasmada na al. a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE, não se acompanhando a alegação do Recorrente no sentido de que a não apresentação à insolvência não criou nem agravou a situação. Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 3, do CIRE: 1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la. (...) 3 - Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos 3 meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do art. 20.º. Dado que, desde o ano de 2011/2012, a sociedade já não dispunha de património nem liquidez para satisfazer as obrigações que tinha contraído, tendo a declaração de insolvência sido proferida a 09/01/2017 na decorrência do pedido formulado por (…), é de concluir que foi incumprido, pela sociedade devedora, o dever de requerer a declaração da sua insolvência. Acresce que tal omissão agravou a situação de insolvência, mantendo na esfera de atuação da sociedade o poder de dispor de crédito considerável de que era titular, ao que a devedora efetivamente procedeu – cfr. n.ºs 17 e 19 dos factos provados; o que, de outro modo, não se verificaria – cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE. Termos em que se conclui ser de qualificar culposa a insolvência ainda a coberto do disposto nos n.ºs 1 e 3 al. a) do art. 186.º do CIRE. Integra ainda o objeto do presente litígio o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, ou de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial, conforme previsto na al. b) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE. Tal conduta, por manifestar uma elementar falta de cuidado no cumprimento dos deveres dos administradores, designadamente no que respeita à obrigação de prestação de contas da gestão realizada, implica se presuma a existência de culpa grave na insolvência. Ora, também neste âmbito e dada a existência do crédito de valor (superior a?) de € 110.000,00 na carteira da sociedade, se considera que a falta de cumprimento de tal obrigação a partir de 2011 agravou a situação de insolvência. As contas, que não foram elaboradas, não puderam refletir a existência desse crédito, constatando-se que não pode ser considerado para reverter em favor dos credores. Termos em que se conclui inexistir fundamento para revogar a decisão tomada em 1.ª Instância, qualificando como culposa a insolvência e indicando o Recorrente como afetado por tal qualificação. As custas recaem sobre o Recorrente – art. 527.º, n.º 1 e 2, do CPC. Concluindo: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Évora, 7 de novembro de 2019 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Maria Domingas Simões Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] Ac. TRC de 12/06/2012 (Beça Pereira). [2] O que é sustentado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3.ª edição, p. 680. [3] Ac. TRP de 10/02/2011. [4] Não é qualquer incumprimento, nem qualquer irregularidade contabilística que preenche a presunção em questão. Tem que ser uma irregularidade com relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado. Configurará tal presunção uma contabilidade cuja organização fuja às regras do POC (Plano Oficial de Contabilidade) em vigor, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que esteja engenhosamente feita por forma a esconder/mascarar/disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada – Ac. TRP de 30/04/2009. O prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor releva para efeitos de caraterização de irregularidade cometida ao nível da contabilidade que tenha sido efetuada como conduta culposa e causal da insolvência; se a contabilidade nem sequer foi efetuada, não há que apreciar se, na execução da mesma, foi cometida irregularidade que acarrete tal prejuízo. |