Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
116/17.4T8ABF.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO AMBIENTAL
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
TIPICIDADE
NULIDADE
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 06/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1 - Apesar da crença generalizada de que os princípios constitucionais são aplicáveis a todos os ramos do direito, também se aplica aqui o aforismo de que há uns mais iguais do que outros, sendo o direito contra-ordenacional na praxis portuguesa alvo de um laxista critério de menosprezo constitucional evidente.
2 - Certo é que não é assim na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual define o direito contra ordenacional como cabendo no critério de matéria penal para efeitos da previsão do artigo 6º da dita convenção (“acusação em matéria penal”).
3 - Daí que se entenda que é uma exigência para a magistratura judicial portuguesa ser rigorosa na clara delimitação da matéria imputada na “acusação” contra ordenacional e inultrapassável dar a conhecer, com extremo rigor, ao cidadão ou empresa acusados, as normas incriminatórias, não apenas as que prevêm o quantum sancionatório mas, antes disso, a clara delimitação da tipicidade da conduta, de forma a impedir abusos policiais e administrativos.
4 - E isto tem que ser feito sob pena de o direito contra ordenacional se (estar a) transformar em direito persecutório da administração e de lícito esbulho de cidadãos e empresas.
5 - Ora, da “acusação” (decisão administrativa) e do despacho notificado à arguida no início do processo consta como enquadramento normativo a previsão da punibilidade da conduta. Nada mais. Dali não constam os normativos que preenchem a tipicidade da conduta. E a arguida tem o direito de saber qual o regime jurídico que baseia a punição e não apenas a norma que prevê o montante da coima. E se a norma punitiva – mesmo que também de previsão - supõe o incumprimento de outras duas normas, estas devem ser indicadas na decisão.
6 - Como se fundamenta no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008 – e como é jurisprudência constitucional pacífica – o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação, mas também da “vertente jurídica da defesa”. E, numa legislação labiríntica e bastas vezes o resultado do entrechoque de interesses que o cidadão não técnico tem dificuldade em apreender na sua importância e consequências punitivas, a indicação precisa dessas normas naquilo que irá concretizar-se numa condenação e/ou “acusação” é do maior relevo.
7 - Há, portanto, nulidade da decisão administrativa e da decisão recorrida. Por isso que se decretem nulas a sentença recorrida e a decisão administrativa.
8 - Não se determina o reenvio para nova decisão pois que isso seria gravíssimo atentado à proibição do princípio da reformatio in pejus, pelo aproveitamento do recurso da arguida para permitir a prossecução penal com correcção de erros processuais que poderiam agravar a sua situação processual.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 116/17.4T8ABF.E1


Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No âmbito do processo de contra-ordenação n.º CO/000735/11 a Inspeção-geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, condenou BB, LDA., com sede em …, acusada da prática de uma contra-ordenação prevista pelo artigo 12.° n. 2 e 18.° n. 2 al. h) do Decreto-Lei n. 46/2008, de 12 de Março, em conjugação com o artigo 1º n. 2 da Portaria n. 417/2008, de 11 de Junho, punida pelo artigo 22.° n. 3 al. b) da Lei n. 50/2006, de 29 de Agosto, na coima no valor de 12.000,00 €.
Os factos são de 17-02-2011 e a decisão da entidade administrativa é de 3 de Junho de 2016.
Inconformada com esta decisão, a recorrente impugnou judicialmente a decisão administrativa, alegando que no âmbito da sua actividade efectuou a pedido de um engenheiro um transporte de pedras que haviam sido retiradas de uma obra em curso em Albufeira e porque não eram resíduos, com destino à casa de um particular que pretendia edificar um muro de vedação e suporte com as mesmas, mas não procedeu a qualquer facturação do transporte, nem se tratou de material poluente ou de restos ou detritos de obras, mas apenas de pedras para colocar num muro. Arrolou testemunha.
O Tribunal Judicial da Comarca Faro – Albufeira, J2 - por sentença de 19.10.2017 decidiu julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Recorrente BB, Lda. e, consequentemente, atenuou especialmente a coima aplicada, reduzindo o seu valor para 6.000 € (seis mil euros), mantendo, no mais, a decisão administrativa proferida.
*
Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs a arguida o presente recurso, com as seguintes conclusões:
a) - Por decisão proferida pela Inspecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território a arguida, aqui recorrente foi condenada no pagamento de uma coima de € 12.000,00 (doze mil euros), pela pratica de uma contra-ordenação ambiental grave p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 12 n. 2 e artigo 18° n. 2 alínea h) do Decreto-Lei 46/2008 de 12 de Março e ainda do anexo I da Portaria 417/2008 de 11 de Junho, sancionável nos termos previstos na alínea b) do n. 3 do artigo 22 da Lei n. 50/2006 de 29 de Agosto, na redação dada pela Lei 114/2015 de 28 de Agosto e a arguida inconformada com a decisão proferida impugnou-a judicialmente, tendo o Tribunal "a quo" considerado o recurso parcialmente procedente e reduzindo a coima aplicada pela entidade administrativa para € 6.000,00 (seis mil euros);
b) A recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal "a quo", que considerou que esta praticou uma contra-ordenação ambiental grave, porquanto transportou pedras que havia sido retiradas de uma escavação que estava a executar numa obra em Albufeira, e a pedido do engenheiro responsável dessa mesma de onde as pedras foram retiradas, para que as levassem para casa de um particular, o qual lhe havia pedido (ao Eng. …) que estava a edificar um muro de vedação e que necessitava das mesmas para esse mesmo muro;
c) As testemunhas que foram ouvidas em Audiência de Julgamento, o destinatário das pedras e o engenheiro responsável, os quais corroboram a posição da arguida, ora recorrente, tanto assim que o Tribunal "a quo" considerou provada essa matéria, mas mesmo assim entendeu que a arguida, ora recorrente praticou uma contra-ordenação ambiental grave porque não trazia com a carga a guia de RCD;
d) A considerar-se que a arguida com os factos constantes dos autos tinha praticado uma contra-ordenação nunca se poderia considerar como uma contra-ordenação grave, porquanto, além do veículo se fazer acompanhar de uma guia de transporte, mas não de uma guia de RCD, face a toda a factualidade provada, deveria o Tribunal ter atenuado especialmente a coima, e apenas a reduziu para metade;
e) Considerando o que se prevê no artigo 20° da Lei 50/2006 de 29 de Agosto que a medida da pena "faz-se em função da gravidade da contraordenaçõo, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto", dúvidas não existem que a aplicação de uma coima de € 6.000,00 (seis mil euros) é excessiva, considerando a sua culpa, a sua situação económica e os benefícios económicos retirados. Vide neste sentido Acordão Relação de Coimbra de 27 -05.2015, Juiz relator Luis Coimbra Processo nº 504/14.8TALRA.Cl
f) Face a tudo o que fica exposto, poderia ter o Tribunal "a quo" ter aplicado ou uma admoestação, ou uma coima especialmente atenuada, face aos critérios previstos no artigo 20° da lei 50/2006, repare-se que a aqui recorrente, apenas fez o transporte de umas pedras que foram retiradas de uma escavação que estava a efectuar, num local onde iria ser construído um prédio, e levou-as a pedido do responsável da obra, o qual lhe havia pedido esse favor, a arguida aqui recorrente acedeu a levar as pedras para o terreno dessa pessoa que foi ouvida em Audiência de Julgamento e que confirmou toda esta factualidade;
g) Também e sem prescindir;
h) Nos termos do artigo 6° n. 2 alinea e) da Portaria 145/2017 de 26 de Abril não há obrigatoriedade de guia de acompanhamento no caso de transportes pelos distribuidores quando a venda implique uma entrega do produto ao domicilio e o transporte do resíduo equivalente até às suas instalações, no caso de resíduos abrangidos pela legislação especifica da responsabilidade alargada do produtor, desde que acompanhado da factura de venda do produto ou documento equivalente, " .. aqui se incluindo a guia de transporte que a arguida aqui recorrente utilizou, sendo que no caso em apreço nem sequer se tratava de uma venda, mas sim de um "favor ou pedido" do responsável da obra onde a recorrente estava a fazer a escavação;
i) Esta Portaria 145/2017 prevê situações excepcionais em que o transporte pode ser efectuado sem a guia do RCD, e parece que no caso em apreço se poderá considerar uma dessas situações excepcionais em que não é exigível essa guia de RCD;
j) Caso assim não se entendesse sempre poderia aplicar uma admoestação prevista no artigo 510 n. 1 do RGCO em razão da reduzida gravidade da infracção não tendo a sua atuação ido além da negligência e independentemente da qualificação jurídica da mesma infração;
k) "A admoestação, não deixando de revestir uma sanção, traduz medida alternativa à aplicação da coima e, conforme aquele preceito legal, "quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique", nada impedindo que a alusão aí contida à entidade competente se reporte também a entidade judicial, por via de impugnação judicial da decisão administrativa (Simas Santos/Lopes de Sousa, in Contra-ordenações, anotações ao regime geral", 3a ediç, Janeiro 2006, pág 363)
Termos em que se requer a revogação da sentença proferida, devendo ser substituída por outra que não aplique qualquer coima à recorrente.
*
O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido apresentou resposta pugnando pela improcedência do recurso, sem conclusões.
Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
*
B - Fundamentação:
B.1.a) - São estes os factos considerados provados pela entidade administrativa e tribunal recorrido:
Da decisão administrativa
l) No dia 17 de Fevereiro de 2011, pelas l6h15m, foi efectuada uma acção de fiscalização levada a cabo pelo Núcleo de Protecção Ambiental do Destacamento Territorial de Albufeira da Guarda Nacional Republicana, no Sítio da …, Concelho de Albufeira.
2) No local, o condutor do veículo pesado de mercadorias com a matrícula …, propriedade da Recorrente BB, Lda transportava terras e pedras provenientes de uma obra de construção/escavação, sita na Avenida da Liberdade, em Albufeira.
3) O condutor não se fazia acompanhar de guia de transporte de resíduos de construção e demolição.
4) Ao proceder ao transporte de RCD sem se fazer acompanhar das competentes guias de acompanhamento a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada por se encontrar a laborar e de que era capaz.
5)A arguida, exercendo uma actividade específica e lucrativa, da qual resultam necessariamente impactos no meio natural, tinha obrigação de procurar conhecer e cumprir todos os enquadramentos legais em que a mesma poderia de facto ser exercida.
Do recurso de impugnação
6)A Recorrente efectuou a entrega de pedras que haviam sido retiradas de uma obra que estava em curso em Albufeira, a pedido de CC, com destino a uma casa de terceiro, DD, que pretendia usá-las para edificar um muro com vedação e suporte.
7)A Recorrente não facturou qualquer quantia por este transporte.
8) A aqui recorrente tem sede em …, tem como objecto social a reciclagem de resíduos sólidos, vegetais e florestais, foi constituída em 2003, tem o capital social de 50000,00 € e tem como gerente EE.
9)A Recorrente tem dois trabalhadores a seu cargo.
10)A Recorrente não tem quaisquer antecedentes contra-ordenacionais.
*
B.1.b) - Factos não provados – A entidade administrativa e o tribunal recorrido consideraram não existirem factos não provados com interesse para a decisão da causa.
***
Cumpre apreciar e decidir
Nos termos do art. 75º nº 1 do DL nº 433/82, de 27/10 (RGCO), nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista.
Por outro lado, o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação. Destas resulta que são questões a decidir:
i. - a matéria de facto – conclusões b) e c);
ii. - a natureza da contra-ordenação – conclusão d);
iii. - a pena de admoestação – conclusões e), f), j) e k);
iv. - a aplicação da Portaria nº 145/2017.
A matéria referida em i. inclui conclusões que abordam matéria de facto para, presumivelmente, se concluir de direito mas onde tal conclusão não surge, para além do referido na conclusão d).
Há matéria de conhecimento oficioso a abordar, designadamente a tipicidade da conduta, que em lado algum se mostra tratada. Por esta iniciaremos, já que poderá ser matéria a reconduzir à inutilidade os pontos de apreciação colocados no recurso.
***
B.2 - São muitas as normas referidas que serão aplicáveis ao caso dos autos. Convém expô-las para sistematizarmos a aplicação do direito aos factos.
Quais são os factos? Transporte de pedras! Com guia! Que não é a guia “especial do ambiente” de RCD!
A previsão legal da conduta e a previsão da sanção aplicável ao caso, no entendimento da entidade administrativa e do tribunal recorrido, assenta nas seguintes normas:
O Decreto-Lei n.º 46/2008, de 12 de Março:
- cujo artigo 12.º, nº 2 prevê que «O transporte de RCD é acompanhado de uma guia cujo (o) modelo é definido por portaria do membro do Governo responsável pela área do ambiente
- e o artigo 18.º, nº 2 que – na sua al. h) - classifica esta suposta contra–ordenação ambiental como grave [«h) O incumprimento das regras sobre transporte de RCD, a que se refere o artigo 12.º.»]
A Portaria n.º 417/2008, de 11 de Junho que no seu artigo 1.º concretiza o dever:
1 - O transporte de resíduos de construção e demolição (RCD) deve ser acompanhado de guias de acompanhamento de resíduos, cujos modelos constam dos anexos i e ii à presente portaria, da qual fazem parte integrante.
2 - O modelo constante do anexo i deve acompanhar o transporte de RCD provenientes de um único produtor ou detentor, podendo constar de uma mesma guia o registo do transporte de mais do que um movimento de resíduos.
A punição da conduta consta da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, cujo artigo 22.º, nº 3, al. b) reza sobre o montante das coimas das contra-ordenações graves (ao sabor das alterações legais):
- na redacção original da Lei - «b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 25000 a (euro) 34000 em caso de negligência e de (euro) 42000 a (euro) 48000 em caso de dolo.»;
- na redacção da Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto - «b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 15 000 a (euro) 30 000 em caso de negligência e de (euro) 30 000 a (euro) 48 000 em caso de dolo.»;
- na redacção da Lei 114/2015 - «b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo.»;
E estamos de acordo na aplicabilidade potencial destas normas, semeadas por vários diplomas de forma a facilitar o seu conhecimento pelo cidadão, leitor assíduo e atento do D.R..
Temos então que: sabemos que a arguida pode ser punida com coima determinada, por transporte de RCD sem guia especial prevista no Anexo i da Portaria indicada; sabemos quais as sanções aplicáveis em função da aplicação da lei mais favorável; sabemos que transportou pedras. Este foi facto dado como provado pelo tribunal recorrido, depois de a entidade administrativa ter dado como provado o transporte de terras e pedras.
Fiquemo-nos com as pedras, apesar de o regime legal ser o mesmo. Ambos, entidade administrativa e tribunal concluíram que os objectos transportados eram RCD.
Ora, em lado algum da condenação da arguida se vê referida a norma aplicada a conter esse elemento essencial da tipicidade da conduta. Em breve. O que é um RCD? Em que norma está previsto o que é um transporte de RCD? Esse será um elemento essencial a estar previamente definido por lei – princípio da legalidade – sem o qual não se pode afirmar que a conduta preenche um determinado tipo contra-ordenacional. Nem se pode afirmar que a condenação contém todos os elementos normativos que permitem a condenação.
Aliás, parece que as entidades sucessivamente condenatórias aplicaram normas diversas, não obstante no mesmo bloco normativo aplicável aos factos ocorridos em 17-02-2011.
A entidade administrativa referiu em sede fundamentadora a Lista Europeia de Resíduos, aprovada pela Portaria nº 209/2004, de 03-03, por aí se ficando. Já o tribunal recorrido faz referência fundamentadora ao Dec-Lei nº 178/2006, de 05-09 e especificadamente à previsão da actual al. gg) do seu artigo 3º [anterior al. x) antes da redacção dada pelo Dec-Lei nº 73/2011, de 17-06].
E o “bloco normativo” supra referido supõe a existência – ao menos - dos dois diplomas, Decreto-Lei e Portaria, que ambos definem a tipicidade da conduta.
Tipicidade contra-ordenacional que se não basta com a afirmação de que a arguida transportava “resíduos” sem guia RCD. “Resíduo” não é um facto: é um conceito de direito contra-ordenacional importado do direito ambiental.
Logo, quer o referido Decreto-Lei nº 178/2006, quer a Portaria nº 209/2004 fazem necessariamente parte do acervo punitivo por serem essenciais à definição dum (e entegração num) tipo contra-ordenacional. O Decreto pela definição de “resíduo” que, face à insuficiência do conceito, se tem que completar com a Lista Europeia de Resíduos (LER) que a Portaria concretiza no seu capítulo 17:
§ 17 05 03 (*) Solos e rochas contendo substâncias perigosas.
§ 17 05 04 Solos e rochas não abrangidos em 17 05 03.
Mas atenção que a Portaria nº 209/2004 - e a sua lista de resíduos com origem na Decisão 2000/532/CE da Comissão - são já hoje arqueologia legislativa.
Aquela decisão está hoje ultrapassada pela Decisão 2014/955/EU da Comissão, de 18-12-2014, já em conformidade com a Directiva nº 2008/98/CE, que aprovou a nova LER, com sensível alteração de critérios.
Por isso que, para o caso dos autos, seja essencial em termos de definição clara da tipicidade da contra-ordenação imputada à arguida a indicação clara dos diplomas que, em conjunto, estabelecem de forma clara a tipicidade da conduta, elemento essencial à sobrevivência do princípio da legalidade.
E o princípio da legalidade, convém recordar e manter sempre presente, está previsto no artigo 2º do RGCO, nos seguintes e claros termos: «Só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática».
E que não estivesse!
Apesar da crença generalizada de que os princípios constitucionais são aplicáveis a todos os ramos do direito, também se aplica aqui o aforismo de que há uns mais iguais do que outros, sendo o direito contra-ordenacional na praxis portuguesa alvo de um laxista critério de menosprezo constitucional evidente.
Certo é que não é assim na Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual define o direito contra ordenacional como cabendo no critério de matéria penal para efeitos da previsão do artigo 6º da dita convenção (“acusação em matéria penal”).
Daí que se entenda que é uma exigência para a magistratura judicial portuguesa ser rigorosa na clara delimitação da matéria imputada na “acusação” contra ordenacional e inultrapassável dar a conhecer, com extremo rigor, ao cidadão ou empresa acusados, as normas incriminatórias, não apenas as que prevêm o quantum sancionatório mas, antes disso, a clara delimitação da tipicidade da conduta, de forma a impedir abusos policiais e administrativos.
E isto tem que ser feito sob pena de o direito contra ordenacional se (estar a) transformar em direito persecutório da administração e de lícito esbulho de cidadãos e empresas.
Ora, da “acusação” (decisão administrativa) e do despacho notificado à arguida no início do processo (pag. 1) consta como enquadramento normativo da previsão e punibilidade da conduta a violação do disposto no artigo 12.° n. 2 e 18.° n. 2 al. h) do Decreto-Lei n. 46/2008, de 12 de Março, em conjugação com o artigo 1º n. 2 da Portaria n. 417/2008, de 11 de Junho, punida pelo artigo 22.° n. 3 al. b) da Lei n. 50/2006, de 29 de Agosto.
Nada mais. Dali não constam os normativos supra referidos que preenchem a tipicidade da conduta.
E é indubitável que essas – as normas em falta - são normas de previsão e punição. E a arguida tem o direito de saber qual o regime jurídico que baseia a punição e não apenas a norma que prevê o montante da coima. E se a norma punitiva – mesmo que também de previsão - supõe o incumprimento de outras duas normas, estas devem ser indicadas na decisão.
Ou seja, são aplicáveis ao caso dos autos as razões e fundamentos que se prescrevem no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008 relativo à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, para a qual se exige que as disposições legais aplicáveis constem da acusação ou da pronúncia.
Como se fundamenta naquele acórdão – e como é jurisprudência constitucional pacífica – o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. «A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico--criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas. Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (…) nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis».
E, numa legislação labiríntica e bastas vezes o resultado do entrechoque de interesses que o cidadão não técnico tem dificuldade em apreender na sua importância e consequências punitivas, a indicação precisa dessas normas naquilo que irá concretizar-se numa condenação e/ou “acusação” é do maior relevo.
Em sede de direito a simples referência aos ns.º 1 e 4 do artigo 18.°, do DL n.º 46/2008, de 12/3, al. a) do n.º 4 do artigo 22.° da Lei n.º 50/2006, de 29/8, na redacção que lhe deu a Lei n.º 89/2009, de 31/8 é claramente insuficiente para sustentar uma condenação pois que as razões de direito necessárias para uma decisão estão longe de se bastar com essas referências legais.
O Dec-Lei nº 178/2006, de 05-09 que define em termos gerais o conceito de “resíduo” e da Decisão 2014/955/EU da Comissão, de 18-12-2014, que aprovou a nova LER, são normativos essenciais à delimitação da conduta que não constam da “acusação” (decisão da entidade administrativa).
Há, portanto, nulidade da decisão administrativa e da decisão recorrida. Por isso que se decretem nulas a sentença recorrida e a decisão administrativa.
Não se determina o reenvio para nova decisão pois que isso seria gravíssimo atentado à proibição do princípio da reformatio in pejus, pelo aproveitamento do recurso da arguida para permitir a prossecução penal com correcção de erros processuais que poderiam agravar a sua situação processual.
***
B.3 – Mas mais. Há uma outra realidade substancial. O auto refere que a arguida transportava pedras e que se fazia acompanhar com guia de transporte. Não se tratava, no entanto, da guia certa pois que a arguida, por Deus, transportava “pedras”, pelo que se devia fazer acompanhar de uma guia especial de resíduos para protecção do “ambiente”, passível de ser inquinado por “pedras”.
Pedras que, pelo que consta dos autos não tinham conteúdo perigoso, não eram contaminadas com material que cumpra os requisitos de perigosidade do Regulamento (UE) n. 1357/2014 da Comissão, de 18 de dezembro de 2014, que substituiu o anexo III da Diretiva 2008/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa aos resíduos e que é diretamente aplicável em todos os Estados-Membros e entrou em vigor em 1 de junho de 2015.
E note-se, são perigosos os resíduos que constem do Anexo III da dita Directiva de 2008, tal como alterado pelo Regulamento de 2014, seja:
HP 1“Explosivo”: Resíduo suscetível de, por reação química, produzir gases a uma temperatura, uma pressão e uma velocidade tais que podem causar danos nas imediações. Incluem-se os resíduos de pirotecnia, os resíduos de peróxidos orgânicos explosivos e os resíduos autorreativos explosivos.
HP 2 “Comburente”: Resíduo que pode causar ou contribuir para a combustão de outras matérias, em geral por fornecimento de oxigénio.
HP 3 “Inflamável”:
HP 4 “Irritante — irritação cutânea e lesões oculares”:
HP 5 “Tóxico para órgãos-alvo específicos (STOT)/ tóxico por aspiração”:
HP 6 “Toxicidade aguda”: Característica do resíduo que pode causar efeitos tóxicos agudos na sequência de administração oral ou cutânea ou de exposição por inalação.
HP 7 “Cancerígeno”:Resíduo que induz cancro ou aumenta a sua incidência.
HP 8 “Corrosivo”:Resíduo que, por aplicação, pode causar corrosão da pele.
HP 9 “Infecioso”:Resíduo que contém microrganismos viáveis ou suas toxinas, em relação aos quais se sabe ou há boas razões para crer que causam doenças nos seres humanos ou noutros organismos vivos.
HP 10 “Tóxico para a reprodução”:Resíduo que apresenta efeitos adversos na função sexual e na fertilidade de homens e mulheres adultos, bem como toxicidade sobre o desenvolvimento dos descendentes.
HP 12 “Libertação de um gás com toxicidade aguda”:Situação em que o resíduo, em contacto com água ou ácido, liberta gases caracterizados por toxicidade aguda (Tox. aguda 1, 2 ou 3).
HP 13 “Sensibilizante”:Resíduo que contém uma ou mais substâncias que, comprovadamente, têm efeitos sensibilizantes na pele ou no aparelho respiratório.
HP 14 “Ecotóxico”:Resíduo que representa ou pode representar um risco imediato ou diferido para um ou vários setores do ambiente.
HP 15 “Resíduo suscetível de apresentar uma das características de perigosidade acima enumeradas não diretamente exibida pelo resíduo original.”
Não se prova que as pedras dos autos o sejam! Logo não cabem no ponto 17 05 03* da LER.
Quanto ao ponto 17 05 04 da LER, as que não caibam no ponto anterior («Solos e rochas não abrangidos em 17 05 03*»), é bem de ver que a entidade administratiuva decisória o lê como “todos os solos e rochas”, sem excepção.
Entendemos no entanto que, vistas as classificações constantes do capítulo 17 da LER comparadas com todos os restantes capítulos, e tendo presentes as finalidades de recolha para tratamento e reutilização que é inerente ao tratamento de resíduos, solos e rochas não misturados com outros resíduos não se incluem na categoria indicada.
Por isso que o ponto 17 05 04 da LER deve ser lido como segue: «Solos e rochas misturadas com resíduos não perigosos».
Naturalmente que solos e rochas, tão só, sem resíduos perigosos e/ou associação a outros materiais fabricados. Se simples não passam de coisas naturais que não deveriam ser associados a “resíduos” industriais ou de obra.
Ou seja, só é resíduo, logo, RCD - Resíduos de Construção e Demolição - a mistura de solos e rochas que contenha materiais perigosos ou que contenham mistura com outros resíduos de construção civil, tais como betão, tijolos, ladrilhos, telhas e materiais cerâmicos, respectivas misturas, madeira, vidro e plástico; misturas betuminosas, alcatrão e produtos de alcatrão; metais (incluindo ligas); cobre, bronze e latão, alumínio, chumbo, zinco, ferro e aço, estanho, mistura de metais, materiais de construção à base de gesso, balastros de linhas de caminho-de-ferro, etc.
Se tal não ocorre não há, por definição, resíduo, já que este envolve uma ideia de perigosidade ou de danosidade [n. 2 do 1º da Portaria nº 209/2004, de 03-03 e artigo 2º, corpo e n. 2, al. g) in fine, do Dec-Lei nº 178/2006, de 05-09, na redacção dada pelo Dec-Lei nº 73/2011, de 17-06] e implica as ideias de prevenção de causação de perigos, de preparação para a reutilização e reutilização ou eliminação.
Já o afirmámos, que os solos e rochas serão “resíduos” do Senhor numa visão teocêntrica da criação. E, numa visão antropocêntrica da ciência, sempre serão resíduos do “Big-Bang”. Ou seja, são produtos naturais. E aquilo que é um produto natural não pode, por essência e definição, ser incluído no conceito de resíduos de construção e demolição.
Só o será por abuso interpretativo assente numa visão totalitária – numa asserção algo suave – da legislação portuguesa sobre ambiente e do agir administrativo.
***
B.4 – Mas como é patente, designadamente no diploma supra citado de 2006, actualizado em 2011, e no seu artigo 6º, o principio da protecção da saúde humana e do ambiente constitui o objectivo prioritário da política de gestão de resíduos para evitar e reduzir aqueles riscos. Ora, as pedras e solos não contaminados perigosamente, nem misturados com resíduos não revelam qualquer perigo na medida em que são coisas naturais que não necessitam de actos de prevenção ou eliminação e apenas de uma determinação do seu uso futuro.
Mas como tem acontecido a variadíssima legislação das contra-ordenações, os inícios legislativos totalitários de variada área do agir do cidadão e das empresas tem dado azo a várias alterações legislativas para contornar ou suavizar a inicial ânsia de total dominação por parte das várias tecnocracias administrativas, redutoras da realidade e do agir humanos, industriais e comerciais.
Daí que se não perceba como certos autos passam da fase de acusação pelo Ministério Público e, mesmo, pelo crivo de tribunais judiciais.
E nesta área, esse suavizar das leis vem a demonstrar-se, por exemplo, na diferente redacção dada ao artigo 2º do Dec-Lei nº 178/2006, desde logo no nº 1, mas também pelo acrescento de uma nova alínea c) do nº 2 ao excluir do âmbito do diploma “o solo não contaminado e outros materiais naturais resultantes de escavações no âmbito de actividades de construção desde que os materiais em causa sejam utilizados para construção no seu estado natural e no local em que foram escavados”.
É claro que o resquício totalitário se mantém na expressão “… e no local em que foram escavados” como se isso tivesse algum substracto útil.
Cada nova alteração legislativa vem suavizar a aplicação da lei, mesmo a considerar que as pedras são resíduos, como se constata nos artigos 6º, nº 2 e 13º, nº 3, al. e) do Dec-Lei nº 46/2008. Aquele primeiro permitindo que os solos e as rochas que não contenham substâncias perigosas provenientes de actividades de construção “que não sejam reutilizados na respectiva obra de origem podem ser utilizados noutra obra sujeita a licenciamento ou comunicação prévia …”. Este segundo determinando que estão dispensadas de licenciamento (e)a utilização de RCD em obra”.
O próprio nº 1 do artigo 2º do Dec-Lei nº 178/2006, com a redacção de 2011, vem tornar mais claro que o objectivo do diploma é “prevenir ou reduzir a produção de resíduos, o seu carácter nocivo e os impactes adversos decorrentes da sua produção e gestão, bem como a diminuição dos impactes associados à utilização dos recursos, de forma a melhorar a eficiência da sua utilização e a protecção do ambiente e da saúde humana.
E se há plena concordância com os objectivos declarados no preâmbulo do Dec-Lei nº 46/2008, de 12-03, quando afirma que é evidente a “premência da criação de condições legais para a correcta gestão dos RCD que privilegiem a prevenção da produção e da perigosidade, o recurso à triagem na origem, à reciclagem e a outras formas de valorização” e que, na sequência da consagração no artigo 6º do Dec-Lei nº 178/2006 (na redacção dada pelo Dec-Lei nº 173/2011), do princípio da protecção da saúde humana e do ambiente, que «constitui objectivo prioritário da política de gestão de resíduos evitar e reduzir os riscos para a saúde humana e para o ambiente, garantindo que a produção, a recolha e transporte, o armazenamento preliminar e o tratamento de resíduos sejam realizados recorrendo a processos ou métodos que não sejam susceptíveis de gerar efeitos adversos sobre o ambiente, nomeadamente poluição da água, do ar, do solo, afectação da fauna ou da flora, ruído ou odores ou danos em quaisquer locais de interesse e na paisagem».
Face a isto não se entende como pedras não contaminadas nem associadas a resíduos e descarregados em local próximo podem pôr em causa os supra ditos objectivos.
E desta forma se conclui com a afirmação de que o recurso deve proceder, não obstante por razões diversas das invocadas e já expostas em B.2.
***
C - Dispositivo
Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso interposto e, em consequência, declaram a nulidade da decisão administrativa e da decisão recorrida e, consequentemente, sem efeito a condenação da arguida.
Não há reenvio dos autos para nova decisão por proibição decorrente do princípio da reformatio in pejus.
Sem tributação.
Notifique e devolva os autos ao tribunal recorrido.
Notifique a entidade administrativa e a entidade autuante.

Évora, 05 de Junho de 2018
(processado e revisto pelo relator).
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso