Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1110/18.3T8ABF.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: REGIME JURÍDICO DO MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
NULIDADE
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – No âmbito do processo especial de acompanhamento de maior, deve o juiz proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário, ato que lhe é imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC;
II - Se a omissão da audição da beneficiária só se manifesta com a prolação da sentença que decretou o acompanhamento, é de considerar tempestiva a arguição da nulidade nas alegações do recurso interposto desta decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório
O Ministério Público intentou, em 05-11-2018, a presente ação de interdição relativa a CC, nascida a 07-12-1975, melhor identificada nos autos, pedindo se declare a interdição da requerida, por anomalia psíquica.
Recebida a petição, procedeu-se à afixação de editais e à publicação de anúncio.
Atenta a impossibilidade da requerida receber a citação, foi nomeada curadora provisória.
Citada em representação da requerida, a curadora provisória não apresentou contestação, pelo que foi nomeado defensor oficioso e citada a requerida na pessoa do seu representante, tendo sido apresentada contestação, na qual não é deduzida oposição ao pedido formulado.
A requerida foi submetida a exame pericial.
Foi proferida sentença, datada de 11-07-2019, na qual:
- se consignou, além do mais, o seguinte:
Perante a referida entrada em vigor da Lei n.º49/2018, de 14 de Agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, e para efeitos do disposto no art.º26.º, n.º1 e n.º2, da citada Lei, deixa-se consignado que, em face dos elementos já constantes do processo, designadamente o relatório da perícia psiquiátrica, não se vislumbra qualquer outra diligência que, no caso concreto, revista utilidade, designadamente audição da beneficiária, pois a observação directa nada acrescentará, perante o aludido elemento de teor técnico.
- se decidiu o seguinte:
Destarte, julgo totalmente procedente a acção e, em consequência, decreto o acompanhamento da Requerida CC, que em função da doença de que padece desde a nascença, deve beneficiar das seguintes medidas de acompanhamento:
- Representação geral;
- Administração total de bens.
O acompanhamento é deferido à actual Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira, DD, id. nos autos, com os deveres e consequências pela inobservância dos mesmos legalmente previstos – art.º143.º, do Código Civil.
Ao abrigo do disposto no art.º1962.º, n.º2, do Código Civil, não se constituirá conselho de família.
Revisão no prazo máximo.
Sem custas.
Valor da acção - €30.000,01.
Registe e notifique.
Publicidade nos termos legais.
Após trânsito, comunique à Conservatória do Registo Civil competente.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta sentença, pugnando pela anulação da decisão recorrida e devolução dos autos à 1.ª instância, para audição pessoal e direta da beneficiária da medida, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A audição do beneficiário da eventual medida de acompanhamento de maior acompanhado é obrigatória, nos termos do disposto nos art. 139.º do Cód. Civil e art. 897.º, n.º 2 do CPC, na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14.08, aplicando-se imediatamente aos processos que ainda se encontrem pendentes, cfr. art. 26.º, n.º 2;
2. O art. 26.º da Lei 49/2018 apenas confere poderes de gestão processual, no sentido de conciliar os actos praticados anteriormente à entrada em vigor da nova redacção, mantendo a sua validade, devendo os demais actos subsequentes ser praticados em respeito pela nova redacção;
3. A referida audição não está sujeita a critérios de oportunidade, utilidade ou outros, ou seja, ao princípio de adequação formal em termos de opção pela sua realização;
4. A omissão de tal diligência configura uma nulidade processual, por violação de lei expressa, nos termos do disposto nos arts. 139.º do Cód. Civil e art. 897.º, n.º 2 do CPC na sua actual redacção e art. 195.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil;
5. A interpretação das referidas normas de acordo com o princípio de adequação formal e critérios de utilidade configura uma clara violação da lei, em detrimento do novo paradigma introduzido pela Lei n.º 49/2018, de 14.08;
6. Ademais, o tribunal ao decretar o acompanhamento do beneficiário sem estar preenchida esta formalidade que configura um dos requisitos materiais, que é a audição daquele a fim de ajuizar da verificação dos requisitos legais para o seu decretamento e das medidas de acompanhamento mais adequadas, que sirvam de facto aquele, interpretou erradamente as normas supra citadas, quando foi enfatizado pelo legislador o carácter obrigatório de tal audição e suas finalidades, foi então alheio à mudança de paradigma, em violação do disposto nos arts. 139.º do Cód. Civil e 897.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil;
7. Incorreu assim o tribunal num erro de julgamento, também;
8. Consequentemente, deverá a sentença ser declarada nula, dando-se a mesma sem efeito e determinar-se o cumprimento do disposto no artigo 897.º/2 do CPC, ordenando que se designe data para a audição pessoal e directa do beneficiário da medida.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar a questão da omissão da audição da requerida e respetivas consequências.

2. Fundamentos

2.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1 – CC nasceu em 7 de Fevereiro de 1975, e é filha de EE e de FF.
2 – Apresenta quadro de oligofrenia moderada no contexto de Síndrome de Williams, que se verifica desde o seu nascimento, e é crónico e irreversível, tendo atraso mental desde então e revelando severo défice cognitivo.
3 - Encontra-se institucionalizada desde 1996.
4 - Tem sido acompanhada no Serviço de Psiquiatria 1 da Unidade Hospitalar de Faro desde Março de 2009.
5 - Padece de diabetes M.II e hipertensão arterial.
6 - É parcialmente autónoma para as tarefas básicas, como cuidados de higiene, vestuário e alimentação, esta sempre providenciada pela instituição, e para a toma de medicação, sendo sempre necessária alguma supervisão.
7 - Mostra-se desorientada no tempo e no espaço.
8 - Apenas sai da instituição na companhia de técnicas da mesma.
9 - Não reconhece o dinheiro, nem é capaz de fazer cálculos.
10 - Apresenta pobreza de conteúdo ao nível do pensamento e dificuldade de compreensão, embora tenha um discurso fluído e coerente.
11 - Tem um filho de 23 anos de idade, e que também padece de oligofrenia.
12 - Não tem contacto regular com familiares.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
O recorrente invoca a nulidade processual emergente da falta da audição pessoal e direta da requerida, prevista nos artigos 139.º, n.º 1, do Código Civil, e 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14-08, sustentando que tal diligência é obrigatória e não está sujeita ao princípio da adequação formal ou a critérios de oportunidade, utilidade ou outros, pelo que a respetiva omissão importa se anule a sentença proferida e se determine a designação de data para a audição em falta.
Vejamos se lhe assiste razão.
Os presentes autos tiveram início em 05-11-2018 e seguiram os trâmites então em vigor quanto aos institutos da interdição e da inabilitação, previstos nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil, e ao processo especial de interdição e inabilitação, regulado nos artigos 891.º a 904.º do Código de Processo Civil.
Porém, na pendência do processo entrou em vigor, a 10-02-2019, a Lei n.º 49/2018, de 14-08, que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação anteriormente previstos no Código Civil, sendo certo que esta lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor e que cabe ao juiz utilizar os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes, conforme estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º do diploma em causa.
Consignou-se, na decisão recorrida, que a audição da beneficiária não revestia utilidade, face aos elementos já constantes do processo, designadamente o relatório da perícia psiquiátrica efetuada, motivo pelo qual não se determinou a realização de tal diligência e se proferiu sentença. É contra este entendimento que se insurge o apelante, sustentando que a audição da beneficiária configura uma diligência obrigatória, não podendo ser dispensada à luz de critérios de oportunidade, utilidade ou outros.
Sob a epígrafe Acompanhamento, dispõe o artigo 138.º Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14-08, que o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código. Esclarece o n.º 1 do artigo 139.º daquele código, na redação dada pela citada lei, que o acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.
Regulando os poderes instrutórios do juiz, dispõe o artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação dada pela citada lei, o seguinte: 1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos. 2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.
Decorre claramente dos indicados preceitos a obrigatoriedade da audição pessoal e direta do beneficiário pelo juiz.
Efetivamente, estatuindo o artigo 139.º, n.º 1, do CC, que o acompanhamento é decidido após audição pessoal e direta do beneficiário e determinando o n.º 2 do artigo 897.º do CPC que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, não restam dúvidas de que a audição do beneficiário configura um ato que a lei prescreve, encontrando-se consagrada a respetiva obrigatoriedade.
Neste sentido, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04-06-2019 (relator: Alberto Ruço), proferido no processo n.º 647/18.9T8ACB.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se entendeu o seguinte: “A audição direita do beneficiário pelo juiz, no âmbito do processo especial de acompanhamento de maiores, determinada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, na redação da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, deve ocorrer em todos os processos, sem exceção”.
Como tal, previamente à prolação da decisão que determinou o acompanhamento, deveria o tribunal ter procedido à audição pessoal e direta da beneficiária, o que não fez, assim omitindo um ato que lhe é imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC.
Na determinação das consequências da omissão da audição da beneficiária, há que ter em conta a finalidade da realização dessa diligência, dispondo o artigo 898., n.º 1, do CPC, que a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
Com pertinência para a apreciação do relevo da audição do beneficiário no âmbito do regime jurídico do maior acompanhado, cf. o acórdão da Relação de Coimbra de 04-06-2019 (relatora: Maria João Areias), proferido no processo n.º 577/18.4T8CTB.C1 (publicado em www.dgsi.pt), no qual se considerou o seguinte:
“A utilização dos poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias aos processos pendentes, prevista no nº4 do artigo 26º, terá de ter em consideração os princípios subjacentes a este novo regime, entre os quais destacamos:
- o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário;
- sempre que possível se deverá ter em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva;
- ao Requerente deverá ser dada oportunidade de indicar qual a medida ou medidas que considere adequadas à luz das novas finalidades do procedimento em causa.”
Considerando que a 1.ª instância não procedeu à audição da beneficiária, com vista a averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas, e veio a proferir decisão, na qual decretou o acompanhamento da requerida, designou o respetivo acompanhante e definiu medidas de acompanhamento, verifica-se que aquela omissão influiu na decisão da causa, assim constituindo nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Não se tratando de nulidade principal, encontra-se a nulidade em causa sujeita ao regime de arguição fixado nos artigos 197.º e 199.º, do qual decorre, além do mais, a regra geral sobre o prazo de arguição das nulidades secundárias: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, dispõe para a arguição do prazo geral de 10 dias, contado desde o conhecimento de que foi cometida a nulidade. No entanto – conforme se entendeu no acórdão desta Relação de 19-05-2016 (relator: Bernardo Domingos), proferido no processo n.º 124/14.7T8ABT.E1, disponível em www.dgsi.pt –, considerando que a nulidade em causa se corporiza na decisão recorrida e só com a notificação desta se manifesta, verifica-se que a arguição da nulidade é incindível da impugnação da decisão, pelo que cumpre considerar tempestiva a respetiva arguição nas alegações do recurso interposto de tal decisão.
Nesta conformidade, considerando que foi omitida a audição da beneficiária, ato imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC, e que tal influiu na decisão recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do mesmo Código, há que anular tal decisão e determinar se proceda à diligência omitida, designando-se data e local para a respetiva realização.
Procede, assim, a apelação.

Em conclusão:
I – No âmbito do processo especial de acompanhamento de maior, deve o juiz proceder sempre à audição pessoal e direta do beneficiário, ato que lhe é imposto pelos artigos 139.º, n.º 1, do CC, e 897.º, n.º 2, do CPC;
II - Se a omissão da audição da beneficiária só se manifesta com a prolação da sentença que decretou o acompanhamento, é de considerar tempestiva a arguição da nulidade nas alegações do recurso interposto desta decisão.

3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, anular a decisão recorrida e determinar que o Tribunal de 1.ª instância profira despacho a designar data e local para a audição da requerida.
Sem custas.
Notifique.

Évora, 10-10-2019
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita
José António Moita