Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
375/18.5T8OLH.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PEDIDO DE APOIO JUDICIÁRIO
DECISÃO FINAL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: Tendo o devedor insolvente formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito da vigência da redacção do artigo 248.º do CIRE, na redacção anterior à Lei n.º 9/2022 e antes da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do n.º 4 do preceito, deve ser excepcionalmente admitido a requerer o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e encargos com o processo após decisão final do incidente, sob pena de se frustrar materialmente o seu direito de acesso à justiça e tutela efectiva.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 375/18.5T8OLH.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Olhão – Juiz 1


I. Relatório
No Juízo do Comércio de Olhão,
(…) apresentou-se à insolvência “com indicação de nomeação de administrador judicial, pedido de exoneração do passivo restante e pedido de diferimento do pagamento de custas”, tendo alegado para o que agora releva, que
“- Nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do CIRE é concedido aos requerentes o benefício do diferimento do pagamento de custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante;
- Porquanto, nos termos do citado normativo legal, os devedores que apresentem um pedido de exoneração do passivo beneficiam do diferimento do pagamento de custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período de cessão sejam insuficientes para o respectivo pagamento integral;
- Benefício que afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários ao patrono.”.

Tendo a petição dado entrada em juízo em Março de 2018, foi proferida sentença a declarar a insolvência, há muito já transitada em julgado, e, tendo sido admitido o incidente de exoneração do passivo restante, veio este a ser declarado encerrado por decisão proferida em 12/1/2023, também transitada, com a concessão ao insolvente do benefício da exoneração e consequente extinção de todos os créditos sobre a insolvência subsistentes à data, fazendo recair sobre aquele as custas respectivas. Mais foi então fixada a remuneração devida ao Sr. Fiduciário em exercício (cfr. Ref.ª 126552506].

Elaborada a conta, apurou-se encontrar-se em dívida o valor de € 3.465,99, proveniente de taxa de justiça e reembolsos devidos ao IGFEJ por adiantamentos (honorários ao AI).
Notificado o insolvente da conta e para pagar o montante apurado, sendo a data limite 2 de Outubro, fez prova nos autos de ter formulado em 14 de Setembro pedido de apoio judiciário “para auxílio no pagamento das custas”, o qual lhe foi deferido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

A D. Magistrada do MP pronunciou-se nos autos no sentido de o benefício do apoio judiciário concedido não poder ser considerado para efeitos de isenção do pagamento das custas contadas, uma vez que foi requerido após decurso do prazo respectivo.

Foi proferido despacho a declarar que “o Insolvente está dispensado do pagamento de custas e outros encargos do processo, em face do apoio judiciário concedido”.
Inconformada, veio recorrer a D. Magistrada do MP e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1. Recorre-se do despacho judicial proferido em 25-10-2023 que considerou que o insolvente está dispensado do pagamento de custas e outros encargos do processo, em face do apoio judiciário concedido que lhe foi concedido após o transito em julgado da decisão final da exoneração do passivo restante e da notificação para pagar as custas.
2. Esta decisão viola claramente o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho e 248.º do CIRE.
3. Dispondo, expressamente, o artigo 18.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, em que momento deve ser requerido o apoio judiciário, em nosso entender, resulta claro que se for requerido após a prolação da decisão final do incidente de exoneração do passivo restante, não pode abranger as custas já devidas antes da concessão desse apoio.
4. O apoio judiciário não tem efeito retroactivo, aplicando-se apenas aos actos processuais praticados para o futuro e enquanto o litigio se mantiver, isto porque se destina a garantir o exercício dos direitos em juízo, não podendo ser visto como meio destinado a obter a dispensa do pagamento das custas e encargos a que a participação no processo deu causa.
5. Não está em causa o acesso ao direito ou à justiça, uma vez que tendo a decisão final do incidente transitado em julgado, o apoio judiciário apenas terá por finalidade o não pagamento das custas do processo.
6. Permitir que o responsável pelas custas fique desobrigado do pagamento das mesmas, depois do fim do processo seria criar uma isenção que o regime das custas não permite.
7. O pedido de apoio judiciário formulado pelo insolvente ao ISS em 14-09-2023, porque requerido já após o trânsito em julgado da decisão final é intempestivo, não podendo produzir qualquer efeito relativamente às custas já contadas.
8. Ao considerar válido o apoio judiciário concedido ao insolvente depois de transitada a decisão final do incidente de exoneração, dispensando-o do pagamento das custas contadas após tal decisão, o tribunal errou na interpretação do direito aplicável ao caso e objecto da decisão recorrida.
Conclui pela procedência do recurso, com a consequente “revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que determine que o apoio judiciário concedido ao insolvente em 2 de Outubro de 2023 não pode produzir efeito relativamente às custas contadas, não estando dispensado do pagamento das mesmas”.
Não foram oferecidas contra alegações.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se o benefício do apoio judiciário requerido pelo insolvente e concedido após notificação da conta elaborada em processo de insolvência, mostrando-se transitada em julgado a decisão que lhe concedeu a exoneração do passivo restante, deve ser atendido, dispensando-o do pagamento da quantia apurada.
*
II. Fundamentação
Relevam para a decisão os factos ocorridos no processo e relatados em I., à luz dos quais cumpre fazer notar que, ao invés do fundamento invocado inicialmente pela D. recorrente, o pedido de apoio judiciário foi formulado pelo insolvente logo após a notificação ao mesmo da conta final elaborada nos autos, no decurso, portanto, do prazo de pagamento.
Feita tal prévia precisão, cumpre referir que a questão enunciada tem vindo a ser suscitada nos nossos tribunais, sem obter resposta uniforme (cfr., entre outros, no sentido de a concessão do apoio judiciário, mesmo após a notificação da conta, dever ser considerado, os acórdãos do TRP de 24/9/2020, no processo 1752/11.8T8STS.P1, e de 8/3/2022, no processo 2656/15.0T8STS; em sentido contrário, os acórdãos do TRP de 18/4/2023, no processo 1466/16.2T8STS.P1, do TRL de 28/11/2023, no processo 28014/15.9 T8SNT.L1-1, e deste TRE de 30/3/2023, no processo 988/18.5T8OLH.E1, subscrito pela ora relatora como 1.ª adjunta, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Não se discute que, tal como a D. recorrente alega e se sublinhou no aresto deste TRE vindo de identificar, o instituto do apoio judiciário visa dar cumprimento ao princípio constitucionalmente consagrado – artigo 20.º da nossa Constituição – de que a ninguém é vedado o acesso ao direito e aos tribunais por razões de insuficiência económica. Deste modo, e como vem sendo repetido pelo TC, “sem consagrar a gratuidade dos serviços de justiça, a Lei Fundamental é incompatível com tributação processual que, pela sua onerosidade, impeça ou dificulte de forma desproporcionada o acesso aos tribunais, ao mesmo tempo que impõe ao legislador a consagração de um sistema adequado de apoio judiciário, injunção a que o regime do acesso ao direito e aos tribunais, regulado pela Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, procura dar cumprimento”[2].
Isso mesmo vem igualmente afirmado no artigo 1.º da Lei 34/2004, de 29 de Julho, nos termos do qual “O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos” (vide n.º 1). Para tanto, o apoio judiciário compreende desde logo as modalidades enunciadas no artigo 16.º, a saber: “a) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo; b) Nomeação e pagamento da compensação de patrono; c) Pagamento da compensação de defensor oficioso; d) Pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo; e) Nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono; f) Pagamento faseado da compensação de defensor oficioso; g) Atribuição de agente de execução”.
Finalmente, atendendo à finalidade da concessão do apoio judiciário em qualquer uma das suas modalidades, no que respeita à oportunidade da formulação desse pedido, o n.º 2 do artigo 18.º da denominada LAJ[3] vem sendo interpretado no sentido de não permitir a sua dedução após o trânsito em julgado da decisão, visando o requerente apenas eximir-se ao pagamento das custas contadas. Trata-se, para além do mais, de entendimento que o Tribunal Constitucional tem reiteradamente considerado conforme à Lei Fundamental, como se vê do acórdão n.º 91/2019 (proferido no processo 1080/18, em 6 de Fevereiro de 2019) porquanto, e como ali se refere, “(…) no que respeita à oportunidade da apresentação do pedido de apoio judiciário, tem reiteradamente entendido que o apoio judiciário tem sobretudo em vista evitar que qualquer pessoa, por insuficiência de meios económicos, veja impedido, condicionado ou dificultado o recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos, não podendo ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa, sendo essa a razão pela qual se tem considerado que não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão (cfr., entre outros, os acórdãos n.ºs 508/97, 308/99, 112/2001, 297/01, 590/2001 e 215/2012, para os quais remete a Decisão Sumária reclamada, todos acessíveis a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/, assim como a restante jurisprudência adiante citada)”.
Reiterou-se ainda, na mesma decisão, “(…) a jurisprudência deste Tribunal, firmada no Acórdão n.º 46/2010, no qual se decidiu não julgar inconstitucional a interpretação dos artigos 1.º, 6.º, n.º 2, 18.º, 29.º, n.º 5, 44.º, n.º 1, e 51.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, «no sentido de que o apoio judiciário apenas permite dispensar do pagamento de encargos com o processo originados após a sua concessão». Seguiu-se igualmente a conclusão a que aí se chegou de que a interpretação normativa segundo a qual o pedido de apoio judiciário, quando requerido já após a decisão final, não pode implicar um efeito retroativo em relação à atividade processual já tributada, não constitui violação da garantia de acesso aos tribunais, nos casos – como o do ora reclamante – em que a parte litiga sem suscitar a existência de dificuldades económicas e requeira a proteção jurídica apenas para se eximir ao pagamento de custas judiciais em que tenha sido condenada.”
Tendo-se por assente que é esta a correcta interpretação do regime em análise, coloca-se, contudo, a questão de saber se o mesmo entendimento é ainda válido para a situação dos autos, tendo em atenção a disciplina do artigo 248.º do CIRE, na redacção em vigor à data da instauração da presente acção.
Inscrevendo-se na tramitação do incidente de exoneração do passivo restante, sob a epígrafe “Apoio judiciário” (agora, e por efeito das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, a epígrafe é “custas”, alteração que cremos não inocente), dispunha o preceito agora convocado (na redacção que lhe fora dada pela Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho):
“1. O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.
4. O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.”
Previa assim (e prevê ainda) o n.º 1 da transcrita disposição legal que o devedor que apresentasse pedido de exoneração do passivo restante beneficiaria automaticamente do diferimento do pagamento das custas até à decisão final do incidente. Findo este com a concessão da exoneração, a lei, porém, fazia (e faz) recair sobre o insolvente a responsabilidade pelo pagamento das custas e reembolso das despesas suportadas pelo IGFEJ, na parte não coberta pela massa insolvente e rendimento disponível entregue ao fiduciário durante o período da cessão, prevendo-se no n.º 2 a aplicação automática do disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais, ou seja, a possibilidade do pagamento em prestações.
O n.º 4 do normativo em análise dispunha então que o benefício previsto no n.º 1 afastava a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono. Face ao assim preceituado, e numa interpretação literal do preceito, o STJ, em acórdão de 15/11/2012 (proferido no processo n.º 1617/11.3TBFLG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt), considerou que a norma em causa criava “para o devedor o benefício do diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo (n.º 1), benefício que afasta(va) a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor – que não a nomeação e pagamento de honorários a patrono (n.º 4)” (é nosso o destaque), entendimento seguido em diversos outros arestos.
Não obstante, tal interpretação do preceito cedo foi questionada do ponto de vista da sua conformidade à lei constitucional, e após reiteradas decisões do TC no sentido da sua inconstitucionalidade (acórdãos n.ºs 489/2020, 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020, 8/2021, 9/2021 e 10/2021, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), veio finalmente o acórdão n.º 418/2021 (in DR n.º 142/2021, série I de 23/07/2021) declarar, com força obrigatória geral, “a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, “na parte que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade da dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do pedido de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica”.
O juízo de desconformidade assentou na consideração de que um tal sentido normativo ofendia os princípios da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, com referência aos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, por comportar denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiência de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais, face aos requerentes da declaração de insolvência que não formulem idêntico pedido.
Com mais detalhe, considerou-se, na esteira dos acórdãos anteriores, que cita, que “a interpretação normativa efetuada pelo tribunal a quo do preceituado no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE oferece motivos de censura constitucional, pela desproteção – e decorrente afastamento material do acesso ao sistema de justiça – que acarreta para o devedor exonerado do passivo restante na parte não amparada pelo mecanismo do diferimento do pagamento das custas”.
Explicou-se então que “(…) a limitação à concessão do benefício do apoio judiciário mostra-se racionalmente justificada nos casos em que o devedor não se encontra obrigado a pagar qualquer taxa de justiça ou encargos, designadamente pela atuação do mecanismo de diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração passivo restante. Como é bom de ver, afastada a exigibilidade de qualquer pagamento a título de taxa de justiça ou encargos, o devedor que requeira simultaneamente a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante não carece do benefício do apoio judiciário nas modalidades em que a prestação consiste, justamente, na dispensa, total ou parcial, de tais pagamentos. A mesma solução preside, aliás, aos casos em que o legislador estabelece isenção de custas (artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais), relativamente aos quais não tem cabimento, por desnecessidade, a concessão ao interveniente processual isento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou pagamento faseado das custas. Permanece, apenas, a carência da modalidade de apoio judiciário tendo com objeto a representação forense, sem a qual estaria impedida de pleitear em juízo a parte desprovida de meios económicos, incluindo o pagamento pelo Estado dos respetivos honorários.
Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrador de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos dos artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.
Ora, decorrido o período de cessão, não existem garantias de que o devedor insolvente tenha melhorado substancialmente a sua capacidade de obter rendimentos, ao menos em termos equivalentes aos que legitimam, no âmbito do regime do apoio judiciário, o cancelamento da proteção jurídica e exigência ao beneficiário do pagamento de custas de que foi dispensado, integral ou parcialmente, a saber, a aquisição superveniente, pelo requerente ou respetivo agregado familiar, de «meios suficientes» para dispensar o benefício (artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 34/2004). Pelo contrário, o funcionamento do mecanismo de cedência, e a sua imputação nos termos estipulados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é de modo a fazer esperar que a condição de melhor fortuna permitirá extinguir pelo pagamento o remanescente da taxa de justiça e encargos da responsabilidade do devedor insolvente. Quanto tal não sucede, sendo parco ou inexistente o rendimento disponível suscetível de cessão (artigo 239.º, n.º 3), estamos, como os presentes autos ilustram, perante a manutenção de um quadro de baixos rendimentos, nos limites do razoavelmente necessário para sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i)]. Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.” (é nosso o destaque).
No que respeita à violação do princípio da igualdade, acentuou-se a discriminação operada pela solução legal, assim interpretada, “relativamente aos devedores que requeiram e vejam concedida a exoneração do passivo restante face aos demais devedores que não impulsionem esse instituto. Como referido supra, e assinalado na decisão recorrida, ao direito a obter uma decisão justa e equitativa para a tutela da respetiva posição jurídico-subjetiva de quem reúne os requisitos para uma tal libertação patrimonial, associa o legislador, em caso de insuficiência da massa insolvente, a permanência da responsabilidade por custas e encargos dessa categoria de devedores, impondo-lhes, mesmo em caso de insuficiência económica (no quadro dos critérios legais que definem o que deve entender-se por tal insuficiência), o pagamento dessas quantias e correspondente sacrifício patrimonial. Diferentemente, os demais devedores decretados insolventes, que escolham não requerer o benefício da exoneração do passivo restante ou não reúnam os respetivos pressupostos, nunca são chamados a suportar qualquer montante, a título de custas e encargos, as quais recaem unicamente sobre a massa insolvente (artigos 51.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 304.º do CIRE), qualquer que seja a evolução do respetivo património nos anos subsequentes ao decretamento da insolvência. Opera-se, pois, na norma em exame, uma desvantagem infundada dos requerentes da exoneração do passivo restante, onerados por presunção de capacidade económica que não têm meios de ilidir através do instituto do apoio judiciário, diferenciação que se tem como ofensiva da proibição das discriminações com base nas categorias subjetivas contidas no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, na vertente da proibição de discriminação fundada na situação económica do sujeito.» (é nosso o destaque).
É certo que o acórdão agora parcialmente transcrito, rejeitando que o benefício previsto no n.º 1 afastasse a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, declarando a inconstitucionalidade do n.º 4 do preceito quando assim interpretado, não se pronunciou expressamente sobre a oportunidade de formulação de tal pedido, designadamente, para o que aqui releva, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos com o processo no que respeita aos devedores que o não tivessem anteriormente requerido, antes versando sobre situação em que o devedor, ao que resulta do aresto, tinha antes requerido o apoio judiciário na referida modalidade, benefício que lhe fora atribuído[4]. Todavia, e reponderando a nossa anterior posição, afigura-se que, dada a especialidade do regime consagrado no artigo 248.º do CIRE e a finalidade, acentuada pelo TC, da exoneração do passivo restante, deverá ser permitido ao devedor que solicite a concessão do apoio judiciário após a prolação da decisão final no incidente. Vejamos:
Conforme é sabido, a exoneração do passivo é um mecanismo inovador que visa proporcionar ao insolvente pessoa singular a extinção dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no âmbito do processo ou durante o período, inicialmente de 5 anos, agora de 3, por força da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, posterior ao encerramento do mesmo, concedendo ao devedor de boa fé uma oportunidade de reabilitação financeira através da libertação do passivo não satisfeito, proporcionando-lhe dessa forma um “fresh start”.
No caso que nos ocupa o requerente, conformando-se com a solução vigente, tendo-se apresentado à insolvência em Março de 2018, não pediu previamente a concessão do benefício de apoio judiciário, nomeadamente na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos que viesse a ter com os autos, por ter considerado, como resulta evidente da expressa invocação que fez do regime do n.º 4 do artigo 248.º, que lhe estava vedada tal possibilidade.
Terminado o período de cessão, foi proferida decisão em 12 Janeiro de 2023 concedendo ao agora recorrente a exoneração do passivo restante, mas fazendo recair sobre ele, nos termos do n.º 1 do artigo 248.º, o pagamento das custas e encargos não satisfeitos pelas forças da massa e rendimento entretanto cedido à fidúcia, e que vieram a ser liquidados em € 3.465,99. Notificado, o agora recorrente requereu então, e só então, junto do ISS o benefício do apoio judiciário na referida modalidade, que lhe foi deferido, dispensa que foi considerada pelo Tribunal.
Dissente, como vimos, a D. recorrente que pretende aplicável o regime geral do apoio judiciário, designadamente o seu artigo 18.º, assim impondo que o devedor o tivesse requerido com a sua primeira intervenção no processo. Ocorre, porém, que atento o regime consagrado no n.º 4 do artigo 248.º, e segundo a interpretação literal do mesmo adoptada em diversas decisões, tal não lhe era permitido, uma vez que pediu também a exoneração do passivo restante, impedimento que só cessava com a decisão final do incidente.
A especialidade da solução legal, quando confrontada com o regime geral consagrado na LAJ, surge, deste modo, evidente, uma vez que é a própria lei que permite ao devedor litigar sem satisfazer quaisquer tributos, como que presumindo – de facto – a sua situação de insuficiência económica, dispensando-o, portanto, de formular pedido de apoio judiciário nos termos gerais e impedindo-o mesmo de o fazer, na sua formulação inicial. Deste modo, ainda que o devedor beneficiasse de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos previamente deferido pelo ISS, não seria este o fundamento de lhe não serem exigidos, vigorando antes o diferimento concedido pelo n.º 1 do artigo 248.º. Daí que, mesmo nos arestos onde se afastou a interpretação literal do n.º 4 do preceito, se afirme que durante a tramitação do incidente valeria o regime especial consagrado no n.º 1, e só após a decisão final passariam a “valer na sua plenitude” as modalidades do apoio judiciário afastadas (cfr., neste preciso sentido, o paradigmático acórdão deste mesmo TRE de 23 de Abril de 2020, proferido no processo n.º 3030/19.5T8STB.E1)[5], ou seja, funcionando então e apenas para dispensar a cobrança das quantias cuja exigibilidade fora diferida.
Acresce que um outro argumento favorável à decisão recorrida poderá ainda, em nosso entender, extrair-se dos fundamentos que conduziram ao declarado juízo de inconstitucionalidade.
Conforme resulta do acórdão proferido pelo TC, não pode deixar de se ter em consideração a finalidade prosseguida com a exoneração do passivo restante: a reabilitação do devedor, facultando-lhe um recomeço com saldo zero. Ora, num caso como o dos autos, em que a situação financeira do recorrente lhe teria claramente permitido obter apoio judiciário na modalidade agora atribuída, caso lhe fosse permitido requerê-lo – o que o preceito, numa interpretação literal, não parece demais repeti-lo, não permitia, o que conduziu ao juízo de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e sua subsequente eliminação pela Lei n.º 9/2022 – e sendo evidente que, decorrido o período de cessão, a sua capacidade financeira não registou melhorias significativas, o que resulta evidenciado pela insignificância do rendimento disponível cedido à fidúcia e pelo facto de o apoio ter sido efectivamente concedido pelo ISS, o cancelamento da protecção jurídica concedida e consequente exigência do pagamento de custas de que fora dispensado, significa “recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos» (do Ac. do TC n.º 418/2021).
Em conclusão, e tal como se considerou no acórdão do TRP de 24/9/2020 (processo 1752/11.8TBSTS.PP1, também disponível em www.dgsi.pt), se, em regra “o deferimento do benefício da proteção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, numa fase em que tenha sido proferida decisão definitiva, restando apenas o pagamento das custas, deverá considerar-se irrelevante, na medida em que em tais situações se cumpriu já o desiderato enunciado no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 34/2004, de 29.07 – acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva – sem que à parte tenha sido vedado o exercício dos seus direitos por razões de insuficiência económica”, tal regra não se aplica à situação excecional do incidente de insolvência com pedido de exoneração do passivo restante, “impondo a realização do princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva, conjugado com o princípio da igualdade, uma leitura do artigo 248.º do CIRE, no sentido de limitar temporalmente o impedimento previsto no n.º 4 do citado normativo, viabilizando o acesso por parte do insolvente ao regime geral previsto na Lei n.º 34/2004, de 29.07, logo que finde a tramitação do incidente”.
Improcedentes os fundamentos do recurso, impõe-se confirmar a decisão recorrida.
*

III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Não há lugar a custas.
*
Sumário: (…)
*
Évora, 8 de Fevereiro de 2024
Juiz Desembargadora Relatora
Maria Domingas Alves Simões
Juiz Desembargador 1.º Adjunto
Rui Manuel Machado e Moura
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Vencida, mantendo a posição assumida no acórdão deste mesmo TRE, proferido em 30/3/2023, no processo n.º 988/18.5T8OLH.E1.
__________________________________________________
[1] Desembargadores Adjuntos:
1.ª Desembargador Adjunto – Dr. Rui Manuel Machado e Moura;
2.ª Desembargadora – Dr.ª Isabel Peixoto Imaginário.
[2] Do acórdão do TC n.º 8/2021, processo n.º 863/18.
[3] Epigrafado de “Pedido de apoio judiciário”, é o seguinte o seu teor:
“1 - O apoio judiciário é concedido independentemente da posição processual que o requerente ocupe na causa e do facto de ter sido já concedido à parte contrária.
2 - O apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica.
3 - Se se verificar insuficiência económica superveniente, suspende-se o prazo para pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo até à decisão definitiva do pedido de apoio judiciário, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 24.º.
4 - O apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso.
5 - O apoio judiciário mantém-se ainda para as execuções fundadas em sentença proferida em processo em que essa concessão se tenha verificado.
6 - Declarada a incompetência do tribunal, mantém-se, todavia, a concessão do apoio judiciário, devendo a decisão definitiva ser notificada ao patrono para este se pronunciar sobre a manutenção ou escusa do patrocínio.
7 - No caso de o processo ser desapensado por decisão com trânsito em julgado, o apoio concedido manter-se-á, juntando-se oficiosamente ao processo desapensado certidão da decisão que o concedeu, sem prejuízo do disposto na parte final do número anterior”.
[4] Caso semelhante aos que foram objecto dos acórdãos deste TRE proferidos nos processos 1780/13.9TBOLH.E1 e 3030/19.5T8STB.E1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Assim sumariado:
“I – O n.º 1 do artigo 248.º do CIRE regula o período temporal entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final proferida sobre tal pedido, pelo que o disposto no n.º 4 desse artigo, que expressamente remete para o benefício concedido no seu n.º 1, apenas se pode reportar a esse mesmo período temporal.
II – Assim, a partir do momento em que é proferida decisão final, deixa de vigorar tal benefício e, em consequência, as modalidades do regime de apoio judiciário que tinham sido afastadas voltam a valer na sua plenitude.
III – Qualquer outra interpretação, para além de não ter assento na letra da lei, implicaria uma flagrante violação do princípio constitucional da igualdade no acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20.º, n.º 1, da CRP), uma vez que comprometeria a possibilidade de acesso ao direito e aos tribunais em virtude, exclusivamente, da situação económica dos requerentes / devedores de exoneração do passivo restante, sendo incompreensível e injustificável tal discriminação.
IV – Efectivamente, o âmbito de aplicação do disposto no artigo 248.º, nºs. 1 e 4, do CIRE não colide com o disposto no artigo 17.º da Lei n.º 34/2004, de 29-07, pelo que o insolvente que requereu a exoneração do passivo restante beneficia, após a prolação da decisão final sobre tal requerimento, do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos, desde que o mesmo lhe tenha sido concedido e os respectivos pressupostos se mantenham”.