Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
41/08.0GACVD-A.E1
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: RECLAMAÇÃO
CORRECÇÃO DA DECISÃO
INÍCIO DO PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 06/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Área Temática: PROCESSO PENAL
Sumário:
1. A consagração constitucional do direito ao recurso pressupõe que o processo esteja estruturado de forma a permitir o seu efectivo exercício, ficando o Estado vinculado a criar as normas procedimentais necessárias para o efeito, incluindo, desde logo, uma regra clara de fixação do termo inicial do prazo para a interposição de recurso nos casos em que é requerida uma aclaração ou correcção da sentença.
2. O recorrente para exercer, efectivamente, o seu direito ao recurso tem de ter conhecimento da decisão consolidada, ou seja tem de ter conhecimento da decisão que recaiu sobre o pedido de correcção, que é complemento e parte integrante da primeira decisão.
3. Os princípios estruturantes do processo penal, da segurança jurídica e do efectivo direito ao recurso, impõem que não se recorra às normas do Código de Processo Civil, referentes ao regime de arguição dos vícios e da reforma da sentença, mormente ao disposto no nº 3 do art. 670º do Código de Processo Civil.
4. Quando seja requerida, ao abrigo do art. 380º do Código de Processo Penal, a correcção de sentença ou despacho o prazo para interpor recurso, por qualquer sujeito processual, só começa a correr a partir da notificação da decisão consolidada, ou seja da decisão que recaiu sobre o pedido de correcção.
Decisão Texto Integral:
No Tribunal Judicial da Comarca de Castelo de Vide correm uns autos de inquérito (actos jurisdicionais) em que é assistente C. e arguido J.
Nesses autos, foi proferido despacho que não admitiu J. a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Esta decisão, datada de 27/09/2010, foi notificada aos mandatários dos sujeitos processuais, por via postal, expedida em 23/09/2010.
O ofendido J., veio requerer, ao abrigo do art. 380º do Código de Processo Penal, a correcção do despacho, com o fundamento em obscuridade e ambiguidade.
Tal requerimento foi indeferido por despacho datado de 22/10/2010, notificado aos mandatários dos sujeitos processuais, por via postal, em 25/10/2010.
Inconformado, J. veio interpor recurso em 17/11/2010, via fax, recurso esse que não foi admitido por intempestividade.
É deste despacho de que se reclama, nos termos do art.405º do Código de Processo Penal, com o fundamento que o recurso é tempestivo.
Foi ordenada a subida dos autos de reclamação a este Tribunal da Relação de Évora.
Uma vez que a reclamação se mostra instruída com todos os elementos relevantes para a sua decisão cumpre apreciar e decidir:
O art. 405º nº1 do Código de Processo Penal, estatui que: “ Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige”.
O art. 380º do Código de Processo Penal permite em certas circunstâncias a correcção da sentença e outros actos decisórios. [1]
Este regime do Código do Processo Penal apresenta semelhanças com o regime previsto no Código de Processo Civil, nos art. 667º (rectificação de erros materiais) e 669º (esclarecimento ou reforma da sentença).
No entanto, apesar do Código de Processo Penal, permitir esta possibilidade, não contém uma norma semelhante ao nº1 do art. 686º do Código de Processo Civil, na versão anterior ao DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, que dispunha que se alguma das partes requerer a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, nos termos do artigo 667º e do nº1 do art. 669º, o prazo para o recurso só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento.
Não existindo no processo penal norma semelhante, era meu entendimento que estávamos perante uma lacuna que urgia integrar, pois tratava-se de um aspecto, que pela sua relevância no plano dos direitos e garantias de quem recorre, devia estar juridicamente regulado.
Na verdade, vinha defendendo que o princípio da segurança jurídica impunha que, no processo penal, ainda com mais acuidade que no processo civil, nas situações em que alguma da partes requeresse a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, deveria de existir regulamentação acerca de quando começa a correr o prazo para interpor recurso.
Assim, perante tal omissão do processo penal e não se encontrando reunidos os pressupostos para o recurso à analogia, teríamos de nos socorrer, nos termos do disposto no art. 4º do Código de Processo Penal,[2] da referida disposição do Código de Processo Civil (art. 686º nº1).
Nesta linha, vinha defendendo que nos casos em que seja requerida a correcção da sentença ou de outro acto decisório, nos termos do art. 380º do CPP, o prazo para interpor recurso só começava a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento, nos termos do art. 686º nº1 do CPC, aplicável “ex vi” do art. 4º do CPP.[3]
Mesmo nas situações em que o requerimento viesse a ser indeferido, por não se enquadrar na previsão do art. 380º do CPP, devia ser seguida a mesma regra por imposição do aludido princípio da segurança jurídica.
Esta posição tinha por fundamento que se trata de matéria que colide com as garantias do processo criminal, que têm assento na própria Constituição da República Portuguesa[4], justificando-se que haja uma cedência do princípio da celeridade perante a integral e efectiva garantia do direito de defesa incluindo o recurso.
Acontece que o art. 686º do Código de Processo Civil foi revogado pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, pelo que deixou de ser aplicável aos processos entrados a partir de 1 de Janeiro de 2008, por força do art. 11º nº1 do citado diploma.
O DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, alterou, em sede de processo civil, a revisão do regime de arguição dos vícios e da reforma da sentença, ao determinar que, cabendo recurso da decisão, a rectificação, o esclarecimento ou reforma deve ser feito na respectiva alegação.
Esta alteração determinou a possibilidade de uma nova fase de novo contraditório, pois o recurso pendente pode passar a ter por objecto uma decisão com um novo alcance, daí que o nº3 do art. 670º disponha que o recurso que tenha sido interposto fica a ter por objecto a nova decisão podendo o recorrente, no prazo de dez dias, dele desistir, alargar ou restringir o respectivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida, e o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo.
Deverá este regime ser aplicável subsidiariamente ao processo penal, por força do art. 4º do Código de Processo Penal, que estatui que nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal?
Será que este novo regime do processo civil, visando sobretudo a celeridade processual, se harmoniza com o processo penal de forma a poder ser aplicado subsidiariamente?
O direito ao recurso, incluído entre as garantias de defesa em matéria penal, tem consagração constitucional, o que significa que o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição (art. 32, nº1 da Constituição da República Portuguesa).
A consagração constitucional do direito ao recurso pressupõe que o processo esteja estruturado de forma a permitir o seu efectivo exercício, ficando o Estado vinculado a criar as normas procedimentais necessárias para o efeito, incluindo, desde logo, uma regra clara de fixação do termo inicial do prazo para a interposição de recurso nos casos em que é requerida uma aclaração ou correcção da sentença.
Na verdade, a disciplina dos prazos em processo penal atinge uma grande intensidade por ponderosas razões de segurança e de certezas jurídicas, podendo qualquer falta de clareza da lei comprometer o efectivo exercício do direito ao recurso.
Por outro lado, o recorrente para exercer, efectivamente, o seu direito ao recurso tem de ter conhecimento da decisão consolidada, ou seja tem de ter conhecimento da decisão que recaiu sobre o pedido de correcção, que é complemento e parte integrante da primeira decisão.
O resultado da decisão que incidiu sobre o pedido de correcção, qualquer que seja o seu sentido, condiciona o efectivo exercício do direito ao recurso, pois só o cabal conhecimento da mesma permite vislumbrar o real alcance da decisão de que se pretende recorrer, ficando então o recorrente na posse de todos os dados para poder construir a sua defesa.
Nos casos de alegada obscuridade e ambiguidade da decisão recorrida a questão assume ainda maior acuidade, pois o recorrente pode defrontar-se com uma grande dificuldade de compreender o conteúdo da decisão de que pretende recorrer, o que pode inviabilizar o objecto do recurso.
A efectividade do direito ao recurso pressupõe que o recorrente tenha a possibilidade de poder analisar e avaliar toda a fundamentação da decisão consolidada, de modo a permitir-lhe o consciente exercício do seu direito.
Nesta linha, parece-me que os princípios estruturantes do processo penal, da segurança jurídica e do efectivo direito ao recurso, impõem que não se recorra às normas do Código de Processo Civil, referentes ao regime de arguição dos vícios e da reforma da sentença, mormente ao disposto no nº 3 do art. 670º do Código de Processo Civil.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº1, da Constituição, a interpretação do artigo 380º, em conjugação com o artigo 411º, nº1, ambos do Código de Processo Penal, segundo a qual o pedido de correcção de uma decisão, formulado pelo arguido, não suspende o prazo para este interpor recurso dessa mesma decisão.[5]
A fundamentação desta decisão do Tribunal Constitucional estriba-se precisamente no principio da segurança jurídica no que diz respeito à disciplina dos prazos processuais e na efectividade do direito ao recurso, que pressupõe o cabal conhecimento do real alcance da decisão recorrida, o que só é possível após o conhecimento da decisão que incidiu sob o pedido de correcção.
As razões invocadas pelo Tribunal Constitucional para chegar à referida conclusão, quando o pedido de correcção é formulado pelo arguido, são a meu ver válidas para todos os outros sujeitos processuais, sob pena de se admitir a existência de um regime que comporta prazos diferentes para interposição de recursos consoante a qualidade do recorrente, o que seria absolutamente indesejável em termos de segurança jurídica.
Assim, os princípios da segurança jurídica e do efectivo direito ao recurso impõem que, em sede de processo penal, o prazo para a interposição do recurso se conte a partir da notificação da decisão consolidada, ou seja da decisão que recaiu sobre o pedido de correcção.
No caso concreto, tendo o ora reclamante sido notificado, por via postal, em 25/10/2010, do despacho que incidiu sobre o pedido de correcção, temos de concluir que o recurso interposto, via fax, em 17/11/2010, estará em tempo.
Nestes termos, defiro a reclamação e revogo o despacho reclamado, que deverá ser substituído por outro que a determine a admissão do recurso, se não houver qualquer outro fundamento para a sua rejeição.
Sem custas.
( Processado e revisto pelo subscritor que assina e rubrica as restantes folhas).
Évora, 2011/06/09
Chambel Mourisco

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[1] Esta disposição legal dispõe que:
O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374º;
A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
[2] O art. 4º do Código de Processo Penal dispõe que nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizam com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais de processo penal.
[3] Neste mesmo sentido cfr. os Ac. do TRP – em www.dgsi.pt/jtrp, de 20/4/2005, e TRL de 12/5/1993, in CJ , Ano XVIII – 1993, Tomo III, pág. 160.
[4] Cfr. art. 32º da CRP.
[5] Acórdão nº 16/2010, Processo nº 142/09, publicado no DR nº 36, II série, de 22/2//2010.