Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
80/20.5PACTX.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: PROCESSO SUMARISSIMO
REJEIÇÃO
IRRECORRIBILIDADE
REMESSA PARA OUTRA FORMA PROCESSUAL
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No processo sumaríssimo o despacho judicial de rejeição do requerimento do MP, por um dos fundamentos das alíneas a) a c) do artigo 395.º, n.º 1 do CPP, é insuscetível de recurso, por força do disposto no seu n.º 4, ficando, em consequência, esgotado o poder jurisdicional do Juiz.
II. O fundamento da inadmissibilidade do recurso prende-se com razões de celeridade e com a circunstância de o requerimento rejeitado dever ser reenviado, pelo próprio Juiz, para a forma processual que lhe caiba, prosseguindo os autos os seus termos, pois o requerimento do MP equivale, em todos os casos, à acusação (artigo 395.º, n.º 3 do CPP).
III. Não sendo admissível o recurso do despacho de rejeição do requerimento apresentado pelo MP, com fundamento (bem ou mal) na alínea a) do artigo 395.º, n.º 1 do CPP, é também inadmissível o recurso do despacho de manutenção daquela decisão de rejeição, caso contrário estaria encontrada a forma de contornar o disposto no n.º 4 do artigo 395.º do CPP.
IV. Tendo o juiz, todavia, remetido o processo para o MP, ao invés de o reenviar para a forma processual competente, como imposto pelo corpo do n.º 1 do artigo 395.º do CPP, ocorre uma irregularidade processual.
V. A irregularidade cometida deve ser reparada oficiosamente, por força do artigo 123.º, n.º 2 do CPP, porquanto a remessa para o MP afeta o valor do ato praticado e determina a sua invalidade, impondo-se, no caso, determinar o prosseguimento dos autos sob a forma de processo comum.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da fase de inquérito
No Inquérito n.º 84/20.5PACTX que correu termos na Comarca de Santarém, secção do Cartaxo a “AAA”, participou criminalmente da suspeita BB. Referiu, em síntese, que esta tinha procedido a uma ligação direta da rede pública de distribuição de energia elétrica a instalação particular e manifestou, também, a intenção de deduzir pedido civil.
Findo o inquérito foi deduzida acusação em processo sumaríssimo contra a arguida BB pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 do CP. Dando cumprimento ao disposto no artigo 394.º do CPP, o MP identificou a arguida, descreveu os factos imputados, mencionou as disposições legais violadas e a prova existente, e referiu o seguinte:
“ESTATUTO PROCESSUAL DA ARGUIDA:
Promove-se que a arguida aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às obrigações decorrentes da prestação do T.I.R. - Termo de Identidade e Residência, já prestado a fls. 85, medida que se reputa, por ora, de adequada e proporcional a garantir as necessidades cautelares que se verificam no caso em apreço – cf. artigos 191.º, 192.º, 193.º, n.º 1, 196.º e 204.º, a contrario, todos do CPP.
I) Razões que justificam a não aplicação de pena de prisão:
O processo sumaríssimo – forma de processo (especial) que visa a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança não privativas de liberdade – tem lugar sempre que se verifiquem os dois pressupostos contemplados no artigo 392.º, n.º 1, do CPP, a saber:
i) - a) crime punível com pena de prisão não superior a cinco anos; ou
i) - b) crime punível só com pena de multa; e
ii) - que o Ministério Público entenda que ao caso deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativa de liberdade.
O crime de furto simples é punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, a que corresponde uma pena de prisão até 3 anos ou uma pena de multa de 10 a 360 dias.
Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que, quando, como é o caso, forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve dar-se preferência a esta última sempre que realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por outro lado, o artigo 70.º do Código Penal dispõe que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o Tribunal dará preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, as quais, nos termos do artigo 40.º/1 do Código Penal, residem, por um lado, na reintegração do agente na sociedade e, por outro, na protecção dos bens jurídicos, sendo certo que, de acordo com o consagrado no n.º 2 deste último preceito, a pena tem sempre como limite a medida da culpa.
Quer dizer, a preferência do Tribunal pela aplicação de pena não privativa de liberdade fundamenta-se nas necessidades concretas de prevenção especial –ressocialização do arguido –, e nas necessidades de prevenção geral ou de garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.
No que concerne às necessidades de prevenção geral, as mesmas mostram-se muito prementes, atento o bem jurídico tutelado pela incriminação.
No entanto, afigura-se-nos que o presente caso não comporta, por manifesto desajustamento e desproporcionalidade, a aplicação de pena de prisão.
Na verdade, a pena de multa assegura suficientemente as necessidades de prevenção especial, ou seja, de ressocialização da arguida, sendo de realçar, a esse propósito, o facto de a arguida não possuir antecedentes criminais (fls. 95).
II - Dosimetria da pena de multa a aplicar:
Quanto à medida concreta da pena, partir-se-á da moldura penal abstracta da pena de multa para o crime de furto simples - que é de 10 a 360 dias de multa – e atender-se-á ao disposto no artigo 71.º do Código Penal.
Assim, ter-se-á em conta a ilicitude dos factos (atento o valor de energia eléctrica de que a arguida se apropriou e o tempo que manteve o seu comportamento), o dolo intenso (directo), as elevadas necessidades de prevenção geral (pois são incontáveis as condenações diárias dos tribunais portugueses nesta matéria) e as medianas exigências prevenção especial, face à inexistência de antecedentes criminais da arguida, por um lado, e aos seus exíguos rendimentos, por outro.
Nestes termos, sopesados que foram todos os critérios legais de determinação da medida da pena, entendemos ser de aplicar à arguida uma pena de multa de 100 (cem) dias.
Quanto ao quantitativo diário da multa, este deve ser fixado entre €5,00 e €500,00, de acordo com a “situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais” (artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal).
No caso, conforme flui da pesquisa do ISS, a arguida aufere uma pensão mensal no valor de €537,32.
O montante diário da multa terá de ser proporcional ao seu rendimento disponível, para se reflectir neste, pelo que se entende ser adequada a sua fixação em €5,50 (cinco e cinquenta euros).
Pelo exposto, propõe-se, nos termos do artigo 394.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a aplicação à arguida BB da pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €5,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), no valor global de €550,00 (quinhentos e cinquenta euros), sem prejuízo da arguida, caso assim o entenda, poder vir a requerer o pagamento dessa multa em prestações ou a sua substituição por trabalho a favor da comunidade.
Em caso de falta de pagamento da pena de multa, voluntário ou coercivo, a referida pena é convertível em 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal.
III - Quantia a atribuir a título de reparação:
A AAA manifestou desejo de ser ressarcida dos prejuízos patrimoniais por si sofridos em consequência da conduta do arguido – fls. 6 (verso).
Ora, a indemnização por perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos (cfr. o disposto no artigo 129.º, do Código Penal), sendo que a nível processual é regulada pela lei processual penal.
Para existir responsabilidade civil do agente mostra-se necessário verificar do preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, designadamente, da existência de um facto (voluntário) do lesante, da ilicitude do facto, do nexo de imputação do facto ao lesante, da existência de dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso sub judice, a responsabilidade civil do arguido baseia-se na prática de um crime de furto donde resultaram, para a AAA, os prejuízos referidos na acusação.
Pelo exposto, e uma vez que dos autos resulta a existência de um facto ilícito e culposo praticado pela arguida, da existência de danos patrimoniais sofridos pela AAA, bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito cometido pelo arguido e o dano sofrido pela AAA (cfr. artigo 563.º, n.º 1, do Código Civil), considera-se justo determinar o pagamento pela arguida BB o montante global de €1.800,62 (mil, oitocentos euros e sessenta e dois cêntimos), a título de reparação, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento, nos termos dos artigos 393.º, n.º 2, e 394.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código de Processo Penal. (…) remeta de imediato os autos a juízo.”.

2. Da 1.ª decisão do Tribunal a quo
Remetido o inquérito ao Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do Cartaxo, em 8.9.2021, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:
“No âmbito dos presentes autos, em que é arguido BB, o Ministério Público vem requerer a aplicação, em processo sumaríssimo, de uma pena de 100 dias de multa, pela prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
Além disso, o Ministério Público deduz pedido de indemnização civil a favor da ofendida AAA., por entender que estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil, contidos no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, considerando justo determinar o pagamento pela arguida BB o montante global de €1.800,62, a título de reparação, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento, nos termos dos artigos 393.º, n.º 2, e 394.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
No que concerne à formulação de pedido de indemnização civil no âmbito do processo sumaríssimo regem os artigos 393.º, n.º 2, 394.º, n.º 1, alínea b), e 82.º-A, todos do Código de Processo Penal.
No primeiro, decorrente da impossibilidade de intervenção de partes civis, determina-se que «Até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público referido no artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos, caso em que aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º».
Por seu turno, o artigo 394.º, n.º 1, alínea b), estabelece que «O requerimento termina com a indicação precisa pelo Ministério Público (…) b) Da quantia exacta a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado».
Finalmente, o artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, preceitua que «Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham».
Destes preceitos decorre que a atribuição de uma indemnização, no âmbito do processo sumaríssimo, depende do preenchimento cumulativo de três requisitos:
- que o lesado manifeste a intenção de obter a reparação dos danos sofridos (artigo 393.º, n.º 2);
- que o requerimento apresentado pelo Ministério Público termine com a indicação da quantia exacta a atribuir a título de reparação (artigo 394.º, n.º 1, alínea b));
- e que particulares exigências de protecção da vítima imponham o arbitramento da indemnização (artigo 82.º-A, para o qual remete a parte final do artigo 394.º, n.º 1, alínea b)).
No caso concreto, embora a ofendida tenha manifestado que pretende uma indemnização e o Ministério Público tenha referido a quantia que entende dever ser arbitrada, considerados os contornos do caso, afigura-se não existiram particulares exigências de protecção da vítima que justifiquem que oficiosamente o Tribunal proceda ao arbitramento de uma indemnização, como exigido pelo artigo 82.º-A.
As particulares exigências de protecção prendem-se com as condições em que a vítima se encontra em consequência dos danos sofridos com o crime, tornando imperioso que lhe seja arbitrada uma indemnização oficiosamente. Ora, nos presentes autos, a vítima não se encontra numa situação precária, ou com graves dificuldades por causa dos factos alegadamente praticados pelo arguido.
Assim, não está preenchido o terceiro pressuposto do arbitramento de uma indemnização no âmbito dos presentes autos, pelo que não é legalmente admissível o procedimento – artigo 395.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, rejeita-se o requerimento apresentado pelo Ministério Público e, em consequência, determina-se o reenvio do processo ao Ministério Público, para tramitação sob a forma processual adequada.”.



3. Do requerimento do Ministério Público
Em 20.9.2021 o MP apresentou em juízo um requerimento com o seguinte teor:
“O Ministério Público junto deste Tribunal, tendo sido notificado em 15-09-2021, nos autos epigrafados, do despacho proferido em 08-09-2021, que rejeitou o requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo, vem alegar e arguir a sua irregularidade, nos termos conjugados dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, doravante CPP, em conjugação com o disposto no artigo 393.º, n.º 2, e 395.º, n.º 1, do mesmo diploma, o que faz com os seguintes fundamentos:
1.º Por despacho proferido a 08-09-2021, com fundamento no disposto no artigo 395.º, n.º 1, alínea a) do CPP, foi rejeitado o requerimento para julgamento em processo especial sumaríssimo, com fundamento em ter sido arbitrada quantia indemnizatória a lesado, relativamente ao qual não se vislumbram especiais e particulares exigência de prevenção, na medida em que a Mma. Juiz entendeu que tal reparação estaria reservada somente às situações constantes do artigo 82.º-A do CP.
2.º Reza o artigo 395.º do CPP que: “…1 - O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba:
a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento;
b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 311.º;
c) Quando entender que a sanção proposta é manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. (…)
4 - Do despacho a que se refere o n.º 1 não há recurso.”
3. º Como assim, os fundamentos invocados em tal despacho não se enquadram em nenhuma das alíneas previstas no n.º 1 do supra citado artigo, nomeadamente na alínea a), a qual se entende reservada para os casos em que o procedimento criminal é inadmissível, designadamente por não estarem preenchidos os requisitos constantes do artigo 392.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, por inexistir quando exigível ou o procedimento estar prescrito.
4.º De facto, o simples facto de se entender não haver lugar, neste caso, à reparação civil, não poderia ser fundamento de rejeição do requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo.
5.º Quanto muito, o que não se concede, como infra se exporá, haveria de decidir pela remessa da lesada para os meios civis, nos termos do disposto no artigo 82.º, n. º 3, e artigo 72.º, n. º 1, alínea e), ambos do CPP.
6.ºAdemais, também não pode o Ministério Público conformar-se com a não admissão, em processo especial sumaríssimo, do arbitramento de reparação civil a lesado que não se enquadre nas circunstâncias previstas no artigo 82.º-A do CPP.
7.º Na medida em que tal possibilidade resulta da leitura conjugada do artigo 393.º, n.º 2, com o artigo 394.º, ambos do CPP, no sentido de que (art. 393.º do CPP, na redação dada pela Lei 26/2010, de 30/08), “…. 2 - Até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público referido no artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos, caso em que aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º , isto é, (art. 394.º, n.º2 do CP), “…b) Da quantia exata a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado.” (sublinhado e negrito nosso)
8.º Note-se que o artigo 393.º, n.º 2, do CPP não remete na íntegra para o disposto no artigo 394.º, n.º 2, alínea b) do CP, mas sim para a “indicação” aí prevista, mais concretamente a menção à quantia exata.
9.º Na redação dada pela Lei 48/2007, de 29/09 aos artigos 393.º, n.º 2, e 394.º, n.º 2, alínea b), ambos do CPP apenas poderia ser atribuída indemnização, em processo especial sumaríssimo, nos termos do disposto artigo 82.º-A do CPP.
10.º Porém, com a entrada em vigor da Lei 26/2010, de 30/08, foi alterada a redacção do n.º 2 do artigo 393.º do Código de Processo Penal, que passou a ter a redacção acima transcrita e hoje legalmente em vigor.
11.º De facto, com a Lei 26/2010, de 30/08 o legislador pretendeu permitir a todos os lesados a possibilidade de requerer que lhes seja arbitrada uma quantia a título de reparação, em processo especial sumaríssimo, desde que o requeiram expressamente, e não apenas nos casos previstos no artigo 82.º-A do CPP.
12.º Interpretação que é corroborada pelas exposições de motivos subjacentes a aprovação de tal lei, nomeadamente no Projeto de Lei n.º 178/XI-1ª, apresentado pelo grupo parlamentar do PCP, que propõe, no processo especial sumaríssimo, a “…3 – possibilidade de reparação dos danos sofridos pelo lesado a pedido deste”, e no Projeto de Lei n.º 173/XI apresentado pelo grupo parlamentar do CDS-PP (ponto 6.2, alínea e)), que propõe a “… Consagração da possibilidade de o Ministério Público propor um montante indemnizatório a ser arbitrado oficiosamente pelo tribunal em julgamento, sempre que haja manifestação de vontade de dedução de pedido cível por parte do lesado e haja admissão pelo arguido dos factos típicos imputados – em consequência, o artigo 393º é alterado, passando a remeter para a alínea b) do nº 2 do artigo 394º, e não para o artigo 82º-A;”
13.º Por conseguinte, teremos que concluir que foi indevidamente rejeitado o requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo ao arguido, porquanto o mesmo apenas poderia ter lugar nas situações elencadas nas alíneas a), b) ou c) do número 2 do artigo 395.º do CPP.
14.º A lei adjectiva penal consagrou em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – n.ºs 1 e 2 do artigo 118. ° do CPP.
15.º Assim, verificam-se as irregularidades supra enunciadas no despacho proferido a 08-09-2021, as quais expressamente se invocam, nos termos previstos no artigo 123.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
Assim, nos termos conjugados dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, doravante CPP, em conjugação com o disposto no artigo 393.º, n.º 2, e 395.º, n.º 1, do mesmo diploma, requer-se a V. Ex.ª se digne declarar as supra invocadas irregularidades do despacho proferido em 08-09-2021, procedendo à sua reparação, daí retirando as demais consequências processuais, como seja a admissão do requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo nos precisos termos em que foi requerido pelo Ministério Público.”.


4. Da 2.ª decisão do Tribunal a quo
Na sequência do requerimento apresentado pelo MP o Tribunal a quo, em 24.9.2021, proferiu o seguinte despacho:
“Das irregularidades arguidas pelo Ministério Público
I. Na sequência do despacho de rejeição do requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo, o Ministério Público veio arguir a existência de duas irregularidades, nomeadamente:
- que no âmbito do processo sumaríssimo é admissível a dedução de pedido de indemnização civil, por parte do Ministério Público, independentemente de estarem preenchidos os pressupostos mencionados no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal;
- que, mesmo que assim não fosse, na hipótese de, no caso concreto, não estarem verificados os requisitos previstos no artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, o Tribunal poderia quando muito remeter aquele pedido para os meios comuns, ao invés de rejeitar o requerimento com base no artigo 395.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
A arguição das irregularidades é tempestiva - artigo 123., n.º 1, do Código de Processo Penal -, pelo que cumpre apreciar.
II. A irregularidade é uma invalidade do acto processual decorrente da sua desconformidade com o legalmente estabelecido na lei processual penal.
Nos termos do artigo 118.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, «A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determinam a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei», sendo que «Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular».
A irregularidade constitui, assim, o vício com que se comina qualquer acto desconforme com a lei quando não se prevê expressamente que essa desconformidade configura um caso de nulidade do acto.
No caso em apreço, o Ministério Público invoca o que entende serem duas irregularidades.
Atendendo a que a irregularidade consiste numa desconformidade com o estabelecido na lei processual penal, afigura-se que, mesmo em abstracto, o alegado pelo Ministério Público se traduz numa discordância quanto à interpretação e enquadramento do caso, e não propriamente à adopção de uma tramitação adjectiva diferente daquela que está prevista na lei.
Sem prejuízo desta nota, aprecie-se então.
No que concerne à primeira irregularidade (casos em que é admissível a dedução de pedido de indemnização civil no âmbito do processo sumaríssimo), interessam os artigos 393.º, 394.º, n.º 2, e 82.º-A, todos do Código de Processo Penal.
O artigo 393.º, determina que:
«1 - Não é permitida, em processo sumaríssimo, a intervenção de partes civis, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público referido no artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos, caso em que aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º».
Por seu turno, o artigo 394.º, n.º 2, prevê que:
«2 - O requerimento termina com a indicação precisa pelo Ministério Público:
a) Das sanções concretamente propostas;
b) Da quantia exacta a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado».
Finalmente, o artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, estabelece que «Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham».
Perante a redacção destas normas, mantém o Tribunal o entendimento já expresso no despacho cuja irregularidade se argui, segundo o qual a atribuição de uma indemnização, no âmbito do processo sumaríssimo, depende do preenchimento cumulativo de três requisitos:
- que o lesado manifeste a intenção de obter a reparação dos danos sofridos (artigo 393.º, n.º 2);
- que o requerimento apresentado pelo Ministério Público termine com a indicação da quantia exacta a atribuir a título de reparação (artigo 394.º, n.º 1, alínea b));
- e que particulares exigências de protecção da vítima imponham o arbitramento da indemnização (artigo 82.º-A, para o qual remete a parte final do artigo 394.º, n.º 1, alínea b)).
A interpretação da lei é o resultado da consideração e articulação dos elementos literal, histórico, teleológico e sistemático, sendo que na fixação do sentido e alcance da lei, é de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
Considerado a remissão que o artigo 392.º, n.º 2, faz para o artigo 394.º, n.º 2, alínea b), e que este fala na reparação nos termos do disposto no artigo 82.º-A, resulta que o pedido de indemnização civil só é admissível se estiverem preenchidos os pressupostos deste último normativo, isto é, se especiais exigências de protecção do ofendido o impuserem.
É certo que o artigo 392.º, n.º 2, inicialmente se refere à figura do lesado, não restringindo a possibilidade de qualquer lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos. Todavia, logo a seguir, estabelece-se que, nessa hipótese, o requerimento do Ministério Público deverá conter a indicação a que alude o artigo 394.º, n.º 1, alínea b), ou seja, a «quantia exacta a atribuir a título de reparação, nos termos do artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado».
Não colhe o argumento de que a remissão é apenas para a primeira parte do artigo 394.º, n.º 2, alínea a), ou seja, somente para a necessidade de o Ministério Público indicar a quantia exacta. A segunda parte desta alínea apenas fixa o modo como a indicação da quantia em causa deve ser feita. Assim, a remissão é para a «quantia exacta a atribuir (…) nos termos do artigo 82.º-A…».
A entender-se que o Ministério Público, no âmbito do processo sumaríssimo, pode sempre pedir uma indemnização, não se percebe sequer a razão de ser da expressa menção ao artigo 82.º-A: ou o Ministério Público pode sempre pedir uma indemnização nestes processos especiais e aí torna-se irrelevante a presença dos requisitos do artigo 82.º-A (se todo o ofendido pode manifestar o interesse em ser indemnizado e o Ministério Público deduzir o correspondente pedido, deixa de ser necessário que especiais razões de protecção do ofendido estejam presentes), ou então, à luz da presunção de que o legislador se soube exprimir, se dá conteúdo útil à referência ao artigo 82.º-A.
Sendo ponderosos os argumentos invocados pelo Ministério Público – mas que apenas são as razões que motivaram as propostas de alteração da lei, e não necessariamente as razões que estiveram subjacentes à alteração que acabou por ser levada a cabo -, que remetem para o elemento histórico da interpretação da lei, como já se disse, existe uma presunção de que o legislador se soube exprimir. E neste momento, mesmo depois da alteração da redacção do artigo 393.º, operada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, o legislador optou por remeter para o artigo 384.º, n.º 2, alínea b), em que se menciona o artigo 82.º-A. Se a intenção fosse admitir a formulação, pelo Ministério Público, de um pedido de indemnização independentemente da situação do ofendido, então ter-se-ia eliminado de todo a referência ao artigo 82.º-A.
No sentido da posição adoptada por este Tribunal, no que tange aos requisitos de que depende a atribuição de uma indemnização no âmbito do processo sumaríssimo, vai o entendimento expresso por Oliveira Mendes, para quem «Atenta a forma simplificada do processo sumaríssimo a lei proíbe a intervenção das partes civis. No entanto, admite que o tribunal atribua indemnização quando o lesado haja manifestado a intenção de obter reparação dos danos sofridos, o Ministério Público no requerimento a promover a aplicação do processo sumaríssimo tenha indicado a quantia a fixar a título de reparação e particulares exigências de protecção da vítima o imponham, nos termos do artigo 82º-A» -Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, página 1184.
Assim sendo, será de improceder a primeira irregularidade apontada ao despacho de rejeição de processo sumaríssimo.
No que respeita à segunda irregularidade, atinente à rejeição do requerimento do Ministério Público, também se mantém o entendimento que conduziu à adopção daquela solução.
A este propósito, o artigo 395.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, determina que:
«1 - O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba:
a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento;
b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 311.º;
c) Quando entender que a sanção proposta é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Na alínea a) - aquele com fundamento na qual o Tribunal rejeitou o requerimento do Ministério Público -, enquadram-se as hipóteses em que não estão reunidos os pressupostos do processo sumaríssimo, ou em que se constata existir alguma causa de extinção do procedimento criminal.
Ao formular um pedido de indemnização civil fora dos casos em que o mesmo é admissível, utilizou-se o processo sumaríssimo para uma finalidade diferente daquela a que o mesmo se destina. Nesta perspectiva, é de considerar que o procedimento proposto pelo Ministério Público para obter a condenação do arguido numa pena e numa indemnização civil (que seria enxertada no procedimento criminal) não é admissível.
Fazendo este mesmo enquadramento, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-06-2020, processo n.º 1063/18.8PLSNT.L1-3, em cujo sumário se afirma que:
«É de rejeitar em processo sumaríssimo o requerimento do MºPº a deduzir pedido de indemnização civil oficiosa, não por falta de legitimidade do MºPº para o fazer, mas sim por não estarem verificados os pressupostos legais nos termos do artº 82º-A do CPP.
Não sendo o requerimento do MºPº legalmente admissível, nos termos do artº 395º nº 1 al. a) do CPP…».
Soçobra, deste modo, a segunda irregularidade indicada pelo Ministério Público.
III. Pelo exposto, julgam-se não verificadas as irregularidades apontadas pelo Ministério Público. “

5. Das conclusões do recurso apresentado pelo Ministério Público
Inconformado com esta segunda decisão, em 4.11.2021, o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso recai sobre o despacho proferido pelo Tribunal a quo no dia 24/09/2021, o qual se pronunciou sobre o requerimento apresentado pelo Ministério Público no dia 20/09/2021, considerando não verificadas as duas irregularidades tempestivamente arguidas pelo Ministério Público do despacho que rejeitou o requerimento para julgamento em processo especial sumaríssimo, com fundamento no facto de aí ser requerida reparação civil, relativamente a lesado quanto ao qual não se verificavam as especiais necessidades previstas no artigo 82.º-A do CPP.
2. Porém, não pode o Ministério Público conformar-se com tal decisão, uma vez que, e salvo melhor e douto entendimento, é contrária à correcta e sistemicamente adequada e devida interpretação das normas previstas nos artigos 395.º, n.º 1, alínea a), e 393.º, n.º 2, do CPP, este último em conjugação com a primeira parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º do CPP.
Vejamos, pois, os nossos fundamentos.
3. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, o Ministério Público entende que ao decidir não admitir em processo sumaríssimo a reparação civil a qualquer lesado, mesmo quando este o tenha expressamente requerido em tempo, restringindo tal possibilidade apenas aos casos previstos no artigo 82º-A do CPP, incorre na violação do artigo 393.º, n.º 2, do CPP, pelo que tem de proceder a primeira irregularidade arguida.
4. Perante as sucessivas alterações que foram sendo efectuadas ao regime do processo sumaríssimo e, especificamente, ao artigo 393.º do CPP, em nosso modesto entender, outra conclusão não poderá conceber-se senão a de que é possível a dedução, pelo Ministério Público, de pedido de reparação civil a favor do lesado que não se enquadre no artigo 82.º-A, desde que este tenha manifestado junto daquele a intenção de deduzir o referido pedido e tenha sido indicada, no requerimento, a quantia exacta a atribuir a título de reparação, cumprindo-se com o estabelecido no artigo 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
5. O artigo 393.º, n.º 2, do Código de Processo Penal não remete para o artigo 82.º-A, do mesmo diploma legal, mas para a alínea b), do n.º 2, do artigo 394.º, ou seja, para a necessidade de indicação da quantia exacta a atribuir a título de reparação.
6. A referência ao artigo 82.º-A constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 394.º não pretende em momento algum afastar a possibilidade de dedução de pedido de reparação civil por qualquer lesado, mas apenas e tão-só, salvaguardar as situações em que particulares exigências da vítima imponham o arbitramento de uma indemnização a título oficioso e a mesma não o tenha requerido expressamente ao Ministério Público, sendo esta (esta, a por nós agora sublinhada), aliás, a razão pela qual na referida alteração legislativa não foi eliminada a referência ao artigo 82.º-A, a qual, portanto, mantem todo o seu sentido útil.
7. Se fosse intenção do legislador reservar a aplicabilidade do processo sumaríssimo, com dedução de pedido de reparação civil, apenas para os casos em que se está perante vítima especialmente vulnerável, não tinha, decerto, procedido à alteração legislativa em causa, mantendo-se a redacção anteriormente em vigor: “[n]ão é permitida, em processo sumaríssimo, a intervenção das partes civis, sem prejuízo da possibilidade de aplicação do disposto no artigo 82.º-A”.
8. Aliás, entender e captar uma alteração à lei para que - e como que - essa mesma lei ficasse exactamente na mesma e com o mesmo sentido é que constituiria uma interpretação violadora da presunção estabelecida no n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil -“presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” -, pois seria tributária do velho pensamento lampedusiano “é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma”.
9. Perante o descrito percurso legislativo, em nosso modesto entender, a única interpretação - sustentada (na letra da lei e no espirito do legislador) - é que aquela que conclui que o legislador quis alargar a todos os lesados a possibilidade de obterem reparação civil no âmbito do processo especial sumaríssimo, com a aprovação da Lei 26/2010, de 30 de Agosto.
10. Se assim não fosse, como interpretaríamos a referida reforma? Como defenderíamos uma alteração legislativa inócua e sem qualquer significado nem sentido útil?
11. De facto, não se nos afigura razoável concluir que a alteração introduzida pela Lei 26/2010, de 30 de Agosto visava apenas e tão somente afirmar a faculdade de o Ministério Público deduzir pedido civil nos termos do artigo 82.º-A do CPP. Pois, se antes o artigo 393.º do CPP estipulava que “Não é permitida, em processo sumaríssimo, a intervenção de partes civis, sem prejuízo da possibilidade de aplicação do disposto no artigo 82.º-A.” e actualmente estipula que “1 - Não é permitida, em processo sumaríssimo, a intervenção de partes civis, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 2 - Até ao momento da apresentação do requerimento do Ministério Público referido no artigo anterior, pode o lesado manifestar a intenção de obter a reparação dos danos sofridos, caso em que aquele requerimento deverá conter a indicação a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º.” como defender que presentemente está tudo igual?
12. Não há, em nosso modesto entender, como defender que o único propósito da alteração legislativa residiu no facto de permitir que os lesados que se encontram nas condições previstas no artigo 82.º-A do CPP passassem agora a poder apresentar requerimento a peticionar o pagamento de uma determinada quantia, quando sempre o puderam fazer (isso, sim, é que constituiria uma alteração legislativa para fazer chover no molhado).
13. Os próprios trabalhos preparatórios dão-nos conforto jurídico quanto aos fins e motivos visados com tal alteração, a qual foi iniciativa dos grupos parlamentares do CDS e do PCP,
14. Sendo, no nosso juízo, de afastar a hipótese de que a Lei 26/2010, de 30 de Agosto, não consubstanciou qualquer mudança no regime do pedido de indemnização civil, a redacção do n.º 2 do artigo 393.º do CPP só pode ser interpretada no sentido de que alargou a possibilidade de atribuir, em processo especial sumaríssimo, uma quantia de reparação civil, não apenas aos casos previstos no artigo 82.º-A do CPP (oficiosamente ou a requerimento do respectivo lesado a que alude o 82.º-A), mas a todo e qualquer lesado, desde que este manifeste expressamente vontade nesse sentido e o faça até ao momento da apresentação do requerimento.
15. Refere o despacho recorrido que é de presumir que o legislador se soube exprimir cabalmente e, por tal, que a letra da lei corresponde à vontade do legislador. Pelo que, nesse entendimento (do qual manifestamente nos afastamos) a remissão da parte final do artigo 393.º, n.º 2, do CPP para a alínea b) do n.º 1 do artigo 394.º do CPP, seria para a sua totalidade, inclusive para a condição de admissibilidade que seria estar perante um dos casos previstos no artigo 82.º-A do CPP.
16. Não podemos, porém, concordar, na medida em que entendemos que o n.º 2 do artigo 393.º, n.º 2, do CP remete para a “indicação” prevista no artigo 394.º, n.º 2, alínea b) do CPP, e não para a sua totalidade, devendo ser feita uma interpretação do artigo 393.º, n.º 2, do CP, no sentido de que o mesmo apenas impõe a obrigatoriedade de o lesado, além de requerer tal reparação, indicar ao longo do inquérito uma quantia exacta a atribuir-se-lhe, não deixando tal ao critério do Ministério Público.
17. Se, no entendimento do Tribunal a quo, só pode atribuir-se uma indemnização civil em processo especial sumaríssimo quando estão preenchidos os pressupostos do artigo 82.º-A, então como explicar que na alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º do CPP se refira, in fine, (…) nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado (!)?
18. Aqueles que perfilham o entendimento do Tribunal a quo como respondem às seguintes duas questões: Se apenas pode ser arbitrada quantia a título de reparação nos termos do artigo 82.º-A, então não é este (82.º-A) sempre aplicado? Será que pode ser arbitrada quantia a título de reparação nos termos do artigo 82.º-A, mas este (82.º-A) não ser aplicado? Em que casos?
19. O legislador soube efectivamente exprimir-se e não só disse o que queria dizer como quis dizer o que disse, colocando uma virgula na parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 393.º do CPP e referindo expressamente “quando este (82.º-A) deva ser aplicado”, pelo que tem de concluir-se que o Ministério Público pode deduzir pedido civil quando o artigo 82.º-A não seja aplicável, assim abrangendo a maioria dos lesados, na condição de estes o requererem e indicarem a quantia exacta a atribuir a título de reparação.
20. Por outro lado, o entendimento que o Tribunal a quo subscreve apresenta-se perfeitamente incompatível com a razão subjacente aos respectivos projectos lei. Bastará perceber que, no caso dos crimes de natureza particular (que se enquadram perfeitamente no que se entende ser pequena criminalidade), em que o recurso ao processo sumaríssimo depende sempre da concordância do assistente (artigo 392.º, n.º 2, do CPP), não seria de prever, nem seria crível, que o assistente, após ter pago uma taxa de justiça para a sua constituição como assistente (€102,00), fosse manifestar a sua concordância com o julgamento em processo especial sumaríssimo, no qual (não estando em causa as circunstâncias do artigo 82.º-A do CPP) não poderia obter qualquer compensação pelos prejuízos que sofreu, tendo, por sua vez, de recorrer às instâncias cíveis, com nova acção, novo pagamento de custas processuais e honorários de advogados.
21. A incongruência da interpretação feita pelo Tribunal a quo com o espírito subjacente a tal alteração legislativa, de promoção e simplificação do recurso aos processos especiais e, assim, a libertação dos Tribunais dos processos relativos à pequena criminalidade e criminalidade bagatelar, é mais visível quando apreciada a sua aplicabilidade prática.
22. Por tudo o exposto, ao decidir não admitir, em processo sumaríssimo, a reparação civil a qualquer lesado, mesmo quando este o tenha expressamente requerido, em tempo, restringindo tal possibilidade apenas aos casos previstos no artigo 82º-A do CPP, o Tribunal a quo incorreu na violação do disposto no artigo 393.º, n.º 2, do CPP, pelo que deve proceder a primeira irregularidade arguida, nos termos do artigo 123.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
23. Por outro lado, o Ministério Público também não pode concordar que, na hipótese da inadmissibilidade legal do pedido civil formulado no requerimento para aplicação de pena em processo sumaríssimo à arguida BB, o Tribunal a quo pudesse rejeitar esse requerimento com tal fundamento, encaixando a situação na alínea a) do n.º 1 do artigo 375.º do CPP.
24. Contrariamente ao entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, quando muito e por deferência jurídica, poderia remeter-se aquele pedido civil para os meios comuns, nos termos dos artigos 82.º, n.º 3, e 72.º, n.º 1, alínea e), ambos do CPP, pelo que incorreu o Tribunal recorrido na violação do artigo 395.º, n.º 1, alínea a), do CPP, assim procedendo, pois, a segunda irregularidade que se arguiu, nos termos dos artigos 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, ambos do CPP.
Senão vejamos.
25. O Tribunal a quo enquadrou a inadmissibilidade de arbitrar reparação civil na alínea a) do n.º 1 do artigo 395.º do CPP, que prescreve “…1 - O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba: (…) a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento;”
26. Porém, salvo melhor entendimento, o referido motivo (a inadmissibilidade de arbitrar reparação civil), não se enquadra naquela alínea a), nem em nenhuma outra das restantes alíneas do n.º 1 do artigo 395.º do CPP.
27. Mais uma vez, o legislador expressou-se de forma clara e inequívoca, afirmando que “quando for legalmente inadmissível o procedimento” o requerimento deve ser rejeitado, o que apenas pode suceder i) quando não se verificam os pressupostos enunciados no artigo 392.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, caso em que o uso de processo sumaríssimo constituiu nulidade insanável, nos termos da alínea f) do artigo 119.º do CPP ou ii) quando exista causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal, caso em que o Ministério Público deveria ter arquivado o processo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 277.º, n.º 1, in fine, do CPP, por exemplo: falta de legitimidade do Ministério Público, prescrição do procedimento criminal, morte do arguido, entre outros.
28. E, como bem se vê, no entendimento do Tribunal a quo, o procedimento (na parte criminal) é admissível. O que não é admissível é o peticionado arbitramento de quantia a título de reparação civil a favor da ofendida AAA..
29. Entendemos, assim, que tal inadmissibilidade da reparação civil não pode ter como consequência vedar o uso ao processo sumaríssimo, em prejuízo do próprio arguido - que assim se vê sujeito a um julgamento público que poderia querer evitar e o qual pode ter o efeito nefasto de, em vez de contribuir para a sua ressocialização, o embrenhar ainda mais no mundo da criminalidade - levando-o, ao contrário do pretendido, à dessocialização”.
30. Numa palavra, a consequência de tal entendimento da recusa da reparação civil não poderia ser a rejeição do requerimento em processo sumaríssimo, mas a remessa dos lesados para os meios civis, no quadro dos quais poderiam deduzir pedido de indemnização cível em separado – nos termos do disposto no artigo 82.º, n. º 3, e artigo 72.º, n. º 1, alínea e), ambos do CPP.
31. Entende, assim, o Ministério Público que o despacho recorrido também é ilegal, por violar o disposto no artigo 395.º, n. º 1, alínea a), do CPP, na medida em que rejeita o requerimento para julgamento em processo sumaríssimo, por motivo não previsto na lei.
32. Por tudo o exposto, ao não ter declarado as irregularidades tempestivamente arguidas pelo Ministério Público, nos termos do artigo 123.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 395.º, n.º 1, alínea a), e 393.º, n.º 2, do CPP, este último em conjugação com a primeira parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 394.º do CPP.
Termos em que, e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que declare os vícios arguidos, recebendo o requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo contra a arguida BB, pelos factos e disposições legais constantes do requerimento, (…)”.

6. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a procedência do recurso interposto pelo MP (transcrição):
“Parecer
Colocam-se em apreciação duas questões distintas.
A primeira a de saber se o Ministério Público podia ao formular o pedido de julgamento do arguido em processo sumaríssimo requerer igualmente o pagamento à lesada AAA dos prejuízos que esta considerou terem existido e que esta lhe manifestou pretender ser reparada?
Em nosso entender, o MP não tem razão quando defende que pode acusar o arguido em processo sumaríssimo requerendo a aplicação de uma pena concreta e simultaneamente requerer o pagamento da quantia monetária à AAA, não obstante esta lho tivesse requerido previamente.
A Lei é clara, no processo sumaríssimo não há partes Civis!
Essa é uma opção clara do legislador em afastar o princípio da adesão, tendo como fim maior a celeridade processual.
A título excecional para acautelar que situações de precaridade não fiquem dependentes do processo cível de indemnização a propor o Legislador configurou no processo sumaríssimo a possibilidade do juiz decidir sobre a “reparação” do lesado desde que esta tenha sido peticionada no processo e conste do pedido de julgamento em processo sumaríssimo do arguido/a formulado pelo Ministério Público.
No caso dos autos o Ministério Público não poderia peticionar o pagamento da reparação à AAA acusando o arguido em processo sumaríssimo porque o artº 394º nº 2º b) refere que deve constar do requerimento a quantia exata a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artº 82º-A, quando este deva ser aplicado. Ora, este refere-se apenas à reparação pelos prejuízos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
O que obviamente não será a situação da lesada AAA no caso.
Termos em que o despacho judicial proferido estava certo no sentido de não ser admissível o pedido de pagamento à AAA requerido pelo Ministério Público.
Mas, em nosso entender, a consequência a retirar do caso não seria a de rejeição do requerimento do julgamento do arguido em processo sumaríssimo.
Na verdade, em nosso entender, não falta nenhum dos requisitos legais penais a que deve obedecer esta forma de processo, por isso, não há fundamento legal para a rejeição do requerimento ou do julgamento em processo sumaríssimo nem para devolução dos autos ao Ministério Público.
Apenas consta do requerimento um pedido de reparação de natureza cível que no caso concreto não é admissível e, por isso, o julgador não deverá conhecê-lo, mas remeter o seu conhecimento para os meios comuns.”.

7. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, tendo a arguida referido o seguinte:
BB, recorrida nos autos de recurso penal à margem referenciados, tendo sido notificada do Parecer emitido pela Ilustre PGA, vem sobre ele dizer o seguinte:
A recorrida concorda com o exposto pela Ilustre PGA sobre a não admissão das partes civis, na forma de processo sumaríssimo, como previsto no art. 393º, nº 1, do CPP.
Contudo, a referida disposição legal prevê uma circunstância de mitigar tal proibição, como previsto no nº 2, mas apenas nas situações previstas no art. 394º, nº 2, al. b), remetendo esta disposição para a previsão do artigo 82.º-A, ambos do referido diploma legal. No entanto, não nos parece que a lesada se enquadre na previsão desta última norma, tal como também concluiu a Ilustre PGA.
Daí que o pedido cível formulado pelo MP em nome daquela, não seja admissível nesta forma de processo. Pelo que, bem andou a Mma. Juiz “a quo” em rejeitar o requerimento do MP com tal pretensão ofensiva da lei processual penal.
Por fim, tendo o requerimento sido rejeitado com tal fundamento, somos de opinião que o presente recurso é ele também inadmissível, atendo o disposto no nº 4, do art. 395º, do CPP, por isso, a recorrida dissente da posição vertida nos presente autos de recurso penal, pelo que o mesmo não deve ser objeto de apreciação por essa relação e como tal deve ser rejeitado por a decisão recorrida ser insuscetível de recurso, neste sentido, vide a decisão sumária proferida pela relação de Lisboa, relator Desembargador Vasco Freitas, no Pº 1063/18.8PLSNT.L1-3, datada de 20-06-2020.
Pelo que, se conclui pela inadmissibilidade do presente recurso por a decisão recorrida ser ela própria irrecorrível, pelo que deve o mesmo ser rejeitado, cfr. resulta do disposto no art. 400º, nº 1, al. g), do CPP.”

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são as seguintes:
2.1. Analisar se estavam preenchidos todos os requisitos legais a que devia obedecer a forma de processo sumaríssimo inexistindo fundamento legal para a rejeição do requerimento;
2.2. Saber se inexistia fundamento legal para devolução dos autos ao Ministério Público.

3. Apreciação
Para compreender o alcance das questões suscitadas, em sede de recurso e assinaladas em II. ponto 2. deste Acórdão, cumpre em primeiro lugar contextualizá-las e enquadrá-las legalmente.
O MP acusou arguida BB da prática de um crime de furto de eletricidade e deduziu pedido civil a favor da vítima AAA. Apresentou para o efeito requerimento sob a forma de processo sumaríssimo.
O Tribunal a quo rejeitou o requerimento apresentado pelo MP com fundamento no artigo 395.º, n.º 1, alínea a) do CPP, ou seja, por ser legalmente inadmissível a dedução de pedido de indemnização em processo sumaríssimo. O Julgador fundamentou a sua decisão na circunstância de não existirem particulares exigências de proteção da vítima, no caso a AAA, justificativas do arbitramento de uma indemnização civil, como imporiam os artigos 393.º, n.º 2, 394.º, n.º 1, alínea b) e 82.º-A do CPP e em seguida determinou a devolução do processo para o MP.
A Procuradora da República, no 6.º dia após a sua notificação eletrónica, apresentou requerimento arguindo a existência de duas irregularidades que afetariam aquele despacho, referindo:
- No âmbito do processo sumaríssimo é admissível a dedução de pedido de indemnização civil, por parte do Ministério Público, independentemente de estarem preenchidos os pressupostos mencionados no artigo 82.º-A do CPP, pelo que não devia ter sido rejeitado o requerimento com base no artigo 395.º, n.º 1, alínea a) do CPP;
- Mesmo a não estarem verificados os requisitos previstos no artigo 82.º-A do CPP, o que não concede, o Tribunal deveria ter remetido o pedido de indemnização para os meios civis, prosseguindo sempre o processo na parte penal sob a forma sumaríssima.
O MP, em seguida, concluiu pela necessidade de declaração das duas irregularidades do despacho, proferido em 8.9.2021, pela sua reparação e consequente admissão do requerimento para aplicação de pena em processo especial sumaríssimo, conforme havia peticionado inicialmente.
Na sequência deste requerimento apresentado pelo MP, onde são invocadas as duas apontadas irregularidades o juiz a quo, proferiu segundo despacho onde as julgou não verificadas e concluiu pela sua improcedência[1].
É deste 2.º despacho judicial, proferido em 24.9.2021 e assinalado em I. ponto 4. deste Acórdão, que o MP interpôs recurso, onde conclui novamente que a consequência a retirar do caso não seria a de rejeição do requerimento nem a devolução dos autos ao Ministério Público, pois:
- Àquele requerimento não falta quaisquer dos requisitos legais penais a que deve obedecer a forma de processo sumaríssimo;
- A admitir-se não ser admissível o pedido de reparação de natureza cível o julgador deveria ter remetido o seu conhecimento para os meios civis, prosseguindo o processo quanto à parte criminal;
Conclui o MP, no recurso interposto para esta Relação, que este 2.º Despacho deveria ter sido substituído por outro que declarasse verificadas as irregularidades cometidas no despacho e fosse recebido o requerimento para a aplicação de pena em processo especial sumaríssimo contra a arguida BB, pelos factos e disposições constantes do requerimento inicial.
Comecemos por atentar ao teor do artigo 123.º do CPP, sob a epígrafe “Irregularidades”:
“1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.” (sublinhado nosso).

A. Analisemos, em seguida, a primeira das “irregularidades” suscitada pelo MP.
O MP considera que os fundamentos invocados na 1.º decisão e mantidos pelo 2.º despacho não se enquadram em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 395.º do CPP, designadamente na alínea a) (inadmissibilidade do pedido de arbitramento da indemnização civil). Daí, na sua ótica, o requerimento inicial dever, agora, em sede de recurso, ser recebido e em consequência revogada a decisão de manutenção da sua rejeição.
No processo sumaríssimo, todavia, o despacho judicial de rejeição do requerimento do Ministério Público, por um dos fundamentos das alíneas a) a c) do artigo 395.º, n.º 1 do CPP, é insuscetível de recurso, por força do disposto no seu n.º 4 [2].
O fundamento dessa inadmissibilidade prende-se com razões de celeridade e com a circunstância de o requerimento rejeitado dever ser reenviado[3], pelo próprio Juiz, para a forma processual (ex: abreviada ou comum) que lhe caiba, prosseguindo os autos os seus termos, pois o requerimento do Ministério Público equivale, em todos os casos, à acusação (artigo 395.º, n.º 3 do CPP).
Como se afirma no Acórdão da RL de 24.6.2020 proferida no P. 87/18.0PILRS.L1.-3 e em que foi Relatora Margarida Ramos de Almeida[4]:
“No âmbito de processo sumaríssimo, em todos os casos em que o juiz determine a rejeição do requerimento, por um dos fundamentos consignados no nº1 do artº 395 do C.P.Penal, tal decisão não é susceptível de recurso, independentemente da natureza e do bem ou mal fundado dos argumentos, das razões jurídicas que levaram a essa rejeição.
É uma opção legislativa, atentos os fins de celeridade que enformam essa modalidade processual.
Se a celeridade não pode ser obtida por essa via (quer por ausência de acordo entre os intervenientes processuais, quer por razões de apreciação jurídica de cariz judicial), não existem razões para se permitir o recurso de tal decisão, uma vez que os autos poderão prosseguir os seus termos pela via processual ordinária.” (sublinhado nosso).

Assim, independentemente da bondade da solução e das razões que pudessem assistir ao MP é incontornável que não sendo admissível o recurso do despacho de rejeição do requerimento apresentado pelo MP, com fundamento (bem ou mal) na alínea a) do artigo 395.º, n.º 1 do CPP, também, logicamente, é inadmissível o recurso do despacho de manutenção na parte em que reitera aqueles fundamentos. É que se assim não fosse, estaria encontrada a forma de contornar o n.º 4 do artigo 395.º do CPP, que proíbe a interposição do despacho de rejeição do requerimento inicial. Bastaria, para tanto, suscitar vícios processuais à decisão de rejeição para, em seguida, interpor recurso do despacho de manutenção da rejeição e, através dele, obter a prolação de um Acórdão na 2.ª instância que admitisse o requerimento, quando a lei expressamente veda tal expediente. Ou, ainda, numa outra perspetiva provocar a prolação de um despacho de reparação da 1.ª decisão para, através desta via, conseguir alterar o decidido quando o juiz já havia esgotado o seu poder jurisdicional e a única forma de sindicar a decisão seria por via de recurso do 1.º despacho[5], situação vedada por lei.
Neste segmento o MP, sob o epiteto do cometimento de uma “irregularidade do processo”, mais não faz do que sindicar por forma enviesada o “despacho de rejeição do requerimento”, quando este não era recorrível (n.º 4 do artigo 395.º do CPP).
Pelas razões expostas, entende-se não configurar esta 1.ª questão uma irregularidade processual subsumível ao artigo 123.º do CPP, mas sim uma verdadeira questão substantiva, que para ser sindicada teria de o ser através de recurso, via esta proibida expressamente pela lei (n.º 4 do artigo 395.º do CPP). Daí não ser suscetível de alteração o despacho proferido em 24.9.2021, julgando-se, neste ponto, improcedente o recurso e consequentemente prejudicada a análise de saber se existia ou não fundamento legal para a rejeição do requerimento apresentado pelo MP para aplicação de uma pena à arguida em processo sumaríssimo.

B. No concernente ao segundo vício processual, alegadamente cometido, o MP entende que o Tribunal a quo ao invés de lhe ter devolvido os autos “para tramitação sob a forma processual adequada” deveria ter remetido a lesada para os meios civis, no quadro do qual poderia deduzir pedido de indemnização cível em separado – nos termos do disposto no artigo 82.º, n. º 3, e artigo 72.º, n. º 1, alínea e) ambos do CPP.
Por força do n.º 1 do artigo 395.º do CPP, todavia, o que se impunha ao juiz a quo não era remeter a AAA para os meios civis, mas sim reenviar todo o processo sumaríssimo para a forma processual adequada (ex: comum) permitindo, deste modo o prosseguimento dos autos, embora em forma distinta, e a dedução de pedido civil nos próprios autos.
Esta irregularidade processual não é inócua, pois a circunstância de o Juiz estar obrigado a reenviar o processo para outra forma processual significa a equivalência do requerimento do MP como acusação (n.º 3 do artigo 395.º do CPP) e a obrigatoriedade de ser apreciado, em julgamento, o pedido civil, se a queixosa, entretanto, o deduzisse, conforme se propôs fazer (cf. fls. 71).
Assim, inexistindo fundamento legal para devolução dos autos ao Ministério Público julga-se verificada a irregularidade processual cometida pelo Tribunal a quo por não cumprimento do disposto no artigo 395.º, n.º 1 do CPP (não reenvio do processo para a forma correta). A irregularidade cometida determina a invalidade da remessa do processo para o MP ordenando-se oficiosamente a sua reparação (artigo 123.º, n.º 2 do CPP), por ela afetar o valor do ato praticado e determinando-se, em consequência, que os autos sigam a forma de processo comum, valendo o requerimento em processo sumaríssimo como acusação.

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Julga-se procedente o recurso interposto, por verificação de irregularidade processual (artigo 123.º do CPP), atenta a violação do ato processual imposto pelo artigo 395.º, n.º 1 do CPP, determinando-se, a reparação dessa irregularidade (n.º 2 do artigo 123.º do CPP), por invalidade do ato de remessa do processo para o MP, ordenando-se o prosseguimento dos autos sob a forma de processo comum, valendo o requerimento em processo sumaríssimo como acusação.
2. Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 21 de junho de 2022.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Maria Clara Figueiredo
Gilberto da Cunha


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[1] Embora o Tribunal também tenha assinalado “que (…) em abstrato o alegado pelo MP apenas se traduzia numa discordância quanto à interpretação e enquadramento do caso, e não à adoção de uma tramitação adjetiva diferente daquela que está prevista na lei”.
[2] O artigo 395.º do CPP sob a epigrafe “Rejeição do requerimento” estabelece o seguinte: “1 - O juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para outra forma que lhe caiba: a) Quando for legalmente inadmissível o procedimento; b) Quando o requerimento for manifestamente infundado, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 311.º; c) Quando entender que a sanção proposta é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 - No caso previsto na alínea c) do número anterior, o juiz pode, em alternativa ao reenvio do processo para outra forma, fixar sanção diferente, na sua espécie ou medida, da proposta pelo Ministério Público, com a concordância deste e do arguido. 3 - Se o juiz reenviar o processo para outra forma, o requerimento do Ministério Público equivale, em todos os casos, à acusação. 4 - Do despacho a que se refere o n.º 1 não há recurso.”.
[3] Conquanto o Tribunal julgue que a acusação preenche os requisitos legais.
[4] Disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[5] Deve-se salientar que a lei só veda a possibilidade de reparação das sentenças, mas não de qualquer outro despacho embora, nos termos do artigo 414.º, n.º 4 do CPP, a possibilidade de reparação pressupusesse, no caso, a interposição de recurso da 1.ª e não da 2.ª decisão.