Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2108/21.0GBABF.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: CONDUÇÃO SEM CARTA
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
Data do Acordão: 05/20/2022
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Sumário: I. A simples condução não titulada – de per si - não é punível com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal.
II. Mas o facto de o condutor não ser titular de carta de condução não impede a sua condenação se o crime praticado for um dos indicados naquele mesmo preceito.
III. A prática de um dos crimes da condução estradal previstos no artigo 69.º implica a aplicação da pena acessória, tenha ou não o condutor arguido licença de condução.
Decisão Texto Integral:
Decisão Sumária

Tribunal Judicial da Comarca de Comarca de Faro – Albufeira, Criminal (Local);
Processo sumário;
Arguido AAA;
Sentença de 27-12-2021 (depositada a 28-12-2021) que condenou o arguido pela prática, em autoria material, de:
- um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, ns.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro na pena de 210 dias de multa à taxa diária de € 7,00, perfazendo o montante total de € 1.470,00:
- na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do art. 69.º do CPP.
- nas custas do processo.
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A Digna magistrada do Ministério Público, inconformada, interpôs o presente recurso pedindo que o mesmo seja considerado provido, apresentando as seguintes conclusões:
I – QUESTÃO PRÉVIA:
Nos termos do disposto no artigo 380.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, requer a rectificação da sentença proferida nos autos, em processo sumário, documentada na acta da audiência de discussão e julgamento, nos termos do disposto nos artigos 389.º-A, n.º 4, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal, pelos seguintes motivos:
a) O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3º, n.º 1 e2 do Decreto-Lein.º2/98, de 3 de Janeiro, como resulta da gravação constante do sistema citius, no entanto na acta da audiência de discussão e julgamento redigida consta que o arguido foi condenado como autor material da prática de “um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro na pena de 210 dias de multa à taxa diária de € 7,00, perfazendo o montante total de € 1.470,00” [sublinhado nosso].
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1. O Ministério Público vem interpor recurso sentença proferida nos autos, que determinou a condenação do arguido AAA, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º,n.º1 e 2 do DL 2/98, de 03 de Janeiro, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de cinco meses, nos termos do disposto no artigo 69.º do Código Penal, impugnando-se assim a matéria de direito.
2. O Ministério Público deduziu acusação, em processo sumário, para julgamento em Tribunal Singular, contra o arguido AAA, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL 2/98, de 03 de Janeiro, por referência ao artigo 121.º do Código da Estrada.
3. No decurso da audiência o Tribunal A Quo proferiu um despacho, considerando que não foi indicada na acusação proferida a inibição de conduzir, nos termos do disposto no artigo 69.º do Código Penal, o que consubstanciava uma alteração da qualificação jurídica, dando de seguida a palavra ao Defensor do arguido para se pronunciar, nada aquele requerendo. Não foi dada a palavra ao Ministério Público para se pronunciar.
4. Proferida a sentença, o Tribunal A Quo decidiu julgar totalmente procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público e em consequência, condenar o arguido AAA, pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 210 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de cinco meses, nos termos do disposto no artigo 69.º do Código Penal.
5. O Tribunal A Quo, para fundamentar a aplicação da pena acessória ao arguido, referiu genericamente o artigo 69.º do Código Penal, não individualizando qualquer número ou alínea, porém o arguido não é punido por nenhum dos ilícitos elencados nas alíneas a), b) ou c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal.
6. Com efeito, ainda que se pudesse equacionar a sua punição pela alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, tal não é legalmente admissível, uma vez que a utilização de veículo no ilícito em apreço nos autos constitui um elemento essencial do respectivo tipo legal e não um meio de execução de um outro crime.
7. Quer a Doutrina, quer a Jurisprudência consideram que a pena acessória de proibição de conduzir não é aplicável a quem seja condenado apenas pelo crime de condução sem habilitação legal, considerando a alteração legislativa efectuada pela Lei n.º 77/2001, de 13/7 ao artigo 69.º do Código Penal.
8. As penas encontram-se sujeitas ao princípio da legalidade e da tipicidade, consagradosnoartigo29.º,n.ºs1e3 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º do Código Penal, pelo que o Tribunal A Quo ao condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, violou o artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 1.º do Código Penal, e efectuou uma errada interpretação do artigo 69.º do Código Penal.
9. Pelo exposto, deverá ser a sentença proferida ser revogada na parte em que condena o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de cinco meses, nos termos do disposto no artigo 69.º do Código Penal.
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte que condena o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, farão V. Exas. Justiça.
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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.
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B.1 – Fundamentação
A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.
Iniciamos por constatar que a questão prévia suscitada pela Digna recorrente tem razão de ser pois que o arguido foi condenado, na sentença ditada oralmente, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, ns.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro e não apenas pelo n.º 1, como consta da acta da audiência de julgamento que se deve entender, pelo presente, devidamente corrigida.
Assim a questão colocada pelo recurso limita-se à apreciação da questão de saber se a condenação pelo crime de condução sem título deve ser punida com a pena acessória de inibição de condução.
In illo tempore a conduta era punida pela alínea a) do artigo 69.º do Código Penal, na versão inicial - a do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março – cujo nº 1 estipulava que era «condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano quem for punido (a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário; [a alínea b) rezava: «(b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante»].
Hoje esta questão resolve-se de forma simples pela interpretação literal de três preceitos legais, os artigos 69.º, n.º 1 (este tendo presente a alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13/7), 291.º e 292.º do Código Penal, dos quais se conclui que os casos de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos se limitam a quem for punido:
- Artigo 69.º - Proibição de conduzir veículos com motor:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;
b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
- Artigo 291.º - Condução perigosa de veículo rodoviário:
1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada e nela realizar actividades não autorizadas, de natureza desportiva ou análoga, que violem as regras previstas na alínea b) do número anterior, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
- Artigo 292.º - Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas:
1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Como se constata, a circunstância de a condução ser ou não titulada é irrelevante!
O que apenas quer significar que a simples condução não titulada – de per si - não é punível com esta pena acessória, mas não impede a condenação do condutor não titulado se o crime praticado for um dos indicados. Dito de outra forma, a prática de um dos indicados crimes na condução estradal implica a aplicação da pena acessória, tenha ou não o condutor arguido licença de condução.
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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, concede-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, corrige-se a imputação penal que se deve entender efectivada pelo artigo 3º, ns.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro e absolve-se o arguido da pena acessória de proibição de conduzir que lhe foi imposta.

Sem tributação.

Évora, 20 de Maio de 2022

(processado e revisto pelo relator).

João Gomes de Sousa