Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
18/21.0T8BNV.E1
Relator: JOSÉ ANTÓNIO MOITA
Descritores: ÁGUAS
FORNECIMENTO
CUSTAS DE PARTE
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- A norma do artigo 63.º, n.º 3, do Regulamento n.º 406/2020, de 17/04, quis apenas abarcar a possibilidade de cessação do contrato de fornecimento de água num determinado local ocorrer, ou por denúncia, levada a cabo pelo utilizador, ou pela Entidade Gestora, pelos motivos e seguindo as regras e com respeito pelos prazos previstos no artigo 65.º do dito Regulamento, ou por caducidade do dito contrato, resultante do termo do prazo do próprio título habilitante, ou seja, pela caducidade também deste último, de acordo com o disposto no artigo 66.º, n.º 1, ainda do aludido Regulamento, ou ainda por caducidade por morte do titular do contrato fundamento esse prevenido no n.º 3 do dito artigo.
2- Com excepção dos casos de litigância de má fé e de demanda quando a obrigação ainda não era exigível, as despesas realizadas com o processo, incluindo o pagamento de honorários a advogado, apenas podem ser compensadas a título de custas de parte, designadamente nos termos previstos nas disposições correspondentes do Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 18/21.0T8BNV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Local Cível de Benavente
Apelante: Águas do Ribatejo E.I.M., S.A.
Apelada: (…)
***
Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC).
(…)
*
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…), residente na Rua (…), n.º 6, 2125-184 Marinhais, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Águas do Ribatejo, E.I.M., S.A., com sede na Rua (…), n.º 38, 2120-098 Salvaterra de Magos, pedindo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização, na quantia global de 7.706,27 Euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de fornecimento de água e que durante a vigência deste, precisamente a 06-10-2020, sem que nada o justificasse, a Ré procedeu a um corte de abastecimento de água, privando-a da mesma, no local onde residia com um filho bebé, entre 06-10-2020 e 02-11-2020, tendo em consequência desse corte de água sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, a cujo ressarcimento entende ter direito.
Citada, a Ré contestou, pugnando pela sua absolvição, tendo admitido, por um lado, o contrato de fornecimento celebrado com a Autora e o alegado corte do abastecimento de água no local de residência da mesma em 06-10-2020, mas por outro, argumentando ter procedido ao mesmo por lhe ter sido solicitado pelo proprietário do local, com fundamento em sentença judicial, transitada em julgado, que decretou a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o mesmo e a Autora, acrescentando que tal contrato constituía o título que legitimava a ocupação do local de consumo pela Autora e que foi ordenado a esta o despejo do local.
Foi dispensada a realização da audiência prévia.
Elaborou-se despacho saneador, agendou-se e realizou-se a audiência final e subsequentemente foi proferida sentença, que inclui o seguinte dispositivo:
“IV. DECISÃO
Com os fundamentos de facto e de Direito acima expostos, julgando-se parcialmente procedente a presente acção, DECIDE-SE:
a) CONDENAR a ré a pagar à autora a quantia de 1.060 Euros (mil e sessenta euros), acrescida de quantia a liquidar em incidente de liquidação de sentença correspondente aos custos por esta suportados com a aquisição de combustível para a realização das deslocações entre a sua casa e a casa dos seus pais, e com a aquisição de garrafões de água, no período entre 06-10-2020 e 15-10-2020, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal civil, desde a data da citação até integral pagamento;
b) CONDENAR a ré a pagar à autora a quantia de 1.250 Euros (mil duzentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal civil desde a data desta sentença, até efectivo pagamento;
c) ABSOLVER a ré do demais peticionado pela autora; e
d) CONDENAR a autora e a ré no pagamento das custas processuais, na proporção do respectivo decaimento – 70% a cargo da autora e 30% a cargo da ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a autora.
*
Inconformada com a sentença veio a Ré apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando no seu final as seguintes conclusões:
“I-A Recorrente não se conforma com o sentido decisório da sentença do tribunal a quo, na medida em que esta desconsidera que a cessação de abastecimento de água se deveu à também cessação do contrato de arrendamento que vigorava entre a Recorrida e o proprietário.
II-Além do mais, a Recorrente não é alheia ao facto de o Tribunal a quo ter ficado sensibilizado com o facto de a Recorrida ter um menor a seu cargo, mas não só essa circunstância não legitima a utilização do imóvel onde o serviço era fornecido, como não elimina da ordem jurídica o valor do caso julgado que o Tribunal recorrido gritantemente afronta!
III-Ora, o Tribunal a quo não pode exigir (como o fez) que a Recorrente (empresa que se dedica ao fornecimento de água) assuma para si causas sociais que não se coadunam com as suas atribuições.
IV-Pois bem, conclui-se que o Tribunal a quo proferiu uma sentença que padece, não só de nulidade, como de erro de julgamento de facto e direito, não deixando dúvidas de que a decisão recorrida deve ser substituída.
V-Neste desiderato, a sentença é nula nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, uma vez que não especifica os concretos fundamentos de direito que permitem afastar a interpretação da Recorrente e, bem assim, os fundamentos existentes são manifestamente contrários ao sentido decisório que veio a ser vertido na sentença.
VI-Todavia, existe uma grave contradição entre os fundamentos de facto e direito e o trecho decisório, considerando que o Tribunal reconhece que o contrato de arrendamento e a legitimidade de ocupação do imóvel terminou em 02.07.2020 mas, por via de um argumentário que não se compreende, considera que a Recorrente andou mal ao ter cessado o fornecimento em 06.10.2020 (isto é, 3 meses depois de ter sido ordenado o despejo!).
VII-Dúvidas não restam de que não pode por um lado o Tribunal reconhecer a cessação do título que legitimava a ocupação do imóvel e, por outro lado e em gritante contradição, referir que a Recorrente é responsável por via de responsabilidade contratual por alegados danos decorrentes de uma privação de um fornecimento que não era devido!
SEM PRESCINDIR,
VIII-O facto vertido no ponto 2 da matéria dada como assente da sentença “No dia 06-10-2020, a ré procedeu ao corte do abastecimento de água na residência da autora, sem aviso prévio”, não reflete a realidade da prova documental e testemunhal produzida.
IX-Ora, do documento n.º 1 da contestação resulta a junção de sentença de Despejo do Processo n.º 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém-Juízo Local Cível de Benavente, transitada em julgado a 02.07.2020, que decreta a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o proprietário do imóvel e a Recorrida e também o despejo do local.
X-Nesses termos, a 06.10.2020 já não existia abastecimento de água no imóvel, não só por solicitação do legitimo proprietário do mesmo, como também por ordem do Tribunal vertida na sentença indicada que já havia transitado em julgado, considerando que impediu que a Recorrida habitasse no local.
XI-Ademais, estas circunstâncias foram corroboradas pela prova testemunhal produzida pela Recorrente, em concreto, pela testemunha Eng. (…), Diretor Comercial da Recorrente na passagem (1:40- 2:36).
XII-Por outro lado, o facto vertido no ponto 11 não reflete a realidade “Entre 06-10-2020 e 30-10-2020, a autora esteve privada do abastecimento de água no imóvel onde residia, com o filho bebé”.
XIII-Nesse desiderato, dada a matéria de facto dada por assente, in casu, o ponto 6 e o ponto 7, o Tribunal a quo deveria ter determinado o seguinte:
“entre 06-10-2020 e 30-10-2020, a autora esteve privada do abastecimento de água no imóvel com o filho bebé, em virtude da cessação do contrato de arrendamento e do despejo operado por sentença transitada em julgado em 02-07-2020”.
XIV-A prova testemunhal produzida também permite dar este facto como assente, em concreto, pela testemunha Eng. (…), Diretor Comercial da Recorrente na passagem (1:40- 2:36).
XV-E o mesmo se diga quanto ao facto vertido no ponto 12, isto porque, conforme decorre da prova documental referida (documento n.º 1 da contestação), a privação de água no imóvel decorreu da inexistência de título para legitimar a ocupação do mesmo, sendo certo que a Recorrente não pode compactuar com fornecimentos em imóveis ocupados ilegalmente.
XVI-Assim sendo, o facto deverá ter a seguinte redação: “em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém-Juízo Local Cível de Benavente, a autora ficou impossibilitada de usar água da rede no imóvel onde antes residia”.
XVII-Tal entendimento deverá ser extensível ao facto vertido no ponto 14 da sentença, considerando que o mesmo deverá apresentar a seguinte redação “em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém- Juízo Local Cível de Benavente, a Autora suportou custos com a aquisição de garrafões de água”.
XVIII-De resto, o mesmo se diga quanto ao facto ínsito no ponto 15 que deverá passar a ter a seguinte redação “em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém-Juízo Local Cível de Benavente, a autora sentiu angústia, desespero, revolta e tristeza, nervosismo, ansiedade e temeu pela sua saúde e pela saúde do seu filho”, por via do disposto no documento n.º 1 da contestação e dos factos dados como assentes em 6 e 7.
XIX-Ademais, não obstante resultar da prova documental apresentada pelas Partes, o Tribunal a quo não deu como provado uma importante matéria que decorre do documento n.º 2 e do documento n.º 4 juntos com a contestação.
XX-Para o efeito, requer-se que seja aditada a seguinte factualidade:
a. Em 12.11.2020, a Ré apresentou um pedido de esclarecimentos, junto da ERSAR (entidade reguladora), de forma a confirmar a legalidade da sua atuação no caso concreto.
b. Tal pedido de esclarecimentos veio a ser alvo de resposta por parte da entidade reguladora consultada, através de ofício datado de 19.02.2021, ao qual foi atribuída a referência (…), onde se pode ler o seguinte: “Sobre a questão colocada, é entendimento da ERSAR que quando os serviços de água tenham sido contratados com base num contrato de arrendamento, o contrato de fornecimento e recolha só pode ser considerado caducado caso seja apresentado novo contrato de arrendamento para o mesmo imóvel (que sendo incompatível com o primeiro, faz presumir a sua prévia extinção), uma denúncia do contrato realizada nos termos da Lei do Arrendamento, ou ainda, como parece ser o caso em concreto, uma decisão judicial que declare o despejo”.
ALÉM DO MAIS,
XXI-No caso sub judice, resulta da factualidade dada como assente que o contrato de arrendamento cessou a sua vigência antes de 15.10.2020, em concreto, em 02.07.2020.
XXII-Por conseguinte, a Recorrente a 06.10.2020 encontrava-se legitimada a proceder ao corte de fornecimento de água, já que a cessação do contrato de arrendamento por decisão judicial emite os mesmos efeitos jurídicos que a cessação desse mesmo contrato por decurso do prazo de vigência, o que foi comprovado por prova documental.
XXIII-Ademais, a Recorrida foi devidamente notificada no âmbito do processo judicial que determinou a resolução do contrato de arrendamento e o despejo, pelo que efeito surpresa algum existia.
XXIV-Ora, se desde 02.07.2020 a Recorrida estava obrigada a desocupar o local, tem pleno conhecimento que não poderia usufruir de um contrato de fornecimento de água de um imóvel que não poderia ocupar.
XXV-In casu, assistimos mesmo à violação do caso julgado na sua vertente material de autoridade de caso julgado.
XXVI-Recordemos que o título habilitante para a manutenção do contrato de fornecimento de água celebrado entre a Recorrente e a Recorrida cessou em momento anterior ao previsto, por força de resolução judicial, declarada por sentença transitada em julgado em 02.07.2020.
XXVII-Ora, é claro que a cessação do contrato de arrendamento por resolução judicial faz caducar o contrato de fornecimento de água entre a Recorrente e a Recorrida.
XXVIII-E não obstante a caducidade não ter operado no termo do prazo aposto – e seguindo a linha de raciocínio do Tribunal recorrido, refutando-a –, nem por isso deixa de existir um estado de certeza.
XXIX-Na verdade, a ratio legis subjacente ao artigo 66.º do Regulamento n.º 406/2020 parece traduzir, no essencial, que o termo do título habilitante implica a caducidade do contrato de fornecimento, ainda que o seu momento genético não seja o da verificação do termo resolutivo propriamente dito.
XXX-Quer dizer, noutras palavras, parece resultar do preceito que a extinção do contrato habilitante implica a extinção do contrato habilitado. XXXI-Nesse pressuposto, como vale como regra que o corte de abastecimento não tem de ser precedido de um aviso prévio porque “o utilizador já sabe, à partida, que a vigência do contrato de fornecimento de água fica dependente da vigência do contrato de arrendamento”.
XXXII-Prolatada a sentença de despejo que resolve o contrato de arrendamento, é do conhecimento da Recorrida – ou pelo menos deveria ser – que o contrato de fornecimento caducou e, reforçando a mesma ideia, uma vez que a causa dessa interrupção é, precisamente, a da caducidade do contrato de fornecimento de água, a interrupção do serviço não carece de aviso prévio.
XXXIII-Ainda que não se considere expectável o corte de abastecimento de água no momento imediatamente após a prolação da sentença, tal se torna rapidamente esperável e provável após o momento de transição em julgado da sentença, a 02.07.2020.
XXXIV-E certamente a Recorrida já o sabia – ou pelo menos deveria saber –, a 06.10.2020, três meses após o decretamento do seu despejo, não existindo qualquer estado de incerteza quanto à vigência do contrato de arrendamento e, por conseguinte, do contrato de fornecimento de água.
XXXV-De resto, muito se estranha que o Tribunal recorrido tome as dores da Recorrida e não dedique qualquer linha ao direito de propriedade do proprietário que viu o seu imóvel ocupado ilegitimamente.
XXXVI-Por outro lado, ainda que se considere que o facto lícito se encontra demonstrado, o que não encontra sustento legal, sempre se diga que a Recorrida não logrou demonstrar o requisito da responsabilidade contratual qualificável como danos.
XXXVII-Ora, a falta de elementos corresponde à falta de prova produzida pela Autora pelo que a solução não poderá passar pela presunção de danos e imputação de quantias à Recorrente.
XXXVIII-Já no que diz respeito ao valor dos honorários suportados com apoio jurídico, estes não são indemnizáveis, entendimento assente pela Jurisprudência.
XXXIX-Acresce que também os danos não patrimoniais foram ilegalmente determinados, pois assistimos apenas a uma clara relação de sentimentos decorrentes do término do título para residir no imóvel, os quais para além de não terem tutela jurídica já que o contrato foi resolvido e o despejo ordenado legalmente, não podem aqui ser imputados à Recorrente.
XL-Recordemos que apenas assistimos a uma cessação de fornecimento de água de um imóvel que já não era legalmente ocupado pela Recorrida, segundo que esse juízo não foi realizado pela Recorrente, mas, antes sim, por um Tribunal.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá:
Ser reconhecida a nulidade da sentença nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Caso assim não se entenda,
Ser o presente recurso quanto à matéria de facto e de direito ser julgado totalmente procedente.
Assim se fazendo justiça!”
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A Autora não apresentou resposta ao recurso.
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O recurso foi adequadamente admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo, por despacho que também se pronunciou sobre as arguidas nulidades de sentença e que ora se transcreve:
“Por ter sido apresentado por quem tem legitimidade, dentro do prazo legal e recaindo sobre decisão susceptível de recurso, admito o recurso interposto pela ré da sentença proferida nestes autos, cfr. artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 638.º, n.º 1, 639.º e 641.º, nºs 1 e 2, a contrario, todos do Código de Processo Civil.
O recurso é de apelação, sobe de imediato e nos próprios autos, e tem efeito devolutivo, cfr. artigos 644.º, n.º 1, alínea a), 645.º, n.º 1, alínea a) e 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
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A circunstância de o Tribunal confirmar que o contrato de arrendamento já tinha cessado, por sentença judicial, não impede que se diga que a recorrente andou mal ao ter cessado o contrato de fornecimento de água, porque não é a ela que cabe a autoridade de executar a decisão de despejo, ainda que de modo enviesado, cortando o fornecimento de água.
Este Tribunal rejeita, assim, que a sentença proferida seja nula nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por não especificar os «concretos fundamentos de direito que permitem afastar a interpretação da recorrente e, bem assim, os fundamentos existentes são manifestamente contrários ao sentido decisório que veio a ser vertido na sentença»”.
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Correram Vistos cumprindo, agora, decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo , pelo que, in casu, impõe-se (re)apreciar as seguintes questões:
1-Nulidades de sentença;
2-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
3-Mérito da sentença, centrando a reapreciação na eventual caducidade do contrato de fornecimento de água à Apelada por efeito do trânsito em julgado de sentença que decretou o despejo da mesma do imóvel onde beneficiava de tal fornecimento e verificação de danos produzidos na esfera da Apelada.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consta do segmento da sentença recorrida atinente à decisão de facto o seguinte:
“II. FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se PROVADOS os seguintes factos:
1) A autora celebrou com a ré, em 09-10-2018, contrato para abastecimento de água no imóvel sito na Rua (…), n.º 6, 2125-184 Marinhais, correspondente ao local de residência da autora.
2) No dia 06-10-2020, a ré procedeu ao corte do abastecimento de água na residência da autora, sem aviso prévio.
3) Nessa data, todos os abastecimentos de água, efectuados pela ré à autora, facturados e vencidos, encontravam-se pagos.
4) Em 07-10-2020, a autora apresentou reclamação do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, no livro de reclamações electrónicas.
5) No dia 12-10-2020, em resposta a e-mail que lhe foi dirigido pela autora em 08-10-2020, por intermédio de mandatário, a ré remeteu-lhe e-mail com o seguinte teor:
«Na sequência do e-mail rececionado nestes serviços somos a informar que o corte de abastecimento ocorrido no local sito na Rua (…), n.º 6, 2125-184 Marinhais é decorrente do pedido formalizado pelo proprietário do local através de apresentação da caderneta predial atualizada, que comprova a titularidade do local e do documento referente à sentença de Despejo do Processo n.º 641/19.2T8BNV-Tribunal Judicial da Comarca de Santarém-Juízo Local Cível de Benavente que decreta a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre ambos.
Esta sentença transitou em julgado a 02/07/2020, sendo que o título que deu origem ao contrato de abastecimento entre a AR e a V/cliente, já não se encontra válido.»
6) Por sentença proferida em 09-03-2020 e transitada em julgado em 02-07-2020, pelo Juízo Local Cível de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, no processo que correu termos sob o n.º 641/19.2T8BNV, foi declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre (…), na qualidade de senhorio, e a ora autora, na qualidade de inquilina, referente ao prédio urbano sito na Rua (…), n.º 6, 2125-184 Marinhais, e foi a autora condenada a entregar àqueloutro este imóvel, livre de pessoas e bens.
7) A autora foi citada para a acção referida em 6) na modalidade de citação com hora certa, não tendo apresentado contestação, e foi notificada da sentença ali proferida por ofício judicial expedido em 13-03-2020, para a morada referida em 1).
8) O contrato de arrendamento referido em 6) foi celebrado em 15-10-2018, pelo prazo de dois anos, com início em 15-10-2018 e termo em 15-10-2020, sem sujeição a renovação.
9) A ré remeteu carta à autora, datada de 23-10-2020, com o seguinte teor:
“Exma. Senhora:
Na sequência da reclamação rececionada nestes serviços e mencionada em epígrafe, somos a informar que o corte de abastecimento ocorrido no local sito na Rua (…), 2125-Marinhais, é decorrente do pedido formalizado pelo proprietário do local através da apresentação da caderneta predial atualizada, que comprova a titularidade do local e do documento referente à sentença de Despejo do Processo n.º 641/19.2T8BNV-Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente, transitada em julgado a 02/07/2020, que decreta a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre ambos.
Verificada a reclamação apresentada e após análise por parte de apoio jurídico, informamos que esta entidade irá proceder ao restabelecimento do fornecimento, na medida em que faz cumprir a prestação de um serviço público essencial à satisfação das necessidades básicas e primárias do cliente até resolução do contrato.”
10) Em 30-10-2020, a ré procedeu ao restabelecimento do fornecimento de água no imóvel referido em 1).
11) Entre 06-10-2020 e 30-10-2020, a autora esteve privada do abastecimento de água no imóvel onde residia, com o filho bebé.
12) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora ficou impossibilitada de usar água da rede para, no imóvel onde residia, tomar banho e dar banho ao seu filho, lavar as roupas de ambos, efectuar a limpeza da casa e cozinhar.
13) Para a realização desses actos, e enquanto durou o referido corte de água, a autora deslocou-se a casa dos seus pais, situada em (…), num número de vezes não concretamente definido, para tanto tendo suportado custos com combustível automóvel.
14) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora suportou custos com a aquisição de garrafões de água.
15) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora sentiu angústia, desespero, revolta e tristeza, nervosismo, ansiedade e temeu pela sua saúde e pela saúde do seu filho.
16) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora despendeu 1.060,00 Euros com despesas de expediente e honorários de advogado que contratou para a patrocinar no procedimento cautelar que instaurou contra a ré e que correu termos no Juízo Local Cível de Benavente sob o número de processo n.º 699/20.1T8BNV, e em que pediu que fosse ordenado à ré o restabelecimento do fornecimento de água na morada referida em 1).
Com relevância para a decisão da causa, julgam-se NÃO PROVADOS os seguintes factos:
a) Que a autora se deslocou às instalações da ré em Salvaterra de Magos e que uma das funcionárias da ré a informou de que o corte de água ocorreu em virtude de apresentação naqueles serviços, pelo proprietário do imóvel, de sentença proferida no âmbito do processo n.º 641/19.2T8BNV;
b) Que até ao momento referido em a), a autora desconhecia o processo judicial que correu termos sob o n.º 641/19.2T8BNV no Juízo Local Cível de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém;
c) Que a casa dos pais da autora situa-se a cerca de 20 quilómetros da sua casa e que a ré se deslocou ali com uma frequência diária, enquanto perdurou o corte de água;
d) Que a autora adquiriu pelo menos um garrafão de água de 5 litros por dia, suportando um custo de 45,63 Euros no mínimo;
e) Que a autora pagou aos seus pais 150 Euros a título de contribuição para despesas de alimentação, uma vez que passou a fazer as suas refeições em casa dos mesmos todos os dias;
f) Que a autora teve que recusar uma oferta de emprego no agrupamento de escolas de Marinhais, com início na segunda semana de Novembro de 2020, e por isso deixou de auferir rendimentos no valor de 1.240,04 Euros, nos meses de Novembro e de Dezembro de 2020.
*
Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão da causa, não tendo sido considerados os factos repetidos, irrelevantes (neste âmbito, designadamente os factos atinentes aos danos alegadamente sofridos pelo filho da autora) conclusivos ou constitutivos de matéria de Direito.”
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1- Nulidades de sentença
A Apelante apontou no seu recurso nulidades à sentença recorrida, que subsumiu às alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Comecemos, então, por nos ocupar dessa questão, na certeza de que o Tribunal a quo pronunciou-se no sentido da inverificação da dita patologia apontada à sentença recorrida.
Decorre do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que:
As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por seu turno, resulta do artigo 154.º do CPC, epigrafado “Dever de fundamentar a decisão”, o seguinte:
1- As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2- A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
Diz-nos o artigo 615.º do CPC, que:
1- É nula a sentença quando:
[…]
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Acrescente-se que por força da previsão do n.º 3 do artigo 613.º do aludido CPC dúvidas não subsistem de que o normativo constante do mencionado artigo 615.º, n.º 1, alínea b), se aplica, também, a outras decisões, incluindo despachos, sem prejuízo do previsto no já mencionado n.º 2 do artigo 154.º do CPC.
Ora, se é certo que a consequência do vicio da falta de especificação dos fundamentos de facto e/ou de direito alicerçantes da decisão é a nulidade, não é menos certo que alinhamos com a doutrina e jurisprudência dominantes que consideram que apenas a falta absoluta de motivação e não a motivação meramente deficiente, incompleta, ou não convincente, conduz àquela nulidade.
Lembrando a lição do Prof. Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 140), só a falta absoluta de motivação constitui nulidade, sendo que a insuficiência ou a mediocridade da motivação afecta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.
Por seu turno, em douto Parecer (Col. Jur., 1995, 1º-7), o Prof. Calvão da Silva defendeu que na sentença, o tribunal tem de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, sob pena de se verificar falta de fundamentação de direito.
Na jurisprudência podemos destacar, a este respeito, entre outros, os acórdãos do STJ de 05/05/2005 (Proc. 05B839); de 21/12/2005 (Proc. 05B2287); de 18/05/2006 (Proc. 06B1441); de 19/12/2006 (Proc. 06B3791); de 10/04/2008 (Proc. 08B396) e de 06/07/2017 (Proc. 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos acessíveis para consulta in www.dgsi.pt., reportando-se os indicados, à excepção do último, ao artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, anterior ao NCPC, cuja redacção, todavia, é idêntica à do actual artigo 615.º, n.º 1, alínea b).
Já o dissemos acima e sublinhamos agora que concordamos com a posição largamente maioritária a nível doutrinário e jurisprudencial salientada.
Argumenta a Apelante que a sentença recorrida “não especifica os concretos fundamentos de direito que permitem afastar a interpretação do Recorrente”.
No entanto, a verificação do vício previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ocorre apenas quando a decisão não contem fundamentos de direito e não já quando os contem independentemente dos mesmos serem aptos a afastar, ou não, os que tenham sido esgrimidos na acção pelas Partes.
Dito isto, basta uma simples leitura da sentença recorrida para se perceber que na mesma o Tribunal a quo apontou vários normativos jurídicos em que se estribou para chegar à solução que veio a abraçar.
Como tal, improcede necessariamente a suposta nulidade de sentença por falta de especificação de fundamentos de direito.
Estatui, ainda, o artigo 615.º do CPC, que:
1- É nula a sentença quando:
[…]
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
[…]”.
Relativamente a esta nulidade definida na alínea c), diz-nos António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª edição atualizada, Almedina, 2020), em anotação ao referido artigo 615.º, o seguinte:
“A nulidade a que se reporta a 1ª parte da alínea c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente” (cfr. pág. 763).
A este respeito, decidiu-se no acórdão proferido no STJ em 14/06/2011 no Processo 214/10.5YRLSB.S1, (acessível para consulta in “Sumários”, 2011, pág. 501), o seguinte:
“A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, na acepção da existência de uma contradição real entre os fundamentos e a respectiva parte dispositiva, acontece quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, mas não já quando se verifica uma errada subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, nem, tão pouco, quando se verifica uma errada interpretação da mesma, situações essas que configuram antes um erro de julgamento”.
Na mesma linha de orientação (adoptada, aliás, pacificamente noutros arestos do mesmo Tribunal), surge o acórdão proferido pelo STJ de 03/02/2011 no Processo n.º 1045/04.7TBALQ.L1.S1 (acessível para consulta in www.dgsi.pt), quando refere que:
“A nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão supõe um vicio intrínseco à sua própria lógica, traduzido em a fundamentação em que se apoia não poder suportar o sentido da decisão que vem a ser proferida”.
Sustenta a Apelante na motivação e conclusões recursivas que na sentença recorrida o Tribunal a quo reconheceu e relevou fundamentos “manifestamente contrários ao sentido decisório que veio a ser vertido na sentença”, posto que, na sua óptica, conduziriam necessariamente a solução diferente da que veio a ser acolhida na dita sentença.
No entanto, analisando os fundamentos de facto plasmados na sentença recorrida não descortinamos a existência de oposição flagrante entre os mesmos fundamentos, entenda-se factos provados e a decisão proferida.
Com efeito, da leitura do exposto na motivação recursiva percebe-se que o que a Apelante defende no tocante à existência de uma suposta contradição prende-se com o mencionado despejo da Apelada do imóvel locado onde a mesma vinha habitando e a posição sustentada na sentença recorrida da obrigação contratual por parte da Apelante de manter o fornecimento de água àquela no dito imóvel no âmbito do contrato de fornecimento que, oportunamente, ambas haviam celebrado entre si.
Ora essa linha de raciocínio adoptada pelo Tribunal a quo a partir de factos considerados como provados não revela oposição, ou contradição, entre premissas e a decisão adoptada, apenas podendo consubstanciar um eventual erro de julgamento, o que será escrutinado infra.
Dito isto, impõe-se concluir também e necessariamente no sentido da não verificação desta segunda nulidade de sentença invocada pela Apelante, improcedendo, em consequência, a mesma.
2-Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Atendendo a que a Apelante impugnou no seu recurso matéria de facto descriminada na sentença recorrida cumpre neste momento debruçarmo-nos sobre tal questão.
Assim, resulta do artigo 640.º do CPC, epigrafado “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto“, o seguinte:
1 – Quando seja impugnada a decisão relativa a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; […]”.
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, 2018, págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas no mencionado n.º 1 e 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Relativamente a esta matéria e entre os muitos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, que sobre tal se pronunciaram, chamamos à colação, a título exemplificativo, o acórdão proferido pelo referido Tribunal em 28/04/2016 (Proc.º 1006/12), acessível para consulta in www.dgsi.pt. de onde nos permitimos transcrever o seguinte excerto constante do respectivo sumário:
“1.Deve considerar-se satisfeito o ónus de alegação previsto no artigo 640.º se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou.”
Resulta, por seu turno, do artigo 662.º do CPC o seguinte:
1-A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Refere a propósito deste normativo António Abrantes Geraldes (obra acima citada, pág. 287), que:
“O actual artigo 662.º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava […] , através dos nºs 1 e 2, alíneas a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Diz-nos ainda sobre este preceito o Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues (“Noções Fundamentais de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição atualizada, 2019, págs. 463-464), o seguinte:
“A redação do preceito [662.º, n.º 1] não parece ter sido muito feliz quando manda tomar em consideração os “factos assentes” para proferir decisão diversa, que só pode ser daqueles mesmos factos considerados assentes, porque o que está em causa é modificar a decisão em matéria de facto proferida pela primeira instância.
[…]
A leitura que se sugere como mais adequada do preceito, salvaguardada melhor opinião, é que ele pretende dizer que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, “confrontados” com a prova produzida ou com um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Nesta sede importa, ainda, recordar o teor dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, relativo à “Sentença”, que se traduzem no seguinte:
4- Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
5- O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” .
A este propósito diz-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, pág. 709), o seguinte:
“O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração […]: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espirito, de acordo com as máximas de experiências aplicáveis”.
Assim, a prova submetida à livre apreciação do julgador não significa prova sujeita ao livre arbítrio do mesmo, como aliás bem se depreende da leitura do n.º 4 do supra referido artigo 607.º do CPC, que na sua primeira parte impõe ao juiz que analise “criticamente” as provas, indique as “ilações tiradas dos factos instrumentais” e especifique os “demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.
Neste domínio referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado, Vol. I”, Almedina, 2ª edição, 2020, pág. 745), o seguinte:
“O juiz deve, pois, expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados.”
Aqui chegados, baixando aos contornos do caso concreto em apreço verificamos que a Apelante pretende impugnar a redacção conferida aos factos vertidos sob os pontos 2.º, 11.º, 12.º, 14.º e 15.º contidos no segmento da sentença recorrida reservado à matéria de facto considerada como provada, bem como pretende que sejam aditados a tal segmento mais dois pontos de facto.
Independentemente da sorte da impugnação, pela leitura do segmento da motivação e das conclusões recursivas entendemos que se encontram razoavelmente cumpridos os ónus de especificação obrigatória prevenidos nas várias alíneas do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, acima transcrito, pelo que urge avançar no sentido da apreciação de tal impugnação.
Assim, considera a Apelante que o facto vertido no ponto 2 do segmento da sentença recorrida relativo aos factos provados deveria ter uma redacção diferente uma vez que não reflete o que decorre do documento junto como “Doc. n.º 1” com a contestação (sentença proferida no processo n.º 641/19.278BNV) e com o depoimento prestado pela testemunha indicada pela Apelante, Eng.º (…), seu director comercial, na passagem identificada pela Apelante transcrita na motivação do recurso (ponto 40.º).
Relembremos a redacção conferida a esse facto na sentença recorrida:
“2) No dia 06-10-2020, a ré procedeu ao corte do abastecimento de água na residência da autora, sem aviso prévio.”
Pretende a Apelante que se confira a esse ponto de facto a seguinte redacção:
em 06.10.2020, a Autora já não tinha título válido para suportar o contrato de fornecimento de água que havia celebrado com a Ré, razão pela qual o proprietário do imóvel requereu a cessação do fornecimento de água”.
Vejamos de que forma motivou o Tribunal a quo a decisão incorporada no aludido ponto 2):
“Os factos provados das alíneas 1) a 4) resultam assentes por acordo das partes”.
Compulsando a petição inicial e a contestação percebemos, porém, que tal facto foi alegado expressamente no artigo 2.º da dita petição e expressamente impugnado nos artigos 2.º e 3.º da contestação, tal como também resultaram impugnados os documentos juntos como “Docs. 2 e 3” juntos com a petição inicial para demonstração do dito facto (cfr. artigos 10.º e 15.º da contestação).
Estão em causa meios de prova não vinculada, com excepção da sentença certificada proferida na acção de despejo que tramitou com o n.º 641/19.2T8BNV, que consubstancia um documento autêntico.
Sucede que da leitura desta última nada se retira que possa contrariar a redacção conferida na sentença recorrida ao ponto de facto 2) ora em análise.
Por seu turno, cotejando devidamente o pequeno excerto do depoimento relevado pela Apelante, produzido por uma pessoa com funções de relevo na Apelante, com o teor dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos com a petição inicial continua a afigurar-se sustentável a redacção conferida na sentença recorrida ao facto vertido no ponto 2).
Na verdade, a data de 06/10/2023, mencionada pela Apelada na reclamação que fez à Apelante como tendo sido a da produção do corte de abastecimento de água sem aviso prévio, não foi contrariada expressamente pela Apelante na resposta à dita reclamação, nem tão pouco tal resulta contrariado frontalmente do aludido excerto de depoimento.
De resto, sempre se acrescentará que atendendo ao que foi considerado na sentença recorrida como não provado sob a alínea a) a eventual alteração pretendida pela Apelante do ponto de facto dado como provado contido em 2), ora em análise, sempre implicaria impugnar tal facto não provado, o que não foi expressamente feito pela Apelante.
Por outra banda, sempre será de registar que a redacção pretendida pela Apelante para o dito ponto 2) dos factos provados se encontra eivada de juízos conclusivos sobre factos.
Isto dito, improcede a impugnação no tocante ao facto contido no ponto 2) do elenco dos factos tidos como provados na sentença recorrida.
Insurge-se a Apelante contra a redacção conferida aos factos contidos nos pontos 11), 12), 14) e 15) do acervo dos factos considerados como provados na sentença recorrida, entendendo que, com base no que foi considerado como provado sob os pontos 6 e 7 do segmento atinente à matéria de facto dada como provada e bem assim no excerto do depoimento indicado supra prestado pela testemunha que arrolou, (…), a redacção dos quatro factos em apreço deveria ser diversa.
Assim, relativamente ao facto vertido sob o ponto 12), que tem como conteúdo que,
“11) Entre 06-10-2020 e 30-10-2020, a autora esteve privada do abastecimento de água no imóvel onde residia, com o filho bebé”, a Apelante sustenta que o seu teor deveria corresponder a “Entre 06-10-2020 e 30-10-2020, a A. esteve privada do abastecimento de água no imóvel com o filho bebé, em virtude da cessação do contrato de arrendamento e do despejo operado por sentença transitada em julgado em 02-07-2020.”
Já no tocante ao facto contido no ponto 12) dos factos provados, que corresponde a “12) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora ficou impossibilitada de usar água da rede para , no imóvel onde residia, tomar banho e dar banho ao seu filho, lavar as roupas de ambos, efectuar a limpeza da casa e cozinhar”, considera a Apelante que a redacção correcta deveria ser “Em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo 641/19.2T8BNV- Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente, a autora ficou impossibilitada de usar água da rede no imóvel onde antes residia”.
Por seu turno, quanto ao facto contido sob o ponto 14) dos factos provados, que possui como redacção “14) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora suportou custos com a aquisição de garrafões de água”, defende a Apelante que a redacção correcta deveria ser que “Em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo n.º 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Cível de Benavente, a Autora suportou custos com a aquisição de garrafões de água.”
E por fim, no tocante ao teor do ponto 15) dos factos considerados como provados que tem como redacção “15) Em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora sentiu angústia, desespero, revolta e tristeza, nervosismo, ansiedade e temeu pela sua saúde e pela saúde do seu filho”, a Apelante entende que a redacção correcta deveria ser “Em consequência do decidido na sentença transitada em julgado e proferida no âmbito do processo 641/19.2T8BNV – Tribunal Judicial da Comarca de santarém – Juízo Local Cível de Benavente, a autora sentiu angústia, desespero, revolta e tristeza, nervosismo, ansiedade e temeu pela sua saúde e pela saúde do seu filho”.
O Tribunal a quo fez constar no segmento relativo à motivação da sentença quanto aos factos acabados de transcrever o seguinte:
“Relativamente ao período em que a autora esteve privada de água na sua residência e aos danos sofridos em consequência dessa privação – factos provados das alíneas 11) a 15) – o Tribunal valeu-se das declarações da sua irmã, (…), que, como se disse, se afiguraram verosímeis e comedidas, e como tal assaz fortes para formar uma convicção positiva sobre tais factos. De resto, nenhuma outra testemunha mostrou conhecimento, directo ou indirecto, destes danos.
Confirmou (…) que, efectivamente, a autora, durante o período em que durou o corte de água, não pôde cozinhar, lavar roupa ou tomar banho em sua casa, e que para fazer face à situação chegou a comprar garrafões de água e a deslocar-se a casa dos pais, em (…), sendo que era a testemunha que por vezes lhe dava boleia, embora fosse a autora a pagar o combustível.
Esta testemunha não conseguiu, porém, precisar quantos garrafões de água a autora comprou ou a que distância concreta ficava a casa dos pais da autora, ou até quantas vezes a autora ali se deslocou. Por esta razão foram julgados não provados os factos das alíneas c) e d).”
Impõe-se dizer no tocante à impugnação da redacção dos quatro pontos de facto em apreço, ora em análise – 11), 12), 14) e 15) –, que a apelante carece de razão no que sustenta.
Na verdade, a redacção conferida na sentença recorrida aos pontos de facto 6) e 7) dos factos provados não implica de forma alguma que a redacção a conferir aos pontos de facto 11), 12), 14) e 15) do acervo dos factos provados deva conter o pretendido pela Apelante, desde logo porque, como já o referimos supra, nada decorre factualmente da sentença proferida na acção de despejo n.º 641/19.2T8BNV, que permita concluir que a ausência / corte de abastecimento de água na casa onde a Apelada vinha residindo tenha resultado directa e necessariamente da resolução do contrato de arrendamento e consequente despejo decidido e decretado em tal acção.
Note-se que no tocante à redacção pretendida para os pontos de facto 14) e 15) a Apelante foi bem mais longe e pretendeu mesmo ligar a suposta repercussão dos efeitos da cessação judicial, por resolução, do contrato de arrendamento e consequente despejo da Apelada não já à ausência ou corte de abastecimento de água no locado, mas sim à despesa feita por aquela com aquisição de garrafões de água e a danos morais sofridos pela Apelada, não se podendo olvidar que na presente acção não se discute quaisquer danos patrimoniais ou morais supostamente decorrentes do despejo decretado.
No que concerne ao excerto do depoimento da testemunha Eng.º (…), importa salientar que o mesmo se limitou a transmitir que a Apelante deixou de abastecer de água o locado habitado pela Apelada porque o senhorio desta última terá requerido a rescisão do contrato de abastecimento outorgado entre a Apelada e a Apelante com base no facto de ter sido judicialmente decretada a resolução do contrato de arrendamento e consequente despejo da Apelada.
Ora sucede, conforme até decorre do que supra foi sendo dito, que este excerto de depoimento não permite demonstrar que foi por virtude, ou em consequência, da sentença que decretou o despejo da Apelada que cessou o contrato de fornecimento de água anteriormente outorgado entre Apelante e Apelada e menos ainda que danos consequentes à ausência/corte de abastecimento de água resultaram do impacto e efeitos da aludida sentença.
Do que fica exposto improcede igualmente a impugnação no tocante aos factos contidos nos pontos 11), 12), 14) e 15) do elenco dos factos tidos como provados na sentença recorrida.
Requereu ainda a Apelante a inserção no segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida do seguinte:
“a. Em 12.11.2020, a Ré apresentou um pedido de esclarecimentos, junto da ERSAR (entidade reguladora), de forma a confirmar a legalidade da sua atuação no caso concreto.
b. Tal pedido de esclarecimentos veio a ser alvo de resposta por parte da entidade reguladora consultada, através de ofício datado de 19.02.2021, ao qual foi atribuída a referência O-001207/2021, onde se pode ler o seguinte: “Sobre a questão colocada, é entendimento da ERSAR que quando os serviços de água tenham sido contratados com base num contrato de arrendamento, o contrato de fornecimento e recolha só pode ser considerado caducado caso seja apresentado novo contrato de arrendamento para o mesmo imóvel (que sendo incompatível com o primeiro, faz presumir a sua prévia extinção), uma denúncia do contrato realizada nos termos da Lei do Arrendamento, ou ainda, como parece ser o caso em concreto, uma decisão judicial que declare o despejo”.
Indicou como meios probatórios concretos atinentes à demonstração do conteúdo de tais pontos de facto os documentos juntos com a contestação identificados como n.ºs 2 e 4.
Contudo, percebemos que o conteúdo de tais pontos não reveste importância para a decisão do presente pleito, considerando as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Na verdade, está em causa apenas um esclarecimento, perfunctoriamente exposto, como tal longe de equivaler a um parecer jurídico sobre a matéria, de uma entidade reguladora que em nada pode influenciar e menos ainda vincular o Tribunal no tocante à respectiva apreciação e decisão do pleito.
Pelo exposto, julga-se improcedente o pretendido aditamento à matéria de facto provada.
Destarte, improcede na totalidade a impugnação relativa à decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, mantendo-se, em consequência, esta última incólume.
*
3-Do Mérito
Independentemente da sorte da impugnação da matéria de facto, que, aliás, resultou totalmente improcedente, entende a Apelante que operou a caducidade do contrato de fornecimento de água à habitação identificada no ponto 1) dos factos considerados como provados na sentença recorrida celebrado com a Apelada por efeito do trânsito em julgado da sentença que decretou a resolução do contrato de arrendamento que aquela outorgara com o senhorio de tal habitação e bem assim o consequente despejo da mesma do locado.
Será que lhe assiste razão?
Pensamos que não.
Debrucemo-nos sobre o teor da sentença recorrida a fim de recordarmos o argumentado na mesma sobre a questão.
“[…]
Que dizer?
Tudo visto e ponderado, pensamos que o corte de abastecimento de água dos autos efectivamente não tem cobertura na norma regulamentar invocada pela ré.
Com efeito, procedendo a uma análise global do Regulamento n.º 406/2020, de 17 de Abril, um princípio geral ressalta deste diploma: só tem direito a celebrar um contrato de abastecimento de água quem possui título válido para a ocupação do respectivo local de consumo – vide v.g. artigos 59.º e 61.º do Regulamento.
Em face do disposto no artigo 59.º, n.º 3, do Regulamento não oferece dúvida que o contrato de arrendamento constitui título válido de ocupação para efeitos de legitimar o inquilino a celebrar um contrato de abastecimento de água para o locado, como sucedeu no caso dos autos.
Todavia, note-se que esse princípio – de que a ré também lança mão para legitimar o corte de abastecimento – prende-se com a constituição do contrato de abastecimento de água.
Para a cessação desse contrato, há que convocar outros princípios e normas, desde logo, a norma ínsita no artigo 63.º, n.º 3, do Regulamento – «A cessação do contrato de fornecimento de água ocorre por denúncia, nos termos do artigo 65.º, ou caducidade, nos termos do artigo 66.º».
O artigo 65.º do Regulamento prevê, no n.º 1, que a denúncia do contrato pode ser operada pelos utilizadores a todo o tempo, por motivo de desocupação do local de consumo, desde que o comuniquem por escrito à entidade gestora e facultem a nova morada para envio da última factura. E no n.º 4, prevê que a entidade gestora pode denunciar o contrato caso, na sequência da interrupção do serviço por mora no pagamento, o utilizador não proceda ao pagamento em dívida com vista ao restabelecimento do serviço no prazo de dois meses.
Por seu turno, o artigo 66.º do Regulamento, sob a epígrafe «Caducidade», prevê no seu n.º 1 que «Nos contratos celebrados com base em títulos sujeitos a termo, a caducidade opera no termo do prazo respectivo.» e no seu n.º 4, que «A caducidade tem como consequência a retirada imediata dos respectivos contadores e o corte do abastecimento de água e a extinção das obrigações do proprietário do imóvel enquanto depositário do contador».
Conforme já dito, é no preceituado nos nºs 1 e 4 deste artigo 66.º que a ré subsume a sua conduta de corte do abastecimento de água.
Do exposto decorre, portanto, que a ré se funda, não numa situação de interrupção ou suspensão do abastecimento – com enquadramento nos artigos 22.º e 23.º do Regulamento – mas na própria cessação do contrato de fornecimento celebrado com a autora, por caducidade.
A questão no caso é que, a nosso ver, em 06-10-2020 (data em que a ré procedeu ao corte do abastecimento de água) não se encontravam reunidos os pressupostos fácticos para a caducidade do contrato de fornecimento celebrado entre a autora e a ré, tal como previstos no referido artigo 66.º, n.º 1.
É que a caducidade consagrada nessa disposição está estritamente prevista para o termo do prazo aposto no título de ocupação, que no caso é o contrato de arrendamento. Claramente, não é o que ocorre no caso, dado que o prazo aposto no contrato de arrendamento celebrado entre a autora e o senhorio do local de consumo, era de dois anos e terminava apenas em 15-10-2020.
Quer isto dizer que, apenas na data de 15-10-2020 a ré estaria legitimada pelo disposto no artigo 66.º, nºs 1 e 4, do Regulamento a proceder ao corte do abastecimento de água «de imediato», ou seja, com a simples ocorrência do termo do contrato de arrendamento.
O que se verificou no caso, porém, é que o contrato de arrendamento cessou em momento anterior a essa data, por força de resolução, declarada por sentença transitada em julgado em 02-07-2020.
Trata-se de uma situação claramente diferente da caducidade prevista no artigo 66.º, n.º 1, do Regulamento, desde logo porque, na situação prevista neste artigo, o utilizador já sabe à partida, desde a data da celebração do contrato de fornecimento de água, que a vigência deste contrato fica dependente da vigência do título de ocupação, v.g. o contrato de arrendamento.
Tratando-se de uma resolução do contrato de arrendamento essa expectativa não existe à partida, porque a resolução terá outro fundamento que não o simples decurso de um prazo previamente estipulado.
Daí que se compreenda que, verificando-se a caducidade prevista no artigo 66.º, n.º 1, do Regulamento, a entidade gestora possa de imediato proceder ao corte de água e retirada dos contadores, sem aviso prévio, ao passo que, em caso de denúncia pela entidade gestora (artigo 65.º do Regulamento), assim como em grande parte das situações de interrupção do abastecimento por factos imputáveis ao utilizador (artigo 23.º do Regulamento), o corte do abastecimento tenha que ser precedido de um aviso prévio.
Em conclusão, julga-se que, contrariamente ao defendido pela ré, o corte de abastecimento de água a que procedeu na situação sub iudice, não encontra cobertura legal e, sendo assim, tem que ser reputado de ilícito.
Reforçando, cumpre afastar o argumento de que a ré agiu estritamente no respeito por uma sentença judicial – aquela que declarou resolvido o contrato de arrendamento e que ordenou o despejo do local de consumo pela autora – desde logo, porque esta sentença não produzia efeitos quanto a si, mas apenas entre as respectivas partes, além de que importa considerar que casos há em que, por razões sociais imperiosas, é possível ao inquilino, mesmo já depois de lhe ser ordenado o despejo por decisão judicial, pedir ao Tribunal o deferimento da desocupação do locado quando destinado a habitação, cfr. artigo 864.º do Cód. Proc. Civil. Veja-se que, nesses casos, é o próprio legislador que, por valores superiores inerentes à protecção da habitação, admite o deferimento da execução de uma sentença de despejo.
É, pois, falacioso o argumento de que, se a ré não procedesse ao corte de água quando confrontada com a sentença de despejo pelo proprietário do local de consumo, estaria a agir contra uma ordem judicial.
Admite-se que, em tese, a perda do título válido para a ocupação do local de consumo, por parte do utilizador do abastecimento de água, merece ser ponderada como causa geral de cessação do contrato de abastecimento de água, mas não sem algumas cautelas, como por hipótese, um aviso prévio ao utilizador ou a sua audição prévia, por forma a prevenir resultados desproporcionais ou injustos, já que o acesso ao fornecimento de água é um direito com dignidade constitucional. Com efeito, a Constituição assegura um conjunto de direitos que visam a protecção de uma vida com as necessárias condições humanas, de saúde e de qualidade ambiental (artigos 64.º, 65.º e 66.º), para a efectivação dos quais o acesso ao fornecimento de água é essencial. […]”
Desde já impõe-se sublinhar a correcta apreciação e conclusões a que chegou o Tribunal a quo relativamente a esta questão da caducidade, recorrendo a uma exposição clara, sóbria e convincente, que, a nosso ver, poucos acrescentos demanda.
Com efeito, a Apelante equivoca-se ao defender que o contrato de prestação de serviço traduzido no fornecimento de água outorgado entre si e a Apelada em 09/10/2018 caducou automaticamente por mero efeito da cessação do contrato de arrendamento fundada em resolução, com decretamento do consequente despejo, celebrado em 15/10/2018 entre a Apelada e o senhorio (…), na medida em que, como bem se demonstra na sentença recorrida, tal consequência jurídica não resulta nem da previsão da Lei dos Serviços Públicos aprovada pela Lei n.º 23/06, de 26/07, nem do Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, de Saneamento de Águas Residuais e de Gestão de Resíduos Urbanos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, nem tão pouco do Regulamento n.º 406/2020, de 17/04, que visou estabelecer as regras e o condicionalismo a que deve obedecer o serviço de abastecimento publico de água destinada ao consumo humano em vários municípios, incluindo o de Salvaterra de Magos, que inclui a freguesia onde se localiza o imóvel que foi objecto de arrendamento celebrado em 15/10/2018 entre a Apelada e o proprietário daquele (…).
Na verdade, perpassa pela contestação da Apelante reiterada na motivação e conclusões recursivas que aquela se escuda na previsão do artigo 66.º do aludido Regulamento 406/2020, de 17/04, publicado no DR n.º 76/2020, Série II, de 17/04/2020, para sustentar a sua tese de que com o trânsito em julgado, operado em 02/07/2020, da sentença que decretou a resolução judicial do contrato de arrendamento e consequente despejo no processo n.º 641/19.2T8BNV o contrato de fornecimento de água anteriormente outorgado entre Apelante e Apelada caducou imediatamente, pois esta última ficou obrigada a desocupar o locado e com pleno conhecimento de que não poderia continuar a usufruir do fornecimento de água num imóvel que não poderia continuar a ocupar.
Relembremos, desde já, o que se prevê no artigo 63.º do Regulamento acima identificado:
3 - A cessação do contrato de fornecimento de água ocorre por denúncia, nos termos do Artigo 65.º, ou caducidade, nos termos do Artigo 66.º”.
Sendo que do aludido artigo 66.º resulta que:
1 - Nos contratos celebrados com base em títulos sujeitos a termo, a caducidade opera no termo do prazo respetivo.
2 - Os contratos referidos no n.º 2 do artigo 60.º podem não caducar no termo do respetivo prazo, desde que o utilizador prove que se mantêm os pressupostos que levaram à sua celebração.
3 - Os contratos caducam ainda por morte do titular, salvo nos casos de transmissão por via sucessória quando demonstrada a vivência em economia comum nos termos do artigo 61.º, ou, no caso do titular ser uma pessoa coletiva, aquando da sua extinção.
4 - A caducidade tem como consequência a retirada imediata dos respetivos contadores e o corte do abastecimento de água e a extinção das obrigações do proprietário do imóvel enquanto depositário do contador.”
No caso concreto o título justificativo para a constituição do contrato de abastecimento / fornecimento de água no imóvel identificado nos autos foi de facto o contrato de arrendamento outorgado em 15/10/2018 entre a Apelada e o proprietário do dito imóvel, (…), contrato esse em que se previu um prazo certo (sem sujeição a renovação), de dois anos, com inicio em 15/10/2018, ocorrendo, como tal, o seu termo em 15/10/2020.
Por consequência, à luz da norma expressa no aludido artigo 66.º, n.º 1, a caducidade do contrato de fornecimento de água operaria somente em 15/10/2020, podendo apenas a partir dessa data, por se tratar de consequência da caducidade contratual, a Apelante proceder ao corte de abastecimento de água no local habitado pela Apelada.
A construção jurídica baseada na interpretação que a Apelante pretendeu fazer vingar nos autos do dito artigo 66.º, n.º 1, do Regulamento n.º 406/2020 não é aceitável, como bem se explicou na sentença recorrida, sublinhando-se aqui e agora que não decorre minimamente da letra da norma, nem da sistemática do diploma onde se encontra inserida, nem da mens legislatoris, sendo que relativamente a esta última sempre se acrescenta que caso a possibilidade de cessação/extinção por resolução judicial do título justificativo, ou habilitante, decretada por sentença transitada em julgado, tivesse perpassado pelo espírito do legislador como causa de imediata caducidade do contrato de abastecimento de água teria razão de ser que algo tivesse sido referido na “Nota justificativa” que consta do Regulamento n.º 406/2020, de 17/04 exposta imediatamente antes da descriminação normativa, nada constando nela nesse sentido.
Em suma, a norma do artigo 63.º, n.º 3, do Regulamento n.º 406/2020, de 17/04, quis apenas abarcar a possibilidade de cessação do contrato de fornecimento de água num determinado local ocorrer, ou por denúncia, levada a cabo pelo utilizador, ou pela Entidade Gestora, pelos motivos e seguindo as regras e com respeito pelos prazos previstos no artigo 65.º do dito Regulamento, ou por caducidade do dito contrato, resultante do termo do prazo do próprio título habilitante, ou seja pela caducidade também deste último, de acordo com o disposto no artigo 66.º, n.º 1, ainda do aludido Regulamento, ou ainda por caducidade por morte do titular do contrato fundamento esse prevenido no n.º 3 do dito artigo, situação que no caso concreto não se coloca.
Tendo a Apelante procedido ao corte de fornecimento de água em 06/10/2020, ou seja nove dias antes do dia 15/10/2020, sem qualquer aviso prévio ou pré-aviso dirigido à Apelada e sem fundamento para denúncia contratual incorreu a mesma em incumprimento contratual, traduzido no dito corte de fornecimento de água sem apoio normativo e como tal ilícito, presumindo-se a culpa da entidade obrigada a tal fornecimento, no caso a Apelante, presunção essa que esta última não logrou repelir como se constata pela leitura dos factos considerados como provados na sentença recorrida.
Nas respectivas conclusões recursivas insurge-se ainda a Apelante relativamente à verificação de danos e concretamente aos que foram relevados na sentença recorrida, entendendo não terem ficado demonstrados
Recordemos o que ficou expresso na sentença recorrida a esse respeito:
“[….]
Isto posto, calcorreando a decisão sobre a matéria de facto provou-se que:
- em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora ficou impossibilitada de usar água da rede para, no imóvel onde residia, tomar banho e dar banho ao seu filho, lavar as roupas de ambos, efectuar a limpeza da casa e cozinhar;
- para a realização desses actos, e enquanto durou o referido corte de água, a autora deslocou-se a casa dos seus pais, situada em (…), num número de vezes não concretamente definido, para tanto tendo suportado custos com combustível;
- em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora suportou custos com a aquisição de garrafões de água;
- em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora despendeu 1.060 Euros com despesas de expediente e honorários de advogado que contratou para a patrocinar no procedimento cautelar que instaurou contra a ré e que correu termos no Juízo Local Cível de Benavente sob o número de processo n.º 699/20.1T8BNV, e em que pediu que fosse ordenado à ré o restabelecimento do fornecimento de água.
Nesta parte estão em causa danos patrimoniais, sofridos pela autora com custos de aquisição de combustível e de garrafões de água, que o Tribunal não consegue quantificar por falta de elementos. Sendo assim, e nesta parte, vai a ré condenada a indemnizar a autora por tais danos, em montante a liquidar em incidente de liquidação de sentença, cfr. artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Quanto aos custos suportados com despesas judiciais e honorários, porque já liquidados, vai condenada a ré a pagar a quantia de 1.060 Euros.
Quanto a danos provou-se, também, que, em consequência do corte de abastecimento de água levado a cabo pela ré, a autora sentiu angústia, desespero, revolta, tristeza, nervosismo e ansiedade, e temeu pela sua saúde e pela saúde do seu filho.
Estes danos têm natureza não patrimonial e são suficientemente graves para merecerem a tutela do direito, cfr. artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil.
O quantum da indemnização dos danos não patrimoniais é fixado de acordo com a equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que o caso justifique, cfr. artigo 494.º, ex vi artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil.
Na medida dos factos apurados, considerando nomeadamente o grau de gravidade dos danos sofridos pela autora – que se reputa mediano –, o grau de culpa da ré – que é mediano, considerando nomeadamente a complexidade da regulamentação jurídica do caso e a iniciativa do restabelecimento do fornecimento de água –, o número de dias de privação de água – 9 dias –, a capacidade económica e natureza da autora e da ré – respectivamente consumidora e entidade profissional, apelando a padrões económicos da normalidade vigente na comunidade em que a autora e a ré se inserem, julga-se adequada a quantia de 1.250 Euros, a pagar pela ré à autora, a título de indemnização por danos morais, quantia esta, actualizada na data da presente decisão.”
Concordamos em larga medida com o que ora acabámos de transcrever a partir da sentença recorrida, pois ao contrário do argumentado pela Apelante resulta inequivocamente dos factos considerados como provados a produção de danos patrimoniais e não patrimoniais que atingiram a esfera da Apelada em consequência directa do corte de abastecimento de água levado a cabo pela mesma no local onde a Apelada ainda se encontrava a viver, não sendo os mesmos uma eventual decorrência do despejo decretado judicialmente noutro processo judicial como pretende fazer querer a Apelante.
Reportamo-nos, designadamente, aos danos elencados nos pontos de facto vertidos sob os nºs 12) a 15) do segmento dos factos considerados como provados na sentença recorrida, sendo certo que o facto de a quantia despendida com a aquisição de garrafões de água e a despendida com aquisição de combustível necessário para deslocações não ter sido concretamente determinada não permite que se conclua estarem apenas em causa danos presumidos, mas sim danos cujo montante concreto não se encontra ainda determinado, sendo todavia determinável, precisamente através de incidente de liquidação de sentença, como ficou decidido no dispositivo da sentença.
Sem embargo, julgamos que assiste razão à Apelante no tocante aos montantes atinentes a despesas de expediente e honorários de advogado, pois está em causa um procedimento cautelar que, pese embora tenha sido consequência do corte de fornecimento de água levado a cabo pela Apelante, conforme resulta provado sob o ponto 16) do segmento respeitante aos factos provados na sentença recorrida, decorreu precisamente entre as mesmas Partes destes autos, ou seja as ora Apelante e Apelada, sendo passível de aplicação o regime específico de compensação das custas de parte de acordo com o reafirmado no recente acórdão proferido pelo STA devidamente identificado pela Apelante no ponto 120 da sua motivação recursiva.
Decorre desse aresto proferido em 05/03/2020 no processo n.º 0284/17.5BELSB, acessível para consulta in www.dgsi.pt que:
[…] a compensação do dano resultante do pagamento por uma das partes dos honorários do seu advogado só está legalmente prevista a título de custas de parte e nas situações de litigância de má fé (artigo 543.º do CPC) e de demanda quando a obrigação ainda não é exigível (artigo 610.º, n.º 3, do CPC). No contexto da tributação processual, essa compensação obedece, como vimos, a um regime específico que não se confunde com o da responsabilidade civil, não lhe sendo, designadamente, aplicável o disposto nos artigos 564.º, n.º 1 e 566.º, n.º 2, ambos do Código Civil. Fora deste contexto, a previsão legal cinge-se às referidas situações excepcionais de litigância de má fé e de inexigibilidade da obrigação.
Assim, na esteira da atrás referida jurisprudência do STJ, entendemos que do sistema legal vigente – em princípio coerente e obedecendo a um pensamento unitário – resulta que é através da compensação devida a título de custas de parte que são reembolsadas as despesas realizadas pela parte vencedora com o mandato judicial e quando o legislador pretendeu que essas despesas fossem integralmente ressarcidas indicou expressamente as situações em que tal ocorria e a parte sobre que impendia a obrigação. Nestes termos, prevendo a lei, especificamente, a sua compensação através das custas de parte, não podem os aludidos honorários ser considerados danos causados por acto ilícito e não se verificando nenhuma das referidas situações excepcionais, tal compensação só pode ser obtida ao abrigo do regime das custas de parte. […]”
Este entendimento segue a corrente jurisprudencial praticamente uniforme do Supremo Tribunal de Justiça difundida em alguns arestos anteriores de que destacamos a título de exemplo os acórdãos de 15/6/93, pub. in BMJ 428-530, de 3/12/98 – Proc. n.º 1136/98, de 15/3/2007 – Proc. n.º 07B220, de 23/9/2008 – Proc. n.º 08A2109, de 2/7/2009 – Proc. n.º 5262/05.4TVLSB.S1 e de 15/1/2019 – Proc. n.º 5792/15.0TBALM.L1.S2.
Neste último aresto, citado, entre outros, no acórdão do STA, a que acima aludimos, acessível para consulta in www.dgsi.pt, podemos ler o seguinte:
Nos termos do disposto no artigo 529.º, n.º 1, do CPC as custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte. As custas de parte compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária, nos termos do Regulamento das Custas Processuais. Por sua vez, estabelece-se no artigo 533.º, n.º 1, do CPC que as custas da parte vencedora são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais. E no n.º 2 do mesmo normativo, estatui-se, a título exemplificativo, que as custas de parte englobam as seguintes despesas:
a) As taxas de justiça pagas;
b) Os encargos efetivamente suportados pela parte;
c) (…).
d) Os honorários do mandatário e as despesas por este efetuadas.
Estas normas estão conexionadas com o disposto no Regulamento das Custas Processuais, pelo que “não obstante este normativo se reportar à vertente das custas de parte a que alude em termos exemplificativos, o que está para além dele só pode relevar se o Regulamento, para o qual o artigo 529.º, n.º 4, remete, o estabelecer” [cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais, 6.ª edição, pág. 31]. Ora, a respeito do montante dos honorários pagos ao mandatário judicial, o Regulamento prevê limitações ao correspondente direito da parte vencedora no confronto com a parte vencida.
Efetivamente, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 25.º do RCP, em conjugação com o disposto no n.º 3, alínea c), do artigo 26.º do mesmo Regulamento, a compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do seu mandatário judicial tem o limite máximo de metade do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora.
Tal não significa que o mandatário judicial não possa pedir ao seu cliente os honorários que entenda dever-lhe apresentar e que tenham sido calculados de acordo com o que houver sido estipulado entre si.
O que o legislador teve em vista ao estabelecer uma determinada compensação, a título de custas de parte, não é, naturalmente, cercear a liberdade de estipulação da remuneração no âmbito do mandato forense, mas apenas garantir à parte vencedora um simples contributo, a suportar pela parte vencida, com aquela finalidade.
Como salienta Salvador da Costa, ob. cit., pág. 221, “o pagamento das custas de parte previsto nesta alínea (está a referir-se à alínea c) do n.º 3 do artigo 26.º do RCP) configura-se como indemnização baseada em responsabilidade processual civil, tendente a compensar a parte vencedora, na respetiva proporção, das despesas com os honorários de advogados ou solicitadores que a patrocinaram”.
(…).
Tem sido este, aliás, o entendimento seguido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal.”
Resultando bem explícito na nota sumativa do mencionado aresto que:
“Salvo nos casos de litigância de má fé e de demanda quando a obrigação ainda não era exigível, as despesas realizadas com o processo, incluindo o pagamento dos honorários, apenas podem ser compensadas a título de custas de parte, nos termos previstos nas disposições correspondentes do Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.”
Concordamos com a posição expendida nos aludidos arestos pelo que relativamente à questão atinente a “expediente e honorários” suscitada no recurso da Apelante impõe-se reconhecer-lhe razão, de que resulta proceder nessa parte a pretensão recursiva da Apelante.
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V- DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso interposto pela Apelante Águas do Ribatejo, E.I.M., S.A., decidindo-se, em consequência, o seguinte:
I-Revogar a alínea a) do dispositivo da sentença recorrida, a qual passará a ter a seguinte redacção:
a) Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia, a liquidar em incidente de liquidação de sentença, correspondente aos custos por esta suportados com a aquisição de combustível para a realização das deslocações entre a sua casa e a casa dos seus pais, e com a aquisição de garrafões de água, no período entre 06-10-2020 e 15-10-2020, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal civil, desde a data da citação até integral pagamento;
II-Confirmar em tudo o mais o decidido na sentença recorrida;
III-Condenar em custas do recurso Apelante e Apelada, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 70% para a primeira e em 30% para a segunda (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).
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Évora, 19 de Março de 2024
José António Moita (Relator)
Manuel Bargado (1º Adjunto)
Francisco Xavier (2º Adjunto)