Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1573/10.5TBLGS.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
SERVIDÃO DE ESTILICÍDIO
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Existindo servidão de estilicídio o titular do prédio serviente não pode impedir o escoamento normal da água pelo seu prédio.
2. Tendo as águas pluviais caídas no telhado do prédio dominante deixado de serem escoadas pelo meio que vinha sendo usado, através do prédio serviente, passando agora a fazer-se pelo interior de uma parede comum, passando, previamente, por um carreiro o qual foi aberto um buraco que liga ao tubo instalado no interior da dita parede, foi posto em causa o conteúdo da servidão.
3. Não tendo sido a mudança no modo de escoamento das águas previamente acordada entre os proprietários do prédio serviente e do prédio dominante, ou não sendo possível o acordo, não tendo sido solicitado perante o tribunal o reconhecimento do direito de mudança, com a consequente alegação e prova de factos da necessidade de mudança e bem assim das vantagens que para o proprietário do prédio serviente se apresentavam e da ausência de prejuízos para o proprietário do prédio dominante, a alteração efetuada não se pode ter por lícita.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

AA, residente na Rua …, nº …, … andar, …, Lisboa, intentou contra BB, residente na Rua …, nº …, … Lagos, ação declarativa de condenação, com processo ordinário, que corre termos no Tribunal da Comarca de Faro (Lagos – Instância Local – Secção de Competência Genérica - J2), peticionando a condenação da ré a proceder à demolição das edificações que realizou, repondo o seu prédio no estado em que este se encontrava anteriormente, designadamente, demolir a cércea nas empenas que confinam a norte e nascente com o prédio da autora, e o terraço a tardoz, e ainda todas as construções que se mostrem edificadas de forma ilegal, e que seja condenada no pagamento de uma indemnização à autora pelos danos resultantes das construções indevidas causados no prédio desta, a qual será apurada em sede de execução de sentença.
Como sustentáculo do peticionado, alega, em síntese:
- A autora e a ré são donas de prédios confinantes, que tinham um telhado - comum, por onde escoavam as águas pluviais que corriam da parte do telhado da autora para a parte do telhado da ré, a cota inferior, situação que existia há mais de 50 anos;
- Sem o consentimento nem o conhecimento da autora, em 2008, a ré alterou o escoamento das águas pluviais que escorriam pelo telhado comum, quebrando-o, na parte em que as casas confinavam entre si, elevando o seu telhado relativamente ao da autora em cerca de um metro e meio, apoiando-o num muro/parede dessa altura que erigiu sobre a parede comum, e improvisou um sistema para escoar as águas pluviais do telhado da Autora, mediante a introdução de uma caleira dentro da parede divisória comum, deixando um carreiro entre o telhado e o muro/parede que erigiu, com a largura aproximada de 50 cm, carreiro onde abriu um buraco para a caleira destinado a que as águas pluviais do telhado da autora por aí escoassem;
- Como consequência dessas alterações tal muro/parede que erigiu passou a funcionar como uma barreira ao escoamento dessas águas, acumulando-se a água ao longo do carreiro de onde segue para o tubo colocado no interior da parede divisória comum, encharcando-a, causando infiltrações da água da chuva no imóvel da Autora, nas paredes das casas de banho e do quarto constituídas pela parede comum, infiltrações que resultam da inadequação do sistema que foi improvisado de escoamento, em virtude dos materiais de construção da parede comum não apresentarem características de impermeabilidade suficientes para permitirem que o escoamento se fizesse pelo interior da parede, e, também de não ter sido isolada corretamente a parte onde se encontra construído o dito carreiro;
- A ré abriu um terraço, a tardoz, cuja parede/muro se encontra erigida sobre parede própria do prédio da Autora.
Citada a ré veio contestar por exceção e por impugnação. Naquela sede invocou a existência de caso julgado, em virtude de entre as mesmas partes e com os mesmos fundamentos a autora ter interposto providência cautelar de embargo de obra nova contra as alterações introduzidas pela Ré que foi julgada improcedente por sentença.
Em sede de impugnação salientou que as obras foram devidamente licenciadas pela Câmara de Aljezur, mediante projeto submetido e aprovado àquela entidade e foram executadas por técnico habilitado e devidamente vistoriadas, que a parede mestra comum tem uma largura aproximada de 3m, que a autora acompanhou as obras em Janeiro de 2009 por técnico por si indicado, que o escoamento das águas pluviais se faz segundo o sistema indicado, mas exclusivamente, na metade da parede pertença da Ré, que é o estado de abandono em que a autora tem mantido o seu prédio que origina focos de humidade e de insalubridade nas paredes.
A ré pediu a condenação da autora, em multa e indemnização, como litigante de má fé.
No saneador foi julgada improcedente a exceção de caso julgado.
Realizada audiência de julgamento veio a ser proferida sentença cujo dispositivo reza:
“Pelo exposto, julgo a ação procedente, por provada e, improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé, e, em consequência, decido:
a) condenar a Ré a proceder à demolição das edificações que realizou, repondo o seu prédio no estado em que este se encontrava anteriormente, designadamente, a demolir a cércea nas empenas que confinam a norte e nascente com o prédio da Autora, e o terraço a tardoz, e, ainda a demolir a caleira edificada de forma ilegal;
b) condenar a Ré no pagamento de uma indemnização à Autora pelos danos no prédio da Autora, resultantes das construções que efetuou, a liquidar em execução de sentença.
Custas na totalidade pela Ré – art. 527º do CPC.”
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Irresignada, a ré veio interpor recurso o qual foi admitido tendo sido apresentadas alegações, terminando a recorrente por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
No enquadramento da situação em análise devemos referir que a A abriu uma janela ilegalmente, na empena do seu prédio virada para a o telhado da casa de banho (correndo assim o risco de entrada de águas no seu prédio) a que a R. requereu que a fechasse, inclusive por carta, e toda a situação tem despoletado uma situação de litigância que se repercutiu à situação cm apreço.
Quanto á situação em apreço:
1. Tendo em consideração a sentença do processo n° 1293/ü8.üTBLGS, do 2° Juízo, do tribunal de Lagos, vulgarmente referida como "processo de embargos" e referida na contestação, tendo em consideração os testemunhos dos técnicos (mestres de obras, arquiteto e técnicos de fiscalização), bem como os documentos juntos ao processo, nomeadamente os Relatórios Técnicos da Fiscalização Municipal, bem como o testemunho do arquiteto Pedro …, e as insuficiências da Perícia realizada, bem como das restantes testemunhas e documentos juntos aos autos, não se deverá dar como provado:
a) Que "a elevação do muro que constitui as paredes do terraço a tardoz, foi edificada em cima da parede da casa da Autora a quem esta parede pertence exclusivamente", pois conforme se verificou na inspeção judicial do "processo de embargos, como pelas certidões de registo predial, se pode verificar que tal parede é divisória da propriedade que era comum e logo é uma parede comum.
b) Que" É necessária impermeabilização por meio de telas de toda a zona de cobertura envolvente com as empenas subidas, nomeadamente a zona do terraço agora existente, no escoamento das águas da cobertura a poente e zona da caleira a norte", por, em primeiro lugar não existir nenhuma caleira, mas sim um carreiro para aparar as águas, segundo, com base nos elementos referidos no ponto anterior, deu-se como provado que a cobertura foi impermeabilizada tendo, inclusivamente, sido verificada pelos Técnicos de fiscalização conforme seu relatório), bem como o terraço e o dito carreiro, designado, eventualmente, por caleira na sentença recorrida.
c) Que "deve ainda ser revisto o correto assentamento das telhas da cobertura a norte, assegurando-se também que todos os elementos utilizados (telhas) têm as mesmas dimensões evitando assim pontos de entrada de água pela cobertura", pois, com base nos mesmos elementos do ponto 1, que o assentamento está correto e que as telhas que foram utilizadas pela R. tinham todas as mesmas dimensões, seja por verificação aquando da inspeção forense no "processo de embargos", seja pelos técnicos, inclusive os técnicos de fiscalização, seja pelos resultados, em que se verificou não haver passagem de humidades por baixo das telhas, o que comprova a correção da obra.
d) Que" A caleira existente a norte deve ser isolada com tela e ficar assegurado por qualquer meio que as operações de limpeza se possam realizar sem dificuldade", pois, como já se referiu, não existe, juridicamente nenhuma caleira, em segundo lugar, como foi dado como provado no processo de "embargos" já se realizou a impermeabilização, sendo fácil a limpeza do carreiro, já que é totalmente aberto e facilmente acessível, conforme, até pelas fotografias se pode confirmar.
2) Em termos de Direito:
a) Não há uma servidão de estilicido, já que não há gotejamento de um prédio para o outro, mas sim um direito de escoamento das águas do telhado da A. que anteriormente se faziam pelo telhado da R. e portanto lerá um direito adquirido de passagem ou escoamento de águas pluviais, que foi resolvido, por um carreiro para aparar as águas e um tubo de saída destas pela "meia" parede em comum, com espessura de 3 metros, do "lado" da R.
b) A R. não violou a proibição legal do n.º2 do artº 1365° do CC, parte final, que lhe impunha que o escoamento continuasse a fazer-se sobre o seu prédio, que era o serviente, o que não sucede, posto que o escoamento continuasse a fazer-se pelo interior da parede comum, o que é quanto basta para se concluir pela violação do direito da Autora, por o escoamento se fazer pela "meia parte" da comum do lado da R. e de outro modo não se poderia fazer pois se há uma parede comum tem de atravessar esta, se antes era por cima agora é através de um tubo, logo fez-se as obras necessárias, possíveis, suficientes e bastantes para não causar prejuízos ao prédio dominante, não se estando assim a violar a referida disposição, tal como foi referido por Antunes Varela no seu comentário ao referido artigo, já supra referido.
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Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, as questões nucleares que importa apreciar, são as seguintes:
1ª – Do erro de julgamento no que respeita à matéria de facto;
2ª – Da (in)adequada subsunção do direito aos factos dados como provados.
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Na decisão recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
1. A Autora é dona e legitima possuidora de dois prédios urbanos que confinam um com o outro, sitos em …, freguesia da …, concelho de Aljezur, os quais se encontram descritos na Conservatória do Registo Predial de Aljezur sob os nºs … e … da referida freguesia e concelho, e inscritos na respetiva matriz sob os arts. … e … (A dos factos assentes);
2. A Ré é dona e legitima possuidora de um prédio urbano sito na …, freguesia da …, concelho de Aljezur, inscrito na matriz sob o art. … e contíguo aos prédios referidos em 1. (B dos factos assentes);
3. Os prédios da Autora e da Ré são construções antigas (anteriores ao ano de 1951) e têm uma configuração irregular (C dos factos assentes);
4. O telhado da casa da Autora, na parte confinante, e que respeita às duas casas de banho, era comum ao prédio vizinho da Ré assim como a parede divisória entre o prédio da Autora e o prédio da Ré também é parcialmente comum (D dos factos assentes);
5. A Ré procedeu a obras no seu prédio, elevando a parte confinante com as duas casas de banho (E dos factos assentes);
6. Entre os dias 25 de Outubro de 2008 a 2 de Novembro de 2008, a Autora deslocou-se ao seu imóvel (1º da BI provado apenas);
7. Nessa ocasião, constatou que a Ré procedia às obras referidas em 5. (2º da BI provado apenas);
8. As obras de intervenção levadas a cabo no prédio da Ré foram devidamente aprovadas e licenciadas pela Camara Municipal de Aljezur e tituladas pelo alvará de licença …/2008 de 29/8/08 (4º da BI);
9. Além do referido em 5. as obras que a Ré realizou foram as seguintes:
I- elevação do telhado da sua casa na parte confinante com o quarto 1 e o logradouro 2;
II- construção de um carreiro ao longo da delimitação do telhado da casa da R. com o telhado da casa da A na parte que confina junto às duas casas de banho,
III- abertura de um terraço a tardoz, na casa da Ré (5º da BI);
10. Além do referido em 5. foi construída uma caleira/algeroz e o tubo de queda, permitindo assim o escoamento das águas pluviais vindas do telhado da Ré (6º da BI);
11. Na parte referida em 5., e, bem assim, naquilo que anteriormente era um telhado partilhado com a Ré, esta ergueu um muro com cerca de um metro e meio (7º da BI);
12. Para o escoamento das águas pluviais, a Ré procedeu à construção de um carreiro com a largura aproximada de cinquenta centímetros, na parte em que os telhados confinam, e procedeu à abertura de um buraco junto a uma das esquinas, onde introduziu uma caleira dentro da parede, para a água circular e sair (9º da BI);
13. A Ré alterou assim o escoamento das águas pluviais que desde sempre existia, pois as águas corriam no sentido do telhado da casa da Autora para o telhado da casa da Ré (10º da BI);
14. As obras da Ré quebraram várias telhas da casa da Autora (8º da BI provado apenas);
15. A parte onde atualmente se encontra o referido carreiro também não se encontra isolada corretamente (13º da BI);
16. A elevação do muro que constitui as paredes do terraço que a Ré construiu a tardoz, foi edificada em cima da parede da casa da Autora a quem esta parede pertence exclusivamente (16 da BI);
17. É necessária impermeabilização por meio de telas de toda a zona de cobertura envolvente com as empenas subidas, nomeadamente a zona do terraço agora existente, no escoamento das águas da cobertura a poente e zona da caleira a norte (17º da BI);
18. Deve ainda ser revisto o correto assentamento das telhas da cobertura a norte, assegurando-se também que todos os elementos utilizados (telhas) têm as mesmas dimensões evitando assim pontos de entrada de água pela cobertura (19º da BI);
19. A caleira existente a norte deve ser isolada com tela e ficar assegurado por qualquer meio que as operações de limpeza se possam realizar sem dificuldade (20º da BI);
20. As obras de intervenção levadas a cabo no prédio da Ré foram devidamente aprovadas e licenciadas pela Câmara Municipal de Aljezur, tituladas pelo alvará de licença …/2008 de 29/9/08 e fiscalizadas pelos serviços competentes da mesma autarquia (22º da BI);
21. Os trabalhos da Ré foram executados por técnico habilitado e devidamente vistoriados (23º da BI);
22. O prédio era formado na sua origem por uma única moradia, durante muitos anos pertenceu à mesma família, por motivos de partilhas passou a haver dois prédios distintos e independentes entre si, mas apoiados numa parede mestra comum, com uma largura de aproximadamente três metros (24º da BI);
23. Por ser uma construção antiga a Ré promoveu no seu prédio obras de conservação e de habitabilidade (25º da BI);
24. As águas pluviais correm para a caleira que acompanha todo o telhado e toda a parede com escoamento na parede da Ré correndo a um nível inferior de modo a permitir o escoamento das águas (31º da BI);
Com interesse foram considerados não provados os seguintes factos:
I. As obras referidas em 5. dos factos provados supra alteraram a configuração do imóvel da Ré afetando diretamente a estrutura do imóvel da Autora (3º da BI);
II. Como consequência direta da alteração da circulação das aguas pluviais passou a haver infiltração de água nas paredes da casa de banho 1 (WC 1) da Autora (11º da BI);
II. A infiltração de água nas paredes da casa de banho acontece por o escoamento das águas pluviais de um imóvel daquela época não poder ser feito pelo interior das paredes dado os materiais de construção então utilizados à época não terem suficiente impermeabilidade (12 da BI);
IV. A parede do quarto 1 que dá para o terraço edificado pela Ré, encontra-se permanentemente húmida, com infiltrações de água e com rachas na parede, impossibilitando a utilização daquela divisão da casa (14º da BI);
V. O que decorre de ter a Ré elevado a parede, que anteriormente tinha cota inferior ao telhado da casa da Autora (15º da BI);
VI. Deve ser sobredimensionado o sistema de escoamento das águas provenientes da cobertura a norte, por ser insuficiente o atual (18º da BI);
VII. Sanadas as situações referidas haverá necessidade de se proceder a pinturas interiores nas zonas afetadas, devendo verificar-se entretanto, se a humidade não provocou danos também nos elementos de madeira da cobertura (21º da BI);
VIII. Já o prédio da Autora se encontra no seu exterior num estado de deplorável abandono o que demonstra um completo desinteresse pela sua conservação (26º da BI);
IX. A Autora jamais fez obras de conservação, há quase duas décadas que não mexe nas paredes e no telhado, e o único pedido que deu entrada na autarquia para a colocação de telhas no telhado da casa da Autora foi em 18/5/1994 (27º da BI);
X. A existência de humidades e bolor nas paredes da casa da Autora deve-se ao referido em 9. e 8. supra (28º da BI);
XI. A Autora tem feito casas de banho e pátio interior sem que vizinhos ou autarquia possam confrontar os trabalhos realizados com qualquer tipo de projeto de arquitetura, que originam foco de humidade e de insalubridade, tanto nas paredes da Autora como nas da Ré (29º da BI);
XII. A colocação e a impermeabilização da parede mestra foram fiscalizadas pelo técnico da Autora (30º da BI);
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Conhecendo da 1ª questão
A recorrente vem impugnar a matéria e facto, por alegado erro de julgamento, salientando que tendo em consideração a sentença do processo n° 1293/08.0TBLGS, do 2° Juízo, do Tribunal de Lagos, vulgarmente referido como "processo de embargos" e referida na contestação, tendo em consideração os testemunhos dos técnicos (mestres de obras, arquiteto e técnicos de fiscalização), bem como os documentos juntos ao processo, nomeadamente os Relatórios Técnicos da Fiscalização Municipal, bem como o testemunho do arquiteto Pedro …, e das restantes testemunhas e documentos juntos aos autos, acrescendo as insuficiências da Perícia realizada, não se deverá dar como provada, a matéria vertida pontos 16, 17 18, 19º dos factos provados.
A sindicalização da matéria de facto só pode ser exercida pelo Tribunal da Relação nos termos referidos no art. 662º do Código de Processo Civil sendo que nos termos do nº 1 da referida disposição legal a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, mas a impugnação da matéria de facto não importa a realização de um novo julgamento global [nº3 al. a) do art. 662º do CPC] nem afasta o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador da primeira instância, que é indissociável da oralidade e imediação em que decorre a audiência.
No caso em apreço, a discordância da recorrente situa-se essencialmente no âmbito da livre apreciação da prova concedida ao tribunal nos termos do disposto no art. 607º nº 5, segundo o qual o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
A pretensão de impugnação da matéria de facto por alegado erro de julgamento deve obedecer às especificações obrigatórias impostas pelo art. 640º do Código de Processo Civil, sendo que no caso concreto, para nós, tal não se verifica.
Dispõe o nº 1 da referida disposição legal que “ Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E o nº 2 refere: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”
O recorrente referindo os depoimentos (prestados em audiência), conjugados com elementos documentais, que na sua opinião, sustentavam a prova dos factos que pretende ver provados não os especifica nem concretiza nas conclusões (bem como o não fez nas alegações) com a indicação exata das passagens da gravação relativas a cada um dos depoimentos testemunhais, como impõe a citada disposição legal em conjugação com nº 1 do art. 639º do CPC.
“A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado a facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente. Importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele. É exatamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida»” (v. Ac. do STJ de 15/09/2011 no processo 455/07.2TBCCH.E1.S1 disponível em www.dgsi.pt).
As exigências ou ónus impostos pela Lei compreendem-se quer à luz do principio da cooperação, impondo ao recorrente invocar os “concretos aspetos do conteúdo dos depoimentos em que se baseia” direcionando a ponderação do Tribunal ad quema partir de algo das afirmações concretas” quer à luz “o princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”, pelo que o seu não cumprimento importa a rejeição do recurso no que concerne a tal segmento, uma vez que da redação da al. a) do n.º 2 do artº 640º do CPC, onde se menciona expressamente “imediata rejeição” não permite que haja possibilidade da parte recorrente solucionar qualquer falta por meio de eventual despacho de aperfeiçoamento. (v. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, 129; Cardona Ferreira in Guia dos Recursos em Processo Civil, 5ª edição, 168, 169; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro in Primeiras Notas ao Novo CPC, 2014, vol. II, 55; Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, 170; Lopes do Rego in Comentário ao C.P.C., 585; Acs. do STJ de 29/01/2014, no processo 813/08.5TBFLG.G1.S1, de 15/09/2011 no processo 455/07.2TBCCH.E1.S1 e de 19/02/2015 no processo 299/05.6 TBMGD.P2.S1,bem como Acs. do TRL de 18/02/2014 no processo 263/11.6TBPNI-F.L1-1 e do TRG de 08/01/2015 no processo 1514/12.5TBBRG.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Como a prova testemunhal produzida nos autos foi gravada era possível a identificação precisa e separada dos depoimentos com indicação da exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso relativo à matéria de facto, o que não foi feito, existindo desrespeito das exigências estabelecidas na lei, conforme se salientou, pelo na parte em que o suporte da discordância era a prova testemunhal produzida, se impõe a rejeição do recurso.
No entanto e porque a recorrente não invocou apenas o meio de prova testemunhal e muito embora não seja clara e esclarecedora no sentido de fazer incidir o concreto meio de prova no concreto ponto factual que em sua opinião se apresenta mal julgado, não deixamos de nos pronunciar sobre o invocado erro de julgamento.
Ab initio, haverá a salientar que a prova produzida em sede de outro processo, mesmo que diga respeito ao apuramento de matéria factual idêntica, não pode, simplesmente, ser transposta para o presente processo, uma vez em cada um dos processos a parte onerada pelo ónus probatório cabe fazer a prova dos factos em que alicerça o direito. Por isso, não se pode chamar à colação (diga-se sem individualização e correspondência ajustada) quaisquer testemunhos prestados noutra sede processual, como também não se podem ter como relevantes documentos cujo relevo não foi reconhecido, nem a recorrente concretiza a sua relevância fazendo a relacionação do respetivo conteúdo com o facto cuja prova ou não prova pretende relevar.
Os factos em causa à exceção do 16, foram dados como provados, conforme resulta da motivação da decisão sobre a matéria de facto, tendo por base o resultado da perícia que foi ordenada e realizada no âmbito dos presentes autos (não de outros), resultado esse que foi dado a conhecer às partes sem que qualquer delas tivesse pedido algum esclarecimento ou posto em causa as conclusões a que o perito havia chegado.
De salientar que foi o próprio Juiz que oficiosamente através de despacho proferido em sede de audiência de julgamento (sessão de 09/09/2013) com vista à cabal resposta da matéria selecionada nos artº 11º a 21º da BI, determinou a realização da perícia.
Não tendo a recorrente pondo em causa os resultados da perícia, nem a idoneidade do perito, não se mostra curial, pôr em causa a convicção do Julgador, quando o alicerce que serviu de base a sua motivação se tem por robusto.
Quanto ao facto 16, a sua prova assentou na presunção legal do artº 1371º do CC,[1] que não se teve por ilidida e da prova fotográfica que dá conta da realidade existente, antes da intervenção da ré e depois de ter ocorrido essa intervenção, afirmando o Julgador a quo que “em face da foto de fls. 34, donde resulta que antes das obras efetuadas pela Ré a única construção que a dita parede sustentava era a única que existia, e que existia do lado da Autora, donde se presume que pertencia exclusivamente à Autora, que era a dona dessa construção, e em face da foto de fls. 35 donde resulta que a obra da Ré, efetuada depois, assentou diretamente sobre a referida parede, que pertencia à Autora.”
Em face do exposto, nenhuma alteração se introduzirá nos factos dados como provados e não provados, permanecendo, assim imutável a decisão sobre a matéria de facto.

Conhecendo da 2ª questão
Defende a recorrente que no caso em apreço não existe uma servidão legal de estilicídio, ao contrario do que se defende na sentença impugnada, mas sim um direito de escoamento de águas provenientes do telhado da autora através do telhado da ré, e tendo esta apenas modificado a forma como era feito o escoamento não existiu violação da servidão de estilicídio.
O proprietário deve edificar de modo a que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre o prédio vizinho, mas constituída por qualquer título a servidão sobre essa realidade o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante, conforme resulta do disposto no artº 1365º do CC, epigrafado de estilicídio.
É certo que tendo em conta o teor literal da norma é de entender estilicídio como a situação em que a beira do telhado ou de outra cobertura gotejam sobre o prédio vizinho o que prossuporia que existisse uma queda de água de um ponto superior, para um ponto inferior, queda essa desprendida e proveniente dos beirais de telhado ou canadas de cobertura. Mas no caso em apreço, quanto a nós, embora a situação não seja de uma verdadeira “queda” de água, mas sim de uma circulação de águas em continuidade, provenientes de um telhado situado num ponto superior (pertencente à autora) para um telhado situado num ponto inferior (pertencente à ré), tal realidade deve ser integrada na norma que a lei prevê para o estilicídio, não devendo ser autonomizada, como parece defender a ré, para uma situação de “escoamento de águas”, sujeito a servidão uma vez que a realidade “escoamento” tal como é previsto na lei (artº 1351º do CC) está direcionada para prédios rústicos e não para os prédios urbanos.[2]
Como salienta Guilherme Moreira (As Águas, II, n.º 50) citado por Pires de Lima e A. Varela (CC Anotado, vol. III, 191), no âmbito duma situação de escoamento águas, que os prédios inferiores têm de receber, são “as águas pluviais que caiem diretamente no prédio superior, ou que para este decorrem de outros prédios superiores a ele; as águas provenientes da liquefação das neves e gelos; as que se infiltram no terreno, e as da nascentes que brotam naturalmente de um prédio”, pelo que a servidão de escoamento está excluída em relação a prédios urbanos.[3]
De tal decorre que da factualidade aprovada podemos concluir, como o fez a sentença recorrida, pela existência de uma servidão de estilicídio, constituída por destinação de pai da família, em que o prédio da autora é o dominante e o prédio da ré é o serviente, donde resulta serem aplicáveis ao caso as proibições do nº 2 do art. 1365º do CC, segundo as quais o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, e deve realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante.
Mas será que as obras realizadas pela ré violaram o direito da autora de ver escoadas as águas pluviais do telhado do seu prédio na parte em que a ré procedeu a obras, modificando o sentido do escoamento deixando tais águas de correr para a parte do telhado da ré como até então acontecia?
Existindo servidão de estilicídio o titular do prédio serviente “não pode impedir o escoamento normal da água”,[4] mas tal não o impede de “poder construir desde que a construção seja acompanhada das obras necessárias para que se mantenha o escoamento das águas pelo seu prédio”. Ou seja, permite-se “ao proprietário serviente fazer no seu prédio todas as obras que não estorvam o uso da servidão” coadunando-se tal entendimento “com a faculdade de exigir a mudança dela, se a alteração lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário dominante (cfr. artº 1568º do CC).”[5]
Não consta que a autora tivesse dado consentimento para a “mudança” operada pela ré (nem que esta lho solicitasse) referente ao escoamento das águas, nem a ré no âmbito da presente ação veio exigir o reconhecimento do direito à alteração efetuada no escorrimento das águas pluviais vindas do telhado do prédio da autora, pelo que face ao conteúdo do disposto no n.º 2 do artº 1365º do CC podemos afirmar que existiu violação desta norma, uma vez que as águas pluviais caídas no telhado da autora (na parte em causa) deixaram de serem escoadas pelo meio que vinha sendo usado, através do prédio da ré, passando a fazer-se pelo interior de uma parede comum,[6] passando, previamente, por um carreiro o qual foi aberto um buraco que liga ao tubo instalado no interior da dita parede.
Assim, independentemente das obras estarem bem ou mal realizadas impunha-se que a mudança no modo de escoamento das águas fosse previamente acordada, ou não sendo possível o acordo, fosse solicitado perante o tribunal o reconhecimento do direito de mudança com a consequente alegação e prova de factos da necessidade de mudança e bem assim das vantagens que para a ora ré apresentavam e da ausência de prejuízos para o titular do prédio dominante, pelo que a alteração efetuada não se pode ter por lícita,[7] como bem foi reconhecido pelo Tribunal a quo.
Embora no conteúdo das alegações a ré venha tecer considerações acerca, quer da implantação do terraço a tardoz, quer sobre os danos que a autora se arroga e respetivo ressarcimento, denotando discordar do sentenciado, não invoca, contudo, nas respetivas conclusões qualquer fundamento ou questão que permita a este tribunal superior pronunciar-se em concreto sobre tais realidades, até porque como se afirmou supra e decorre da lei são as conclusões que delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem, já que embora o recurso seja abrangente relativamente à parte dispositiva da sentença (artº 635º n.º 3 do CPC), pode haver restrição tácita (artº 635º n.º 4 do CPC) “em resultado da falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição do recurso, o recorrente restrinja o seu âmbito através das questões que identifica nas conclusões.”[8]
Não havendo, assim, outras questões a apreciar, decorre do exposto, irrelevarem, assim, as conclusões da recorrente, não se mostrando violadas as normas legais cuja violação foi invocada, sendo de julgar improcedente o recurso.
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Para efeitos do disposto no n.º 7 doa rtº 663º do CPC, em conclusão:
1 – Existindo servidão de estilicídio o titular do prédio serviente não pode impedir o escoamento normal da água pelo seu prédio.
2 – Tendo as águas pluviais caídas no telhado do prédio dominante deixado de serem escoadas pelo meio que vinha sendo usado, através do prédio serviente, passando agora a fazer-se pelo interior de uma parede comum, passando, previamente, por um carreiro o qual foi aberto um buraco que liga ao tubo instalado no interior da dita parede, foi posto em causa o conteúdo da servidão.
3 – Não tendo sido a mudança no modo de escoamento das águas previamente acordada entre os proprietários do prédio serviente e do prédio dominante, ou não sendo possível o acordo, não tendo sido solicitado perante o tribunal o reconhecimento do direito de mudança, com a consequente alegação e prova de factos da necessidade de mudança e bem assim das vantagens que para o proprietário do prédio serviente se apresentavam e da ausência de prejuízos para o proprietário do prédio dominante, a alteração efetuada não se pode ter por lícita.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida
Custas pela apelante.

Évora, 02 de Junho de 2016
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura


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[1] - Deve salientar-se que na fundamentação é aludido, certamente por erro de escrita, ou mesmo de interpretação, o n.º 5 da citada disposição legal quando o n.º correto é o 1, que tendo em conta doutrina de Pires de Lima (v. RLJ, ano 95º, 382 e segs) “se a lei diz que se presume comum a parede até certa altura do edifício inferior, parece afirmar implicitamente que, para cima, não só há presunção de comunicabilidade, como há presunção de propriedade exclusiva”. Ou seja, que a parte superior da parede é do dono do edifício mais alto. No caso em apreço tal como é afirmado pela autora na petição (artºs 37º a 40º e resulta das fotos aludidas) o telhado da casa da ré encontrava-se numa cota inferior (mais baixo) do que o da casa da autora, tendo em conta a aludida parede que foi elevada pelo réu para construção do terraço.
[2] - v. José Alberto González in Restrições de Vizinhança, 2ª edição, 159; Carvalho Fernandes in Lições de Direitos Reais, 2ª edição, 205.
[3] - v. neste sentido Ac. do TRP de 13/09/2007 in Col. Jur., 2007, 4º, 176.
[4] - v. Menezes Cordeiro in Lições de Direitos Reais, 1978, vol. II, Edição da AAFDL, 539.
[5] - v. Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, 229.
[6] - Deve clarificar-se que a aludida parede comum que no ponto 22 dos factos provados é referenciada como tendo “uma largura de aproximadamente três metros” (terminologia usada pela ré na contestação) e que a ora recorrente nas suas conclusões refere ter “uma espessura de 3 metros do lado da R”, quanto a nós e do que nos é dado constatar do compulsar dos autos o que a parede tem é uma “extensão” de 3 metros, já que entendendo-se a alusão “largura” idêntica à alusão “espessura” apresenta-se como manifestamente exagerado a medida de 3 metros.
[7] - v. Ac. do TRP de 27/06/2000 in Col. Jur. 3º, 220; Ac. do TRC de 12/10/2010 no Processo 67/09.6TBSPS.C1 disponível em www.dgsi.pt.
[8] - v. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Cível, 2013, 85. Também, Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes in CPC anotado, vol. III, 2003, 33; F. Amâncio Ferreira in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, 150; Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5ª edição, 139-140.