Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2453/15.3T8EVR.E2
Relator: SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: COMODATO
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
TRACTOR AGRÍCOLA
Data do Acordão: 06/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – O comodatário de um tractor agrícola que o utiliza num terreno seu, com total autonomia técnica, para realizar um trabalho do qual apenas ele beneficia, tem a direcção efectiva daquele veículo e utiliza-o no seu próprio interesse.
2 – A seguradora com a qual a proprietária do tractor celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil não responde pelos danos provocados pela morte do comodatário, quer na esfera deste último, quer nas dos seus cônjuge e filhos, em consequência de acidente ocorrido nas circunstâncias descritas em 1.
3 – Se o acidente for devido exclusivamente a culpa do sinistrado, sempre seria excluída a responsabilidade pelo risco decorrente pelo artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2453/15.3T8EVR.E2

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(…), (…) e (…) propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, contra (…) Insurance PCL – Sucursal Portugal, pedindo a condenação desta a pagar-lhes:

a) Uma indemnização pelo sofrimento físico e psicológico causado ao sinistrado entre o acidente e a morte, nunca inferior a € 20.000,00;

b) Uma indemnização pelo dano morte, em valor nunca inferior a € 80.000,00;

c) Uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela autora (…), em virtude da morte do seu cônjuge, em valor nunca inferior a € 35.000,00;

d) Uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelos autores (…) e (…), em virtude da morte de seu pai, nunca inferior a € 25.000,00 para cada um deles;

e) Uma indemnização à autora (…) a título de danos patrimoniais futuros pela perda do seu cônjuge, em valor nunca inferior a € 86.912,56.

A ré contestou, pugnando pela sua absolvição dos pedidos.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objecto do litígio e o enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença julgando a acção improcedente.

Os autores recorreram da sentença.

Esta relação proferiu acórdão que anulou parcialmente a sentença recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, determinando a descida dos autos tendo em vista a eliminação da contradição existente entre os pontos 3, 4, 5 e 9 da matéria de facto provada e a alínea a) da matéria de facto não provada, o esclarecimento da matéria constante da alínea c) dos factos não provados e a ampliação da matéria de facto nos termos supra expostos, praticando o tribunal a quo as diligências probatórias que, para o efeito, julgasse necessárias.

Após a prática das diligências probatórias que considerou necessárias, o tribunal a quo proferiu nova sentença, julgando a acção improcedente.

Os autores recorreram também desta sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – Devia ter sido dado como provado e acrescentado ao facto 16 que “o qual tinha toda a autonomia para emprestar o tractor, situação que a dona também faria, sendo para ela perfeitamente natural”.

Os concretos meios probatórios que impõem este acrescento resultam do documento junto pela R. recorrida “Memória Descritiva” pág.11, onde consta esta afirmação da dona. E o depoimento da testemunha” (…) Tinha poderes para emprestar, pelo menos a minha patroa diz que sim e eu tenho poderes para fazer isso…” resposta à instância do mandatário dos recorrentes.

Portanto, a declaração da dona e o depoimento do encarregado (…) impunham que este facto constasse do acervo dos factos dados como provados.

2 – Deve ser acrescentado um novo facto dado como provado passando a ser o 16A “o encarregado da Herdade emprestou o tractor ao sinistrado porque se ajudavam reciprocamente e porque o sinistrado era um excelente profissional”.

O concreto meio probatório impunha que este facto fosse dado como provado funda-se no depoimento do encarregado que emprestou o tractor “sou da Chamusca, estava em (…) muitas vezes eu precisava de comprar coisas e de certos contactos e ele era espetacular, estava sempre disponível, sempre pronto para me ajudar em tudo, foi o que levou a emprestar”.

Dada a importância deste facto para a lide ele deve ficar a constar como facto provado.

3 – O acidente não ocorreu devido à actuação da vítima porque o sinistrado travou o tractor com o travão de mão antes de abandonar, tal como consta do facto 4 dado como provado.

4 – O dever de diligência do sinistrado e condutor do veículo foi cumprido de acordo com as regras da experiência da vida. Desligar o veículo, travá-lo e abandoná-lo é a diligência e a prudência do bonus pater familias.

5 – Não devia ter sido dado como provado o facto 5 como está redigido, devendo ser retirada a parte…. Com a caixa acoplada ao mesmo em cima…

Os meios probatórios que impunham que este facto não fosse dado como provado resultam do depoimento do encarregado (…) “Não estava encostada ao chão, estava assim a uma alturazinha do chão”… tal significa que a caixa estava descida.

O local era inclinado, mas não o era em toda a sua extensão. Disse a testemunha (…) “conheço aquele local muito bem, ia lá muitas vezes”, à instância da Mma. Juíza “Tem uma inclinação, mas ao meio tem uma barrazinha, que não tem tanta inclinação”.

6 – Se a caixa estava quase a bater no chão não estava no ar, como é bom de ver, pois isso impõe que se mude que o sinistrado deixou a caixa no ar e passe a ser que a caixa estava descida ao rés-do-chão.

7 – Se o terreno tem inclinação, mas no meio é plano, não é totalmente inclinado, o que impõe que não seja somente inclinado, como é bom de ver, devendo constar que o terreno no meio não era inclinado.

Ora estes concretos meios probatórios que resultam do documento junto pela R. e do depoimento da testemunha (…) impõem que dado como provados os factos supra expostos nos pontos 1. 2 das Conclusões.

E que não devia ser dado como provado o facto 5 tal como foi dado como provado devendo ser retirada a parte que se refere que a caixa esta em cima e acrescentado que o mesmo não era todo inclinado.

8 – Acresce que o sinistrado não saiu do tractor temerariamente. Travou-o. Agiu com a prudência do cidadão comum diligente.

9 – Nas cidades, vilas ou aldeias com terrenos inclinados ou ladeiras o acto de travar o veículo é suficiente, tendo em conta que quem trava age em conformidade com a experiência de vida que o carro travado já não se desloca. Não é exigível que coloque pedras atrás dos pneus ou construa uma parede…

10 – Ademais o mecanismo da descida da caixa foi accionado, pois a mesma estava quase a bater no chão como decorre do depoimento do encarregado da Herdade.

11 – O tractor foi cedido por quem tinha poderes para o fazer como resulta das declarações da dona e do encarregado da herdade, como conclusão nº 1.

12 – E foi emprestado por interesse directo do encarregado quanto ao desempenho das suas funções na herdade, conforme conclusão nº 2.

13 – Tais factos acarretam que era a dona que tinha a direcção do veículo – neste sentido, acórdãos do STJ de 28/01/1997 (proc. 96A122), 06/12/2001 (proc. 01A3460) e 29/01/2014 (proc. 249/04.7TBOBR.C1.S1), disponíveis em dgsi.pt, entre outros.

14 – Cabia à dona do veículo provar que não era ela que tinha a direcção do veículo, o que não fez, antes aceitando que havia interesse seu no empréstimo.

15 – Ora a jurisprudência e a doutrina são unânimes nesta matéria: o interesse do dono em ceder o veículo não o liberta da direcção do veículo.

16 – O facto do sinistrado estar a carregar estrume para a sua horta, embora seja directamente do interesse dele, era também a contrapartida pela ajuda que prestava ao encarregado da Herdade e daí a dona achar perfeitamente natural a cedência.

17 – O acidente deveu-se a causas mecânicas ou outras desconhecidas e não por culpa do sinistrado e sendo do interesse da Herdade a cedência do trator impõe-se considerar o sinistrado como terceiro.

A recorrida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – A douta sentença recorrida não merece qualquer censura, não violou qualquer disposição legal e não há qualquer fundamento para ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.

2 – O sinistrado vítima do acidente em apreço era o condutor do tractor que o utilizava unicamente no seu interesse.

3 – Tendo sido ele que pediu emprestado o tractor para transportar estrume para o seu quintal.

4 – Foi ele que estacionou o tractor num local inclinado.

5 – E era apenas sobre ele que recaía a responsabilidade pela utilização do tractor naquele momento e era sobre ele que recaía a obrigação de assegurar que o tractor ficava devidamente imobilizado.

6 – Consequentemente, é inequívoco que era o sinistrado quem tinha a direcção efectiva do tractor.

7 – Os recorrentes nunca alegaram nada ao contrário, porque era evidente que o sinistrado o estava a utilizar apenas no seu interesse.

8 – A responsabilidade da ré não só estava excluída por força do disposto no art.º 14, n.º 1, do Dec. Lei 291/2007, de 21 de Agosto, como também não há lugar às indemnizações pretendidas, por falta do pressuposto da responsabilidade civil da lesão ter de ser causada por terceiro, ver no mesmo sentido resolvendo situações parecidas no Ac. do S.T.J. de 1/12/2015 (pº 529/TBPSR.S1) e AC. do S.T.J do n.º 12/2014.

9 – Deve assim, negar-se provimento ao recurso interposto, e manter-se a douta sentença recorrida.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

2 – Direcção efectiva do veículo;

3 – Culpa pela ocorrência do acidente.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1 – A autora (…) é cônjuge do sinistrado.

2 – Os autores (…) e (…) são filhos do sinistrado.

3 – No dia 25 de Outubro de 2014, durante a parte da tarde, o sinistrado encontrava-se a fazer trabalhos na horta da sua residência sita na Rua de (…), em (…), utilizando para o efeito o tractor agrícola com a matrícula (…).

4 – A determinado momento, o sinistrado estacionou o referido tractor agrícola, desligando-o e travando-o com o travão de mão.

5 – (…) num local com inclinação situado ao lado da sua residência, sem que tenha baixado a caixa acoplada ao mesmo.

6 – (…) em consequência, momentos depois o tractor veio desgovernado e colheu o sinistrado.

7 – Em consequência do facto referido, o sinistrado sofreu múltiplas lesões traumáticas crânio-encefálicas e cardio-torácica e contusão pulmonar maciça, o que lhe causou a morte.

8 – O sinistrado sofreu dor.

9 – O sinistrado teve consciência de ouvir e ver o tractor descontrolado vir contra si e apanhá-lo.

10 – (…) viu o seu corpo mutilado e inevitavelmente pensou que poderia perder a vida, o que lhe causou angústia e agonia.

11 – O sinistrado trabalhava como assistente operacional na Câmara do (…), auferindo um salário bruto de € 789,54, sendo que em virtude do trabalho suplementar ganhava em média mensalmente a quantia de € 1.000,00.

12 – A 1.ª autora trabalha sazonalmente auferindo a quantia média de € 300/dia.

13 – Em virtude da morte do sinistrado, a 1.ª autora sentiu-se deprimida e prostrada.

14 – O 3.º autor tem 15 anos e vive com a 1.ª autora que custeia as suas despesas escolares, médicas, com a alimentação e vestuário.

15 – Os 2.º e 3.º autor sofreram com a perda do 1.º sinistrado, sentindo-se deprimidos, tristes e angustiados.

16 – O tractor com a matrícula (…) é propriedade de (…) e foi emprestado por (…), encarregado daquela.

17 – (…) para que o sinistrado transportasse estrume para o seu quintal.

18 – (…) sendo que aquela só teve conhecimento desse empréstimo após o acidente.

19 – Pelo contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), a tomadora (…) transferiu a responsabilidade civil pelos danos causados pelo tractor agrícola para a aqui ré.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

a) O sinistrado deixou o tractor destravado.

b) O acidente ocorreu em consequência de queda do sinistrado quando estava a manobrar o tractor.


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1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

Os recorrentes pretendem que seja acrescentado o seguinte ao ponto 16 da matéria de facto provada: “o qual tinha poderes para o fazer, dada a sua autonomia nesta matéria, sendo que a proprietária considerou perfeitamente natural essa conduta”. Porém, não indicam qual é a utilidade deste acrescento para a decisão da causa.

A decisão sobre a matéria de facto apenas poderá ser alterada na medida em que tal possa ser útil para a decisão da causa, em obediência ao princípio geral da proibição da prática de actos inúteis (artigo 130.º do CPC). Não é evidente que a alteração pretendida venha a assumir alguma utilidade para a decisão da causa. Não obstante, com o mero intuito de clarificar qualquer dúvida que possa resultar da leitura dos pontos 16 e 18 da matéria de facto provada e uma vez que a testemunha (…) foi convincente na afirmação de que a sua patroa, dona do tractor, lhe conferira poderes para emprestar este último, determina-se que o primeiro daqueles pontos seja alterado na estrita medida do indispensável para veicular esta última ideia.

Assim, o ponto 16 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “O tractor com a matrícula (…) é propriedade de (…) e foi emprestado por (…), encarregado daquela, o qual tinha poderes para o fazer.”

Os recorrentes pretendem o aditamento, à matéria de facto provada, do seguinte facto: “O encarregado da herdade cedeu o tractor ao sinistrado porque se ajudavam mutuamente e porque o sinistrado era um excelente profissional”. Sustentam que se trata de um facto relevante para o conhecimento da questão de saber quem tinha a direcção efectiva do tractor.

O facto em questão tem natureza complementar daqueles que as partes alegaram e resultou do depoimento, em tudo convincente, da testemunha (…).

Consequentemente, adita-se, à matéria de facto provada, o ponto 16-A, com a seguinte redacção: “O encarregado da herdade cedeu o tractor ao sinistrado porque se ajudavam mutuamente e porque o sinistrado era um excelente profissional”.

Finalmente, os recorrentes pretendem que o conteúdo do ponto 5 da matéria de facto provada seja alterado em dois aspectos: 1.º - O terreno onde o tractor foi estacionado não é inclinado na sua totalidade; 2.º - O sinistrado baixou a caixa acoplada ao tractor.

Os recorrentes não têm razão.

Quanto ao primeiro aspecto, a testemunha (…) não afirmou que o terreno não era todo inclinado. Afirmou, sim, que o local onde se deu o acidente tem inclinação, havendo uma parte, ao meio, que não tem tanta inclinação. A diferença entre aquilo que (…) disse e a interpretação que os recorrentes fazem é evidente. Segundo (…), todo o terreno é inclinado, ainda que, ao meio, haja uma parte menos inclinada. Acrescente-se que a testemunha (…) e a própria recorrente (…) também descreveram o terreno como sendo inclinado, não havendo, assim, margem para dúvidas a este respeito.

Quanto ao segundo aspecto os recorrentes deturpam novamente o depoimento prestado pela testemunha (…).

Os recorrentes afirmam que (…) referiu que a caixa estava baixa a escassos centímetros do solo, o que significa que o sinistrado fez o que tinha de fazer para baixar a caixa; “não estava encostada ao chão, estava assim a uma alturazinha do chão”. Concluem os recorrentes que o sinistrado deixou a caixa descida, de tal modo que ela estava quase a tocar no solo. Mais adiante, afirmam que “a caixa estava ao rés-do-chão, o que significa que foi descida”.

Aquilo que (…) na realidade afirmou foi o seguinte: Quando chegou ao local do acidente, a caixa estava um bocado desviada do chão. Não estava, nem no ponto mais alto, nem encostada ao chão. Estava levantada, mas não na totalidade. Estava uma alturazinha desviada do chão.

Resulta, assim, do depoimento de (…) que a caixa não estava encostada ao chão, mas sim no ar. Não na altura máxima, mas num ponto intermédio entre esta e o chão. (…) não afirmou que a caixa estivesse a escassos centímetros do solo, quase a tocar no solo ou ao rés-do-chão, como os recorrentes alegam.

Também não resulta do depoimento de (…) que o sinistrado tenha baixado a caixa acoplada ao tractor quando estacionou este último, como os recorrentes pretendem que se conclua. Sobre este facto, aquilo que o depoimento de (…) inculca é precisamente o que foi dado como provado, ou seja, que o sinistrado não baixou a caixa quando estacionou o tractor, deixando-a, pois, no ar, ou seja, sem ser em contacto com o solo.

Inexiste, pois, fundamento para alterar o ponto 5 da matéria de facto provada.

Concluindo:

- O ponto 16 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção: “O tractor com a matrícula (…) é propriedade de (…) e foi emprestado por (…), encarregado daquela, o qual tinha poderes para o fazer.”

- Adita-se, à matéria de facto provada, o ponto 16-A, com a seguinte redacção: “O encarregado da herdade cedeu o tractor ao sinistrado porque se ajudavam mutuamente e porque o sinistrado era um excelente profissional”;

- No mais, mantém-se a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto.

2 – Direcção efectiva do tractor:

O artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, estabelece que aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

A lei não define “direcção efectiva”. Para a determinação do conteúdo deste conceito, socorremo-nos da clássica lição de Antunes Varela [1]:

“Em regra, o responsável é o dono do veículo, visto ser ele a pessoa que aproveita as especiais vantagens do meio de transporte e quem correlativamente deve arcar com os riscos próprios da sua utilização.

Porém, se houver um direito de usufruto sobre a viatura, ou se o dono tiver alugado ou emprestado o veículo, ou se este lhe tiver sido furtado ou for abusivamente utilizado pelo motorista ou pelo empregado da estação de recolha, já a responsabilidade (objectiva) do dono se não justifica, à luz dos bons princípios.

A lei identificou a pessoa do responsável, no intuito de fixar o critério aplicável a estas múltiplas situações, em que o uso e o domínio formal do veículo podem andar dissociados, através de duas notas essenciais: A) a direcção efectiva do veículo; b) a utilização deste no próprio interesse.

(…)

A fórmula (…) usada na lei – ter a direcção efectiva do veículo – destina-se a abranger todos aqueles casos (proprietário, usufrutuário, locatário, comodatário, adquirente com reserva de propriedade, autor do furto do veículo, pessoa que o utiliza abusivamente, etc.) em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva a quem usa o veículo ou dele dispõe. Trata-se das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências adequadas para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo, mas não equivale à ideia grosseira de ter o volante nas mãos na altura em que o acidente ocorre.”

No que concerne à utilização do veículo no seu próprio interesse, ensinava o mesmo Mestre[2]:

“O segundo requisito – utilização no próprio interesse – visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente).

É nesse preciso sentido que o requisito deve ser entendido. E não na acepção de que o detentor do veículo só responde se, no momento do facto danoso, o veículo estiver a ser utilizado no interesse (imediato ou exclusivo) dele. O interesse na utilização, tanto pode ser um interesse material ou económico (se a utilização do veículo visa satisfazer uma necessidade susceptível de avaliação pecuniária), como um interesse moral ou espiritual (como no caso de alguém emprestar o carro a outrem só para lhe ser agradável), nem sequer sendo caso para exigir aqui que se trate de um interesse digno de protecção legal.”

Os recorrentes sustentam que, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, era a proprietária quem tinha a direcção efectiva do tractor no momento em que o acidente ocorreu, com o argumento de que (…), encarregado da herdade àquela pertencente e no exercício de poderes que a mesma lhe conferiu, emprestou o veículo ao sinistrado porque se ajudavam mutuamente e este último era um excelente profissional. Segundo os recorrentes, estaria aqui presente o interesse moral ou espiritual referido no texto acima citado, funcionando o empréstimo do tractor como uma espécie de contrapartida pelos favores que o sinistrado fazia a (…).

Esta tese é inaceitável. A análise da questão de saber quem tinha a direcção efectiva do tractor e o utilizava no seu próprio interesse no momento em que o acidente ocorreu deve ser feita tendo em consideração o conjunto dos factos relativos à forma o sinistrado obteve a disponibilidade do tractor, às circunstâncias em que o utilizava e à finalidade que prosseguia com essa utilização. Só assim se logrará uma caracterização completa e rigorosa da situação de facto, sem a qual é impossível chegar a uma conclusão jurídica correcta. Não é admissível, como os recorrentes fazem, concluir que era a proprietária do tractor quem tinha a direcção efectiva deste no momento do acidente tendo apenas em consideração o facto acima referido e ignorando todos os demais.

O sinistrado tinha o tractor em seu poder porque o mesmo lhe foi emprestado por um trabalhador da proprietária com poderes para o fazer. Ou seja, o sinistrado era comodatário do tractor (artigo 1129.º do Código Civil).

O tractor foi emprestado ao sinistrado para que este o utilizasse em trabalhos na horta da sua residência, nomeadamente para transportar estrume. Estava, pois, a ser utilizado pelo sinistrado em seu próprio benefício.

Estando o sinistrado a utilizar o tractor na horta da residência, sem a presença da proprietária ou do trabalhador desta que o emprestou, era, naturalmente, ele próprio quem determinava o modo como aquela utilização decorria. Nomeadamente, foi decisão do sinistrado estacionar o tractor no momento e no local em que o fez e da forma como o fez. Logo, era o sinistrado e apenas ele quem tinha poderes de facto sobre o tractor quando o acidente ocorreu e, consequentemente, era a ele e apenas a ele que cabia tomar as providências adequadas para que a utilização do tractor não causasse danos.

No contexto descrito, o facto de o encarregado da herdade da proprietária do tractor ter emprestado este último ao sinistrado porque este também era prestável quando, por seu turno, lhe pedia algum favor, e por o considerar um excelente profissional, acaba por ser irrelevante. Sobrelevam as circunstâncias de, por efeito de um contrato de comodato, o sinistrado estar a utilizar o tractor em proveito próprio e com plena autonomia técnica, ou seja, determinando ele próprio a forma como aquela utilização era feita. Apesar de não ser o proprietário do tractor, era, por efeito do contrato de comodato, o sinistrado quem tinha o poder de facto sobre o tractor quando o acidente ocorreu.

Impõe-se, assim, concluir, como na sentença recorrida, que, quando o acidente ocorreu, era o sinistrado, e não a proprietária, quem tinha a direcção efectiva do tractor e o utilizava no seu próprio interesse. Consequentemente, fica afastada a responsabilidade civil da proprietária pelos danos provenientes dos riscos próprios do tractor ao abrigo do disposto no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil. No momento do acidente, tal responsabilidade cabia ao próprio sinistrado.

A proprietária do tractor celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil que cobre os danos resultantes da utilização daquele. Neste tipo de seguro, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros, nos termos do artigo 137.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16.04. Em consonância, o artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, que aprovou o Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, estabelece que o seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange, relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil. Trata-se de um seguro de responsabilidade e não de danos.

Da conclusão, a que chegámos, de que a proprietária do tractor não incorreu em responsabilidade civil pelo risco, nos termos do artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, não decorre, automaticamente, a de que nos encontramos fora do âmbito da cobertura do contrato de seguro que aquela celebrou com a ré.

Importa ter em consideração o disposto no artigo 15.º, n.º 1, do Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, segundo o qual o contrato garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de segurar previstos no artigo 4.º e dos legítimos detentores e condutores do veículo. Ora, no momento em que o acidente ocorreu, o sinistrado era um legítimo detentor e condutor (não obstante tê-lo estacionado momentos antes) do tractor. Logo, se ele tivesse incorrido em responsabilidade civil perante terceiros, esta seria garantida pelo contrato de seguro celebrado com a ré.

Em contraponto, importa ter em conta o disposto no artigo 14.º do Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel. O n.º 1 exclui da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles. O n.º 2 exclui da garantia do seguro os danos materiais causados, nomeadamente, ao cônjuge e aos descendentes do condutor. Nos termos do artigo 3.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, a morte integra o conceito de dano corporal.

Os recorrentes pretendem a condenação da ré a pagar-lhes: a) Uma indemnização pelo sofrimento físico e psicológico causado ao sinistrado entre o acidente e a morte; b) Uma indemnização pelo dano morte; c) Uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela autora (…), em virtude da morte do seu cônjuge; d) Uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelos autores (…) e (…), em virtude da morte de seu pai; e) Uma indemnização à autora (…) a título de danos patrimoniais futuros pela perda do seu cônjuge.

Todos estes danos estão excluídos da garantia do seguro pelo artigo 14.º, n.º 1, do Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel. Os danos referidos em a) e b) são danos corporais sofridos pelo próprio condutor do veículo seguro. Os restantes, são danos decorrentes daqueles. Os danos referidos na alínea e) são ainda excluídos pelo n.º 2 do mesmo artigo, pois são danos materiais sofridos pelo cônjuge do condutor.

Decorre do exposto que, ainda que não tivesse havido culpa do sinistrado pela ocorrência do acidente, inexistiria fundamento para a condenação da recorrida nos pedidos formulados pelos recorrentes. Isso bastaria para julgar o recurso improcedente.

Não obstante, demonstraremos, no ponto seguinte, que a ocorrência do acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do sinistrado.

3 – Culpa pela ocorrência do acidente:

Resulta da matéria de facto provada que o sinistrado estacionou o tractor agrícola que conduzia, desligando-o e travando-o com o travão de mão, mas sem baixar a caixa que se encontrava acoplada, num local com inclinação. Em consequência dessa actuação, momentos depois, o tractor veio desgovernado e colheu mortalmente o sinistrado.

Os factos descritos ocorreram no interior do terreno onde se situa a residência que então era do sinistrado, pelo que o disposto no Código da Estrada não é directamente aplicável, atento o disposto no seu artigo 2.º. Não obstante, importa ter em consideração o disposto no referido código em matéria de regras de segurança a observar na utilização de veículos, pois algumas delas são pertinentes seja em que circunstância for, de tal forma que a sua inobservância leva a concluir que o agente não actuou com o cuidado a que estava obrigado de acordo com o critério geral de aferição da culpa estabelecido no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil.

Nesta ordem de ideias, interessa-nos o disposto no artigo 48.º, n.º 5, do Código da Estrada, o qual estabelece, nomeadamente, que, ao estacionar o veículo, o condutor deve tomar as precauções indispensáveis para evitar que aquele se ponha em movimento. Essas precauções não se encontram pré-determinadas, antes variando em função das circunstâncias do caso, como a natureza do veículo, as características do local ou as condições atmosféricas. O dever geral de actuação diligente impõe que o condutor avalie as circunstâncias relevantes e tome os cuidados necessários para evitar que o veículo se ponha em movimento. Na generalidade dos casos, bastará desligar o motor e accionar o travão de mão. Noutros, nomeadamente se o veículo for estacionado num local inclinado, poderão ser necessárias medidas complementares, como não deixar o veículo em ponto morto ou, mesmo, calçar as rodas com pedras ou outros objectos que ofereçam resistência à sua deslocação. Tratando-se de um tractor agrícola com uma caixa acoplada, contribuiria seguramente para a estabilidade daquele que esta última ficasse em contacto com o solo, pois esse contacto constituiria um factor de resistência a uma eventual deslocação.

No caso dos autos, o sinistrado estacionou o tractor sem observar os cuidados que eram necessários para evitar a sua deslocação. Fê-lo num local inclinado, não baixou a caixa que se encontrava acoplada ao tractor até a mesma assentar no solo e não calçou, ao menos, duas das rodas. Em consequência dessa falta de cuidado, momentos depois, o tractor veio desgovernado e colheu mortalmente o sinistrado.

Conclui-se, assim, que a morte do sinistrado resultou exclusivamente de culpa deste, ao estacionar o tractor sem observar os cuidados para o efeito necessários. Consequentemente, ainda que a ré fosse responsável pelos riscos resultantes da utilização do tractor por via do contrato de seguro que celebrou com a proprietária deste e do disposto no artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil, tal responsabilidade seria excluída pelo disposto no artigo 505.º do mesmo código.

Resta acrescentar que esta solução se encontra em consonância com a jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 12/2014, segundo a qual, no caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte.

O recurso deverá, pois, ser julgado improcedente, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, mantendo-se o decidido pelo tribunal a quo.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.


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Sumário:

(…)


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Évora, 30.06.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata



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[1] Das Obrigações em Geral, vol. 1, 9.ª edição, páginas 679-681.

[2] Obra citada, páginas 681-682.