Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
11/14.9GCRMZ.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 04/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário: I - A consideração da existência de um crime continuado depende sempre da verificação de todos os pressupostos estabelecidos no nº 2 do artigo 30º do Código Penal.
II - Se a prática criminosa reiterada radica, no caso, em factores endógenos (e não exógenos) ao arguido (satisfação dos seus instintos libidinosos), não ocorrendo diminuição considerável da sua culpa, não se pode concluir pela existência de um só crime (continuado).
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. Relatório
Na instância central, sec. cível e criminal – J2, da comarca de Évora, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi submetido a julgamento o arguido ABS, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferido acórdão, no qual se decidiu absolvê-lo dos oito crimes de ameaça agravada, ps. e ps. pelos arts. 153º n.º 1 e 155º n.º 1 als. a) e b), bem como de quinze dos crimes de abuso sexual de criança, ps. e ps. pelo art.171º n.º 1, do CP, de que vinha acusado, e condená-lo, pela prática de um crime de coacção sexual agravado, p. e p. pelos arts. 163º nº 1 e 177º nº 6, onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, ps. e ps. pelo art. 171º nº 3 al. a), e um crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 163º nº 1, 177º nº 6 e 22º nºs 1 e 2 al. c), todos preceitos do C. Penal, nas penas parcelares de 8 anos pelo referido em primeiro lugar, 1 ano por cada um dos referidos em segundo e 3 anos pelo último e, em cúmulo jurídico, na pena única de 15 anos de prisão.
E, na integral procedência do pedido indemnizatório que contra ele havia sido deduzido pelo Hospital Espírito Santo de Évora, EPE, foi também o arguido/demandado condenado a pagar ao demandante a quantia de 112,07€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal desde a notificação daquele pedido.
Inconformado com o acórdão, dele interpôs recurso o arguido, pugnando pela sua revogação e substituição por decisão que o condene pela prática de um único crime continuado ou, assim se não entendendo, que se ordene o reenvio dos autos para novo julgamento a fim de serem supridos os vícios que invoca, para o que apresentou as seguintes conclusões:

a) o Douto Acórdão não ponderou a integralidade dos factos que foram apurados e provados padecendo de inultrapassáveis e relevantes insuficiências quanto ao tratamento jurídico e valoração da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento.
b) o Douto Acórdão condena o arguido pela pratica de um crime de coacção sexual agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 163.º,n.º1 e 177.º n.º 6 do CP na pena 8 (oito) anos de prisão; onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos e punidos pelo 171.º n.º3 alínea a) da CP, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada;
e de, um crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 163.º n.º1, 177.º n.º6 e 22.º 22n.ºs 1 e 2 alínea c) do CP, na pena 3 (três) anos de prisão; e,
condenar o arguido, em cúmulo jurídico, numa pena única de 15 (quinze) anos de prisão;
c) O Douto Acórdão com base numa visão redutora do enquadramento fáctico dado como provado, e afastando dessa forma um conjunto de factos também dados como provados que viram a sua apreciação preterida sem que tenha sido fornecida justificação ou motivação, aplicando assim de forma o artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, realizando um concurso efectivo de crimes, quando da totalidade da matéria fáctica apurada outro resultado era desejável por mais conforme ao direito, á doutrina e à jurisprudência.
d) Mercê desse vicio de erro notório na apreciação da prova, o Douto Acórdão recorrido prejudicou seriamente a apreciação da culpa do arguido que foi condenado em cúmulo jurídico na pena única de 15 anos de prisão, pena assaz desproporcional considerando que o arguido é primário, tem 70 anos de uma vida passada sem cometimentos de crimes de qualquer natureza.
e) Para a qualificação da conduta do arguido deveria ter concorrido na necessária ponderação e motivação, a integralidade dos factos provados, o resultado alcançado seria necessariamente a qualificação da conduta do arguido como inserida na previsão do artigo 30.º, n.º2 do Código Penal, e sua actividade criminosa qualificada como um crime continuado.
f) A qualificação da conduta do arguido como um crime continuado, nos termos previstos no artigo 30.º, n.º2 do Código Penal seria a correcta e conforme à verdade dos factos apurados e provados e permitiria um juízo sobre a sua culpabilidade que resultaria sensivelmente diminuída, não fora o vício de erro na apreciação da prova aqui apontado e que se espera corrigido.
g) O resultado produzido no Douto Acórdão enferma do vício de erro na apreciação da prova que importa corrigir sob pena de ser cometida uma injustiça ao impor ao arguido uma pena de 15 anos de prisão em cúmulo jurídico, quando a lei e os factos apontam um caminho diverso que é o previsto n.º30, n.º2 do Código Penal, ou seja, tratar a conduta do arguido em função da integralidade factual provada e das determinações jurisprudenciais, como um crime continuado.

O recurso foi admitido.
Na resposta, o MºPº pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, concluindo como segue:

1. O Acórdão não incorre, manifestamente, no vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº 2, al. c), do C.P.P., que há-de resultar do texto da decisão recorrida por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, tanto mais que o arguido, não demonstra nem sequer indica que o Acórdão retirou qualquer conclusão ilógica, arbitrária contraditória ou claramente violadora das regras da experiência comum, detectável por qualquer pessoa.
2. O arguido não pode ser punido pela prática de um único crime continuado, nos termos do nº 2, do artº 30º, do Cód. Penal, porquanto opõe-se a essa solução o disposto no nº 3, desse preceito, uma vez que os crimes pelos quais foi condenado -coacção sexual agravado e abuso sexual de criança- visam defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, bem jurídico de natureza eminentemente pessoal
3. Acresce que, no caso dos autos, não se encontra um circunstancialismo exterior que, de maneira considerável, tenha facilitado a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao arguido que se comportasse de acordo com o direito, adequado à formulação de um juízo positivo sobre a diminuição da culpa do arguido. Pelo contrário,
4. A prática criminosa reiterada radica, na situação em apreço, em factores endógenos do arguido – a satisfação dos seus impulsos e excitação sexual-, com aproveitamento da proximidade geográfica da sua residência à da MC, de conhecer a mãe e a avó materna desta, das carências económicas das famílias menores e do facto de estas brincarem no exterior, e com aliciamento das crianças mediante a oferta de guloseimas, rebuçados e pastilhas, e de moedas, que atirava para o solo e que entregava às menores, -cfr. nº 6, dos factos provados.
5. E com exploração da tenra idade e inexperiência das menores na esfera sexual –cfr. nº 17 da factualidade provada.
6. Todas estas circunstâncias, ao invés de diminuírem a culpa do arguido constituem-se como elementos agravantes da sua conduta, demonstradores do não preenchimento, “in casu”, dos pressupostos exigidos no nº 2, do artº 30, do Cód. Penal, pelo que não pode o arguido ser punido pela prática de um só crime continuado.

Nesta Relação, a Exmª Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual, acompanhando a resposta do MºPº na 1ª instância, também se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
No acórdão recorrido foram considerados como provados os seguintes factos:

(……..)


3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí suMCdas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que foram suscitadas são as seguintes:
- erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo;
- violação do disposto nos arts. 70º e 71º do C. Penal na determinação da medida da pena.

3.1 O recorrente sustenta que o acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova por, em seu entender, ter prejudicado seriamente a apreciação da sua culpa com base numa visão redutora da factualidade considerada como provada, apreciando-os sem que tenha sido fornecida justificação ou motivação, aplicando assim indevidamente o art. 30º nº 1 do C. Penal de forma a realizar um concurso efectivo de crimes, quando devia ter qualificado a sua conduta como inserida na previsão do nº 2 do referido preceito. Mais desenvolvidamente na motivação do recurso, afirma que não recorre tanto da decisão da matéria de facto ( mais adiante afirma textualmente que “não se põe em causa os factos que foram dados como provados” ), mas sobretudo da valoração da foi feita da conduta criminosa, com o intuito de apelar “a uma outra visão dos mesmos factos conducente a uma solução mais justa e conforme ao Direito e aos seus princípios”, sustentando que a forma como essa conduta foi executada contém elementos que podem ser caracterizados como encerrando um padrão, existindo um elevado grau de homogeneidade na sua execução ( aproxima-se do local onde residem as menores e brincam após a actividade escolar; oferece doces ou dinheiro para as atrair sem o conseguir porque elas fogem; à aproximação delas, aponta para o seu pénis e pede que lhe toquem; quando consegue agarrar uma delas, as outas intervêm e conseguem libertá-la ), praticada sob um mesmo e único propósito, não podendo a interacção entre ele e as menores deixar de ser caracterizada como um circunstancialismo exógeno que precipitou e facilitou a sucessividade da conduta criminosa, ininterrupta na medida em que se mostra inserida numa dimensão temporal sem grande precisão. Assim, e porque os bens jurídicos ameaçados foram sempre bens que priMCmente se prendem com a esfera sexual das pessoas, defende que a factualidade deve ser unificada e subsumida a um único crime continuado, tal como definido no nº 2 do art. 30º do C. Penal, encontrando-se preenchidos os requisitos para a aplicação deste instituto.

Da argumentação desenvolvida pelo recorrente resulta, por um lado, que se conforma com a decisão da matéria de facto, e, por outro, que este fundamento do recurso não implica o vício que veio invocar. De todo o modo, porque os vícios prevenidos no art. 410º do C.P.P. são de conhecimento oficioso, começaremos por esclarecer os respectivos contornos e, em particular, os daquele a que o recorrente alude.
Como é sabido, tais vícios são vícios da decisão ( desta e não do julgamento ) que e terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida ( sem recurso a outros elementos constantes do processo ), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Quanto ao erro notório na apreciação da prova, verifica-se “quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma consequência ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida[3]. Desdobra-se, pois, em erro na apreciação dos factos e em erro na valoração da prova produzida. Verifica-se, igualmente, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
A notoriedade do erro ( sendo este a ignorância ou falsa representação da realidade ) exigida pela lei traduz-se numa incongruência que “há-de ser de tal modo evidente que não passe despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (...), ao observador na qualidade de magistrado, dotado de formação e experiência adequadas a um tribunal de recurso. Esse erro há-de ser evidente aos olhos dos que apreciam a decisão e seus destinatários, sem necessidade de argúcia excepcional (...)”[4], [5], [6].

Ora, lido atentamente o texto da decisão recorrida, é por demais evidente que nele se não detecta qualquer desconformidade nem no seio da matéria de facto considerada como provada, nem nas explicações fornecidas para a forma como a mesma foi decidida, e também não se vislumbra qualquer atropelo injustificado das regras da experiência comum ou a valoração de provas proibidas. Ao invés, a decisão da matéria de facto e a respectiva motivação formam um conjunto harmónico, coerente e claramente indiciador de um raciocínio lógico na apreciação e exame crítico dos meios de prova que foram produzidos e examinados durante o julgamento.

Mas, o que o recorrente veio verdadeiramente foi discutir a subsunção jurídica dos factos - aqueles mesmos que foram considerados como provados e que se devem considerar como definitivamente assentes - tal como foi feita no acórdão recorrido, defendendo que integram apenas um crime continuado e não os diversos crimes a que ali tais factos foram subsumidos e por cuja prática foi condenado. Em causa está, pois, a comissão de um, pretenso, erro de direito e não de facto.

Vejamos, então, na parte que para aqui interessa[7], as considerações que no acórdão recorrido foram expendidas acerca do enquadramento jurídico dos factos:
A. Do crime de abuso sexual de criança
Nos presentes autos é imputada ao arguido a prática – como autor material e em concurso efectivo – de um crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1 e 2, na forma tentada, por referência aos artigos 22.º, n.º 1, alínea b) e 23.º, n.º 1 e de vinte e sete crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, todos do Código Penal.
A Reforma de 1995 do Código Penal dividiu o capítulo destinado aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, em três secções: uma primeira, a que se deu a epígrafe de “crimes contra liberdade sexual”, onde se inscreve, entre outros, o crime de violação, bem como o crime de coacção sexual; uma segunda, que denominou “crimes contra a autodeterminação sexual”, onde se insere o crime de abuso sexual de crianças; e uma terceira – ainda que não perfeitamente autonomizada - que contém as disposições comuns às duas secções.
Em todas as referidas secções estão em causa bens jurídicos que priMCmente se prendem com a própria esfera sexual das pessoas.
A razão de ser da distinção prende-se com o facto de a secção I proteger, sem fazer acepção de idade, a liberdade (e/ou a autodeterminação) sexual de todas as pessoas, a auto-conformação da vida e das práticas sexuais da pessoa. Cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m). Se, e quando, esta liberdade for lesada de forma importante, a intervenção penal encontra-se legitimada e, mais do que isso, torna-se necessária.
Por seu turno, a secção II do mesmo capítulo estende essa protecção a casos que, ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou sê-lo-iam dentro de limites menos amplos, ou ainda, em qualquer caso, assumiriam uma menor gravidade; e estende-a porque a vítima é uma criança ou um menor de certa idade. Pode assim afirmar-se que nesta secção o bem jurídico protegido é também, a liberdade e autodeterminação sexual, mas ligado a um outro bem jurídico que é do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.
A lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem para a realização de acções sexuais bilaterais (conforme salienta LOPES, José Mouraz – Os contra a liberdade e a autodeterminação sexual no Código Penal, Coimbra Editora, pág. 56 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Setembro de 2007, processo n.º 07P2273, relator: Santos Cabral, www.dgsi.pt).
Com efeito, até atingir um certo grau de desenvolvimento, indiciado por determinados limites etários, o menor deve ser preservado dos perigos relacionados com o desenvolvimento prematuro em actividades sexuais. Nessa conformidade, o limite etário dos 14 anos é entendido como a fronteira entre a infância e a adolescência.
Efectuado este enquadramento prévio passemos à análise dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito imputado ao arguido.
Dispõe o n.º 1 do citado artigo 171.º que pratica um crime de abuso sexual de criança quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa. Já nos termos do n.º 2 a pena a aplicar é agravada se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Também é punido, mas agora nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º, quem importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º, a saber: quem praticar perante o menor actos de carácter exibicionista ou o constranger a contacto de natureza sexual.
Em primeiro lugar, refira-se estarmos perante um crime de perigo abstracto uma vez que não se exige um um efectivo dano para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, bastando-se o legislador com a mera potencialidade de tal ocorrência.
Agente pode ser qualquer pessoa, homem ou mulher, os familiares ou mesmo os pais da vítima. A vítima, por outro lado, terá necessariamente uma criança ou um jovem menor de 14 anos, sendo, contudo, irrelevante o seu sexo. Tipicamente indiferente é também que a vítima seja ou não sexualmente iniciada; que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar e, ainda, que lhe caiba uma intervenção activa ou puramente passiva no processo.
Conforme resulta do preceito em análise, o conteúdo sexual do acto pode assumir diferente natureza, o que alcança directo reflexo ao nível da moldura abstracta da pena a aplicar. Para o que nos interessa, importa, pois, delimitar o que se entende por acto sexual de relevo, por um lado, e, por outro, por cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
Por acto sexual deve entender-se o comportamento que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por conseguinte, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou de quem o pratica. Ainda que assim seja, para determinação do conteúdo do carácter sexual do acto poderá também relevar o circunstancialismo de lugar, de tempo e de condições que o rodeia e que o faça ser reconhecível pela vítima como sexualmente significativo (nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS, Jorge – “Comentário ao artigo 163.º do Código Penal”; Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial – Artigos 131.º a 201.º; Tomo I, dirigido por: Jorge de Figueiredo Dias; Coimbra Editora, 1999, pág. 448).
O elemento objectivo do tipo de ilícito em apreço exige, igualmente, que o acto sexual se possa considerar de relevo, o que impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido, o que equivale a dizer que dizer que importa que o acto represente um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima.
Exige-se, igualmente, que o acto seja praticado com a vítima ou na vítima. Nessa conformidade, não será punido nos termos do n.º 1 do artigo 171.º do CP, mas apenas como acto exibicionista que integra a alínea a) do n.º 3 deste preceito – por referência ao crime de importunação sexual previsto e punido no artigo 170.º do CP –, o constrangimento a acto sexual de relevo praticado pelo agente ou por terceiro(s) perante a vítima (nosso sublinhado).
Assim, a exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, erecto ou não, perante vítima menor de 14 anos, a quem se causa deste modo receio, susto, intimidação e perturbação, realiza o tipo do artigo 171.º, n.º 3, alínea a) do Código Penal, pois atinge a liberdade da vítima na vertente da sua autodeterminação sexual e é conduta perturbadora do desenvolvimento livre da sexualidade da menor atingida (neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Janeiro de 2014, processo n.º 59/11.5GDPTG.E1, relator: Ana Barata Pinto, www.dgsi.pt).
A lei considerou, pois, decisivo o tocar o corpo da vítima, reconhecendo nesse acto um perigo intensificado para a sua autodeterminação sexual. Saliente-se, porém, que o acto de tocar no corpo da vítima não tem de ser levado a cabo pelo corpo do agente ou de terceiro. Não é, pois, indispensável o mútuo contacto corporal, bastando para integrar o conceito de actos sexuais de relevo toques com objectos ou mesmo acções como as de ejacular ou urinar sobre a vítima.
Por fim, saliente-se que não se torna necessário o acompanhamento consciente por parte da vítima do acto sexual de relevo, uma vez que o tipo abrange também aqueles casos em que o acto teve lugar com pessoa que se encontrava inconsciente. Muito menos se exige a compreensão pela vítima do significado sexual do acto e, ainda menos, a apreensão do seu caracter sexualmente “imoral” (conforme salienta FIGUEIREDO DIAS, Jorge – “Comentário ao artigo 163.º do Código Penal”; op. cit. pág. 453).
Pese embora tenha sido amplamente discutido na jurisprudência o que se deveria considerar como integrando o conceito de cópula, temos por assente que o entendimento maioritário é o de que se deve entender por cópula a penetração da vagina pelo pénis, como resultado de uma relação heterossexual de conjugação carnal entre órgãos sexuais masculinos e femininos. Exige-se, pois, a introdução completa ou incompleta do órgão sexual masculino na vagina, afastando-se a equiparação com a chamada cópula vestibular ou vulvar (FIGUEIREDO DIAS, Jorge – “Comentário ao artigo 164.º do Código Penal”; Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial – Artigos 131.º a 201.º; Tomo I, dirigido por: Jorge de Figueiredo Dias; Coimbra Editora, 1999, pág. 472 e, entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2008, processo n.º 08P2874, relator: Santos Cabral, www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10 de Maio de 2010 processo n.º 77/07.8TAPTB.G2, relator: Margarida Almeida, www.dgsi.pt). Em abono desta conclusão refira-se que tal acto é equiparado ao coito anal e ao coito oral – consistindo, o primeiro, na penetração do ânus e, o segundo, na penetração da boca pelo pénis –, tendo como paralelo o acto de introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.
No que se refere ao elemento subjectivo do tipo de ilícito em apreço importa referir que se exige a existência de dolo, pelo menos sob a forma de dolo eventual, necessário relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito.
Paralelamente ao crime de abuso sexual de criança previsto no artigo 171.º do CP objecto da análise efectuada, encontra-se o crime de violação previsto e punido no artigo 164.º e, bem assim, o crime de coacção sexual previsto e punido no artigo 163.º, ambos do mesmo diploma.
Dispõe a alínea a) do n.º 1 do citado artigo 164.º que comete um crime de violação quem por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral.
Por outro lado, nos termos do artigo 163.º comete um crime de coacção sexual quem por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo.
Com especial relevância para o caso em apreço importa, ainda, trazer à colação o estatuído no n.º 6 do artigo 177.º do CP de onde resulta que as penas previstas, nomeadamente nos artigos 163.º e 164.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. Com a introdução desta agravação em função da idade da vítima afasta-se a hipótese de punição do agente pela prática, em concurso efectivo, do crime de violação e de abuso sexual de crianças e do crime de coacção sexual e de abuso sexual de crianças (artigos 164.º e 171.º e 163.º e 171.º).
A propósito da referida trilogia refira-se que o crime de violação é, face a outros tipos penais, um magis, que abarca não só o acto de cópula, coito oral e anal e a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, mas também o modo típico de violência e ameaça, sobrestando assim à consideração em singelo dessas condutas – noutros locais, típicas – por via da consumpção normativa, que obsta a situações, congemináveis, de concurso real de crimes. O mesmo se diga relativamente ao crime de coacção sexual agravado em face do crime abuso sexual de criança, pois que no primeiro, para além da prática de acto sexual de relevo, existe o constrangimento da vítima pelas formas tipicamente previstas na lei.
Do exposto resulta que a destrinça entre a aplicabilidade dos três referidos normativos resultará, em primeiro lugar, da natureza do acto sexual praticado e, em segundo lugar, do facto de associado a tal acto poder ter existido violência, ameaça grave, inconsciência ou impossibilidade de resistência. Em paralelo, há, ainda, que ter presente a intenção com que o arguido terá actuado. E aqui nos iremos deter.
Com efeito, a intenção do agente consubstancia um elemento essencial a ponderar, nomeadamente, quando os actos sexuais praticados consubstanciam a tentativa de violação e um crime de coacção sexual. A grande diferença entre uma situação e a outra será a intenção do agente ligada ao crime de violação, que será a de praticar cópula, coito anal ou coito oral. Em ambas as situações o agente que pratica estes actos realiza-os sem, no entanto, conseguir que a vítima sofra ou pratique cópula, coito anal ou coito oral; o agente fica-se pelo estádio da tentativa de crime de violação, que, simultaneamente, constitui um crime de coacção sexual consumada. Uma vez que se trata de um caso de concurso aparente entre a tentativa do crime de violação e o crime de coacção sexual – o crime fundamental – segundo as regras da consumpção, será o agente punido pelo crime de coacção sexual consumado. A atribuição de relevância à punição da tentativa em detrimento do crime consumado constituiria uma prevalência da punição de uma intenção em relação à punição de um facto. Outra solução, isto é, a punição deste comportamento simultaneamente por tentativa do crime de violação e por crime de coacção sexual consumada seria punir duas vezes a mesma conduta – a conduta de praticar ou fazer sofrer, consigo ou com outra pessoa, acto sexual de relevo que não de cópula, coito anal ou coito oral - violando o princípio do ne bis in idem (neste mesmo sentido, veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2008, processo n.º 08P2874, relator: Santos Cabral, www.dgsi.pt).
In casu, resultaram provados factos cujo enquadramento jurídico – tendo por referência as considerações supram expostas – se impõe:
1. No dia 2 de Fevereiro de 2014, pelas 15H30, o arguido ABS dirigiu-se a MC, agarrou-a pela camisola e pela nuca e levou-a para um terreno isolado, próximo de umas rochas, a cerca de 50 metros da residência desta, dizendo-lhe: “não contes a ninguém”. Após, o arguido baixou as calças e as cuecas que envergava para baixo, pela altura dos tornozelos, agarrou as duas mãos de MC por cima da cabeça desta, postou-a contra uma rocha, baixou-lhe as calças e as cuecas pela mesma altura e exibiu o seu pénis, enquanto aquela gritava, chorava e soluçava compulsivamente. Acto contínuo, o arguido acariciou, com a mão, o órgão genital de MC, com vista a introduzir, imediatamente a seguir, o seu pénis no interior da vagina desta, o que não logrou fazer por ter sido surpreendido por EF.
2. Em datas não concretamente apuradas, mas anteriores a 2 de Fevereiro de 2014, e em número não apurado de vezes, mas não inferior a três, encontrando-se MC, V, B e A a brincar juntas no terreno contíguo ao Bairro (…..), em (…..), o arguido ABS abeirou-se das mesmas e atirou dinheiro, pastilhas e rebuçados para o solo. Acto contínuo, o arguido ABS despiu as calças, exibiu-lhes o pénis erecto e com gestos – apontando para o dinheiro, para as guloseimas e para o pénis – pediu-lhes para lhe tocarem naquele órgão genital. Em duas dessas ocasiões e como as menores não acederam, o arguido friccionou perante as mesmas o pénis com a mão, com movimentos regulares, ascendentes e descendentes, tendo chegado, por uma das vezes, a ejacular em frente a V. Em outra ocasião o arguido chegou a agarrar A por um braço e tentou levá-la do local, tendo sido impedido por MC, V e B, que a agarraram e fugiram.
Importa, ainda, referir ter resultado provado que o arguido delineou um plano com vista a abeirar-se das menores e masturbar-se perante elas, obriga-las ou aliciá-las a tocar nos seus órgãos genitais e a manter relações sexuais consigo para cuja execução decidiu munir-se previamente de guloseimas, como rebuçados e pastilhas, e de moedas, que atirava para o solo ou entregava às menores.
Por fim, resultou, também provado que o arguido sabia que MC, V, B e A eram menores de 14 anos e que padeciam de carências económicas, bem sabendo, também, que os actos que praticou e queria praticar perante e com as mesmas eram de natureza inquestionavelmente sexual e, não obstante, decidiu agir conforme descrito para satisfazer os seus instintos libidinosos. Sabia também o arguido que, ao actuar da forma por que o fez, não só afectava a integridade psicológica e emocional das menores, como lhes coarctava a respectiva liberdade de autodeterminação sexual, o que concretizou. Ademais, o arguido previu e quis usar da força física, com o intuito de concretizar cópula com MC, subjugando-a, e pondo-a na impossibilidade de resistir, determinado a com a mesma manter relações sexuais para obter prazer sexual, o que só não concretizou, porque foi surpreendido pela mãe desta. O arguido actuou, ainda, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
No que se refere ao primeiro conjunto de factos importa referir que o mesmo integra, em abstracto, os elementos do tipo de violação agravado, na forma tentada, previsto e punido nos artigos 164.º n.º 1 alínea a) e 177.º n.º 6 do CP, em concurso com o crime de coacção sexual agravado, consumado, previsto e punido nos artigos 163.º n.º 1 e 177.º n.º 6 do CP.
Com efeito, o arguido, mediante o recurso ao uso da violência – consistente no agarrar da menor pela nuca e camisola para a levar para outro local e no, subsequente, agarrar das suas duas mãos acima da cabeça, postando-a contra uma rocha –, acariciou o órgão genital de MC após a ter despido da cintura para baixo, com vista à introdução do seu pénis na vagina daquela, o que não logrou fazer por motivos alheios à sua vontade. Por não ter chegado a existir penetração estamos perante um acto tentado, tal como definido no artigo 22.º n.ºs 1 e 2 alínea c) do CP, sendo que o acto sexual em causa pode ser considerado, em si mesmo, como acto sexual de relevo.
Porém, nos termos já expostos e atentas as regras do concurso de crimes, nomeadamente, o princípio da consumpção impura, o arguido deverá ser condenado pelo crime de coacção sexual agravado consumado.
No que se refere aos factos supram enunciados sob o ponto 2), temos que o arguido praticou oito crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos e punidos pelo artigo 171.º, não no n.º 1, mas no n.º 3 alínea a) porquanto, por duas ocasiões distintas, masturbou-se em frente a quatro menores, tendo chegado a ejacular em uma dessas ocasiões. Tal acto não foi praticado no corpo das menores, mas sim perante as menores pelo que temos que o arguido praticou – nos termos já expostos – não actos sexuais de relevo, mas sim actos exibicionistas. Por último, resta integrar o comportamento do arguido relativamente à situação em que o mesmo chegou a agarrar a menor A, por cotejo o propósito com que actuou: masturbar-se e obrigar ou aliciar as menores a tocar nos seus órgãos genitais, tendo previamente exibido o pénis erecto e com gestos pedido para lhe tocarem naquele órgão genital. Atentas as considerações supram expostas, temos que o arguido ao ter agarrado no braço de A para a levar para outro local actuou com violência, tendo em vista sujeitar a menor a um acto sexual de relevo – obriga-la a tocar no seu pénis –, o que apenas não logrou fazer por ter sido impedido pelas demais menores. O arguido praticou, pois, um crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 163.º n.º 1, 177.º n.º 6 e 22.º n.ºs 1 e 2 alínea c) do CP. A acrescer a este crime, temos que em relação às demais menores sempre terá exibido o pénis erecto e, por conseguinte, voltado a praticar em relação a cada uma delas um crime de abuso sexual de criança, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 171.º, não no n.º 1, mas no n.º 3 alínea a) do CP.
Todos os referidos crimes foram praticados com dolo, uma vez que o arguido sabia que MC, V, B e A eram menores de 14 anos, que os actos que praticou e queria praticar perante e com as mesmas eram de natureza inquestionavelmente sexual, sabendo que ao actuar da forma da forma descrita não só afectava a integridade psicológica e emocional das menores, como lhes coarctava a respectiva liberdade de autodeterminação sexual. O arguido actuou, ainda, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Assim sendo, o arguido deverá ser condenado pela prática dos seguintes ilícitos:
- um crime de coacção sexual agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 163.º n.º 1 e 177.º n.º 6 do CP;
- onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos e punidos pelo artigo 171.º n.º 3 alínea a) do CP; e
- um crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 163.º n.º 1, 177.º n.º 6 e 22.º n.ºs 1 e 2 alínea c) do CP.
Dos demais crimes de abuso sexual de crianças que não sejam objecto da necessária convolação e de que o arguido que vinha acusado impõe-se a sua absolvição.
Saliente-se que, pese embora já tenha sido comunicada ao arguido a possibilidade de convolação em crime diverso, nos termos do disposto no artigo 358.º do CPP, por força da alteração da qualificação jurídica supra exposta, o certo é que a decisão de convolação deve ter lugar na própria sentença (neste sentido, PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo – Comentário do Código de Processo Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; Universidade Católica Editora, Lisboa, Dezembro de 2007, pág. 891).”
Como se constata, o tribunal recorrido procedeu a uma análise detalhada e rigorosa de toda a factualidade considerada como provada e relevante para a respectiva qualificação jurídica, em termos nos quais se não vislumbra qualquer incorrecção.
A questão subsistente, porque trazida à colação pelo recorrente, é a de determinar se toda aquela factualidade pode ser subsumida a um único crime, praticado na forma continuada.
E a resposta, adiantamo-lo desde já, não pode deixar de ser negativa, como de seguida se verá.

Dispõe o nº 1 do art. 30º do C. Penal que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo de crime for preenchido pela conduta do agente”, enquanto que o nº 2 do mesmo preceito fornece a definição de crime continuado nos seguintes termos: “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Com interesse para o caso de que nos ocupamos, e embora não viesse bulir com o entendimento já consolidado na doutrina e na jurisprudência, o legislador de 2007 ( DL nº 59/2007 de 4/9 ) aditou-lhe um nº 3 que inicialmente tinha a seguinte redacção: “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.”, mas da qual a Lei nº 40/2010 de 3/9 eliminou a ressalva constante da parte do final e que deixámos sublinhada.
A aglutinação num único crime de casos em que uma série de actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime, ou diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, e às quais presidiram resoluções criminosas distintas - e que, por isso, deveriam ser tratadas nos quadros da pluralidade de infracções – encontra justificação quer em razões de economia processual, quer em razões de justiça, quando o menor grau de culpa do agente lhes confere uma gravidade diminuída em face do concurso real de infracções.
Para além da realização plúrima de violações típicas do mesmo bem jurídico, são pressupostos do crime continuado a execução essencialmente homogénea das violações e o quadro de solicitação do agente que diminui consideravelmente a sua culpa.
A execução de forma essencialmente homogénea supõe a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime” enquanto que “A execução no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior supõe a proximidade espacio-temporal das violações plúrimas” – que necessariamente hão-de ter sido objecto de distintas resoluções criminosas, pois caso contrário não haverá crime continuado, mas um só crime -. “(…) A mediação de um período de tempo (…) dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo, já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime.”[8]
Quanto à diminuição considerável da culpa, o seu fundamento “deve ir encontrar-se (…) no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.[9]
A diminuição sensível da culpa supõe a menor exigibilidade de conduta diversa do agente. (…)
A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. No caso de o agente provocar a repetição da ocasião criminosa (…), não há diminuição sensível da culpa (…). Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso.[10]

Sendo inquestionável que os bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras cuja previsão as condutas do recorrente preenche são bens eminentemente pessoais, como até decorre da epígrafe do Título I da Parte especial em que vêm incluídos na sistematização do C. Penal, e havendo identidade de vítima em relação a alguns deles, ainda assim não é pacífico o entendimento que considera liminarmente afastada a possibilidade de unificação jurídica de tais condutas sob o manto de uma continuação criminosa[11].

A questão não se reveste, no entanto, de interesse prático no presente caso, na medida em que o crime sempre depende da verificação de todos os pressupostos estabelecidos no nº 2 do art. 30º em referência. O que inquestionavelmente não sucede, como de forma assaz clara e fundamentada já vem explicado na resposta do MºPº na 1ª instância, onde acertadamente se considera que a prática criminosa reiterada radica, no caso, em factores endógenos ( e não exógenos ) ao recorrente, em concreto, na satisfação dos seus instintos libidinosos, tal como ficou assente na decisão da matéria de facto. Não foi o recorrente que se limitou a aproveitar de ocasiões favoráveis que se lhe apresentaram; procurou-as, sim, activamente, indo ao encontro das menores, utilizando artimanhas aptas a incitar a cobiça própria das suas idades e a levá-las a arriscar aproximarem-se dele, vencendo o receio infundido pelas anteriores experiências, para conseguirem o prémio, e perseguindo-as quando elas lhe fugiam. Como ali se conclui, todo o circunstancialismo que ficou provado, e que o recorrente não discute mas pretende distorcer de forma a dar-lhe um pendor atenuativo que obviamente não tem, ao invés de diminuir a sua culpa, constitui-se como elemento agravante da sua conduta.
Antes de considerarmos encerrada a apreciação deste fundamento do recurso, e muito embora extrapole as bases em que o recorrente o fez assentar, não deixaremos de referir que, embora alguma jurisprudência defenda a possibilidade de enquadrar os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual na figura do crime de trato sucessivo – entendimento que, a ser seguido, permitiria no caso concreto a redução do número de crimes praticados pelo recorrente -, dela divergimos pelas razões que de forma acutilante vêm explanadas no voto de vencido lavrado no Ac. STJ 29/11/12[13].
Isto dito, só nos resta concluir reiterando o bem fundado da qualificação jurídica dos factos a que o tribunal recorrido procedeu.

3.2. As razões da discordância do recorrente também se dirigem à medida em que a pena foi fixada, considerando-a desproporcional, seja por via da integração da sua actividade criminosa na figura do crime continuado, seja porque não foi devidamente ponderado que é primário e tem 70 anos de uma vida passada sem cometimento de crimes de qualquer natureza.

Embora o recorrente só aluda expressamente à pena única, de 15 anos, para manifestar o seu inconformismo, a argumentação que desenvolve também coloca em crise, de forma indirecta, as penas parcelares fixadas, razão pela qual a nossa apreciação também irá incidir sobre elas.
Não sem que antes frisemos que, como é entendimento generalizado[14], a intervenção correctiva do tribunal de recurso na medida da pena só colhe justificação quando se registem desvios aos princípios, operações e critérios que regem a sua dosimetria, não abrangendo a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena que não se revele de todo desproporcionada.

Vamos, então, começar por conferir o percurso seguido na decisão recorrida quanto à determinação das penas parcelares e única:
III. 2. Da medida da pena
O crime de coacção sexual agravado, na forma consumada, previsto nos artigos 163.º n.º 1 e 177.º n.º 6 do CP é punido com uma pena de 2 (dois) a 16 (dezasseis) anos de prisão. Por outro lado, cada um dos onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, previstos no artigo 171.º n.º 3 alínea a) do CP, é punido com uma pena de 1 (um) mês a 3 (três) anos de prisão. Por fim, o crime de coacção sexual agravado, na forma tentada, previsto pelos artigos 163.º n.º 1, 177.º n.º 6 e 22.º n.ºs 1 e 2 alínea c) do CP, é punido com uma pena de 4 (quatro) meses e 8 (oito) dias a 10 (dez) ano e 8 (oito) meses de prisão.
Dentro da moldura penal abstracta, deverá a pena ser concretamente determinada em conformidade com o princípio regulador do artigo 40.º n.º 1 e 2 e com os critérios estabelecidos pelo artigo 71.º n.º 1 ambos do Código Penal. Assim, na fixação da medida concreta da pena é tida em conta e medida da culpa do arguido e, bem assim, são consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte integrante do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, as necessidades de prevenção e o grau de culpa.
No caso sub judice cabe ponderar globalmente:
- modo de execução do crime em causa que se revelou – considerando o circunstancialismo de tempo e modo provados – objecto de preparação prévia e o facto de o arguido se ter aproveitado da circunstância de ser conhecido da família das menores;
- a gravidade das consequências que, no caso concreto, se considera mediana no que se refere aos actos sexuais exibicionistas praticados perante as menores, mas elevada relativamente ao comportamento manifestado para com a menor MC;
- a intensidade do dolo do arguido, que no caso em apreço é elevada, porquanto directo;
- as necessidades de prevenção geral deste tipo de comportamentos cada vez mais frequentes na sociedade em que vivemos; e
- as necessidades de prevenção especial, que se revelam elevadas pese embora a ausência de antecedentes criminais registados, senão vejamos.
Apesar de se encontrar familiarmente inserido e ser percepcionado, na comunidade onde vivia, como um indivíduo de baixa conflitualidade, o arguido mostrava-se tendencialmente isolado no seu convívio social. A acrescer o arguido já havia sido indiciado anteriormente pela prática de actos exibicionistas semelhantes, tendo o inquérito sido suspenso provisoriamente sob a injunção de o mesmo se submeter a avaliação psicológica e a tratamento de parafilias, tendo sido arquivado em 9 de Novembro de 2009. Sem prejuízo de ter cumprido tais injunções o arguido não revela ter tomado consciência da natureza ilícita dos seus comportamentos, apresentando um posicionamento de desvalorização e desresponsabilização, reforçado pela ausência de qualquer alteração dos hábitos e rotinas comportamentais, que envolviam o contacto/aproximação a contextos frequentados por crianças. Ademais, o arguido adopta uma postura de desvalorização das necessidades subjacentes a um crescimento saudável das crianças da etnia cigana e minimiza a gravidade dos actos tipicamente praticados por agressores sexuais através da atribuição de responsabilidade às vítimas em geral.
Assim, por se mostrarem devidamente asseguradas as finalidades de punição que ao caso se impõem, temos por adequada a condenação do arguido ABS numa pena de 8 (oito) meses[15] de prisão relativamente ao crime de coacção sexual agravado, na forma consumada; numa pena de 1 (um) ano de prisão por cada um dos onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada, e na pena de 3 (três) anos pela prática do crime de coacção sexual agravado, na forma tentada.

III. 3. Do cúmulo jurídico
Estabelece o artigo 77.º do Código Penal que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena a aplicar tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Saliente-se que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios supra mencionados.
Porque o arguido cometeu vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, deve ser condenado numa única pena.
Assim sendo, a pena única a aplicar ao arguido tem como limite máximo 22 (vinte e dois) anos de prisão e como limite mínimo 8 (oito) anos de prisão. Nestes termos, considerando todos os factos supram enunciados, considera-se ser de aplicar ao arguido a pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

Se bem que o tribunal recorrido tenha, no essencial, identificado as circunstâncias relevantes para a determinação da medida da pena, ainda assim algumas das que foram fixadas mostram-se excessivamente severas tendo em conta a concreta gravidade dos factos, o concreto grau de culpa e o referente jurisprudencial para casos de contornos análogos.

Assim, e procedendo à reponderação do complexo de circunstâncias no quadro das molduras abstractas correspondentes a cada um dos ilícitos criminais em causa, tendo em conta, por um lado, as expressivas exigências de prevenção geral, a intensidade do dolo, por outro, as consequências que se traduziram no geral apenas em episódios traumáticos, de maior intensidade em relação à situação que envolveu a MC e descrita no ponto 1. dos factos provados, a ausência de antecedentes criminais registados e a idade avançada do recorrente, que tendencialmente, pela ordem natural das coisas e com o agravamento das consequências do AVC que sofreu, constitui factor de diminuição das exigências de prevenção especial, consideramos ajustada a redução das penas parcelares correspondentes aos crimes de coacção agravada, na forma consumada, e de coacção sexual agravada, na forma tentada, fixando-as em 4 e 2 anos de prisão, respectivamente, devendo manterem-se intocadas as penas de 1 ano de prisão por cada um dos onze crimes de abuso sexual de criança, na forma consumada.
Em decorrência, a moldura penal do cúmulo sofre uma redução nos seus limites máximo e mínimo, passando a ser de 4 a 17 anos de prisão.
A medida da pena única é fixada, dentro dos limites da moldura do concurso, em função dos critérios gerais de culpa e das exigências de prevenção ( arts. 40º nº 1 e 71º nº 1 do C. Penal ), a que acresce o critério especial indicado na 2ª parte do nº 1 do aludido art. 77º, que determina que sejam considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Em função deste critério, a determinação da medida da pena única requer uma especial fundamentação. “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”[16].
Refira-se, ainda, que, embora a lei não estabeleça nenhum critério rígido a seguir na determinação da medida concreta da pena única dentro da moldura do concurso, a prática jurisprudencial tende no sentido de, em casos que não fogem à normalidade, fazer acrescer à pena parcelar mais grave 1/3 das demais, oscilando para mais ou para menos consoante as específicas circunstâncias do caso e a personalidade do agente[17]. Trata-se, na verdade, de um critério orientador, não vinculativo, moldável às especificidades do caso concreto, mas que serve como auxiliar e merece ser ponderado.

No caso, sendo certo que o recorrente é, para todos os efeitos, primário e de idade avançada, não é menos verdade que, através do circunstancialismo que rodeou a prática dos factos, se evidencia uma personalidade pouco sensível ao respeito pelo direitos do outro, nomeadamente em relação aos elementos da etnia cigana e, em particular, às crianças, que, no caso das menores, não hesitou em usar como joguetes dos seus instintos mais primários, apesar de conhecer e ser conhecido dos respectivos familiares, não tendo sequer em julgamento dado mostras de compunção pelo comportamento adoptado e consciência da sua gravidade, refugiando-se em negações e explicações estapafúrdias. O que coloca algumas reservas, adensadas pelo insucesso da suspensão provisória aludida nos pontos 29. a 33. dos factos provados como factor preventivo da prática de novos crimes de natureza idêntica, relativamente à influência que a pena vai ter na conformação do seu comportamento futuro, e que só se mostram atenuadas pelo que já acima referimos quanto aos efeitos do avançar da idade e a decrepitude que os problemas de saúde exponenciam na dimensão das exigências preventivas.
Assim sendo, tudo sopesado, entendemos que a pena única deve ser fixada em 8 anos e 6 meses de prisão, não nos afastando em medida significativa do critério acima aludido.


4. Decisão
Em face do exposto, julgam parcialmente procedente o recurso e, em consequência, reduzem as penas parcelares aplicadas ao recorrente e correspondentes aos crimes de coacção agravada, na forma consumada, e de coacção sexual agravada, na forma tentada, fixando-as em 4 (quatro) e 2 (dois) anos de prisão, respectivamente, e fixando a pena única em que vai condenado em 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, em tudo o mais mantendo o acórdão recorrido.
Sem custas.

Évora, 21 de Abril de 2015

Maria Leonor Esteves

António João Latas

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[1] ( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, CPP, 2ª ed. V. II, pág. 740.
[4] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., págs. 1036 ss.
[5] “O conceito de erro notório na apreciação das provas tem que ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório” ( Ac. STJ de 6/4/1994, CJ, ano II, t.2, p. 186.
[6] Menos exigente ainda é a corrente representada pelo Ac. STJ 30/1/02 Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, ("http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Anuais/Criminais/Criminais2002.pdf" ) , segundo o qual “para que se verifique o requisito da notoriedade do vício não é indispensável que o erro não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, que seja por eles facilmente apreensível. Atentos os fins judiciários visados com a previsão do vício e a regulação dos seus efeitos, a sua evidência deve ser aferida por referência à possibilidade de não passar despercebido, de ser facilmente detectável, por julgador com a preparação e a experiência pressupostas pelo exercício da função. Aquela visão de maior exigência para a verificação do vício - resultante de se referenciar a sua evidência à possibilidade da sua fácil percepção pela pessoa comum - diminuiria injustificadamente o efeito pretendido com a previsão do seu conhecimento, mesmo oficiosamente; efeito esse radicado no objectivo de evitar tanto quanto possível decisões de facto não consentâneas com a prova produzida, de forma a limitar o risco de decisões injustas.”
[7] Deixando de lado o que concerne aos crimes de ameaça cuja prática também vinha imputada ao recorrente e pelos quais veio a ser absolvido.
[8] cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 138.
[9] cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág.209, que, na pág. seg., indica exemplificativamente as seguintes situações exteriores típicas susceptíveis de diminuírem consideravelmente o grau de culpa da agente: a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos; a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; e a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.
[10] cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 139.
[11] Admitindo-o em abstracto, cfr. Ac.RE 16/12/04, proc. 28/11.5TACVD.E1, em que a ora relatora interveio como adjunta.
[12] Como de forma assaz clara e fundamentada já vem explicado na resposta do MºPº na 1ª instância, onde acertadamente se considera que a prática criminosa reiterada radica, no caso, em factores endógenos ( e não exógenos ) ao recorrente, em concreto, na satisfação dos seus instintos libidinosos, tal como ficou assente na decisão da matéria de facto. Não foi o recorrente que se limitou a aproveitar de ocasiões favoráveis que se lhe apresentaram; procurou-as, sim, activamente, indo ao encontro das menores, utilizando artimanhas aptas a incitar a cobiça própria das suas idades e a levá-las a arriscar aproximarem-se dele para conseguirem o prémio, vencendo o receio infundido pelas anteriores experiências, e perseguindo-as quando elas lhe fugiam. Como ali se conclui, todo o circunstancialismo que ficou provado, e que o recorrente não discute mas pretende distorcer de forma a dar-lhe um pendor atenuativo que obviamente não tem, ao invés de diminuir a sua culpa, constitui-se como elemento agravante da sua conduta.
[13] Proc. nº 862/11.6TAPFR.S1
[14] A título de exemplo, cfr. Acs. STJ 14/5/09, proc. nº 19/08.3PSPRT:
“(…) na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art. 71.º do CP têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.”;
RP 2/6/10, proc. nº 60/09.9GNPRT.P1:
“(…) no recurso dirigido à reacção penal aplicada, a pretensão recursiva apenas incidirá sobre os seus critérios fundamentais (culpa, prevenção especial ou geral) ou mesmos em relação às demais circunstâncias que rodearam o cometimento do crime, sejam pretéritas, contemporâneas ou posteriores a essa ocorrência, de tal modo que a pena aplicada se mostre inadequada quanto à escolha ou desajustada no que concerne ao seu quantitativo.
Nesta conformidade, esse desajustamento quantitativo terá que ser relevante, mostrando-se desproporcionado em função da culpa relevada ou das exigências de prevenção que se fazem sentir, impondo-se a sua correcção por via de recurso.
Mas já não passa pela precisão ou exactidão da reacção penal aplicada, definidos que estejam correctamente os respectivos parâmetros legais e judiciais, salvo, como já referimos, na falta de razoabilidade ou desproporcionalidade da reacção penal aplicada.
Assim, no recurso sobre a medida da pena o que poderá ser objecto do mesmo são a correcção dos critérios legais e judiciais de determinação da pena, de modo que seja aplicada uma reacção penal justa, mas não aquela pena exactamente justa.”
e RE 30/9/14, proc. nº 344/08.3GAOLH.E1 ( em que a ora relatora interveio como adjunta):
“(…) os recursos (quer em matéria de facto, quer em matéria de direito) não são re-julgamentos da causa mas tão só remédios jurídicos.
Assim, também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal da Relação deve intervir na pena, alterando-a, tão só quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena.
A Relação não decide da pena como se o fizesse ex novo, como se inexistisse decisão de 1ª instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito aos princípios que norteiam a pena ou de um desvio nas operações de determinação impostas por lei.
Daí que não abranja a determinação/fiscalização dum quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionado.”
[15] Resulta manifesto, seja da moldura abstracta correspondente ao crime em questão e antes correctamente indicada ( de 2 a 16 anos de prisão ), seja da referência posterior ao limite mínimo da moldura do cúmulo, que a menção de “meses” se deveu a mero lapso de escrita, e que o que se quis dizer foi, na verdade, “8 (oito) anos”.
[16] cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 291-292.
[17] Disso são exemplo, entre outros, os Acs. STJ 11/2/02, proc. nº 02P1259 e 27/11/08, proc. nº 08P2149.