Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1860/15.6T8FAR.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: MEIOS DE PROVA
RECURSO
RESERVA DA VIDA PRIVADA
SIGILO BANCÁRIO
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Pese embora o artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, se refira ao despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova, se atentarmos na razão que levou à introdução da admissibilidade do recurso autónomo deste despacho – o risco da anulação do processado posterior -, só podemos concluir que esta admissibilidade excepcional de recurso imediato se aplica também aos casos em que tal rejeição tenha sido parcial.
II - Os meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto são aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa, a aferir na conformação do quadro do litígio por via da causa de pedir invocada e das excepções deduzidas.
III - Movendo-se a parte requerente neste âmbito, a produção dos meios de prova não só pode, como deve, incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, entendido este tanto na perspectiva da acção como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material.
IV - O direito à prova não é um direito absoluto, ainda que coberto pela capa de uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
V - No caso vertente, ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva na vertente do direito à produção de prova, contrapõe-se o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias.
VI - Sendo impossível restringir o acesso ao correio electrónico às mensagens ou informação de natureza profissional, dos trabalhadores, a determinação da perícia nos moldes requeridos - verificar os e-mails trocados entre os colaboradores da 1.ª R. por forma a detectar qualquer tipo de aliciamento de clientes da A. -, é abstractamente adequada a devassar a vida privada quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tenham correspondido por esta via, não havendo dúvidas que a recolha, a consulta e a subsequente utilização como meio de prova dos e-mails dos trabalhadores cai na previsão do artigo 3.º da LPD.
VII - A matéria de comunicações electrónicas na empresa, de controlo do e-mail e do acesso à internet, é precisamente aquela que maiores cuidados impõe na defesa do direito à reserva da vida privada, por isso que, na apreciação que desta matéria tem sido efectuada em contexto laboral pela jurisprudência dos tribunais superiores, seja abordada a questão da prévia regulamentação sobre o uso dos equipamentos da empresa.
VIII - Não estando demonstrada a necessidade nem a proporcionalidade do requerido âmbito da perícia, a mesma, conforme pretendida pela autora, não acautelaria os já referidos direitos quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tivessem correspondido livremente por aquela via electrónica, nada havendo a censurar ao indeferimento parcial do âmbito daquela diligência que devassaria integralmente todas as comunicações efectuadas via e-mail pelos trabalhadores, e consequentemente as informações, mesmo de natureza pessoal e familiar, ali existentes, constituindo por tal e nos moldes em que foi requerida, uma “abusiva intromissão na correspondência”, cominada com a nulidade pelo n.º 8 do artigo 32.º da CRP.
IX - O pedido de levantamento do sigilo bancário sobre todos os pagamentos feitos pela 2.ª Ré acima de 500,00€, e dos depósitos de capital social e outros desde 28.02.2015, importa que seja sopesado de um lado da balança o dever de sigilo, que visa quer a protecção dos direitos pessoais, como o bom nome, a reputação e a reserva da vida privada, quer a protecção das relações de necessária confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes; e do outro o dever de colaboração com a administração da justiça que tem evidentemente por finalidade a satisfação de um interesse público: a realização da Justiça, no caso concreto ainda na vertente relativa à aquisição processual da prova.
X - Não tendo a diligência em causa a virtualidade de fazer prova sobre a matéria constante dos artigos da petição inicial indicados pela autora, a determinação da respectiva junção aos autos implicaria uma injustificada e desnecessária divulgação de elementos bancários relativos a muitas outras pessoas, para além da R. sociedade, e da 2.ª Ré, cujo interesse é protegido pelo sigilo bancário e não deve ser sacrificado, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, face à desnecessidade dos mesmos para que a Autora possa produzir prova da factualidade naqueles alegada.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1860/15.6T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. AA – SERVIÇOS DE GESTÃO, S.A., Autora nos autos supra identificados que move contra BB – SERVIÇOS DE GESTÃO LDA., e outros, tendo sido notificada do despacho proferido nos autos em 07.12.2016, no qual o Tribunal se pronunciou quanto ao requerimento probatório apresentado pela A. em 3 de Novembro de 2016, pronunciando-se pelo:
A) Indeferimento parcial respeitante à matéria a ser analisada aquando da realização da perícia técnica informática ao servidor para apuramento de back up realizado com transmissão de dados ilegítimos pertencentes à A. para a 1º R., bem como do apuramento junto da empresa “X” ou entidade parceira, relativamente à licença do programa SNC “X”, instalado na 1ª R., bem como data e forma de pagamento referente à licença, instalação e manutenção do software da 1ª R. e,
B) Indeferimento relativo ao levantamento do sigilo bancário sobre pagamentos feitos pela 2.ª R. acima de € 500,00, fichas de abertura de clientela da 1.ª R. e depósitos de capital social e outros, desde o período de abertura de conta até 28.02.2015; e não se conformando com o mesmo apresentou o presente recurso de apelação, finalizando a respectiva minuta recursória com as seguintes conclusões:
«1. No requerimento probatório que acompanhou a petição inicial a A., entre outros, requereu que:
a. Fosse feita uma perícia técnica informática ao servidor para apuramento de back up realizado com transmissão de dados ilegítimos pertencentes à AA para 1.ª R., bem como apuramento junto da empresa “X” ou entidade parceira, relativamente à licença do programa SNC “X”, instalado na 1.ª R., bem como data e forma de pagamento referente à licença, instalação e manutenção do software da 1.ª R.;
b. Fosse levantado o sigilo bancário sobre pagamentos feitos pela 2ª R. acima de € 500,00, das fichas de abertura de clientela da 1ª R. e dos depósitos de capital social e outros desde 28.02.2015, pretendendo, assim, fazer prova da existência de aliciamento financeiro parte da 2º R. aos então trabalhadores da A. e a angariação de clientes da A. pela 1ª e 2ª RR..
2. Foi estabelecido como tema de prova: “A constituição da 1ª Ré: data da constituição, sócios e sede; a ligação dos sócios da 1ª Ré com a 2ª Ré e demais Réus com a constituição da actividade da 1ª Ré, o desvio de trabalhadores e clientela.”.
3. Relativamente à diminuição do objecto da perícia, face à clarificação apresentada pela A., ao objecto do litígio fixado pelo tribunal a quo e aos factos com os quais se a A. requereu que a mesma se relacionasse, nomeadamente os artigos 23º, 158º e 183º da Petição Inicial, não se pode concordar com a consideração de que tais factos serão impertinentes ou vagos, violando a decisão do tribunal a quo o disposto no artigo 476º, nº 2 do CPC.
4. Porquanto tais questões devem ser objecto da perícia, uma vez que estando relacionadas com o objecto do litígio, ficará compresso o direito à prova da A. se não for admitido que a perícia verse sobre essas questões.
5. Ao fixar o objecto da perícia apenas na identificação das entradas por controlo remoto após a saída da 2ª R. da A, se a 2ª R. utilizou o acesso remoto ao seu antigo computador, através da plataforma de webmail (https://....pt), reencaminhando mensagens através dos seus endereços pessoais, nomeadamente do endereço ...@...pt, não fundamentadamente restringe o direito à prova da A.
6. O que a A. pretende é uma perícia que averigúe se existe informação na base de dados da 1º R. que tenha sido retirada da base de dados da A. sem a sua autorização ou conhecimento e que tenha sido usada ou que tenha facilitado o desvio de clientes, tal como resulta dos temas da prova, não lhe podendo ser vedada a possibilidade de produzir prova sobre esses factos de forma não fundamentada e em clara violação do artigo 417º e 476º do CPC.
7. A verificação da similitude entre as bases de dados da A. e 1ª R. permitirá perceber em que medida é que a base de dados da 1ª R. foi construída a partir de informações que constavam na base de dados da A. e, desta forma, aferir se existiram ou não comportamentos ilícitos por parte da 2ª R. na obtenção de dados confidenciais, propriedade da A.
8. Visto que a acção será determinada pela existência de responsabilidade civil extracontratual dos RR., será essencial a prova de que existiu um facto ilícito, nomeadamente transmissão ilícita de dados tais como referentes à actividade do cliente que não sejam do domínio público, contabilidade analítica ou detalhe de contas superior ao que consta da Informação Empresarial Simplificada e datas de introdução no sistema desses elementos, para demonstração da sua obtenção prévia à data oficial de angariação do cliente.
9. Em despacho sobre os meios de prova, o Tribunal a quo notificou a A. para especificar sobre que contas bancárias ou bancos recai o seu pedido de levantamento do sigilo e explicar porque pretende todos os pagamentos superiores a € 500,00, o que a A. fez.
10. A própria 2ª R., por sua iniciativa, vem ao processo indicar as entidades e dados das suas contas bancárias.
11. Em despacho posterior, datado de 16.06.2016, o Tribunal a quo notificou a 1ª e 2ª Rés para “prestarem as informações solicitadas pela A. na alínea g) do seu requerimento probatório ou dizerem o que tiverem por conveniente”, violando assim o artigo 430º do CPC e decidindo em sentido contrário ao despacho ora recorrido que indeferiu a junção dos respectivos documentos bancários.
12. O levantamento do sigilo bancário, tal como requerido pela A., é essencial à demonstração dos factos vertidos na P.I., pelo que não pode ser restringido o direito á prova da A. sem fundamentação para tal, como se verificou, estando, por isso, em clara violação do artigo 154º do CPC.
13. Ainda que o Tribunal a quo decidiu no âmbito do Princípio da Adequação Formal e do dever de gestão processual não pode ficar comprometido o direito da A. à prova, uma vez que o douto despacho viola os artigos 410º, 411º, 413º, 417º e 430º do CPC.
14. Pelo que, ainda que se venham a considerar como irrelevantes ou meros indícios dos factos a provar, os meios de prova devem ser trazidos ao processo, uma vez que são essenciais para demonstração do tema de prova referido.
15. O juízo sobre admissibilidade ou não de meio de prova deve ser efectuado quando exista dúvida acerca da sua licitude ou violação de direitos fundamentais, únicos casos em que, salvo melhor entendimento, pode ser restringido o direito à prova, enquanto direito fundamental que o é, e, ainda assim após ponderação do princípio da proporcionalidade relativamente aos direitos em conflito.
16. A valoração da prova, essa sim, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal e trata-se de um juízo a posteriori, devendo ser efectuado depois da produção da prova e podendo verter sobre considerações acerca da sua relevância para a causa.
17. Ora, as considerações do Tribunal a quo acerca do interesse dos documentos para qualquer um dos factos controvertidos ou a qualificação desses documentos como desnecessários, deverá ser feita após a produção dessa mesma prova.
Nestes termos, e no que mais doutamente será suprido por Vossas Excelências, requer-se seja julgado procedente o presente recurso de apelação, revogando-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que julgue admissíveis nos termos requeridos pela A. os meios de prova requeridos e ordene a junção dos referidos documentos pelas 1ª e 2ª RR.».

2. Pelos Réus BB – Serviços de Gestão, Lda, CC e DD, foram apresentadas contra-alegações, estes considerando que não é de conhecer parcialmente do objecto do recurso, e todos os Recorridos pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II.1. – Factos relevantes
A tramitação processual relevante para a decisão do presente recurso é a constante do relatório supra e ainda aquela de que oportunamente nos socorreremos em sede de apreciação, para evitarmos desnecessárias repetições.
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II.2. – Objecto do recurso
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Colocam os Recorridos CC e DD, a questão prévia relativa à inadmissibilidade do recurso apresentado pela Recorrente, na parte em que respeita ao indeferimento parcial da prova pericial, aduzindo que o recurso autónomo apenas está previsto para o indeferimento dos meios de prova, pelo que, tendo a perícia sido admitida, ainda que rejeitado parcialmente o seu âmbito, este segmento do despacho não admite recurso imediato.
Cremos, porém, que não lhes assiste razão.
Efectivamente, pese embora o artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, se refira ao despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova, o certo é que, se atentarmos na razão que levou à introdução da admissibilidade do recurso autónomo deste despacho, só podemos concluir que esta admissibilidade excepcional de recurso imediato se aplica também aos casos em que tal rejeição tenha sido parcial.
Efectivamente, a excepcional admissibilidade de recurso imediato com os fundamentos previstos nesta alínea tem como escopo «atenuar os efeitos negativos que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual ou da estabilidade das decisões que põem termo ao processo. Com efeito, a sujeição de tais decisões a impugnação diferida par ao recurso da decisão final potenciaria o risco de anulação do processado, para ponderação ou não ponderação dos meios de prova»[4] respectivamente rejeitados ou admitidos.
Por isso que, os efeitos negativos que o legislador visou acautelar não seriam afastados caso não fosse admissível recurso autónomo dos despachos que, ainda que parcialmente, indeferem um meio de prova requerido, in casu, parte significativa do âmbito da prova pericial requerida, cumprindo consequentemente conhecer integralmente do objecto do recurso.
Assim, vistos os autos, a única questão a apreciar no presente recurso é a de saber se deve ou não ser revogado o despacho recorrido substituindo-o por outro que admita os meios de prova indicados pela Recorrente, apreciando se o despacho proferido pelo Tribunal a quo, pelo qual fixa o objecto da perícia informática requerida, indeferindo parcialmente as questões que a A. pretendia ver esclarecidas e julga indeferir o levantamento do sigilo bancário da 1ª e 2ª Rés, designadamente no que se refere à limitação do objecto da perícia e à junção dos extractos de conta da 2ª Ré, fichas de abertura de clientes da 1ª Ré e depósitos promovidos nas contas da 1ª Ré pelos restantes RR., viola, conforme a Recorrente entende, o disposto nos artigos 154.º, 411.º, 417.º e 429.º, n.º 2, todos do CPC.
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II.3. – O mérito do recurso
Pretende a Recorrente por via do presente recurso que os meios de prova por si requeridos e parcialmente rejeitados pelo despacho recorrido, devem ser admitidos nos termos em que os requereu.
Assim, em primeiro lugar, importa verificar se os requeridos meios de prova são ou não relevantes para a prova dos factos, porquanto tal é o critério essencial para aferir da respectiva admissibilidade[5].
Efectivamente, e para o que ora importa, a prova por documentos e a prova pericial, previstas respectivamente nos artigos 423.º e ss., e 467.º e ss. do CPC, constituem meios de prova subordinados às disposições gerais sobre a instrução do processo a que se referem os artigos 410.º e ss. da mesma codificação.
Deste modo, só podem ser requeridos quanto a factos necessitados de prova, ou seja, importa que os mesmos tenham potencial relevância para prova de factos objecto do litígio e, por consequência, da instrução da causa, sendo nesse caso irrelevante que tenham ou não emanado da parte que devia produzir tais meios de prova, por via do princípio da aquisição processual consagrado no artigo 413.º do CPC.
Assim sendo, poderá afirmar-se sinteticamente que devem ser admitidos os meios de prova requeridos pelas partes que se apresentem como podendo ter relevância para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio que, no caso vertente tem como objecto, para o que ora importa, apreciar se os Réus actuaram em concorrência desleal relativamente à autora.
Efectivamente, a Autora, ora Recorrente, intentou a presente acção declarativa de condenação contra os réus, designadamente os acima identificados, pedindo a condenação dos RR. a absterem-se de praticar actos contrários às normas e usos honestos da actividade económica, e, em especial, desviar clientes da A. para a 1.ª R., utilizarem segredos e informações confidenciais da A. e angariar clientes da A.; e a pagarem, solidariamente, à A. a quantia de € 2.474.219,00, a título de lucros cessantes, despesas em que a A. teve que incorrer para pôr cobro à situação provocada pelas RR, nomeadamente a título de despesas com trabalhadores, administradores e consultores, deslocações, bem como danos de imagem alegadamente sofridos pela A.
Tendo presente o objecto do litígio, como se afere então a referida relevância dos meios de prova?
Evidentemente que a mesma só pode aferir-se pela possibilidade de os requeridos meios de prova relevarem para a formação da convicção do julgador relativamente aos factos que careçam de prova.
Ora, quando não estejam admitidos por acordo ou estejam sujeitos a prova vinculada, carecem de instrução todos os factos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas aos factos que suportam a solução da questão de direito que o juiz considera aplicável, já que são estes que o julgador deve ter em consideração quando fixa os temas de prova e mormente quando fixa a matéria de facto na sentença, devendo fazê-lo por forma a possibilitar «a ulterior e ampla discussão da matéria de facto, de modo a que seja viável encontrar a solução de direito que decida com justiça, sem condicionar o debate a uma única perspectiva da questão de direito - que, afinal, pode nem ser a adequada -, mas a outras que se mostrem legalmente possíveis»[6].
Deste modo, tal e qual acontecia no regime de pretérito, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com excepção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Porém, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, a não ser que a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras – cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Ora, tais questões - a que se reporta a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC -, «são os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções»[7].
Efectuamos este enquadramento para significar que o juiz, não tem que responder aos «temas de prova» mas aos pontos de facto que consubstanciam o direito invocado, ou as excepções deduzidas, daí que, para os efeitos do presente recurso entendamos não ser de limitar a apreciação aos temas da prova enunciados mas aos factos necessitados de prova a que alude a parte final do artigo 410.º do CPC.
Assim, tendo presente que em face do princípio da limitação dos actos previsto no artigo 130.º do Código de Processo Civil, não é lícito realizar no processo actos inúteis, à instrução da causa só importam os factos essenciais, complementares ou instrumentais, que relevem para prova ou contraprova quer dos factos que constituam a causa de pedir quer daqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, para fundamento do direito invocado ou dos factos que impedem, modificam ou extinguem aquele direito, consoante a posição de autor ou réu em que as partes se encontrem.
Concluindo, meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto serão então aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa, a aferir na conformação do quadro do litígio por via da causa de pedir invocada e das excepções deduzidas.
E movendo-se a parte requerente neste âmbito, entendemos não deverem existir dúvidas de que a produção dos meios de prova não só pode, como deve, incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, entendido este tanto na perspectiva da acção como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material[8].
Revertendo ao caso dos autos verificamos, em apertada síntese, que a Autora aduziu que por carta de 30 de Junho 2014, sem que nada o fizesse prever, a 2.ª R. através da EE –Sociedade de Investimento S.A. decidiu fazer cessar o contrato que tinham com a A., tendo comunicado tal intenção de forma abrupta à A.; desde a cessação do referido contrato e da caducidade da procuração, a A. foi surpreendida com a obtenção de informação que comprova o aliciamento dos seus trabalhadores, bem como, de clientes; ao longo dos meses subsequentes apurou-se que a larga maioria dos trabalhadores tinham sido aliciados pela 2.ª R. para irem trabalhar numa nova empresa de contabilidade, facto que chegou a acontecer; tais trabalhadores vieram a integrar aceitar integrar a estrutura societária da 1ª R., ainda que de forma indirecta e dissimulada; a A. foi, também, surpreendida com a fuga em série de aproximadamente 20 clientes que no espaço de 3 (três) meses, deixaram os serviços da A. para passarem a trabalhar com a 2.ª R; para tal, a 2.ª R. anunciou os seus serviços aos Clientes desviados da A. através de reuniões e contactos telefónicos, por vezes aproveitando inclusive os meios e as instalações da A., na fase em que a mesma se encontrava ainda a trabalhar na sua estrutura; a 2.ª R., com a colaboração dos restantes RR., arquitectou um esquema através do qual pretendeu levar para o seu projecto na 1.ª R. trabalhadores, clientes e know-how pertencente à A, tendo a 2.ª R. encetado os actos necessários para levar consigo a carteira de clientes da A., nomeadamente preparando a clientela para a futura transferência; abstendo-se de envolver a A., os seus administradores e, em particular, o Dr. A..., quer nas decisões quer nas reuniões com Clientes; montando o seu projecto empresarial, através da constituição de sociedade comercial; delineando uma estratégia para angariar os clientes da AA e desviar o negócio destas; preparando e aliciando alguns dos trabalhadores da A. para integrarem a 1ª R.
Isto posto, invoca a Recorrente na conclusão 14.ª, que o juiz deve trazer ao processo todos os meios de prova que requereu, ainda que posteriormente se venham a considerar como irrelevantes ou meros indícios dos factos a provar.
Porém, o invocado «direito à prova» tem que ser conjugado com outros preceitos legais: desde logo, a lei processual civil rege-se pelo princípio da limitação dos actos vertido no artigo 130.º do CPC, de acordo com o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis. Por isso que, ao juiz incumba indeferir diligências que sejam impertinentes ou dilatórias, ao abrigo do dever de gestão processual, ínsito no artigo 6.º, n.º 1, do CPC.
Acresce que, a perícia é um meio de prova técnico/científica que visa a comprovação por pessoa, com reconhecida competência e idoneidade na matéria em causa, conforme expressa previsão do artigo 467.º, n.º 1, do CPC. Logo, sempre seria impertinente ou dilatório que o objecto da perícia abrangesse quesitos sobre matéria para cuja resposta não são exigidos aqueles especiais conhecimentos.
Ora, no caso vertente, pretende a Apelante que se produzam os seguintes meios de prova:
a) Que seja feita perícia informática ao servidor da 1.ª R para apuramento de back ups realizados com transmissão de dados ilegítimos, pertencentes à Autora AA, para a 1.ª R.; o apuramento junto da empresa “X” ou entidade parceira, relativamente à licença do programa SNC “X”, instalado na 1.ª Ré, bem como a data e forma de pagamento referente à licença e manutenção do software instalado na 1.ª Ré.
b) Que seja levantado sigilo bancário sobre pagamentos feitos pela 2.ª Ré acima de 500,00€, das fichas de abertura de clientela da 1.ª Ré e dos depósitos de capital social e outros desde 28.02.2015, pretendendo com estes elementos fazer prova da existência de aliciamento financeiro por parte da 2.ª R aos então trabalhadores da A., bem como da angariação de clientes da A. pela 1.ª e 2.ª RR.
Invocou a Recorrente que com estes elementos pretendia concretamente:
1. Apurar a data da compra pela 1.ª R da licença da empresa;
2. Verificar o histórico de dados na base de dados “X” no sentido de saber se contém informação pré-constituição da empresa;
3. Verificar histórico das bases de dados da A. para comparar com a informação retirada nos termos do ponto anterior;
4. Identificar as entradas por controlo remoto, após a saída da 2.ª R. da A., de modo a apurar se depois da sua saída a 2.ª utilizou o acesso remoto ao seu antigo computador, através da plataforma web mail, reencaminhando mensagens, através dos seus endereços pessoais, através do endereço ...@...pt;
5. Verificar a existência de trocas de e mails entre todos os colaboradores, por forma a detectar qualquer tipo de aliciamento de clientes pertencentes à A.;
6. Indicar a data da transacção de dados ou seja obter o rasto das datas da transposição dos dados; tudo por forma a demonstrar a matéria por si alegada nos pontos 23.º, 158.º e 183.º da sua petição.
Os indicados artigos têm o seguinte teor:
Art.º 23º - Foi ainda surpreendida com a fuga em série de aproximadamente 20 clientes que no espaço de 3 (três) meses, deixaram os serviços da A. para passarem a trabalhar com a 2.ª R através da G..., sem que nada o fizesse prever.
Art.º 158º - Diga-se mesmo, a 2ª R. utilizou as informações constantes das bases de dados da A. com o intuito de se aproveitar das mesmas para o crescimento da 1ª R., tendo-o feito não apenas relativamente à clientela, mas igualmente quanto aos trabalhadores da A.
Art.º 183º. - É que os mencionados trabalhadores 10ª R., 11ª R., 12ª R. 13.ª R. e 14ª R., antes de apresentarem a sua carta de denúncia e enquanto cumpriam os períodos de aviso prévio dedicaram-se a recolher o máximo de informação possível pertença da A..
Daí que a primeira instância tenha referido, e bem, no despacho recorrido, que «o objecto desta perícia prender-se-á apenas com a determinação dos seguintes factos:
-se no espaço de três meses (face ao alegado, aparentemente, entre Setembro a Novembro de 2014) cerca de 20 clientes da Autora deixaram de recorrer aos serviços desta para passarem a recorrer aos serviços da 2ª Ré., que usava o nome comercial G...;
-se a 2ª Ré utilizou as informações constantes das bases de dados da Autora, com o intuito de se aproveitar das mesmas para o crescimento da 1ª Ré., tendo-o feito não apenas relativamente à clientela, mas igualmente quanto aos trabalhadores da Autora;
-se os 10ª R., 11ª R., 12ª R. 13.ª R. e 14ª R., enquanto trabalhadores da Autora, antes de apresentarem a sua carta de denúncia e enquanto cumpriam os períodos de aviso prévio dedicaram-se a recolher o máximo de informação possível pertença da Autora.»
O tribunal recorrido restringiu a perícia ao acima referido ponto 4, e não aceitou a realização da perícia para determinação dos demais pontos.
Vejamos, pois, da pertinência de cada um deles.
O tribunal a quo não aceitou a perícia sobre o ponto 1. por entender que a data da compra da primeira licença não se mostra pertinente porque o conhecimento dessa data não é susceptível de elucidar sobre a eventual recolha de informações existente na base de dados da A.
Na verdade, não se descortina que interesse tenha para a boa decisão da causa saber em que data a 1ª R comprou a sua licença, porque isso, em si mesmo, nada diz sobre a eventual utilização de informações pelas RR, única matéria articulada sobre este ponto.
Aquilo que se nos afigura poder ter alguma eventual relevância para o pretendido apuramento é a data da instalação deste software na empresa Ré, porquanto só a partir de tal instalação é naturalmente possível utilizar o mesmo.
Porém, sendo óbvio que a data da compra da licença será a que resultar da factura respectiva, e bem assim que a instalação do software em causa terá necessariamente sido efectuada pela empresa vendedora, o meio de prova adequado para o efeito não é a perícia, mas, caso tal venha a ser entendido pelo julgador, a notificação da empresa “X” ou entidade parceira para o efeito.
Ora, no requerimento probatório que acompanhou a petição inicial a A., entre outros meios de prova, requereu, o «apuramento junto da empresa “X” ou entidade parceira, relativamente à licença do programa SNC “X”, instalado na 1.ª R., bem como data e forma de pagamento referente à licença, instalação e manutenção do software da 1.ª R.».
Assim, caso com a instrução da causa o Tribunal venha a considerar relevante a prestação de tal informação ou parte dela, poderá sempre obtê-la ao abrigo do disposto nos artigos 411.º e 417.º do CPC, sendo consequentemente desnecessária e impertinente a realização de perícia para este efeito.
O tribunal a quo indeferiu igualmente a perícia sobre os pontos 2 e 3, com fundamento de serem excessivamente vagos, aduzindo que «pretende a Autora que através da consulta da base de dados da 1ª Ré se apure se aí constam informações prévias à constituição da empresa, sem concretizar que informações seriam essas, por forma a que se possa determinar que as mesmas foram obtidas através da Autora ou por outros meios e bem assim qual a natureza e conteúdo dessas informações, por forma a avaliar a sua relevância. Aliás, a existência de quaisquer elementos nas bases de dados da 1ª Ré que se refiram a um tempo anterior à sua constituição, por si, não significa necessariamente que tenham sido retirados da Autora. Por isso, e sendo certo que se afigurariam vagos e confusos para o senhor perito, deverão também ser excluídos estes quesitos».
Com efeito, a A. pretende verificar o histórico dos dados na base de dados para saber se aí existem informações pré-constituição de empresa e para os comparar com informação retirada da base de dados da A.
Porém, não só a A. não diz que informações quer ir buscar à base de dados da 1.ª R. nem com que informações da sua base as quer comparar, donde efectivamente não se pode avaliar a sua relevância, como, mais do isso, a permissão daquilo que constituiria uma devassa genérica das bases de dados da 1.ª Ré, não seria legal, como mais detalhadamente apreciaremos aquando da análise do pretendido com o ponto 5.
Mas, pressupondo que a A. se estaria a referir aos únicos elementos que concretiza quanto a informação no respectivo articulado: a clientela e a saída dos trabalhadores, então também a requerida perícia seria desnecessária e, por tal, impertinente.
Na verdade, basta confrontar os artigos da petição inicial e da contestação a este respeito para vermos que a 1.ª Ré aceita que na sua carteira de clientes constam todos aqueles que indicou. Portanto, esta factualidade está adquirida por acordo, não carecendo de instrução. E aquilo que a Ré questiona, não pode ser objecto de perícia. De facto, enquanto a A. alega que os clientes foram aliciados pela 2.ª Ré, concretizando até o meio, em reuniões ou por telefone (portanto, esta informação não se retiraria da perícia aos computadores/servidores), para passarem a ser clientes da 1.ª Ré, estas invocam que os mesmos fizeram tal percurso, de livre vontade, alegação para cuja prova logo juntaram declarações escritas daqueles neste sentido. Naturalmente que, quanto a esta matéria controvertida, o meio de prova adequado será a prova testemunhal.
Como assim, é de manter o indeferimento destes pontos indicados pela A. para integrarem o objecto da requerida perícia, que quanto a esta matéria sempre seria diligência impertinente.
Finalmente e quanto a este meio de prova, no indicado ponto 5. pretendia a A. verificar os e-mails trocados entre os colaboradores da 1.ª R. por forma a detectar qualquer tipo de aliciamento de clientes da A.
O Senhor Juiz indeferiu também este ponto aduzindo que «pretender-se-á a leitura de todos os e-mails trocados entre os colaboradores (todos os trabalhadores da 1ª Ré?, ou os Réus?) com vista a detectar o aliciamento de clientes. Aqui importa ter em conta que não caberá ao senhor perito apurar se existe ou não aliciamento no textos dos e-mails, pelo que o que se pretenderá efectivamente é a recolha da correspondência entre colaboradores (trabalhadores? Os próprios Réus?) e que se encontre guardada nos computadores da 1ª Ré ou no seu serviço de e-mail. Neste caso, o que se pretenderá, então, é a recolha generalizada de todos os e-mails (desconhecendo-se a priori o seu conteúdo), independentemente da sua relevância (não cabe ao senhor perito determinar se o conteúdo revela as condutas a que a Autora), para posterior análise (?) ou porventura para a sua entrega à própria Autora, incluindo os e-mails que não se mostrem relevantes e que colidam com a reserva profissional ou privada dos visados. Assim, com a pretendida amplitude, abrangendo um conjunto indeterminado de indivíduos (nem se especifica o nome dos visados) e a totalidade da correspondência guardada nos computadores da 1ª Ré e nas suas contas de correio electrónico, não só não será possível determinar que questões concretas se pretende submeter ao senhor perito, como, em rigor, o que se pretende alcançar é a recolha da correspondência e a sua junção aos autos, extravasando o objecto e a finalidade da perícia. Por isso, também este quesito não será admissível».
Na verdade, tal qual formulou o quesito a colocar ao perito, o pretendido pela A. é a recolha generalizada de todos os e-mails de um conjunto indeterminado de pessoas, independentemente do seu conteúdo, certamente não atentando que ao «direito à prova» que pretende por esta via actuar, se contrapõem outros princípios constitucionais que urge também ponderar, mormente o direito à reserva da vida privada.
Vejamos.
De acordo com o preceituado no artigo 341.º do Código Civil[9] que rege sobre a função das provas, estas visam a demonstração da realidade dos factos.
Quais factos?
Aqueles que à parte - que invocar um direito ou àquela contra quem a invocação é feita -, cabe alegar e provar, nos termos conjugadamente decorrentes do disposto nos artigos 342.º do CC e 5.º, n.º 1, do CPC, ou seja, os factos constitutivos do seu direito ou da sua defesa, relativamente aos quais, a dúvida sobre a sua realidade e sobre a repartição do ónus da prova, se resolve contra a parte a quem o mesmo aproveita, em face do comando ínsito no artigo 414.º do CPC.
Consequentemente, o ónus da prova «traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de (…) sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (trazida ou não pela mesma parte».
Assim, as regras do ónus da prova reconduzem-se a verdadeiras regras de decisão: «tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará – resolvendo, para o efeito, o non liquet num liquet desfavorável a essa parte»[10].
Porém, impendendo sobre as partes este ónus de alegação e prova, cujo incumprimento acarreta inexoráveis consequências para a parte onerada, tal não significa, como já aflorámos supra, que o juiz não tenha actualmente não só poderes como deveres inquisitórios, no que tange aos factos necessitados de prova, a que alude o artigo 410.º do CPC.
Efectivamente, quanto a estes, - ressalvados os casos de prova vinculada, por via de documento autêntico, confissão ou acordo das partes -, incumbem ao juiz, os amplos poderes que o actual artigo 411.º do CPC lhe confere, de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, tanto mais que não só as provas são o substrato da formação da respectiva convicção quanto à base factual do litígio, como sobre si impende a obrigação de julgar, prevista no artigo 8.º do CC, não podendo abster-se de o fazer invocando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
Deste modo, e observando agora o que vimos de dizer à luz do princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva vertido no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa[11], podemos estabelecer como ponto de partida que o direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado comporta o direito das partes à produção de prova sobre os factos carecidos de demonstração[12], atendendo ainda, no âmbito do direito civil, ao facto de a referida garantia constitucional de acesso aos tribunais, se encontrar desde logo plasmada no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, de acordo com o qual a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção.
Com este pano de fundo poderia pensar-se que o direito à prova é uma espécie de direito absoluto, mormente quando e se, coberto pela capa de uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
Mas não é assim, bastando para tanto atentar na expressa ressalva que o n.º 3, alínea b) deste preceito efectua relativamente aos casos em que a recusa de colaboração com o tribunal é legítima, sendo-o designadamente quando a obediência importar a intromissão na correspondência.
Efectivamente, à semelhança do que acontece nos demais casos de colisão de direitos, também quando estamos perante o confronto de duas espécies de direitos com tutela constitucional, outros princípios importa ter em conta, porquanto tal também decorre designadamente do comando constitucional ínsito no artigo 16.º da CRP, salvaguardando que os direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras de direito internacional, devendo ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Ora, no caso vertente, ao referido princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva na vertente do direito à produção de prova, contrapõe-se o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias.
Importa ainda ter presente a força jurídica atribuída pelo artigo 18.º da CRP aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, e às regras ali vertidas quanto à respectiva restrição, directamente aplicáveis e vinculativas para as entidades públicas e privadas, havendo consequentemente que sopesar, em face de dois direitos constitucionalmente consagrados que colidam, qual dos dois deve prevalecer, à luz do sobredito e devidamente enquadrados pelo princípio da proporcionalidade.
Revertendo ao caso dos autos, temos então que a autora pretende que o objecto da perícia incida sobre a existência de trocas de e-mails entre todos os colaboradores, por forma a detectar qualquer tipo de aliciamento de clientes pertencentes à A.
Está, pois, em causa, permitir por via desta diligência probatória, o acesso irrestrito não só à correspondência electrónica dos trabalhadores como ainda à de um número indeterminado de pessoas, que por razões de natureza profissional ou pessoal desse modo se relacionaram com os respectivos trabalhadores.
Assim, atento o preceituado no já citado artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa, importa desde logo atentar no que a respeito da tutela da vida privada estabelecem a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujos artigos 12.º e 8.º regem sobre esta matéria, estatuindo respectivamente que «ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada» e que «toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada», não podendo «haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão tanto quanto esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades dos outros».
Estando consequentemente protegida a vida privada dos indivíduos mesmo da ingerência das autoridades públicas, salvo se a mesma for necessária, para o que ora importa, à protecção dos direitos de outros, cumpre avançar no sentido de aquilatar se no caso vertente deve ou não o tribunal concluir por essa necessidade de acesso à correspondência dos trabalhadores.
Olhando agora à legislação nacional com interesse para o assunto em apreço, há que atentar desde logo no que a respeito estabelece a legislação laboral, verificando-se que, ciente da necessidade de proteger o trabalhador de tendências de controlo por parte da entidade patronal, o legislador veio expressamente cuidar de se pronunciar quanto à confidencialidade de mensagens e de acesso a informação, por banda do empregador, dispondo o artigo 22.º do Código do Trabalho[13], que:
1 - O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.
2 - O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico.
Ora, não tendo a Autora alegado que, nos termos do n.º 1 do preceito em referência, estabeleceu regras relativas à utilização pelos seus trabalhadores do correio electrónico, mormente que o mesmo se restringia a comunicações de carácter profissional, - ou até, como algumas empresas estabelecem, à necessidade de o correio pessoal estar devidamente identificado como tal no assunto, assim preservando essas mensagens da possibilidade de serem visionadas por terceiros que não o emissor e o destinatário -, caímos na alçada do n.º 1, gozando o trabalhador do direito de reserva e confidencialidade quanto ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e à informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte por via do correio electrónico.
Deste modo, urge concluir que no caso vertente, sendo impossível restringir o acesso ao correio electrónico às mensagens ou informação de natureza profissional, dos trabalhadores, a determinação da perícia nos moldes requeridos, é abstractamente adequada a devassar a vida privada quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tenham correspondido por esta via. Será, possível que, ainda assim, seja legítimo determiná-la em face do direito à prova?
Conforme alerta Luís Azevedo Mendes[14], «o equilibrador regulatório, em contexto laboral, deve ser assegurado, na justa medida dos equilíbrios dinâmicos, historicamente situados, entre os direitos fundamentais reconhecidos como aqui em confronto: direitos de personalidade, dignidade humana, o direito da reserva da vida íntima e privada, o direito à autodeterminação informativa e os direitos de iniciativa económica e de constituição de empresa, como as liberdades de gestão e de controlo e, também, já agora, o direito à prova, no feixe que integra o direito de acesso à justiça».
E na ponderação do equilíbrio que o assunto convoca, aquele autor alerta para o necessário «foco na Lei de Protecção de Dados e, sobretudo, na doutrina que vem a ser desenhada pela CNPD e que, em matéria laboral, vai formatando administrativamente as fronteiras entre o que é ou não permitido aos empregadores (…)», tanto mais que «em questões cruciais a CNPD vai confrontando a jurisprudência dos nossos tribunais, afirmando o seu acompanhamento ou não, ou o seu desajustamento, até, em função do progresso das tecnologias e das suas cada vez maiores possibilidades de intrusão na privacidade». Mais adiante aduz que «é sobretudo neste campo da autorização [refere-se à autorização prévia a que aludem os artigos 27.º e 28.º da Lei de Protecção de Dados] que a CNPD tem produzido deliberações genéricas limitando sempre com mais detalhe as possibilidades de autorização ao tratamento de dados, introduzindo limitações às finalidades e condições do tratamento que os tribunais na apreciação dos casos dificilmente poderão contrariar, a menos que delas venham a divergir sustentadamente».
Revertendo ao caso dos autos, em face do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 3.º da LPD que definem dados pessoais como «qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte», e como tratamento de dados pessoais «qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuados com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização (…)», dúvidas não existem que a recolha, a consulta e a subsequente utilização como meio de prova dos e-mails dos trabalhadores cai na previsão deste preceito.
Ora, a matéria de comunicações electrónicas na empresa, de controlo do e-mail e do acesso à internet, é precisamente aquela que maiores cuidados impõe na defesa do direito à reserva da vida privada, designadamente pelas razões assim ilustradas pelo já referido autor: «[a] vigilância através das tecnologias associadas à internet é a que mais intranquilidade pode causar no ambiente laboral, pela compulsão generalizada para o seu uso privado, informativo, recreativo e de mera troca de mensagens. A fragilidade pessoal que essa compulsão gera está na razão directa do seu uso quase sem filtros mentais defensivos. Navegamos nessas ferramentas com a facilidade com que os pensamentos mais estranhos navegam na nossa cabeça e com que as palavras nos saem da boca em ambiente distendido de privacidade. Se assim é, a defesa da privacidade deve ser mais protegida na relação demasiado fácil com a rede. Tão defendida como o deve ser um confessionário».
Por isso que, na apreciação que desta matéria tem sido efectuada em contexto laboral pela jurisprudência dos tribunais superiores, seja abordada a já referida questão da prévia regulamentação sobre o uso dos equipamentos da empresa, em dois casos, como condição para o atendimento como meio de prova das comunicações do trabalhador, em outro, para afirmar que tal prévia regulamentação, não se impõe.
Assim, na síntese dos 3 arestos em causa[15], efectuada pelo autor que vimos referindo: o «Ac. do STJ de 05-07-2007 (relator: Cons. Mário Pereira, in www.dgsi.pt, proc. 07S043) que afirma que não é pelos intervenientes se referirem a aspectos da empresa que a comunicação electrónica tem natureza profissional, bem como não é pelos meios informáticos serem do empregador que se afasta a natureza privada da mensagem e se legitima o acesso ao seu conteúdo. Mais importante, como critério clarificador, indica que a natureza particular da mensagem se afere, antes de mais, da vontade das partes na comunicação, expressa ou implícita. Sublinhando cautelarmente que a mensagem privada encontrada na empresa não pode ser utilizada para fins disciplinares se o empregador não tiver regulado a utilização do correio electrónico para fins pessoais»; e também num caso mais recente o «Ac. da Relação de Lisboa de 07-03-2012 (relator: José Eduardo Sapateiro, in www.dgsi.pt, proc. 24163/09.0T2SNT.L1-4) onde se afirma que face à inexistência de qualquer regulamentação prévia para a utilização pessoal e profissional da internet é ilícito o conhecimento pelo empregador do conteúdo de conversas pessoais de trabalhador, no Messenger, com amigos, ainda que guardadas no servidor da empresa».
Em sentido diferente, no «Ac. da Relação de Lisboa de 03-06-2011 (relatora: Isabel Tapadinhas, in www.dgsi.pt, proc. 439/10.3TTCSC-A.L1-4) afirma-se lícito o uso em processo disciplinar de e-mails trocados por trabalhador com terceiro, num caso de concorrência desleal e desvio de clientela do empregador, independentemente de prévia regulamentação do uso dos meios da empresa, considerando-se que as mensagens não estavam abrangidas pela dimensão da vida íntima, tão só privada, com protecção menos densa, pelo que na concordância prática com o direito à prova como componente do direito fundamental do acesso aos tribunais se devia dar primazia a este».
Considerando que a situação deste aresto, pese embora tirado em contexto da prova em processo disciplinar, tem mais similitude com o presente, por estar em causa o mesmo fundamento de base: a concorrência desleal do trabalhador com a entidade empregadora, e a apreciação entre a privacidade do trabalhador e o direito à prova, cabe desde já referir que naquele caso havia sido a entidade empregadora a juntar aos autos concreta correspondência do trabalhador, permitindo ao tribunal aferir que as mensagens em questão: continham no “Assunto” indicações de matérias profissionais, mais concretamente, nomes de negócios futuros da empresa ou nomes de empresas com as quais a recorrida e a C ÁFRICA mantinham relações comerciais; eram enviadas e/ou recebidas a partir do e-mail profissional atribuído pela recorrida ao recorrente, durante o seu horário de trabalho; eram enviadas e/ou /recebidas, quase na sua exclusividade, por trabalhadores da recorrida e/ou pessoas/clientes/terceiros que com ela estão relacionados; não tinham qualquer indicação de se tratar de matéria pessoal dos remetentes ou destinatários das mesmas, seja por via da designação em “Assunto”, seja pelo seu “Arquivo” em ficheiros designados como, por exemplo, “Correspondência Privada”.
Estamos, portanto, já não perante a ponderação a efectuar no momento da aquisição da prova, mas sim no momento da produção de prova e da possibilidade da respectiva valoração em concreto, ainda que tal prova tenha sido obtida de forma que possa até considerar-se ilícita.
Efectivamente, conforme observa o Professor Miguel Teixeira de Sousa[16]:
«no âmbito dessa insusceptibilidade de valoração das provas ilícitas, parece haver ainda que distinguir, em processo civil, entre os meios de prova que não podem ser considerados atendendo à forma como foram obtidos: - é o caso das provas conseguidas mediante os métodos proibidos no art. 32°, n° 8, CRP - e aqueles outros que foram obtidos ilicitamente mas cuja produção não representa, em si mesma, qualquer ilicitude. (…)

Também é defensável que a ilicitude da obtenção da prova se tenha por justificada quando o agente visa exclusivamente a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma e utiliza o material obtido somente com essa finalidade probatória (…) ainda que a prova seja ilícita quanto ao método da sua obtenção, a sua valoração em processo não está forçosamente excluída».
De igual forma, a Professora Isabel Alexandre[17] conclui que «a violação de direitos fundamentais aquando da obtenção da prova não é circunstância de que dependa admissibilidade da prova ilícita, na falta de norma a prevê-lo.
Há que distinguir entre os momentos da obtenção e da produção da prova, já que só o momento da produção é decisivo para determinar a existência de uma proibição de prova, ou seja, a relevância processual da ilicitude material».
Do mesmo modo, o Supremo Tribunal de Justiça, considerou justificada a ilicitude do modo como a prova foi obtida, num caso em que uma certidão obtida mediante uma actuação ilícita da mandatária da autora, visava a obtenção de prova relevante para o processo sendo essa, exclusivamente, a finalidade prosseguida pela mesma, porquanto, «pese embora aquela actuação censurável, um juízo de proporcionalidade [que implica a ponderação dos interesses em jogo], é decisivo para saber que interesses devem prevalecer, tendo em conta aqui a verdade material»[18].
Diversamente, prossegue a referida autora, a relevância processual da ilicitude material «é de afirmar quando o acto processual probatório implica a violação de um direito fundamental», concluindo que «no direito português, a obtenção ilícita de um meio de prova tem consequências a nível da sua admissibilidade processual, em virtude da aplicação analógica da regra do art. 32º. nº 8 CRP ao processo civil (…), dado que [tal] regra não é excepcional, nem as suas razões justificativas são válidas apenas para o processo penal. (…)
A expressão “abusiva intromissão”, usada no art. 32º nº 8 CRP, não engloba apenas as hipóteses de intromissão ilícita e, uma vez constatado o abuso, o princípio da ponderação de interesses não funciona como elemento favorável à valoração. (…)
Se a ilicitude tiver ocorrido no processo, aplica-se o regime das nulidades relativas».
Ora, no caso em apreço, estamos perante ponderação a efectuar pelo juiz no momento em que lhe é requerida a produção da prova para o processo, donde que, estando sujeito aos princípios e estatuições decorrentes da constituição e da lei, se lhe imponha que não defira diligências, como a presente, cujo âmbito genérico e indeterminado, pode constituir “abusiva intromissão” na esfera de tutela constitucional por contender com o direito à reserva da correspondência enquanto um dos direitos que acautelam a reserva da vida privada.
Acresce que, na situação vertente, nem sequer seria de ponderar se tal ingerência poderia estar justificada por ser o único meio de prova possível sobre a matéria em causa, porquanto a mesma, como dito, já se encontra inclusivamente parcialmente admitida, sendo em qualquer caso, passível de demonstração quer por via de prova por declarações, quer de parte quer de testemunhas, quer ainda das ilações que ao tribunal cabe retirar de factos conhecidos, usando, se for o caso, as presunções judiciais.
Concluindo, não só porque não está demonstrada a necessidade nem a proporcionalidade do requerido âmbito da perícia, mas como a mesma, conforme pretendida pela autora, não acautelaria os já referidos direitos quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tivessem correspondido livremente por aquela via electrónica, nada há a censurar ao indeferimento parcial do âmbito daquela diligência que devassaria integralmente todas as comunicações efectuadas via e-mail pelos trabalhadores, e consequentemente as informações, mesmo de natureza pessoal e familiar, ali existentes, constituindo por tal e nos moldes em que foi requerida, uma “abusiva intromissão na correspondência”, cominada com a nulidade pelo n.º 8 do artigo 32.º da CRP.
De igual modo, as considerações que vimos de efectuar, aplicam-se quer ao livre acesso à informação constante do servidor da 1.ª Ré, a que nos referimos no ponto anterior, e ainda à pretensão formulada no ponto 6. mediante o qual se pretendia saber a data da transacção dos dados que ali viessem a ser obtidos.
Visando também neste caso a demonstração dos mesmos artigos da respectiva petição inicial, não se vê que exista a necessária proporcionalidade no deferimento deste meio de prova de factos que não estão assim sequer enunciados e, tal qual estão, não exigem este meio de prova para a respectiva demonstração.
*****
Vejamos agora a pretensão da recorrente quanto ao levantamento do sigilo bancário sobre todos os pagamentos feitos pela 2.ª Ré acima de 500,00€, e dos depósitos de capital social e outros desde 28.02.2015, pretendendo com estes elementos fazer prova da existência de aliciamento financeiro por parte da 2.ª R aos então trabalhadores da A., bem como da angariação de clientes da A. pela 1.ª e 2.ª RR., invocando que com tais elementos pretende provar a matéria dos artigos 19.º a 31.º, 102.º a 109.º, 129.º, 131.º 132.º, 137.º, 141.º, 150.º 151.º, 167.º, 170.º, 171.º, 173.º e 175.º da petição inicial.
Para apreciação deste requerimento de prova apresentado pela Autora, há que convocar os princípios que os tribunais ponderam e que se encontram habitualmente publicados a respeito dos pedidos de levantamento do sigilo bancário[19], a respeito do princípio da prevalência do interesse preponderante e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em causa, juízo de prognose que o juiz não pode deixar de efectuar quando defere um pedido com a natureza do formulado.
Ora, atento o preceituado no artigo 573.º do CC, que sob a epígrafe “obrigação de informação”, refere que esta existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias, dúvidas não existem de que a instituição bancária está habilitada para prestar as solicitadas informações.
Porém, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com as sucessivas alterações que lhe foram introduzidas, “os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional, não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”, sendo ainda que em face do disposto no n.º 2 do indicado preceito, “estão designadamente sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras operações bancárias”.
Portanto, não subsistem dúvidas de que a pretensão da ora Recorrente pela natureza das informações pretendidas, está sujeita ao segredo bancário, podendo consequentemente a instituição bancária recusar-se legitimamente ao seu fornecimento, se e enquanto não for efectuado o levantamento do dever de segredo que sobre si impende relativamente aos indicados elementos.
Não obstante, conforme é uniformemente entendido, nem o dever de sigilo profissional nem o de sigilo bancário são deveres absolutos, podendo consequentemente ceder perante a necessidade de salvaguardar outros direitos de entre os quais avultam os que se prendem com o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva que o levantamento daquele sigilo pretende acautelar, nos termos consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, o artigo 79.º, n.ºs 1 e 2 do RGICSF, consagra excepções ao dever de sigilo, estabelecendo - na parte que ora releva já que não estamos no caso no âmbito de processo de natureza penal mas de natureza civil -, que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados quando exista outra disposição que expressamente limite esse dever.
Ora, no âmbito do direito civil, a referida garantia constitucional de acesso aos tribunais, encontra-se desde logo plasmada no já citado artigo 2.º, n.º 2, do CPC, e ainda reflexamente no artigo 417.º do CPC, o qual, dispondo sobre o dever de cooperação de todas as pessoas para a descoberta da verdade, quer sejam ou não partes na causa - designadamente facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados -, embora reconhecendo, na alínea c) do respectivo n.º 3, a legitimidade da recusa da colaboração solicitada pelo Tribunal, com fundamento em violação do sigilo profissional, logo em seguida no seu n.º 4 vem permitir que seja deduzida escusa desse dever, mandando aplicar com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Por seu turno, a disposição do Código de Processo Penal que respeita ao segredo profissional, é o artigo 135.º, de acordo com cujo n.º 3 o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir a quebra do sigilo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em causa, sendo a intervenção suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Necessário se torna, pois, sopesar de um lado da balança o dever de sigilo, que visa quer a protecção dos direitos pessoais, como o bom nome, a reputação e a reserva da vida privada, quer a protecção das relações de necessária confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes; e do outro o dever de colaboração com a administração da justiça que tem evidentemente por finalidade a satisfação de um interesse público: a realização da Justiça, no caso concreto ainda na vertente relativa à aquisição processual da prova.
Ora, conforme é salientado nas contra-alegações, a matéria dos artigos 19.º a 31.º da petição inicial não tem a ver com quaisquer dados financeiros ou de pagamentos, pois que se refere ao aliciamento de clientes e trabalhadores, da Autora para a 1.ª Ré, por parte da 2.ª Ré; a matéria dos artigos 102º a 109º, 129º, 131º e 151º da petição não tem a ver com pagamentos, mas com a constituição da sociedade R.; a matéria dos artigos 132º, 137º, 141º, 150º, 167º, 170º, 171º, 173º e 175º da petição refere-se à diminuição de clientes e trabalhadores da A. e não a pagamentos ou recebimentos da R, que seria o que se conseguiria com a junção de documentos bancários.
A diligência de prova requerida no que se refere ao levantamento do sigilo bancário destinava-se, segundo invoca a A, à obtenção de extractos de conta e movimentos bancários na conta da Ré sociedade para provar os factos articulados sob os artigos da petição inicial acima referidos.
Ora, como bem se demonstra no despacho recorrido, em nenhum daqueles artigos da petição inicial é referida qualquer quantia em dinheiro ou movimento nas
contas bancárias da R sociedade.
Assim, conforme o Senhor Juiz bem observou, examinados todos os artigos da petição inicial indicados a fls. 794, não se encontra em nenhum que seja uma alegação de facto que suscite o interesse dos meios de prova em causa. Com efeito, não só estes documentos seriam completamente irrelevantes para a prova dos factos em causa, como na maior parte, mais do que irrelevantes, seriam absolutamente estranhos (veja-se, a titulo de exemplo, os artigos 19, 20, 23, 24, 102, 131, 132, 137, 141, 150, 167 e por ai adiante).
Assim, conclui-se e bem, que a determinação da respectiva junção aos autos implicaria uma injustificada e desnecessária divulgação de elementos bancários relativos a muitas outras pessoas, para além da R. sociedade, e da 2.ª Ré, cujo interesse é protegido pelo sigilo bancário e não deve ser sacrificado, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, face à desnecessidade dos mesmos para que a Autora possa produzir prova da factualidade naqueles alegada.
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De igual forma, nada há a censurar à decisão recorrida ao indeferir a pretensão da ora Recorrente no que tange às fichas de abertura de conta de clientes, as quais estão também elas sujeitas ao sigilo profissional dos respectivos contabilistas, conforme decorre do artigo 3.º, n.º 1, alínea f) do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, «o princípio da confidencialidade implica que os contabilistas certificados e seus colaboradores guardem sigilo profissional sobre os factos e os documentos de que tomem conhecimento, directa ou indirectamente, no exercício das suas funções».
Por seu turno, de acordo com o disposto no artigo 10.º do mesmo Código, com a epígrafe “confidencialidade”, no qual o referido princípio é desenvolvido, «cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que prestam serviços, por decisão judicial (…) – n.º 4».
Assim, sem prejuízo de, caso tal venha a ser reputado relevante pelo julgador, no decurso da audiência, possa lançar mão deste mecanismo, por ora, da alegação da Recorrente e da matéria que com tais documentos se pretende provar, não se vislumbra que a respectiva pretensão se enquadre no princípio da proporcionalidade para que tal prova seja de imediato produzida.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, improcedem ou mostram-se deslocadas as conclusões do recurso.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - Pese embora o artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, se refira ao despacho de admissão ou rejeição de algum meio de prova, se atentarmos na razão que levou à introdução da admissibilidade do recurso autónomo deste despacho – o risco da anulação do processado posterior -, só podemos concluir que esta admissibilidade excepcional de recurso imediato se aplica também aos casos em que tal rejeição tenha sido parcial.
II - Os meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto são aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa, a aferir na conformação do quadro do litígio por via da causa de pedir invocada e das excepções deduzidas.
III - Movendo-se a parte requerente neste âmbito, a produção dos meios de prova não só pode, como deve, incidir não apenas sobre os factos essenciais que, directa e nuclearmente se reportem ao objecto do processo, entendido este tanto na perspectiva da acção como na da defesa, mas também sobre outros que, embora mediata ou indirectamente relacionados, são necessários ou instrumentais para a prova daqueles primeiros e para o apuramento da verdade material.
IV - O direito à prova não é um direito absoluto, ainda que coberto pela capa de uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC.
V - No caso vertente, ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva na vertente do direito à produção de prova, contrapõe-se o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias.
VI - Sendo impossível restringir o acesso ao correio electrónico às mensagens ou informação de natureza profissional, dos trabalhadores, a determinação da perícia nos moldes requeridos - verificar os e-mails trocados entre os colaboradores da 1.ª R. por forma a detectar qualquer tipo de aliciamento de clientes da A. -, é abstractamente adequada a devassar a vida privada quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tenham correspondido por esta via, não havendo dúvidas que a recolha, a consulta e a subsequente utilização como meio de prova dos e-mails dos trabalhadores cai na previsão do artigo 3.º da LPD.
VII - A matéria de comunicações electrónicas na empresa, de controlo do e-mail e do acesso à internet, é precisamente aquela que maiores cuidados impõe na defesa do direito à reserva da vida privada, por isso que, na apreciação que desta matéria tem sido efectuada em contexto laboral pela jurisprudência dos tribunais superiores, seja abordada a questão da prévia regulamentação sobre o uso dos equipamentos da empresa.
VIII - Não estando demonstrada a necessidade nem a proporcionalidade do requerido âmbito da perícia, a mesma, conforme pretendida pela autora, não acautelaria os já referidos direitos quer dos trabalhadores quer dos terceiros que com os mesmos se tivessem correspondido livremente por aquela via electrónica, nada havendo a censurar ao indeferimento parcial do âmbito daquela diligência que devassaria integralmente todas as comunicações efectuadas via e-mail pelos trabalhadores, e consequentemente as informações, mesmo de natureza pessoal e familiar, ali existentes, constituindo por tal e nos moldes em que foi requerida, uma “abusiva intromissão na correspondência”, cominada com a nulidade pelo n.º 8 do artigo 32.º da CRP.
IX - O pedido de levantamento do sigilo bancário sobre todos os pagamentos feitos pela 2.ª Ré acima de 500,00€, e dos depósitos de capital social e outros desde 28.02.2015, importa que seja sopesado de um lado da balança o dever de sigilo, que visa quer a protecção dos direitos pessoais, como o bom nome, a reputação e a reserva da vida privada, quer a protecção das relações de necessária confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes; e do outro o dever de colaboração com a administração da justiça que tem evidentemente por finalidade a satisfação de um interesse público: a realização da Justiça, no caso concreto ainda na vertente relativa à aquisição processual da prova.
X - Não tendo a diligência em causa a virtualidade de fazer prova sobre a matéria constante dos artigos da petição inicial indicados pela autora, a determinação da respectiva junção aos autos implicaria uma injustificada e desnecessária divulgação de elementos bancários relativos a muitas outras pessoas, para além da R. sociedade, e da 2.ª Ré, cujo interesse é protegido pelo sigilo bancário e não deve ser sacrificado, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, face à desnecessidade dos mesmos para que a Autora possa produzir prova da factualidade naqueles alegada.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela Recorrente.
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Évora, 13 de Julho de 2017
Albertina Pedroso [20]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Juízo Central Cível de Faro - Juiz 4
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2013, pág. 156.
[5] Cfr. no mesmo sentido, Ac. TRP de 19-09-2011, proferido no processo n.º 6074/09.1 TBMAI-A.P1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Cfr. Ac. STJ 22-04-2015, Revista n.º 568/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, disponível em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[7] Cfr. Ac. STJ de 22-10-2015, Revista n.º 2844/09.9T2SNT.L2.S1 - 7.ª Secção.
[8] Cfr. neste sentido, exemplificativamente e por mais recente, Acórdão do TRC de 17-01-2017, proferido no processo 143/13.0TBCDN-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Doravante abreviadamente designado CC.
[10] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, respectivamente a págs. 197 e 199.
[11] Doravante abreviadamente designada CRP.
[12] Cfr. neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, págs. 228 e segs., e Isabel Alexandre in As Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina 1998, pág. 76.
[13] Do mesmo modo que já anteriormente estabelecia o artigo 21.º do Código de Trabalho de 2003.
[14] No interessante texto com o título PRIVACIDADE E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO EM CONTEXTO LABORAL, que serviu de suporte à intervenção do autor no VIII Colóquio Anual sobre Direito do Trabalho do Supremo Tribunal de Justiça, em Outubro de 2016, disponível em www.stj.pt.
[15] Todos disponíveis em texto integral em www.dgsi.pt.
[16] Obra citada, pág. 229.
[17] Obra citada, pág. 287, onde constam as citadas conclusões, por referência aos capítulos onde a autora trata desenvolvidamente a matéria.
[18] Cfr. Acórdão de 19-05-2010, proferido no processo n.º 158/06.5TCFUN.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[19] Seguiremos de perto as considerações a respeito tecidas Acórdão de 19.05.2016, relatado pela ora Relatora no proc.º n.º 88/09.9TBGDL-A.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Texto elaborado e revisto pela Relatora.