Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
309/14.6TBABT.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
APRECIAÇÃO DAS EXCEPÇÕES DILATÓRIAS
LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A mera afirmação tabelar, genérica, sobre a inexistência de excepções, bem como de que de que “as partes têm personalidade e capacidade judiciária” não constitui apreciação concreta de tais questões, pelo que não constitui formação de caso julgado, de modo que tal circunstância não é impeditiva, de mais adiante no decorrer do processo, vir a ser reconhecida a verificação da excepção.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 309/14.6TBABT.E1 (1ª Secção Cível)




ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…), residente em Abrantes, intentou, em 31/03/2014, acção de condenação sob a forma comum, contra (…) – Comércio de Automóveis, Lda., com sede em (…), Abrantes, alegando factos que em seu entender são tendentes a peticionar que se declare sem nenhum efeito a adjudicação feita a favor da ré no âmbito do processo nº (…)/05.8TBABT, do 1º Juízo do Tribunal de Judicial de Abrantes e, seja cancelado o registo da adjudicação efectuado através da Ap. (…), de 06/01/2011, continuando o imóvel na esfera jurídica do A., e em consequência, ser este reconhecido como legitimo proprietário e dono do prédio urbano, sito na Estrada Principal, nº (…), freguesia de São Miguel do Rio Torto, concelho de Abrantes, inscrito na matriz sob o art. (…) e descrito sob a ficha nº (…) da Conservatória do Registo Predial de Abrantes.
Em 08/04/2014 foi proferido despacho do seguinte teor:
Veio (…) intentar acção com processo comum contra (…) – Comércio de Automóveis, Lda.. A aqui Ré foi declarada insolvente por sentença de 19/07/2010, pelo que, discutindo-se nos presentes autos questões de natureza patrimonial, não podia o Autor propor a acção contra a insolvente, mas, eventualmente, contra a massa insolvente se o processo ainda não tiver sido encerrado.
Assim, podendo estar em causa, nos presentes autos, uma excepção de ilegitimidade processual da demandada, sendo certo que a declaração de insolvência é anterior à propositura da acção, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC 2013, notifique-se o Autor para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre a eventual ilegitimidade da demandada.
O autor notificado do despacho veio argumentar em defesa da sua tese e defender que “a sociedade ré tem personalidade jurídica e personalidade judiciária, e, assim legitimidade passiva para os presentes autos, devendo a mesma ser citada para, querendo, deduzir oposição.
Em face da posição constante da pronúncia do autor foi proferido, em 20/05/2014, despacho do seguinte teor:
Assiste razão ao Autor.
Na verdade, tendo ocorrido em encerramento do processo de insolvência, cessam todos os efeitos da insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos bens e a livre gestão dos seus negócios [artigo 233º, nº 1, alínea a), do CIRE]. Por outro lado, os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem restrições [alínea c) do mesmo artigo e Código].
Assim, cite a Ré para contestar, querendo, nos termos do disposto nos artigos 563º e 569º, nº 1, ambos do CPC 2013.

A ré foi citada em 30/06/2014 “nos termos do disposto no art.º 231.º, nº 1, do Código de Processo Civil”, na pessoa do “Legal Representante”, João Gomes Ferreira, casado, com domicílio em Abrantes.
Por despacho de 18/11/2014 foi reconhecido que:
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente.
As partes têm personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e a Autora está devidamente representada.
Não existem outras nulidades, excepções processuais ou questões prévias de que cumpra conhecer desde já e que em face da ré não ter apresentado contestação, verifica-se uma situação de revelia, nos termos do disposto no artigo 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, pelo que considero confessados os factos alegados pela Autora na petição inicial.
Assim, cumpra o disposto no n.º 2 do artigo 567.º do Código de Processo Civil.
Em 06/05/2015 foi proferido despacho do seguinte teor:
Ainda que não se compreenda a junção aos autos de documentos após o despacho com a Refª 65314329, de 18/11/2014, o facto é que aconteceu e já foram proferidos despachos posteriores sobre os mesmos.
Assim, e na sequência de convite formulado ao Autor e após a junção dos documentos com a Refª 7275514, foi junto aos autos o requerimento com a Refª 1135649, que altera toda a factualidade constante da petição e que por despacho terão sido considerados confessados face à revelia operante.
Por tal razão, importa sangrar estas vicissitudes processuais, por forma a que, na oportunidade, se possa proferir decisão conforme o direito e os factos carreados para os autos. Por forma a conseguir-se tal desiderato, necessário é, por um lado, ouvir o autor e seu defensor, o que só se consegue, com resultados mais satisfatórios, agilizando procedimentos ao abrigo do disposto no artigo 6º do CPC, convocando-os para uma conferência a realizar em 01/06/2015, pelas 15h.,30m.
Notifique, com a advertência de que é indispensável a presença, pelo que ao abrigo do princípio de cooperação das partes com o Tribunal, caso não compareçam poderão incorrer em sanções processuais, nomeadamente em multa.
Em 01/06/2015 foi proferido despacho pelo qual se ordenou a notificação do autor para juntar aos autos certidão da conservatória actualizada e juntar aos autos certidão do processo de execução acima identificado e reclamação de créditos apensa, com indicação de quem eram o exequente, executado e credores reclamantes, bem como do auto de adjudicação.
Consta dos autos certidão do registo comercial da qual se retira:
- Em 22/07/2010 foi inscrito, a título de provisória por natureza, a declaração de insolvência da ré e a nomeação do administrador judicial, (…), proferida por sentença de 19/07/2010, inscrição que veio a ser convertida em definitiva em 23/08/2010;
- Em 20/10/2010 foi inscrito, a título de provisório por natureza, a decisão judicial de encerramento do processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente, proferida em 01/10/2010, inscrição que veio a ser convertida em definitiva em 16/04/2012.
Em 07/09/2015 foi proferido o despacho impugnado, cujo teor se passa a transcrever:
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
Não existem nulidades que invalidem totalmente o processo.
Da falta de personalidade judiciária da Ré: Estamos perante uma acção instaurada contra a sociedade «(…) – Comércio de Automóveis, Lda.».
A Ré foi declarada insolvente por sentença transitada em julgado em 12/8/2010, como resulta da certidão comercial junta com a petição inicial.
O encerramento da liquidação ocorreu em 1/10/2010, por insuficiência da massa insolvente, mostrando-se o registo efectuado pela insc. 4, Ap. 1/20101020.
Ora, a sociedade Ré, que havia sido dissolvida pela declaração de insolvência, entrou em liquidação, mas não se extinguiu, nos termos do disposto no artº 146º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, apenas se extinguindo com o registo do encerramento da liquidação, como estabelece o artº 160º do Código das Sociedades Comerciais (neste sentido, só como exemplo, cfr. o AC. RC de 4/3/2015 – Recurso nº 6/05.1IDCBR-B.C1 – disponível no site do Tribunal da Relação de Coimbra).
Assim sendo, no presente caso, a Ré extinguiu-se em 1/10/2010, data do registo da liquidação.
A presente acção deu entrada em juízo em 28/4/2014, data em que a Ré já se encontrava extinta.
Encontrando-se extinta à data da propositura da acção, a Ré carece de personalidade jurídica, e, logo, de personalidade judiciária, nos termos do disposto no artº 11º, nº 1 e 2, do C.P.C., não podendo ser parte no processo.
Aliás, mesmo após o trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência, a acção nunca poderia ser instaurada contra a Ré, mas contra a respectiva massa insolvente e nos termos regulados no C.I.R.E. (artº 90º do C.I.R.E.), o que no caso dos autos não aconteceu.
Ou seja, logo após o trânsito em julgado da sentença que decretou a Ré insolvente, para obter a pretensão que pretendia com a instauração da presente acção, o Autor teria que reagir judicialmente contra a massa insolvente da Ré e nos termos definidos no C.I.R.E. (não através de uma acção declarativa com processo comum).
Assim sendo, seja por não ter sido interposta contra a massa insolvente da Ré, seja porque, à data em que foi proposta contra a Ré, esta já se havia extinguido e perdido a sua personalidade jurídica e personalidade judiciária, a presente acção não poderá proceder.
A falta de personalidade judiciária é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do disposto nos arts. 577º, al. c) e 578º do C.P.C., tratando-se de uma excepção que não pode ser sanada (neste sentido, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 1997, p. 67). A procedência desta excepção importa a absolvição da Ré da instância (artº 576º, nº 2, do C.P.C.).
Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 11º, nº 1 e 2; 576º, nº 2; 577º, al. c); 578º e 595º, nº 1, al. a), do C.P.C.; 146º, nº 1 e 160º do Código das Sociedades Comerciais e 90º do C.I.R.E., verifico a falta de personalidade judiciária da Ré e, em consequência, absolvo a Ré da instância, ordenando o arquivamento dos autos.
Custas pelo Autor.
Fixo, à presente causa, nos termos do disposto no art.º 306º, nº 2, 1ª parte, do C.P.C., o valor de onze mil euros (€ 11.000,00).
*
Irresignado com esta decisão, o autor veio interpor o competente recurso, tendo apresentado as respectivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões, que se reproduzem:
I – A d. sentença em crise que declarou a Ré como parte ilegítima viola o art.º 620º, nº 1 do CPC e o art. 29º/5 da CRP (que é corolário do princípio constitucional ne bis in idem,), porquanto ofende os transitados despachos – que constituem caso julgado no presente processo – com a referência 3323381 e 65314329, que declararam a Ré como parte legítima.
II – Sem prejuízo do evidente caso julgado, também a d. sentença violaria o disposto no artigo 233º, nº 1, alíneas a) e c), do CIRE, bem como, os artºs 146º, nº 2, e 160º, nº 2, Código das Sociedades Comerciais e o art. 11º, nº 1 e 2, do CPC, porquanto a Ré se encontra EM LIQUIDAÇÃO, não se encontrando registado o encerramento dessa liquidação, tendo, assim, legitimidade e personalidade judiciária.
III – Devendo ser dada sem nenhum efeito a d. sentença proferida pelo tribunal a quo, sendo a mesma substituída por outra, que, atento a confissão dos factos (despacho referência 65314329) já declarada nos autos, deve condenar a Ré nos pedidos formulados pelo A..
Apreciando e decidindo

Como se sabe, o objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Em face das conclusões a questão nuclear a apreciar cinge-se em saber se é de manter ou de revogar o despacho que absolveu a ré da instância, por ter reconhecido falta de personalidade à mesma.

Tendo em conta os factos acima referenciados no relatório, que nos dispensamos de reproduzir de novo, vejamos então se assiste razão ao recorrente.

Conhecendo da questão
Invoca o recorrente a existência de caso julgado formal preclusivo da apreciação da excepção dilatória reconhecida no despacho impugnado por anteriormente, em despacho não impugnado, já ter sido afirmada personalidade judiciária da ré para a causa.
Devemos salientar que o recorrente ao longo do processo, bem como no âmbito do recurso, trata da ilegitimidade e a da personalidade judiciária como se estivesse a referir-se à mesma realidade aludindo por vezes indistintamente a qualquer delas.
Convém ter presente que o Julgador a quo no despacho impugnado apreciou e decidiu tendo por base a excepção dilatória da personalidade judiciária e não da ilegitimidade, como resulta da argumentação e da citação da al. c) do artº 577º do CPC.
Relativamente a tal excepção nunca o tribunal, até então, tinha procedido a qualquer diligência, que permita concluir que havia posto em causa que a ré dela não gozasse, ao contrário do que sucedeu com a legitimidade que motivou a prolação do despacho de 08/04/2014. Por isso, só relativamente à legitimidade da ré é que se poderá defender ter existido apreciação concreta de tal excepção, no despacho proferido em 20/05/2014, embora sem se fazer alusão expressa à mesma, sendo que, em todos os outros despachos anteriores à decisão alvo de impugnação a questão das excepções dilatórias, designadamente da personalidade judiciária, só foram alvo de declaração genérica ou tabelar no sentido de se poder concluir pela inexistência da(s) excepção(ões) em causa.
De modo que a mera afirmação tabelar, genérica, sobre a inexistência de excepções, bem como de que de que “as partes têm personalidade e capacidade judiciária” não constitui apreciação concreta de tais questões [artº 595º, n.º 3, do CPC (art.º 510º, n.º 3, do VCPC)], pelo que não constitui formação de caso julgado, [1] de modo que tal circunstância não é impeditiva, de mais adiante no decorrer do processo, vir a ser reconhecida a verificação da excepção.
Por isso, sendo a personalidade judiciária excepção dilatória de conhecimento oficioso (cfr. artºs 577º, al. c) e 578º, ambos do CPC), nada obstava a que o juiz, no momento em que o fez, apreciasse e conhecesse em concreto tal excepção.

Não se verificando uma situação de caso julgado formal vejamos agora se a decisão se poderá considerar ajustada.
O Julgador a quo reconheceu a verificação da excepção dilatória da falta de personalidade da ré tendo por relevante o seguinte:
O encerramento da liquidação ocorreu em 1/10/2010, por insuficiência da massa insolvente, mostrando-se o registo efectuado pela insc. 4, Ap. 1/20101020. Assim sendo, no presente caso, a Ré extinguiu-se em 1/10/2010, data do registo da liquidação. A presente acção deu entrada em juízo em 28/4/2014, data em que a Ré já se encontrava extinta.
Dos elementos constantes nos autos não resulta esta realidade referente à liquidação da sociedade ré, pelo que não podemos sufragar da posição assumida na decisão impugnada.
Ao contrário do que foi entendido pelo Julgador a quo, não podemos concluir, designadamente dos elementos registrais que se encontram nos autos referentes à sociedade ré, que o encerramento da sua liquidação ocorreu em 01/10/2010. Pois, o facto que ocorreu nessa data e foi inscrito no registo comercial (insc. 4, Ap. 1/20101020) foi tão só a decisão judicial de encerramento do processo de insolvência da ré, por insuficiência da massa insolvente e não, também, o encerramento da sua liquidação.
No caso do encerramento do processo de insolvência ocorrer por insuficiência da massa insolvente a liquidação prossegue nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais, devendo o juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente (cfr. artº 234.º, n.º 4, do CIRE).
Perante a comunicação efectuada pelo juiz e com base nela o conservador competente instaura oficiosamente o procedimento de liquidação [artº 15º, n.º 5, al. i), do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (RJPADLEC)] instituído pelo Dec. Lei n.º 76-A/2006, de 29/03, devendo o conservador declarar imediatamente o encerramento da liquidação da entidade comercial, salvo se do processo de insolvência resultar a existência de activos que permitam suportar os encargos com o procedimento administrativo de liquidação (cfr. artigo 24.º, n.º 6, do RJPADLEC). Mas, independentemente da tramitação que conduza à declaração do encerramento da liquidação, esta decisão deve obrigatoriamente ser alvo de registo lavrando o conservador “oficiosamente o registo do encerramento da liquidação” (cfr. artº 25º n.º 3 do RJPADLEC).
Por isso, da certidão do registo comercial da ré não consta registada o encerramento da liquidação, pelo que a sociedade ré mantém a sua personalidade [2] em conformidade com o que dispõe o artº 146º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (CSC), [3] uma vez que “só com o registo da liquidação se obtém a extinção da personalidade colectiva” continuando até aí a sociedade a manter a sua personalidade jurídica durante a liquidação (cfr. artº 160º, n.º 2, do CSC [4]). [5]
A sociedade ré foi dissolvida automaticamente por efeito da sentença judicial de insolvência (cfr. artº 141º, alínea e), do CSC), mas não obstante esse facto “mantém a personalidade jurídica e a sua estrutura funcional organizatória (ainda que o órgão de administração seja substituído pelo órgão de liquidação)”. Ou seja, a dissolução não implica a sua extinção “outros factos jurídicos devem produzir-se para que se verifique essa extinção: os factos (e operações) correspondentes à fase da liquidação”. [6]
De tal decorre, em conformidade com o artº 160º do CSC, que a ré detém personalidade judiciária ao contrário do que defendeu o Julgador a quo.
No entanto, deve salientar-se que não se pode ter por correcta e adequada ao caso em apreço a afirmação do autor, também consignada no despacho de 20/05/2014, de que “tendo ocorrido em encerramento do processo de insolvência, cessam todos os efeitos da insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos bens e a livre gestão dos seus negócios [artigo 233º, nº 1, alínea a), do CIRE]”, uma vez que na parte final desta al. a) se faz ressalva do que vem “disposto no artigo seguinte” (artº 234º do CIRE) que se refere em particular aos efeitos da insolvência sobre as sociedades comerciais, donde não se pode concluir, sendo a insolvente uma sociedade comercial por quotas, que “tendo ocorrido em encerramento do processo de insolvência, cessam todos os efeitos da insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos bens e a livre gestão dos seus negócios” pois, só pode haver retoma da actividade da sociedade, quando no plano de insolvência se preveja essa continuidade (cfr. artº 234º, n.º 1, do CIRE).
Também se deve salientar que o autor não se apresenta como credor da insolvente, pelo que não lhe era exigível que “logo após o trânsito em julgado da sentença que decretou a Ré insolvente, para obter a pretensão que pretendia com a instauração da presente acção, o Autor teria que reagir judicialmente contra a massa insolvente da Ré e nos termos definidos no C.I.R.E (artº 90º) não através de uma acção declarativa com processo comum” conforme de defende na decisão impugnada.
O artº 90º do CIRE prescreve relativamente ao exercício dos créditos sobre a insolvência regulando o exercício de direitos dos credores contra o devedor e apenas no período de pendência do processo, pelo que não terá aplicação no caso dos autos.
No entanto, parece evidente que afirmando o autor que a ré havia sido declarada insolvente e estava em fase de liquidação deveria ter tais factos em atenção de modo a fazer notá-los na petição, por forma a que (…) – Comércio de Automóveis, Lda. sociedade em liquidação fosse devidamente citada, não na pessoa do seu «legal representante», como o foi, mas na pessoa do seu liquidatário, que tem os deveres e poderes do órgão de administração da sociedade (cfr. artº 152º, n.º 1, do CSC).
A fase da liquidação implica modificações orgânicas na sociedade como “a extinção do órgão der administração e a entrada de funções do liquidatário” [7], pelo que ex-gerente da sociedade em liquidação deixou de ter poderes de administração da sociedade não podendo praticar actos, assumindo responsabilidades em sua representação.
Em suma, concluímos que não se verifica a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária da ré, pelo que a decisão impugnada de absolvição da ré da instância, alicerçada em tal realidade, é de revogar.
*
DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra conforme à exigência da tramitação dos autos.
Sem custas.

Évora, 17 de Dezembro de 2015
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura

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[1] - v., entre outros, Ac. do STJ de 03/05/2000 in Col. Jur., 2º, 41; Ac. do STJ de 29/06/2015, no processo 05B086, disponível em www.dgsi.pt; Ac. de 14/10/2007 no processo 07B3350, disponível em www.dgsi.pt. Na doutrina v. Paulo Pimenta in Processo Declarativo, 2014, 253; Pais do Amaral in Direito Processual Civil, Almedina 12ª edição; Remédio Marques in Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, 521.
[2] - Menezes Cordeiro in Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª edição, 88-89.
[3] - “A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica … e continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas”.
[4] - “A sociedade considera-se extinta … pelo registo do encerramento da liquidação.”
[5] - Paulo Olavo Cunha in Direito das Sociedades Comercias, Almedina, 5ª edição, 946
[6] - Ricardo Costa in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, 2011, Vol. II, 565.
[7] - Carolina Cunha in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, 2011, Vol. II, 619-620.