Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
590/11.2TDEVR.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Tal como a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo, delimitando o conjunto de factos que se entende consubstanciarem um crime, também o requerimento instrutório estabelece os limites da investigação judicial, nisto se traduzindo o princípio da vinculação temática, com o que se garante ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá vir a ser condenado.

II - A instrução deduzida pelo assistente, sob pena de ser inexequível, terá de ter um objecto, que passa pela descrição factual, minimamente concretizada nas suas vertentes, objectiva e subjectiva, como o seu significado intrínseco o exige, de factos integrantes do(s) crime(s) por que se visa a pronúncia do arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de inquérito com o número em epígrafe, correndo termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora, F, notificado do despacho de arquivamento e admitido a intervir como assistente, requereu a abertura de instrução, nos termos do art. 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP).

Por despacho proferido pela Exma. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, decidiu-se rejeitar, por inadmissibilidade legal, a abertura da instrução.

Inconformado com a decisão, o assistente interpôs recurso, formulando as conclusões:

« I- O Recorrente deu cabal cumprimento, no seu articulado de abertura da fase instrutória, ao disposto no nº 2 do art.º 287º do CPP.

II- O Assistente apresentou Queixa contra o Denunciado por este ter facultado a A., documentos bancários referentes à sociedade CQ de que a referida A. foi sócia gerente, e que só por esta foram solicitados sem a intervenção do Assistente, cuja assinatura também era necessária nas relações da mencionada CQ com o Banco denunciado.

III– A referida sócia, por si só, não tinha nem tem, legitimidade, para requerer tal documentação, porquanto a CQ se vinculava com as assinaturas conjuntas de dois gerentes e das respectivas Fichas de assinaturas consta precisamente a necessidade das duas assinaturas para a sociedade estar validamente representada e poder requerer e assinar tudo o que seja necessário junto do Banco.

IV- O Assistente não assinou qualquer requisição nem solicitou verbalmente ao Banco Denunciado, a emissão dos mencionados documentos.

V- Ao ter emitido e entregue à sócia da CQ, A., as fotocópias digitalizadas dos cheques, o Banco Denunciado violou sigilo bancário e os procedimentos bancários convencionados.

VI- O Assistente juntou aos autos de Inquérito os documentos que considera comprovativos dos factos que alegou e para eles remeteu no seu requerimento de abertura da instrução.

VII- Invocou o Assistente no seu articulado, que a referia a A. já não era gerente da firma CQ aquando da obtenção das informações bancárias em questão, o que se comprova pela certidão do registo da matrícula da sociedade comercial CQ, junta aos autos como Doc.1 do requerimento de queixa, onde se constata que a referida sócia, renunciou ao cargo de gerente com efeitos a partir de 09/10/2004.

VIII- Mais alegou que desde essa data, a referida sócia deixou de gerir e representar a CQ, como, aliás, a mesma confessa nas mais diversas instâncias sempre que tal lhe é conveniente, omitindo-o noutras ocasiões em que tal a pode favorecer ou beneficiar.

IX- O Assistente remeteu, nesta parte, para a cópia da Sentença proferida nos autos de processo crime que sob o Nº --/10.3TDEVR correu seus termos pelo 1º Juízo de Competência Especializada Criminal do Tribunal Judicial de Évora em que para além da CQ, foram também acusados o aqui Recorrente, a A. e F.,Ld.ª em que foi Ofendido o Instituto da Segurança Social, IP- documento esse que o Assistente deu por inteiramente reproduzido no seu requerimento de abertura de instrução.

X- Invocou, ainda, o Assistente que, conforme se constata do Doc.1 do Requerimento de Abertura de Instrução, A. deixou de ser Gerente da CQ desde 09/10/2004 (como aí o confessou e invocou em sua defesa) e por esse motivo foi absolvida da acusação de abuso de confiança contra a Segurança Social que contra si também impendia.

XI- Invoca, também, o Assistente que a informação bancária pedida pela A. ao Banco Denunciado, foi por ela obtida, em Junho de 2005, invocando para tanto, uma qualidade que bem sabia já não possuir nessa data.

XII- Alegou o Assistente, que a emissão das cópias dos cheques em questão, teve custos associados, os quais foram debitados na conta bancária da CQ, por ordem da A. que não os custeou do seu próprio bolso.

XIII- Invocou também que, não tendo já a qualidade de gerente da firma CQ, a referida A. não poderia movimentar a débito, nem dar instruções ao Banco Denunciado, para debitar os custos das cópias pedidas, na conta bancária da firma.

XIV- E a verdade, que se comprova pelos documentos juntos aos autos, é que tais custos foram suportados pela conta bancária de que a CQ era titular no Banco Denunciado.

XV- Como bem se refere no Despacho de Arquivamento: “Movimentar contas é efectuar operações que impliquem entrada ou saída de capitais, o que se percebe que obrigue à intervenção dos dois gerentes.”

XVI- Assim, não só o Banco Denunciado não deveria ter fornecido cópias dos cheques à referida A, como não deveria ter debitado por ordem ou instrução desta, os respectivos custos na conta bancária da Firma CQ, por a mesma já não ser, naquela data, gerente e legal representante desta entidade.

XVII- Facto que era do pleno conhecimento do Banco Denunciado, por lhe ter sido comunicado e ser facto público (a renúncia à gerência) e constar da ficha de assinaturas do Banco, a forma de movimentação da conta.

XVIII- Consta dos autos carta remetida pelo Ofendido ao Banco Denunciado, em 16/02/2011, onde o mesmo pediu cópia da autorização de débito em conta, do custo das cópias dos cheques, solicitação a que não teve resposta positiva.

XIX- Concluiu o Assistente, salvo o devido respeito, que não foram devidamente analisados os documentos juntos aos autos com a queixa e os que posteriormente o Ofendido veio juntar aos presentes autos, os quais justificam decisão diferente da de arquivamento do inquérito.

XX- Perante estes factos, concluiu existirem indícios suficientes que permitem imputar ao Banco Denunciado a prática de acto ilícito – crime de violação de segredo, p. e p. pelo art.º 195º do Código Penal e art.º 78º do DL nº 298/92 de 31/12 e, assim, sustentar uma acusação

XXI- Evidencia-se que, ao longo do seu articulado de abertura de Instrução, o Assistente narra os factos de que tomou conhecimento, identifica o seu autor e imputa um tipo legal de crime ao mesmo.

XXII- Os factos narrados, complementados com a documentação junta e identificada pelo Assistente, cujo teor deu por inteiramente reproduzido no seu articulado, possibilitam a realização de uma eficaz instrução com vista à submissão da causa a julgamento.

XXIII- No caso concreto destes autos, estamos perante a prática de crime que se apura facilmente, pela análise da documentação.

XXIV- O Tribunal recorrido, salvo o devido respeito, deveria ter considerado que o requerimento de abertura de instrução cumpre os requisitos formais e substantivos e não enferma de qualquer irregularidade.

XXV- O nº2 do art.º 287º do CPP apenas exige uma narração sintética dos factos e nem sequer exige formalidades especiais na elaboração do requerimento de abertura de Instrução.

XXVI- O Assistente explanou as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à não acusação, como o refere o nº 2 do art.º 287º do CPP.

XXVII- O Assistente fez, também, o enquadramento jurídico dos factos narrados e que fundamentam a condenação do Denunciado pela prática do crime p. e p. pelo art.º 195º do Código Penal e art.º 78º do DL nº 298/92 de 31/12 e a aplicação de uma pena.

XXVIII- Não pode ser considerado nulo o requerimento de abertura de instrução que contém, ainda que nalguns casos, por remissão, suficiente matéria de facto para ser objecto de instrução, independentemente de não respeitar a estrutura formal de uma acusação.

XXIX- O requerimento de abertura de instrução tem também de ser articulado com o Despacho de Arquivamento do Digno MP, onde os factos da queixa vêm também sinteticamente narrados.

XXX- Existindo no caso presente, menção a factos, ainda que, nalguns pontos, descritos de forma sintética ou por remissão e existindo menção a um tipo concreto de crime imputado a um Denunciado identificado, não estamos perante nulidade, quando muito perante uma imperfeição, uma irregularidade processual, sanável.

XXXI- Ao decidir-se, como no Despacho recorrido, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, violou o disposto nos artºs. 97º, nº 4, 118º, nº2, 123º, nº2 e 287º, nº2, todos do CPP.

XXXII- Nestes termos roga-se a V.Ex.ªs que revoguem o douto despacho recorrido e em sua substituição seja ordenada a abertura de instrução pretendida, assim se fazendo a vossa costumada Justiça.».

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

« 1ª - Nos termos do artº 287º/2 e 283º/3, b) do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução do assistente tem que conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação e a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

2ª - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, manifestamente, não cumpre estes requisitos porque os factos que descreve não consubstanciam qualquer crime, designadamente o de violação de segredo, p. e p. no artº 195º do Código Penal.

3ª - A lei exige, não que se conte uma qualquer história, que se relate o que se sabe sobre um assunto, mas que se relatem factos que preencham os elementos objectivos e subjectivos de um tipo de crime, o que não acontece no requerimento apresentado pelo assistente. É também por isso que a peça processual tem que ser subscrita por advogado, uma vez que exige conhecimentos jurídico-penais.

4ª - O relato dos factos tem que ser feito no requerimento, que não pode considerar-se complementado pelo despacho de arquivamento do Ministério Público que pretende por em crise, ainda que para ele seja feita expressa remissão, o que não aconteceu no caso dos autos.

5ª - O não cumprimento do disposto no artº 287º/2, conjugado com o artº 283º/3, b) do Código de Processo Penal implica a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do art. 287º/3 do Código de Processo Penal e não dá lugar a qualquer aperfeiçoamento do requerimento, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 7/2005, publicado no DR 212, série I-A, de 2005-11-04.

6ª - Ao indeferir o requerimento, rejeitando, assim, a abertura de instrução, a Mma. JI fez uma correcta aplicação dos arts. 287º/2 e 283º/3 do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, deve o presente recurso ser indeferido e, consequentemente, deve manter-se a decisão proferida, fazendo-se, desta forma, JUSTIÇA!».

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do CPP, a assistente nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Assim, consubstancia-se em apreciar se, em face do requerimento de abertura da instrução formulado pelo ora recorrente, à luz dos legais requisitos para o efeito impostos, deveria ter sido o mesmo aceite e, ao não tê-lo sido, o despacho recorrido violou o disposto nos invocados arts. 97.º, n.º 4, 118.º, n.º 2, 123.º, n.º 2, e 287.º, n.º 2, do CPP.

Com relevo, resulta dos autos que:

O inquérito foi objecto de arquivamento pelo Ministério Público, nos termos do despacho que consta de fls. 232/235, segundo o qual, no essencial:

Os presentes autos tiveram origem na queixa de fls. 2, apresentada por FB contra o B, cujo conteúdo dou aqui por integralmente reproduzido.

Está em causa, em síntese, o facto de a instituição bancária ter entregue a AB, gerente da firma CQ, documentos relativos à conta desta firma, sem a autorização do outro gerente - o denunciante. Entende o queixoso ter sido cometido o crime de violação do sigilo, por parte da instituição bancária.
(…)
Os factos denunciados, na perspectiva do queixoso, são susceptíveis de consubstanciar a prática de crime de violação de segredo.

Tal ilícito encontra-se genericamente previsto no art° 195° do Código Penal, que dispõe que é punido quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, oficio emprego, profissão ou arte.

No caso especifico da actividade bancária, esta disposição terá que ser conjugada com o disposto no art° 78° do DL n.º 298/92, de 31 de Dezembro - Regime Geral Das Instituições De Crédito e Sociedades Financeiras.

Dispõe este artigo que «os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços»

Prossegue dispondo que «estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias».

Nos termos do art° 84° do mesmo diploma, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal.

O que se pretende punir com esta incriminação é a revelação, a terceiros, de matérias cobertas por segredo bancário, designadamente nomes de clientes, existência de contas bancárias e respectivos movimentos.

Nunca pode esta incriminação abranger elementos relativos e do interesse do próprio ou de entidades que o mesmo representa.

Analisados os autos, manifestamente que a conduta denunciada não preenche o ilícito referido - ou outro.

É que o queixoso considera que o B não poderia ter revelado a uma das sócias gerentes da firma CQ elementos relativos à conta bancária desta empresa - CQ ­naquela instituição, designadamente não lhe poderia ter fornecido cópias de cheques ou extractos bancários. E defende que o banco não o poderia ter feito porque tais elementos apenas poderiam ser requeridos e fornecidos com a assinatura dos dois gerentes e não apenas de um só, como aconteceu.

Tal interpretação é manifestamente errada.

É que AB, na qualidade de sócia gerente da firma CQ, poderia ter acesso a toda a informação relativa à conta bancária da firma. Tal informação, relativamente aos sócios da firma, não é informação alheia, é informação relativa à entidade que têm a responsabilidade de gerir e representar.

A indicação de que, por força da acta nº 2 junta aos autos, as informações apenas poderiam ser fornecidas aos dois sócios resulta de uma leitura, obviamente, errada da própria acta.

É que esta apenas obriga à assinatura dos dois gerentes da firma para a movimentação das contas bancárias.

Movimentar contas é efectuar operações que impliquem entrada ou saídas de capitais, o que se percebe que obrigue à intervenção dos dois gerentes.

Pedir extractos ou informações sobre as movimentações efectuadas ou saldos não é movimentar uma conta, é obter informação sobre as movimentações, o que o queixoso não pode desconhecer.

Assim, nada há na acta ou em outro documento que obrigue a que o banco apenas forneça informações sobre movimentações de contas a ambos os gerentes da firma titular da conta.

Tal situação seria, inclusivamente, bizarra - cada um dos gerentes não poderia, por si só, saber que quantias monetárias existiam nas contas bancárias da empresa que geriam.

Esta mesma explicação, evidente para o cidadão comum, foi confirmada pelo gerente do B, que esclareceu que, quando uma firma está a laborar plenamente e com conta aberta no banco, a ficha bancária é que define quantos gerente podem ter acesso à conta e movimentá-la. Para movimentar a conta será necessário a assinatura dos dois gerentes postos na ficha bancária, mas quando é mero expediente de informação, além dos extractos bancários serem enviados para a sede da empresa, também podem ser consultados via internet ou solicitados no balcão, sem ser necessário a assinatura dos dois sócios.

Quando a empresa é encerrada ou cessar a actividade comercial com o banco, para qualquer solicitação bancária será necessário sempre fazer prova que ainda se é gerente e serão necessárias tanto as assinaturas daqueles que a empresa terá definido. Foi por este motivo que, quando o queixoso pretendeu obter, recentemente, informação, lhe foi exigido a comprovação dos seus poderes de representação.

Como refere AB, o queixoso encerrou a conta em causa em 2006. Da conjugação de todos os elementos dos autos, é, desta forma, manifesto que não houve qualquer prestação ou revelação de informação, por parte dos funcionários bancários, a entidades alheias ao segredo e feita de forma violadora do mesmo.

A informação foi prestada a uma das gerentes da firma titular da conta, a quem a informação prestada não só não era alheia como, pelo contrário, era devida.

Assim, por não ter sido cometido o crime em apreço, determino o arquivamento dos autos, conforme disposto no art° 277°/ 1 do Código de Processo Penal.

Por seu lado, consta do despacho recorrido:

O assistente veio requerer a abertura de instrução, assim reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, constante de folhas 232 a 235.

No entanto, o requerimento de abertura de instrução de folhas 237 e ss. não obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 287.º do Código de Processo Penal, pelo que não poderia conduzir a um despacho de pronúncia válido.

De facto, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público o requerimento de abertura de instrução tem que, além do mais, satisfazer as exigências legalmente previstas para a acusação.

E a esse respeito preceitua o n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3”.

Nos termos do referido artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), a acusação contém obrigatoriamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito, pelo que também estes têm que constar obrigatoriamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

Analisando o requerimento de abertura de instrução, entende-se que o mesmo não satisfaz os requisitos apontados para a acusação porquanto não é feita uma descrição circunstanciada de factos susceptíveis de integrar o tipo objectivo do crime de violação de segredo pelo qual se pretende a sujeição do agente a julgamento, nem este surge devidamente identificado.

E o Juiz de Instrução encontra-se vinculado aos factos alegados na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade da decisão instrutória – cfr. art. 309.º, do Cód. Proc. Penal.

Não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005.

Assim, por inadmissibilidade da abertura desta fase processual, indefere-se o requerimento de abertura de instrução.

Apreciando:

Nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, o requerimento de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (…).

Ainda, segundo o mesmo preceito e tratando-se, como no caso presente, de requerimento de assistente, está este sujeito à observância dos requisitos para a acusação contidos no art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, ou seja, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Tal requerimento consubstancia, assim, uma verdadeira acusação que, identicamente à acusação em sentido formal, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão instrutória, conforme refere Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 1994, pág. 125.

Na verdade, só mediante requerimento obedecendo a tais requisitos, ficará definido o objecto da instrução, tendo em vista a finalidade que esta prossegue – na situação concreta, de comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, nos termos do art. 286.º, n.º 1, do CPP – e é sobre ele que o juiz terá de se pronunciar na decisão instrutória que, a final da instrução, vier a proferir.

Como se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, de 19.05, acessível em www.dgsi.pt, A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução (…) Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.

Com efeito, tal como a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo, delimitando o conjunto de factos que se entende consubstanciarem um crime, também o requerimento instrutório estabelece os limites da investigação judicial, nisto se traduzindo o princípio da vinculação temática, com o que se garante ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá vir a ser condenado.

A sua relevância, em sede de acusação (aqui inteiramente aplicável), tem pois uma dimensão de garantia dos direitos e da posição do arguido, conforme Frederico Isasca, in “Alteração Substancial dos Factos e a sua relevância no processo penal português”, Almedina, 1992, pág. 54, citando em nota de rodapé o pensamento de Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, Coimbra, 1974, pág. 145, Deve pois firmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal (…) Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação (…) constituem o cerne de um verdadeiro direito de defesa do arguido e deixam transparecer os pilares fundamentais em que se alicerça um Estado que os acolhe.

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cfr. art. 289.º, n.º 1, do CPP) e, por outro, com o asseguramento de todas as garantias de defesa - art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Não pode deixar de se entender, também, que a efectividade e a eficácia do direito de defesa e do princípio do contraditório constituem requisitos essenciais para assegurar um processo justo e equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP).

Em conformidade, a exigência de narração dos factos susceptíveis de fundamentar a probabilidade de aplicação ao agente de uma pena (ou de uma medida de segurança) é elemento essencial e imprescindível, sob pena da instrução ficar sem objecto e de qualquer decisão instrutória que viesse a ser proferida atentar contra as garantias de defesa do arguido e redundar em alteração substancial de factos, implicando nulidade dessa decisão (art. 309.º do CPP) e, por isso, inutilidade da instrução realizada.

Foi dentro de toda esta lógica, a que se juntam aquela natureza acusatória, e não inquisitória, do actual processo penal e a almejada garantia de igualdade de armas entre os diferentes intervenientes processuais, que foi extraída a jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 7/2005, de 12.05, publicado em D.R. I Série-A, n.º 212, de 04.11.2005 – Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido -, deste realçando-se, na sua fundamentação, que Uma ilimitada investigação levada a cabo pelo juiz de instrução buliria com o princípio da acusação, pois seria ele a delimitar o objecto do processo, contra os peremptórios termos do artigo 311.º, n.º 3, alíneas b) do CPP, não sendo curial, sublinhe-se, o tribunal substituir-se aos profissionais do foro, mandatários judiciais do assistente, necessariamente por aqueles assistido, nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP, suprindo-lhes carências no desempenho técnico-profissional que lhes incumbe, pelo que a descrição do campo factual, ainda que sintética, tem de ser suficientemente clara, objectiva e perceptível, conquanto dentro de margem de apreciação que não seja exageradamente restritiva.

Embora aludindo unicamente à omissão de narração de factos, esta deve equiparar-se, nos efeitos, à narração que, por deficiente, não traduza imputação inteligível e inequívoca de factos, na medida em que idênticas razões procedem.

Já pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 389/2005, de 14.07 (www.dgsi.pt) , se decidiu não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 287º e 283º do Código de Processo Penal, segundo a qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução, apresentado pelos assistentes, que não contenha uma descrição dos factos imputados ao arguido, referindo, na sua fundamentação, designadamente:

Qualquer convite que fosse formulado traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto anterior.

Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”.

Na verdade, o direito de acesso à Justiça no contexto destes autos concretiza-se na consagração do direito a requerer a abertura da instrução. Uma vez que é representado por advogado, o assistente dispõe das condições necessárias para o exercício de tal direito. Tais condições são, porém, delimitadas por outros princípios processuais, tais como a celeridade ou a proibição de actos inúteis.

A prática de actos (no caso, a apresentação de um requerimento) de modo a não permitir a inteligibilidade do núcleo essencial da peça processual produzida não justifica nem legitima a imposição de um convite ao aperfeiçoamento (que como se disse, seria antes a concessão da possibilidade de renovação do acto). Por fim, deve ter-se presente que o reconhecimento da possibilidade de “renovação” do acto em questão implicaria uma compressão dos direitos de defesa do arguido, já que a consagração de um prazo para o assistente requerer a abertura da instrução concretiza a garantia de defesa inerente à fixação da situação processual do arguido que a não pronúncia origina.

O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução – prazo esse que, uma vez decorrido, impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado.

Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.

A análise trazida à colação merece, contudo, a seguinte asserção: sempre tendo em conta e na medida em que se afigure proporcional que a exigência legal se reporta à narração de factos enquanto acontecimentos da vida, susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, não é menos verdade que não está propriamente em causa a forma pela qual se relatam, desde que essa deficiente forma não desencadeie, ela própria, a incompreensão desses acontecimentos.

Aliás, a garantia de acesso ao Direito não deve ser postergada por exigências formais - embora estas, com a necessidade e a justificação decorrentes de estarem inseridas em procedimentos que a lei tem de fixar para que a normal tramitação processual se possa desenvolver -, nem estas devem ser consideradas prevalentes relativamente ao sentido das mesmas, desde que se não ponham em causa o princípio do contraditório e da defesa em geral.

Tudo residirá, pois, em saber se o requerimento em apreciação cumpre as referidas exigências legais, sendo certo que o significado da expressão «O requerimento não está sujeito a formalidades especiais» não é contraditório com as exigências aludidas; antes, tem o sentido de conter uma mínima delimitação do campo factual sobre o qual há-de versar a instrução, sob pena de inexequibilidade desta e, mormente, em situação, como a concreta, em que o Ministério Público decidiu pelo arquivamento dos autos.

Também, deve ser entendida como significando que a mera preterição de formalidade que não seja essencial àquele elenco de exigências não deve redundar em coarctar a possibilidade do requerente fazer valer os seus direitos.

Ora, divisando o requerimento da instrução apresentado pelo aqui recorrente, é minimamente inteligível a sua discordância relativamente ao decidido arquivamento, no essencial, assentando em que AB já não era, ao tempo em que as informações lhe foram facultadas pela denunciada entidade bancária, sócia gerente da firma CQ, aludindo ao documento que juntou, de fls. 243/256 e, por isso, entendendo que essa entidade não deveria ter fornecido àquela cópias dos cheques, como não deveria ter debitado na conta da firma, por ordem ou instrução da mesma, os respectivos custos.

Acrescenta que tal facto era do conhecimento da entidade bancária e conclui que os indícios são suficientes para lhe imputar o crime de violação de segredo, reportando-se às pertinentes disposições legais.

Não incluiu pedido de realização de actos de instrução.

Sem prejuízo de que o recorrente tivesse minimamente aludido às razões de discordância relativamente ao arquivamento e indicado as disposições legais aplicáveis, com menção ao crime respectivo, o requerimento é, todavia, integralmente omisso no âmbito da descrição factual.

Contrariamente ao que alega, não enunciou factos, mas apenas fundamentos para criticar o arquivamento, não sendo legítimo invocar, como aparenta, que essa narração esteja implícita ao teor do requerimento ou que, até, o tenha feito por remissão para a queixa que apresentou, o que, note-se, se assim fosse, também não corresponderia a narração de factos que pudesse ser como tal considerada, à luz das exigências que lhe incumbia respeitar.

Embora a necessária narração deva ser sintética, o requerimento omitiu, pura e simplesmente, essa narração, o que tem por consequência que nem o convite ao recorrente se justificaria aquando da prolação do despacho recorrido, nem agora também se justifica.

Citando o aludido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004, Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Na verdade, não obstante o juiz, em sede de instrução, investigue autonomamente o caso a si submetido, conforme ao art. 288.º, n.º 4, do CPP, isso não significa que lhe seja imposta a realização de uma investigação própria do inquérito, mas tão-só que lhe cabe a direcção da instrução e com vista às finalidades respectivas, e não a outras, além do mais, como ressalta do próprio preceito, “tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura da instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior”.

Segundo Germano Marques da Silva, ob. cit., págs. 128 e seg., A actividade processual desenvolvida na instrução é (…) materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações” e Porque (…) se trata da fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limita a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa) não é, por isso, absoluta e, como assinala Anabela Rodrigues, in “O inquérito no Novo Código de Processo Penal”, em Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, pág.77, se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo.

A solução não é diversa pela circunstância, apontada pelo recorrente, de que a análise dos indícios se restrinja, no essencial, a elementos documentais.

Dentro de todas estas condicionantes, é manifesto, pois, que o requerimento instrutório está afectado pela omissão da narração dos factos e é inadequado às finalidades da instrução, desde logo, à prolação de decisão nos termos do art. 308.º do CPP.

Não contém descrição factual, minimamente concretizada nas suas vertentes, objectiva e subjectiva, como o seu significado intrínseco o exige e, assim, não se trata, em concreto, de mera deficiência do ora recorrente na narração - a qual sempre poderia vir a ser admitida com apelo a razões de justiça e de reduzir, ao mínimo, o carácter excepcional da rejeição da instrução -, mas sim de real omissão, que tem de lhe ser imputada e a que têm de ser atribuídos os legais efeitos, sob pena da temática relativa aos princípios condutores do processo penal se ter por arredada.

Por isso, bem concluiu o despacho recorrido pela sua inadequação à admissibilidade legal da instrução, em virtude da omissão de formalidade essencial da narração dos factos, atentando em que, se outro fosse o entendimento, a decisão instrutória acabaria fulminada com a nulidade.

A instrução, sob pena de ser inexequível, terá de ter um objecto, o que no caso não sucede, pelo que a sua consequência de inadmissibilidade legal decorre da preterição desse pressuposto processual essencial.

Não se tratou de fundamentar o decidido em nulidade ou irregularidade, mas sim no disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP, interpretado em função da natureza e da finalidade da instrução.

Como tal, não se mostra violado qualquer dos preceitos invocados pelo recorrente.

3. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pelo assistente Francisco Jorge da Silva Banha e, consequentemente,

- manter o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça em soma correspondente a 3 UC.
Processado informaticamente e integralmente revisto pelo Relator.

Évora, 19 de Março de 2013

(Carlos Berguete Coelho)
(João Gomes de Sousa)