Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
190/16.0GELSB.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: TACÓGRAFO
FALSIFICAÇÃO DE NOTAÇÃO TÉCNICA
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Ao introduzir o cartão de um outro condutor em vez do seu, o condutor interfere necessariamente no processo de registo operado de forma parcialmente automatizada pelo tacógrafo (que não dispensa a intervenção humana respetiva), dando assim origem à notação do ”decurso de um acontecimento” falseada quanto à identidade do condutor, que é um dos seus elementos essenciais, com o que preenche os elementos constitutivos do crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258.º, nº 1, al. c) e 255.º, al. b), do C.Penal.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. RELATÓRIO

1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Elvas do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, foi acusado e sujeito a julgamento, JJ, nascido a 28.04.1970, a quem o MP imputara a prática, em autoria material, de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido nos termos do artigo 258.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 255.º, alínea b) do Código Penal.

2. - Realizada Audiência de Julgamento, o tribunal singular julgou a acusação improcedente por não provada, dado não se mostrarem preenchidos os elementos objetivos do crime de falsificação de notação técnica que lhe vinha imputado, absolvendo-o.

3. Inconformado com a sentença absolutória, veio o MP interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES

1. O Tribunal a quo considerou provados todos factos constantes da acusação e em seguida absolveu o arguido da prática do crime de que estava acusado porquanto considerou que tal conduta não integra a prática do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art.º 258.º n.º 1 al. c) do Código Penal.

2. Ao ter decidido como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto em tal disposição legal e ainda o disposto no art.º 255.º al. b) do Código Penal e incorreu na incorreta interpretação de tal norma legal.

3. O arguido, ao introduzir no tacógrafo do veículo por si conduzido um cartão tacográfico que não lhe pertencia, fez com que o tacógrafo produzisse uma notação técnica falsa, na medida em que registou o tempo de condução do veículo por terceiro e que se traduz num facto juridicamente relevante na medida em que lhe permite ultrapassar o período regulamentar de condução sem que tal fique registado.

4. A utilização de cartão tacográfico alheio integra, para além da contraordenação prevista no art.º 7.º n.º 3 al. d) do Decreto-Lei n.º 169/2009, a previsão de um crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art.º 258.º n.º 1 al. c) por referência ao art.º 255.º al. b), ambos do Código Penal, pelo que, ante os factos dados como provados, deve o arguido ser condenado pela pratica de tal crime.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso ora interposto pelo Ministério Público com o douto suprimento de Vossas Excelências, revogando-se a Douta Sentença proferida e ser substituída por uma decisão que condene o arguido pela prática do crime de que estava acusado, no que farão V. Ex.ªs JUSTIÇA!»

4. Notificado para o efeito, o arguido pronunciou-se pela improcedência do recurso.

5. Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se a sentença absolutória recorrida.

6. Cumprido o disposto no art. 417º n. 2 do CPP, os interessados nada acrescentaram.

7. A sentença recorrida (transcrição parcial):

«(…)
A) MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da prova produzida em audiência de julgamento, e dos documentos juntos aos autos, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. O Arguido JJ trabalha como motorista para a empresa AA – Sociedade de Transportes, Lda, assim como a esposa deste, CC;

2. No dia 01.11.2016, pelas 16:35h, o Arguido conduziu o veículo de matrícula -PM- que fazia conjunto com o semi-reboque de matrícula R---BCN na estrada nacional n.º 373, ao quilómetro 5, na localidade de Campo Maior, quando foi sujeito a uma operação de fiscalização levada a cabo pela GNR;

3. O veículo em causa encontrava-se equipado com aparelho de controlo de tacógrafo digital, tendo o último período de condução, antes da fiscalização em causa, se iniciado há cerca de 40 minutos;

4. No momento em que foi efectuada a fiscalização, e sendo o condutor efectivo do veículo supra identificado naquele momento o Arguido, o mesmo fê-lo utilizando o cartão de condutor de CC;

5. Assim, e no dia em causa, o Arguido JJ realizou 40 minutos de condução com o cartão de condutor de CC até ao momento em que foi fiscalizado;

6. O Arguido JJ actuou de forma livre com o propósito de utilizar no tacógrafo do veículo que conduzia o cartão de condutor que não lhe pertencia, a fim de poder conduzir durante maior período de tempo do que legalmente autorizado, abstendo-se de introduzir horas de condução no seu registo, que assim indicaria que o Arguido estava em período de descanso, bem sabendo que com a sua conduta abalava a confiança e a credibilidade que é suposto depositar nos dados electromagneticamente registados pelo tacógrafo, confiança e credibilidade essas tuteladas pelo Estado português;

7. O Arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei;

Mais se apurou que:
8. O Arguido tinha como destino Sevilha;

9. Do certificado do registo criminal do Arguido constam as seguintes condenações:

9.1. no processo n.º ---/07.4TDPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 03-10-2013, pela prática de um crime de falsificação ou contrafacção de documento e um crime de burla qualificada, praticado a 05-01-2006, tendo sido condenado numa pena de prisão, suspensa com regime de prova;

9.2. no processo n.º ---/10.7GAVNG, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 06-02-2014, pela prática de um crime de um crime de ofensa à integridade física e um crime de injúria, praticado a 30-10-2010, tendo sido condenado numa pena de multa;

10. O Arguido e a esposa são motoristas de transporte de mercadorias, auferindo € 900,0 e 1.075,00, respectivamente;

11. Tem um filho maior de idade, a estudar na faculdade;

12. Vivem em casa própria, pagando € 350,00 de empréstimo bancário;

13. Estudou até ao 9.º ano;

14. A mulher do Arguido é doente crónica de ginecologia;

B) FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou, com relevância para a boa decisão da causa, os seguintes factos:

a) Na data/hora referida em 2., a mulher do Arguido sofreu uma grande hemorragia;

Consigna-se que não foram considerados os factos negativos (dos factos provados), os factos meramente conclusivos e os factos desprovidos de interesse e relevância para a decisão da causa.

C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto considerada provada, na análise crítica e conjugada dos depoimentos dos militares da Guarda Nacional Republicana, FP e JS, bem como a testemunha CC (mulher do Arguido) e as próprias declarações do Arguido, apreciados de acordo com as regras de experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova.

O Tribunal efectuou, igualmente, uma análise global e pormenorizada do teor dos documentos que constam de fls. 2 a 3 (auto de noticia), fls. 4 (talões de tacógrafo) e fls. 124-125 (informação da segurança social).

Dessa forma, tendo presentes os meios de prova já referidos, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal.

Nas declarações prestadas o Arguido reconheceu toda a factualidade descrita na acusação, embora ressalvando que não se encontrava a conduzir com o cartão da sua mulher de forma consciente.

Com efeito, o Arguido relatou que na zona de Portalegre a sua mulher foi acometida de uma grave hemorragia, pelo que parou numa superfície comercial para que esta se fosse tratar e lavar.

Questionado sobre o motivo de não se ter deslocado a uma unidade de saúde, o mesmo transmitiu que não sentiram necessidade de tal, porquanto a mesma já tinha ido a uma consulta pouco tempo antes e tinham sido avisados que isto seria normal.

Após, o Arguido iniciou a condução do veículo sem se ter lembrado de trocar o cartão, isto é, mantendo o cartão da sua mulher como condutora do veículo.

Mais referiu que apenas se recordou de tal situação no momento em que foi fiscalizado, tendo ficado surpreendido e tentado explicar a situação aos militares e até mostrado as roupas ensanguentadas da sua esposa.

A mulher do Arguido confirmou esta versão, com a diferença de apenas ter referido ter feito exames anteriormente, sendo que a consulta apenas ocorreu no ano seguinte e desmentiu que tenha sido mostrada qualquer roupa ensanguentada aos militares.

Por seu turno, os militares descreveram a situação relativa à acção de fiscalização, confirmando tudo o que está vertido no auto de forma segura, tendo, inclusivamente, demonstrado conhecimento objectivo e sedimentado sobre a factualidade.

Posto isto.
Analisada toda a prova produzida ficou o tribunal convencido que o Arguido estava a conduzir o veículo, desde há pelo menos 40 minutos, com o cartão da sua mulher.

A questão que se coloca, e onde a versão do Arguido contraria a versão vertida na acusação, é se o Arguido estava a agir de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Ora, face à prova produzida entendemos que sim.

Na verdade, o Arguido e a sua mulher são condutores profissionais, tendo demonstrado o conhecimento da obrigação de conduzir o veículo pesado a seu cargo com a inserção do respectivo cartão de cada um.

Por outro lado, o Arguido esclareceu que a troca do cartão é um acto normal e que ocorre várias vezes (quando estes se encontram a trabalhar), pelo que se encontra habituado a tal rotina.

É certo que o Arguido mencionou que a sua mulher foi acometida de uma hemorragia, o que motivou a paragem em superfície comercial para tratamento e higiene pessoal, mas tal versão não se demonstrou convincente.

Desde logo, e além das declarações de Arguido e sua mulher, não existe qualquer outra prova de que tal tivesse ocorrido. Veja-se que a documentação clinica junta aos autos pelo Arguido diz respeito a um período vários meses após a situação.

O próprio Arguido veio dizer que mostrou a roupa ensanguentada aos militares, o que foi por estes, e até pela sua própria mulher, negado.

Mesmo a entender que se teria passado alguma situação do foro da saúde com a sua mulher, ou era algo grave e que justificaria a ida a uma unidade de saúde, ou se fosse algo banal não justificaria o tal esquecimento da troca de cartões.

Acresce que o Arguido veio informar que não se mostraram muito preocupados com a situação de saúde pois tinham ido a consulta pouco tempo antes e a “Doutora” avisou que era normal. Ora, a sua mulher referiu que apenas foram à consulta em Fevereiro seguinte (sem prejuízo de na prova documental apenas constar registo de consulta em Abril).

Por este motivo a versão contada pelo Arguido não merece credibilidade e está eivada de contradições, servindo, ao invés, para demonstrar que a condução com o cartão de terceiro foi perfeitamente intencional.

São os próprios militares da GNR a afirmar que o Arguido não pareceu surpreendido com a situação (sem prejuízo de ter explicado que a troca de cartões se deveu a uma indisposição da sua mulher).

O que temos por certo é que face à legislação aplicável existem tempos máximos de condução contínua, tempos máximos de condução diária e até semanal. Ora, encontrando-se o Arguido a conduzir com o cartão de terceiro inserido, tal situação lhe iria permitir conduzir mais horas do que as permitidas, simplesmente porque o seu cartão estava a zero. Tal situação é, aliás, recorrente na prática de alguns motoristas de pesados para lhes permitir a condução por períodos mais longos que o permitido.

Face à prova produzida, dúvidas não existem de que quando iniciou a condução o Arguido não colocou o seu cartão no tacógrafo (como condutor). E que o fez de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de permitir a condução por mais horas do que aquelas permitidas por lei.

Refira-se, ainda, que não faz sentido a defesa do Arguido segundo a qual o mesmo não teria interesse ou vantagem em conduzir com o cartão da mulher pois ainda tinha tempo no seu cartão. É óbvio que ainda tinha tempo, e teria esse tempo por inteiro pois o seu cartão não estava inserido.

Quanto às condições socioeconómicas, o Tribunal ateve-se às declarações do Arguido e da sua mulher.

Relativamente aos antecedentes criminais foram considerados os certificados criminais juntos aos autos.

Quanto aos factos considerados como não provados, nenhuma prova foi produzida que permitisse considerá-lo como provado.
*
III. O DIREITO

A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Estabelecido o quadro factual apurado, importa proceder ao respectivo enquadramento jurídico-penal.

O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos do tipo legal de crime.

O Arguido vem acusado da prática de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo artigo 258.º n.º 1 do Código Penal.

Dispõe o artigo 258.º n.º 1 do Código Penal que “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: a) Fabricar notação técnica falsa; b) Falsificar ou alterar notação técnica; c) Ficar constar falsamente de notação técnica facto juridicamente relevante; ou d) Fizer uso de notação técnica a que se referem as alíneas anteriores, falsificada por outra pessoa; é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

O artigo 255.º, alínea b) do Código Penal define notação técnica como “a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente”.

Escreve Helena Moniz que “o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento e, por conseguinte, de uma notação técnica falsa. Aquela notação constitui a prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 671).

Diz a mesma Autora que não se trata da veracidade ou a autenticidade do conteúdo da notação; o que se pretende é a protecção da exactidão formal garantindo que a produção da notação é livre de qualquer manipulação humana.

O crime de notação técnica tem em vista a protecção de um específico bem jurídico-criminal, qual seja a autenticidade do modo de produção automática da notação.

O objecto da acção típica no crime de falsificação de notação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante.

No específico domínio da alínea c) do n.º 1 do artigo 258.º do Código Penal, para a existência do crime é indispensável que se verifique, de forma automática, através de um aparelho técnico, o registo de um valor falso, de um peso falso, de uma medida falsa ou de um decurso falso de um acontecimento, devendo a notação técnica assim produzida ser adequada objectivamente para ter efeitos probatórios ou algum tipo de relevância jurídica.

No que tange à previsão do n.º 2 do artigo 258.º, para que o crime ocorra é indispensável a acção perturbadora sobre um aparelho técnico ou automático e uma actuação posterior do agente para desencadear a produção da notação, constituindo tentativa a acção de manipulação do aparelho técnico quando a notação decorre automaticamente daquela acção.

Transpondo para a situação que ora nos ocupa, estando, em causa a condução, por parte do Arguido, do veículo de matrícula -PM- que fazia conjunto com o semi-reboque de matrícula R---BCN, na estrada nacional n.º 373, ostentando o tacógrafo o cartão de condutor de CC, à luz do que exposto ficou quanto à conformação do tipo legal, é nossa convicção não integrar tal factualidade a acção relevante/típica do crime em referência, já que não traduz a mesma qualquer interferência no processo de registo do tacógrafo do veículo e, logo, não se verificou, por intermédio da manipulação do aparelho, a produção de notação falsa das horas de condução.

Realce-se que tem que ser analisado se o agente, através de algum engenho e arte, interferiu no processamento automático do aparelho, de modo a este ver adulterado o respectivo registo.

Pois bem, temos de convir que, in casu, o Arguido não manipulou, não alterou, de nenhuma forma, o processamento automático do aparelho, já que este continuou a registar, em absoluta normalidade o percurso da viatura.

Estamos perante uma mera desconformidade entre o condutor real da viatura e o cartão introduzido no aparelho e não face a um desvirtuamento da operacionalidade automática deste.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-02-2012 (disponível em www.dgsi.pt), a respeito de situação similar, “na realidade, nenhuma acção de interferência se verificou no processo de registo do tacógrafo do veículo conduzido pelo arguido, nem ocorreu, consequentemente, através da manipulação desse aparelho, a produção de notação falsa das horas de condução”.

No mesmo sentido vão os Acórdãos da mesma Relação de 27-11-2013 e 06-04-2011 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Não se descura a existência de Jurisprudência em sentido contrário (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-04-2013 ou da Relação de Guimarães de 21-05-2018, in www.dgsi.pt), mas, como se defende no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-11-2016 (in www.dgsi.pt), “nos quais, ressalvado o muito e devido respeito, se não contraria a argumentação levada naquelas outros, acima citados”.

Conclui-se, pois, pelo não preenchimento integral dos elementos constitutivos do crime de falsificação de notação técnica imputado ao Arguido, pelo que deve o mesmo ser absolvido.

De qualquer modo, afigurando-se que a conduta do Arguido poderia configurar responsabilidade contra-ordenacional (artigo 7.º n.º 3 alínea d) do Decreto-Lei n.º 169/2009 de 31 de Julho), cumpriria determinar ao abrigo do artigo 38.º do Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro e dos artigos 6.º n.º 1do Decreto-Lei n.º 169/2009, a extracção de certidão e, posterior, remessa ao IMTT, IP, para apreciação da mesma.

Contudo, uma vez que inexistem causas de suspensão (designadamente as previstas no artigo 27.º -A do Decreto-Lei n.º 433/82), e que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, tendo em conta que a mesma se encontra prescrita (ex vi artigo 27.º alínea c) do Decreto-Lei n.º 433/82, e de forma a evitar a prática de actos inúteis, não se ordena tal remessa.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

Assim, encontrando-se assente a factualidade provada, apenas há que decidir se a mesma integra os elementos constitutivos de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido nos termos do artigo 258.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 255.º, alínea b) do Código Penal, como pretende o MP recorrente, revogando-se a sentença absolutória recorrida.

2. Decidindo.

A questão controvertida está devidamente identificada na sentença recorrida e na motivação de recurso do MP, formando-se sobre ela duas correntes jurisprudenciais de sentido oposto que persistem há cerca de uma década sem que sobre ela tenha sido proferido acórdão de fixação de jurisprudência, a qual pode enunciar-se assim:

- A utilização de cartão tacográfico alheio no tacógrafo de veículo por si conduzido, pode fazer incorrer o condutor na prática de um crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art.º 258.º n.º 1 al. c) por referência ao art.º 255.º al. b), ambos do Código Penal?

A sentença recorrida respondeu negativamente à questão e absolveu o arguido, louvando-se no entendimento seguido nos acórdãos do TRC de 29.12.2012 e de 06.04.2011 (rel. Alberto Mira), de 27.11.2013 (rel. M. José Nogueira) e no acórdão do TRE de 29.11.2016 (rel. Clemente Lima).

Em sentido contrário, isto é, no sentido de que a conduta em tudo idêntica à do arguido nos presentes autos integra os elementos constitutivos do crime de falsificação de notação técnica previsto no art. 258º do C.Penal, decidiram, entre outros, os Ac TRC de 7.04.2010 Esteves Marques) e de 10.12.2013 (Fernando Chaves), os Ac TRP de 17.04.2013 e de 16.10.2013, ambos relatados por Maria dos Prazeres Silva) e o Ac. TRG de 21.03.2018, rel. Clarisse Gonçalves.

Vejamos.
2.1. Partindo das noções de «aparelho de controlo» ou cartógrafo e de “cartão tacográfico”, que corresponde ao cartão de condutor a que se reportam os pontos 4 e 5 da factualidade provada, constantes das alíneas a) e b) do DL 169/2009 de 31 de julho, ambos os entendimentos jurisprudenciais concordam em que a identidade do condutor, que falsamente fica a constar da notação técnica, é facto juridicamente relevante face à regulamentação legal desta matéria, na medida em que – como pode ler-se, por todos, no citado Ac. TRP de 17.04.2013 “…permite ao condutor do veículo, passado que seja um determinado período de tempo, retirar aquele cartão e introduzir o seu, logrando assim conduzir o veículo para além dos tempos permitidos por lei, evitando, desse modo, o registo de factos que integram a previsão das normas contra-ordenacionais que regulam os tempos máximos de condução seguida e as pausas obrigatórias para descanso previstas no Dec-Lei n.º 272/89, de 19/8. A notação da condução do veículo por terceira pessoa constitui, portanto, facto juridicamente relevante posto que permite ao condutor ultrapassar o período regulamentar de condução sem que fique registado, evitando, assim, o registo de notações técnicas que poderiam fazer incorrer em responsabilidade contraordenacional”, como sejam os tempos de condução e de repouso do condutor.

Assim sendo, a divergência, no que respeita ao preenchimento da al. c) do nº1 do art. 258º do CPP, aplicável em casos como os dos autos, respeita apenas à questão de saber se a ação do condutor que coloca no tacógrafo o cartão de outro condutor, em vez do seu, é subsumível à previsão daquela mesma alínea c) ao referir-se a quem fizer constar falsamente de notação técnico facto juridicamente relevante.

Na sentença recorrida nega-se que assim seja, por considerar-se, na esteira da jurisprudência aí citada, que o objecto da acção típica no crime de falsificação de notação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante, interferindo o agente, através de algum engenho e arte, no processamento automático do aparelho, de modo a este ver adulterado o respectivo registo, o que não se verificou no caso presente, pois o arguido não manipulou, não alterou, de nenhuma forma, o processamento automático do aparelho, já que este continuou a registar, em absoluta normalidade o percurso da viatura.

2.2. Antecipando conclusões, entendemos, com todo o respeito por opinião contrária, obviamente, que a interpretação seguida na sentença recorrida não tem correspondência na descrição do crime de falsificação de notação técnica tal como consta da al. c) do nº1 do art. 258º do CPP, pois não se faz ali a restrição típica subjacente àquele mesmo posicionamento doutrinário e jurisprudencial, nem vemos razão para que assim fosse.

Vejamos porquê.
2.2.1. O artigo 255.º, alínea b) do Código Penal define notação técnica como «a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente».

É, pois, caraterístico da notação técnica, que a notação seja produzida através de aparelho técnico que, permitindo reconhecer ao seu destinatário um facto juridicamente relevante e constituindo uma referência de prova relativamente a um determinado processo/fenómeno de vida (vd Helena Moniz, Comentário Conimbricense do C.Penal, II, 671), funcione de forma total ou parcialmente automática, assim se distinguindo de mera notação feita manualmente ou de anotação produzida por equipamento que, porventura, não integre automatismos no seu funcionamento, procedendo-se deste modo à delimitação do campo de ilicitude abrangido pelo crime de Falsificação de notação técnica previsto no art. 258º do CPP.

Daí a afirmação de que neste tipo de crime os bens jurídicos protegidos são a segurança e a credibilidade na força probatória de notação técnica destinada ao tráfico jurídico – cf. Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal, 2008 p. 677 -, abrangendo tanto a notação produzida por aparelho totalmente automatizado como aparelho que, sendo parcialmente automatizado, careça de intervenção humana para o seu funcionamento.

Sendo assim, não vemos fundamento para excluir da previsão da al. c) do nº1 do art. 258º do C.Penal as situações em que, como se verifica no caso presente, a menção falsa do facto juridicamente relevante derive da intervenção humana no processo parcialmente automático de notação, por considerar-se, como na sentença recorrida, que, in casu, o Arguido não manipulou, não alterou, de nenhuma forma, o processamento automático do aparelho, já que este continuou a registar, em absoluta normalidade o percurso da viatura.

Com efeito, ao introduzir o cartão de um outro condutor em vez do seu, o condutor interfere necessariamente no processo de registo operado de forma parcialmente automatizada pelo tacógrafo (que não dispensa a intervenção humana respetiva), dando assim origem à notação do ”decurso de um acontecimento” falseada quanto à identidade do condutor, que é um dos seus elementos essenciais, com o que preenche os elementos constitutivos do crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258º nº 1 al.c) e 255º al. b), do C.Penal.

Tal como se refere no citado Ac TRP de 16.10.2013, rel. Maria dos Prazeres Silva, em situação similar à que se verifica aqui, “… a interferência exercida no processo de registo do tacógrafo do veículo consubstanciou-se na introdução de um cartão tacográfico pertencente a pessoa diferente do efectivo condutor do veículo e foi em resultado dessa acção que o aparelho produziu uma notação técnica falsa, na medida em registou a condução do veículo por terceiro que não o arguido, seu verdadeiro condutor.”.

É inegável a potencialidade danosa desta conduta, que é igualmente de difícil deteção, pois se a utilização do cartão tacográfico por condutor diferente do seu titular não for detetada durante a condução fraudulenta, dificilmente virá a sê-lo mais tarde, dado que a intervenção do condutor não altera o funcionamento intrínseco do aparelho e a consulta posterior da notação não revela diretamente a “troca de cartões”.

Compreende-se, pois, que o legislador sujeite o condutor a responsabilidade contraordenacional pela “ utilização de cartão de condutor por pessoa diferente do seu titular” no artigo 7º nº3 d) do DL 169/2009 de 31 de julho ao mesmo tempo que ressalva aí expressamente a “responsabilidade criminal” a que houver lugar, deixando à tutela penal o sancionamento da conduta dolosa do condutor, além de outros agentes do crime, diferenciação que apenas reserva expressamente para os comportamentos mais graves previstos no citado nº3 do art. 7º do DL 169/2009.

2.2.2. Concluímos, pois, que ao agir como claramente descrito sob os nºs 1 a 5 da factualidade provada o arguido fez constar falsamente de notação técnica facto juridicamente relevante, o que fez com dolo direto (factos 6 e 7), preenchendo, assim os elementos objetivos e subjetivos do crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258º nº 1 al. c) e 255º al. b), do C.Penal, que lhe vinha imputado, pelo que decide-se revogar a sentença absolutória recorrida e, em substituição, condenar o arguido como autor daquele mesmo crime, passando-se à determinação da medida concreta da pena por força da jurisprudência fixada a tal respeito no Ac STJ 4/2016, uma vez que se julgaram provados factos suficientes para o efeito.

2.3. Nos termos do art. 258º nº2 e 47º nº1, do C.Penal, o crime de falsificação de notação técnica é punível, em alternativa, com prisão até 3 anos ou com pena de multa, entre 10 e 360 dias, pelo que, nos termos do art. 70º do C.Penal, o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Ora, embora as necessidades de prevenção geral não sejam despiciendas, dada a relativa gravidade do crime praticado, nomeadamente em função do maior desvalor da ação traduzido na atuação direta do arguido contra a norma de conduta ínsita na norma penal e os bens jurídicos por ela protegidos, mas também a frequência com que são praticados crimes desta natureza, tal como não são despiciendas as necessidades de prevenção especial, sobretudo em face dos antecedentes criminais do arguido, que regista mesmo a prática de um outro crime de falsificação de documento, entendemos que no caso presente não se mostram esgotadas as potencialidades reintegradoras da pena principal de multa, pelo que se opta pela sua aplicação de acordo com a preferência legal manifestada no art. 70º do C.Penal.

2.4. . Posto isto, procedendo à determinação concreta dos dias de multa a aplicar, de acordo com os critérios estabelecidos no artº 71º do C.Penal (cf art. 47º/1), há que ter em conta as aludidas necessidades de prevenção geral e especial, depondo contra ele os seus antecedentes criminais, nomeadamente por crime da mesma natureza, mas também a gravidade do facto medida pela extensão da viagem que encetara, pois tinha como destino Sevilha, acrescendo ainda o dolo direto com que atuou. A favor do arguido apenas há que ter em conta mostrar-se o mesmo inserido profissional e familiarmente, o que pode contribuir positivamente para que no futuro se afaste da prática de outros crimes, nada mais havendo a relevar no seu comportamento anterior ou posterior ao crime a seu favor. Assim, face ao disposto no art. 71º do C. Penal, entende-se fixar em 240 dias a pena de multa aplicada ao arguido.

Quanto ao seu quantitativo diário, que é determinado entre o mínimo de 5 euros e o máximo de 500 euros em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, tal como estes resultam da factualidade provada, fixa-se o mesmo em 10 euros diários, pois aufere 900 euros mensais como motorista, a sua esposa aufere o suficiente para fazer face às suas necessidades e parte dos encargos familiares (1075 euros mensais), incluindo 350 euros de renda de casa, e não se apuraram encargos determinados com o filho do arguido, maior de idade e estudante.

Decide-se, pois, aplicar ao arguido a pena de 240 dias de multa à razão de 10 euros diários.

DISPOSITIVO
Nesta conformidade, acordam os juízes da 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando a sentença absolutória recorrida e decidindo, em substituição, condenar o arguido, JJ, como autor de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, alínea c), por referência ao artigo 255.º, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa principal à razão de 10 (dez) euros.

Custas pelo arguido nos termos do art. 513º nº1 do CPP, pois decaiu totalmente no recurso a que respondeu.

Évora, 26 de março de 2019

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(António João Latas)
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(Carlos Jorge Berguete)