Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
95/15.2YREVR
Relator: FERNANDO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
CONTUMÁCIA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 07/14/2015
Votação: DECISÃO DO PRESIDENTE DA SECÇÃO CRIMINAL
Texto Integral: S
Sumário: I - A declaração de contumácia pressupõe a prática de determinados trâmites com vista à sua declaração, nomeadamente a designação de data para julgamento e a realização subsequente das diligências exequíveis para conhecimento do paradeiro do arguido.
II - Existindo uma situação de conexão de processos, que correram à revelia do arguido, o qual apenas foi declarado contumaz no âmbito do processo ao qual os demais devem ser apensados, não deve operar-se a apensação dos processos enquanto o arguido não for declarado contumaz em todos eles.
Decisão Texto Integral:

***

1 - No âmbito do processo n.º ---/12.1PATVR, da atual 1.ª Secção Criminal, Juiz 3, da Instância Central de Faro, o arguido A. foi acusado da prática em autoria material de quatro crimes consumados de burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo artigo 222.º, n.º1 do Código Penal.

A acusação foi recebida, vindo o arguido a ser declarado contumaz por despacho de 25 de Junho de 2014.

1.1 -No processo nº ----/12.8TAFAR, da secção criminal, Juiz 1, da Instância Local de Faro, o mesmo arguido foi acusado de crime idêntico praticado em Outubro de 2012.

A acusação foi recebida por despacho de 21 de Maio de 2014, não tendo sido designadas datas para a realização do julgamento.

1.2 -Também no processo n.º ---/13.5PBFAR da Secção Criminal, Juiz 1 da Instância Local de Faro, o mesmo arguido foi acusado e requerido, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º3 do CPP, o julgamento perante tribunal singular, pela prática no mês de Fevereiro de 2013, de dois crimes de burla relativo a trabalho ou emprego, qualificados, p. e p. pelo artigo 222.º, n.º1 e 3, com referência ao artigo 218.º, n.º2, al. b) e d) do Código Penal.

A acusação foi recebida por despacho de 10 de Março de 2015, não tendo sido designadas datas para a realização do julgamento. Determinou-se no mesmo despacho, a remessa destes autos para apensação ao processo n.º ---/12.1PATVR.

1.3 - Por despacho proferido em 10 de Março de 2015 no processo ----/12.8TAFAR, a Meritíssima Juíza da referida secção criminal, ao abrigo do disposto nos artigos 25.º, 27.º e 29.º do CPP, determinou também a apensação dos autos ao processo comum coletivo n.º ---/12.1PATVR da 1.ª Secção Criminal da Instância Central de Faro, para efeitos de julgamento conjunto

1.4 - A Meritíssima Juíza a quem foi distribuído o processo ---/12.1PATVR, por despacho de 10-04-2015, ordenou, por sua vez, a desapensação e devolução dos processos referidos em 1.1 a 1.3 à instância local, dizendo, no essencial, que em nenhum dos processos que foram apensados o arguido prestou termo de identidade e residência ou sequer foi notificado das acusações e dos respetivos despachos que as receberam, sendo certo que a declaração de contumácia já decretada no processo principal não aproveita aos apensos; não obstante a eventual conexão subjetiva, não podem ser apensados aqueles autos processos onde o arguido não esteja declarado contumaz, porque a declaração de contumácia já existente impede essa conexão, pois constitui causa de cessação da conexão; estando o processo suspenso, não cabe declarar a contumácia relativamente a apensos, sendo certo que estes perdem autonomia e, no principal, já está declarada.

1.5 - Recebidos os autos, a Meritíssima Juíza da instância local, por despacho de 30-04-2014, considerou que a declaração de contumácia não impede a apensação de processos quando se verifica uma situação de conexão, podendo ser praticados no processo principal, enquanto perdurarem os efeitos da contumácia, todos os atos processuais com vista à localização do arguido. Cita em abono da posição que assumiu os acórdãos da Relação do Porto de 29-03-2000 e 20-12-2000, de que foram relatores os Exmos Juízes Desembargadores Marques Salgueiro e Neves Magalhães, respetivamente.

1.6 - Por sua vez, a Meritíssima Juíza 3 da 1.ª Secção Criminal da Instância Central de Faro no despacho em que suscita a resolução do conflito, evidencia a falta de designação de datas para julgamento nos processos n.ºs ----/12.8TAFAR e ---/13.5PBFAR e que a declaração de contumácia referente a esses processos apenas pode ter lugar no âmbito dos mesmos, precedendo designação de data para julgamento. Assim, entende não ser competente para o julgamento dos sobreditos processos, pelo menos enquanto neles não for declarada a contumácia do arguido.

1.7 - Com o trânsito em julgado dos despachos referidos em 1.2 a 1.4, certificados nos autos foi suscitado o conflito negativo de competência.

Neste Tribunal, foi cumprido o disposto no artigo 36,º, n.º1 do CPP.

O Exmo. Senhor Procurador-geral adjunto tomou posição no sentido de que a apensação de processos que se encontram em conexão só deve ter lugar depois da declaração de contumácia em todos os processos, pelo que os processos apensados devem correr autonomamente enquanto tal não se verificar.

Os autos encontram-se devidamente instruídos, sendo que não se recorta, em nosso entender, a necessidade de recolha de mais provas para além do material probatório existente nos autos.

2 - Entrando no conhecimento do mérito, impõe-se dizer que o pressuposto essencial da emergência efetiva de um qualquer conflito de competência, é, em qualquer caso, a certeza de que uma das entidades conflituantes disponha da competência que enjeita (no caso de conflito negativo), ou dela não disponha, quando a ela se arroga (no de conflito positivo).

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 34.º do C.P.P., há conflito negativo de competência quando, em qualquer estado do processo, dois ou mais tribunais, de diferente ou da mesma espécie, se consideram incompetentes para conhecer dos mesmos crimes imputados ao mesmo arguido. E é precisamente o que sucede no caso em apreciação.


A competência por conexão que está na génese deste conflito pode definir-se como a competência para o processamento conjunto de uma pluralidade de crimes conexos. Não há, pois, um processamento conjunto válido sem competência por conexão ou sem aplicação de regras de competência por conexão.

Ao instituto da competência por conexão são apontadas, como principais razões de ser, a economia processual (evitando a multiplicação de atos e diligências semelhantes), o mais completo esclarecimento dos factos, a harmonia dos julgados e melhor aplicação da regra da punição do concurso de crimes.

Reportam-se todos os processos a crimes da mesma natureza (burlas relativas a trabalho ou emprego) imputados ao mesmo agente e que ocorreram na área da mesma comarca, tendo todos corrido em separado até à fase de julgamento.

E, de facto, no caso vertente, afigura-se-nos inequívoca a conexão entre os processos em análise, tanto quanto é certo verificar-se, relativamente aos mesmos, uma unidade de agente (conexão subjetiva) e a exigida identidade de competência territorial do tribunal – cf. artigo 25.º do CPP – sendo competente para conhecer de todos o tribunal com sede na mesma comarca de espécie mais elevada, no caso a Secção Criminal da Instância Central de Faro, da comarca de Faro, onde foi distribuído um dos processos, que funciona como tribunal coletivo – art.27.º do CPP - não sendo de aplicar aqui os critérios do artigo 28.º, que são manifestamente de aplicação subsidiária, tendo como pressuposto a não aplicação das regras estabelecidas nos artigos anteriores.

Reconhecida a conexão de processos, que foram instaurados separadamente, procede-se à sua apensação de todos ao processo determinante da competência por conexão – artigo 29.º, n.º2 do CPP.

A partir do momento da apensação dos processos a continuidade processual e os atos de sequência passam a ser praticados num só processo, que é então o processo principal, isto é, no processo que determinou a competência por conexão [Henriques Gaspar, Anotação ao artigo 29.º do Código de Processo Penal Comentado].

A controvérsia coloca-se em relação ao “timing” da apensação.

Estamos perante três processos em fase de julgamento e apenas num deles (aquele a quem os demais processos foram apensados) o arguido foi declarado contumaz, com as consequências jurídicas daí decorrentes, nomeadamente da interrupção e suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal – cf. artigo 120.º, n.º1, al, c) e 3 e 121.º, n.º1, al. c), do Código Penal.

Nos demais processos remetidos para apensação essa situação ainda não ocorreu, mas tudo aponta que essa será a única via a seguir.

O processo com arguido em vias de ser declarado contumaz dá lugar a uma tramitação "autónoma e especial", nos procedimentos e nas consequências, dentro da fase de julgamento, pelo que se tem de considerar também como uma fase (uma situação) autónoma das restantes fases. Ou, pelo menos ou mais precisamente, como uma subfase dentro da fase de julgamento.

A declaração de contumácia pressupõe a prática de determinados trâmites com vista à sua declaração, nomeadamente a designação de data para julgamento, como decorre do n.º1 do artigo 335.º do CPP.[1]

Com efeito, não pode haver declaração de contumácia sem a prévia designação de data para julgamento e a realização subsequente das diligências exequíveis para conhecimento do paradeiro do arguido.

De acordo com o artigo 335.º, n.º 3 do CPP a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de atos urgentes nos termos do artigo 320.º - cf., quanto aos atos urgentes, o disposto no art.103-º, n.º2 do CPP.

Isto significa, salvo melhor opinião, que podem ser praticados atos que visem a apresentação e/ou a detenção do arguido, mormente os que tenham a ver com a sua localização e que visem por termo à situação de contumácia, ou que se aprecie uma eventual extinção do procedimento criminal, como questão que poderá obstar ao conhecimento do mérito da causa, mas não outros quaisquer para lá dos urgentes.

Por conseguinte, crê-se que, enquanto não operar a caducidade da declaração de contumácia, não poderá ocorrer nesse processo a marcação de data para julgamento, com vista a uma eventual declaração de contumácia nos processos que a este foram apensados. Essa designação apenas poderá ocorrer em cada um dos processos em que se frustre a realização do julgamento por não se ter logrado notificar o arguido.

Com efeito, se o procedimento que conduz à declaração de contumácia se iniciou quando se constatou a impossibilidade de notificar o arguido do despacho que designou dia para a audiência e se essa declaração implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, não pode ser designada nova data para a audiência sem que interceda um desses dois factos: apresentação ou detenção do arguido no âmbito desse processo.

A manter-se a apensação dos processos ---/13.5PBFAR e ----/12.8TAFAR ao processo onde o arguido já foi declarado contumaz, ela poderá representar um risco para a pretensão punitiva do Estado, pois, não se estendendo os efeitos da declaração de contumácia aos processos onde ela não foi declarada, a menos que o arguido venha também a ser declarado contumaz em relação aos crimes objeto desses processos, existirá um sério risco de que venha a prescrever o procedimento criminal, já que o arguido permanece, desde o seu início, numa situação de absoluta revelia, sem que, em relação a tais crimes, opere qualquer causa de interrupção ou suspensão do procedimento criminal.

E tal circunstância constitui, de per si, causa suficiente para motivar a separação de processos que hajam sido apensados - art.30.º, n.º1, al. b) do CPP.

Para além disso, a declaração de contumácia tem como efeitos, em caso de conexão de processos, a separação daqueles em que tiver sido proferida (artigo 335.º, n.º4 do CPP), ou seja, constitui causa de cessação da conexão.

Por outro lado, importa considerar que um processo contra arguido ainda não declarado contumaz e um processo contra arguido já contumaz não estarão, para o efeito do disposto no n.º2 do artigo 24.º do CPP, na mesma situação/fase.

A partir da declaração de contumácia em todos os processos em conexão, nada impedirá a apensação de todos eles, porquanto, estando todos na mesma situação, fará todo o sentido concentrar a procura do arguido num tribunal único, que afinal será o competente para o julgamento conjunto, do que dispersá-la por vários tribunais, com grande dispêndio desnecessário de recursos e de esforços.[2] E podendo até dar-se o caso, assim não se procedendo, de se conseguir julgar o arguido nuns processos, continuando a considerá-lo contumaz nos outros. O que não faria sentido e ficaria incompreendido num sistema de justiça teoricamente uno, frustrando os objetivos que estão pressupostos pelo legislador na competência por conexão.

Não desconhecemos a jurisprudência citada nas decisões em conflito, mas cremos que no caso subjudice a melhor solução passa pela tramitação autónoma dos processos enquanto o arguido não for declarado contumaz em todos eles.

Só deve operar-se a apensação quando nos processos em causa o arguido for declarado contumaz e se cumprirem os termos subsequentes à eficácia dessa declaração.

3 – Em face do exposto decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para a tramitação dos processos n.ºs ----/12.8TAFAR e ---/13.5PBFAR, enquanto não for declarada aí a contumácia do arguido e cumpridos os ulteriores trâmites referentes à sua eficácia, à senhora juíza da Secção Criminal da Instância Local de Faro a quem os autos foram distribuídos.

Cumpra-se o n.º 3 do artigo 36.º do CPP, comunicando-se a decisão ao Exmo. Senhor Juiz Presidente da Comarca de Faro.

(Processado por computador e revisto pelo relator que assina)

Évora, 14 de Julho de 2015

Fernando Ribeiro Cardoso

[1] - Neste sentido, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 4 de Novembro de 2010 e 22 de Novembro de 2012, citados pela senhora juíza da Instância Central de Faro. No mesmo sentido, o acórdão da mesma Relação de 5-12-2006, in processo n.º 8666/2006-5.ª Secção.

[2] - Além disso, o n.º4 do artigo 335.º do CPP, que determina a separação de processos em que tiver sido proferida a declaração de contumácia, tem como pressuposto a existência de outros processos conexos que hajam de prosseguir, não impedindo, por conseguinte, que se mantenham apensados processos conexos referentes ao mesmo agente quando em todos eles tiver sido declarada a contumácia do mesmo, ou que, posteriormente, venham a ser-lhe apensados processos referentes ao mesmo agente e que se encontrem na mesma situação.