Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
703/10.1GBSLV.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: RECUSA A DEPOR
PROVA PROÍBIDA
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A recusa em depor, nos termos do artigo 134º, nº 1 do Código de Processo Penal, pode ser parcial, no caso por referência ao tempo da vivência em comum.
A protecção legal da recusa manifestada não pode ver-se subvertida pela circunstância de a testemunha, certamente pelo seu próprio desconhecimento das formalidade legais e suas implicações, vir posteriormente à recusa a mencionar factos incluídos no âmbito desta.

Embora a leitura das declarações prestadas em inquérito tenha tido legal cobertura, a valoração das mesmas não é aceitável, uma vez que ficaram inquinadas pela então recusa da testemunha, enquanto prova proibida e não por violação das garantias de defesa e do contraditório

Decisão Texto Integral:



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Proc. n.º 703/10.1GBSLV.E1
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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o número em epígrafe, que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido FARG, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, e 132.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal (CP) e de um crime de violência doméstica, p. e p. pela alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do art. 152.º do CP.
Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, peticionando a quantia de € 236,30, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da prestação de cuidados de saúde até integral pagamento.
O arguido não apresentou contestação.
Realizado julgamento e proferido acórdão, decidiu-se:
- julgar procedentes a acusação e o pedido de indemnização civil e, em consequência,
- condenar o arguido:
- pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pela alínea a) do n.º 1 do art. 145.º do Código Penal (CP), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pela alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do art. 152.º do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- na pena única de 5 (cinco) anos de prisão;
- no pedido de indemnização civil.

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo as conclusões:
1. O Recorrente não se conforma com a condenação dos autos e impugna-a, em matéria de facto e de direito, nos termos e com os fundamentos que se seguem.
2. Impugnam-se os factos dados como provados e descritos no 9º, 10º e 11º parágrafos de fls. 395 do Acórdão ora em crise, por, no entendimento do Recorrente, não terem resultado de prova produzida em audiência de julgamento.
3. A decisão final baseia-se em provas que o Tribunal a quo estava impedido de valorar, designadamente as declarações prestadas em inquérito pela testemunha JF e pela testemunha NF .
4. A testemunha JF faltou à audiência de julgamento e foi, logo no início da sessão, prescindida pelo Ministério Público, conforme consta da respetiva ata de fls. 382 a 386.
5. O Tribunal a quo não podia valorar declarações de testemunha que o Ministério Público prescindiu como prova da sua acusação.
6. A testemunha JF faltou à 1ª sessão de julgamento porque não foi devidamente notificada, pelo que as suas declarações prestadas em inquérito não podiam, sem mais, ser lidas em audiência.
7. Ao valorá-las, o Tribunal violou o disposto no art. 356º nº 4 do CPP, que apenas permite a leitura de declarações anteriores “se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento”.
8. Independentemente do consentimento dado em audiência para a leitura destas declarações, as mesmas nunca poderiam ter ocorrido, já que a sua leitura viola manifestamente o disposto nos nº 1 do art. 355º e nº 1 e 4 do art. 356º do CPP.
9. As declarações da testemunha JF e da testemunha NF , ambas prestadas em inquérito, não podiam ser valoradas tal como efetuado pelo Tribunal a quo, pois que a sua leitura viola também o disposto no art. 355º, 356º nº 6 do CPP e o disposto nos nº 1 e 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa (CRP), uma vez que essas declarações não foram sujeitas a qualquer contraditório pela defesa do arguido.
10. As declarações destas testemunhas também não poderiam ser valoradas uma vez que foi violado o disposto no art. 356º nº 6 e 134º do CPP.
11. A testemunha JF, filho do arguido, poderia sempre, em audiência de julgamento, recusar-se a depor (cfr. art. 134º CPP) sendo que neste caso, nos termos do nº 6 do art. 356º do CPP, as suas declarações anteriores também não podiam ser lidas, mesmo com a não oposição dos sujeitos intervenientes.
12. Por seu turno, e conforme consta do auto de declarações da testemunha NF de fls. 79, constata-se que a mesma recusou prestar declarações nos termos do art. 134º do CPP e ainda assim foram as mesmas registadas.
13. O art. 134º do CPP não inclui a possibilidade de recusa parcial de depoimento, pelo que as declarações prestadas em inquérito pela testemunha NF também não poderiam ser valoradas nos termos do disposto no art. 355º e 356º nº 6 do CPP.
14. Ao valorar as declarações destas testemunhas, o Tribunal a quo violou, pois, o disposto nos art. 355º e 356º do CPP e art. 32º nº 1 e 5 da CRP.
15. Finalmente, as declarações da testemunha NF produzidas em inquérito não poderiam ser valoradas de forma independente daquelas que são prestadas em julgamento, perante o juiz, na presença de todos os sujeitos processuais e submetidas a contraditório.
16. Acresce que em momento algum o Tribunal a quo explica por que motivo acredita nas declarações prestadas em inquérito e não acredita nas declarações prestadas em audiência de julgamento, quando, na verdade, estas são coerentes com os demais indícios, são credíveis, prestadas com espontaneidade, sem a pressão da presença do Arguido, e sujeitas às instâncias de todos os sujeitos processuais.
17. Não podendo as declarações prestadas em inquérito ser valoradas, os demais elementos de prova não são suficientes para demonstrar a prática dos factos pelos quais vem o arguido Recorrente acusado, devendo o mesmo ser absolvido.
18. Sem prescindir, entende o Recorrente que a integralidade das suas declarações bem como dos depoimentos das testemunhas da acusação produzidas em audiência não revelam a prática de qualquer crime pelo Arguido.
19. Pelo contrário, a primeira testemunha nega terem ocorridos os factos ali descritos e a segunda testemunha não tem conhecimento direto dos mesmos.
20. Acresce que as concretas passagens supra identificadas destas testemunhas igualmente impunham uma decisão de absolvição do Recorrente, pois que além de coerentes com os demais indícios, foram produzidas de forma livre e sem qualquer pressão de quem quer que seja, e negando perentoriamente a sua ocorrência dos factos descritos na acusação.
21. Assim, os factos identificados supra e constantes dos parágrafos 9º a 11º de fls 395 não deviam ter sido considerados provados porque contrários à prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
22. Sem prescindir, entende o Recorrente que a pena concretamente aplicada ao Arguido é desproporcional à ilicitude e culpa decorrentes dos factos dados como provados e dos elementos de prova resultantes dos autos.
23. Tudo considerado, entende o Recorrente que as medidas parcelares e a pena única aplicada pelo Tribunal a quo são excessivas e, por isso, violadoras do disposto nos art. 70º e 71º do CP.
24. Por outro lado, o Tribunal a quo ignorou completamente as circunstâncias concretas da vida do Arguido, a saber: que não reside com a sua companheira há mais de 4 anos (mesmo antes de ter sido preso); que os seus filhos são já adultos ou adolescentes e que com ele não convivem; não considerou o relatório social na sua integralidade.
25. Relativamente ao relatório social, deveria ter sido valorado que o Recorrente teve uma vida sofrida desde a infância; Teve contexto socio-familiar de origem muito carenciado; É praticamente analfabeto; É tido como um indivíduo simples, muito ligado à família, advindo uma imagem social mais negativa da suspeita dos seus sucessivos envolvimentos em transgressões e crimes de natureza apropriativa, basicamente crimes rodoviários e furtos; Não é referenciado como um indivíduo violento ou causador de conflitos interpessoais.
26. Por tudo o exposto, a pena aplicada deveria ter sido suspensa na sua execução nos termos do art. 50º do Código Penal.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, E EM CONSEQUÊNCIA ABSOLVER-SE O ARGUIDO DOS CRIMES PELOS QUAIS FOI CONDENADO, FAZENDO ASSIM INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1- Não contém o Douto Acórdão impugnado qualquer erro de julgamento da matéria de facto, ou outro vício que o inquine.
2- A matéria constante na fundamentação do Douto Acórdão provou-se de modo inequívoco, não se justificando qualquer alteração.
3- As provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento foram avaliadas pelo Tribunal “a quo” no seu todo e segundo o que preceituam os arts.124º a 127º, do Código de Processo Penal, entre outros preceitos legais.
4- O recorrente questiona os factos dados como provados constantes dos parágrafos 9º, 10º, e 11º, de fls.395, do Douto Acórdão, por resultarem de provas que o Tribunal estava impedido de valorar e não terem sido produzidas em audiência de julgamento.
5- Porém, não assiste razão ao arguido, uma vez que a sua Ilustre Defensora, não se opôs à leitura das declarações prestadas em inquérito pela testemunha JF, como se retira da acta da audiência constante de fls.382 a 386, dos autos, não podendo agora em sede de recurso vir questionar algo, a que quando era legalmente oportuno, não se opôs, art.356º, do Código de Processo Penal.
6- Por outro lado a testemunha NF prestou declarações, após ter ser advertida pelo Mmo Juiz que podia não depor, ao abrigo do consignado no art.134º, do Código de Processo Penal, não procedendo também aqui a argumentação do recorrente, como se retira da acta de audiência constante de fls.382 a 386.
7- Não foi violado pelo Tribunal “ a quo” o disposto no art.356º, ou qualquer outro preceito do Código de Processo Penal, sendo a condenação do recorrente o resultado da conjugação de provas legais, produzidas e analisadas em sede da audiência de julgamento.
8- O Douto Acórdão que o arguido impugna não viola o disposto no art.32º, ou outro preceito da Constituição da República Portuguesa, tendo o arguido sido condenado com base em provas legalmente produzidas, bastantes e adequadas, embora o Douto Acórdão ainda não tenha transitado em julgado e esteja a ser impugnado, tudo em conformidade com as normas legais em vigor.
9- Não se vislumbram nos autos quaisquer elementos que tivessem de ser indagados e não foram, necessários para se formular um juízo de condenação ou absolvição do arguido, e não ocorreu do Douto Acórdão o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sendo perfeitamente legal, sensato, adequado e comum, atribuir-se mais credibilidade a uns depoimentos que a outros, tudo dependendo das circunstâncias em que eles são prestados, como são prestados e como são avaliados, embora se compreenda que o recorrente possa ter opinião distinta.
10- Analisado o Douto Acórdão recorrido infere-se que não contém qualquer contradição entre os factos provados, não é insuficiente, nem deveria ter uma decisão distinta.
11- É inquestionável que a convicção do Tribunal “a quo” ao analisar e valorar a prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, foi distinta da opinião do arguido, mas tal só por si, não acarreta qualquer erro, ilegalidade ou inabilidade.
12- Veja-se a título exemplificativo o que se diz em nota de rodapé no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto:
“Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, proc. nº 05A2007, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe”. In www.dgsi.pt, Acórdão do TRP, de 26-3-2014, proc.201/08.3TASJM.P1.
13- Analisado o Douto Acórdão recorrido de um modo lógico, afigura-se-nos que não contém qualquer contradição entre os factos provados, não é insuficiente, nem deveria ter uma decisão distinta.
14- Não ocorre no Douto Acórdão qualquer dos vícios previstos no art.410º, do Código de Processo Penal.
15- Analisada a douta decisão impugnada pelo recorrente infere-se que não enferma de "erro notório na apreciação da prova”, o qual vem sendo entendido de forma unânime pela doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias”. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova. E, não se confunda este alegado vício com a discordância acerca da forma como o tribunal fixou a matéria de facto pois, no campo da apreciação das provas, é livre a forma como o Tribunal forma a sua convicção. Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art. 127º, do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
16-É evidente que o recorrente não desconhecerá que o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório" (Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1.º vol., fls. 211).
17- Também não se desconhece que “ao contrário do que se passa no processo civil, em que basta a existência de uma «probabilidade prevalecente», em processo penal deve adoptar-se um padrão mais exigente, nomeadamente o de origem anglo-saxónica, da «prova para além de qualquer dúvida razoável”.
18- Diga-se também que o Tribunal “a quo” fez um exame crítico da prova, explicando as provas que considerou, como e porquê as valorou, não procedendo os argumentos do recorrente.
19- O arguido foi condenado por duas vezes em penas de prisão, por condução sem habilitação legal, em 1991 e 1992, tendo sido ainda condenado em 1993 por falsas declarações. Em 1994 foi também condenado em pena de prisão pela prática de crime de ofensas corporais perigosas e condução ilegal.Em 1996 foi condenado na pena de 2 anos de prisão, por crime de furto qualificado. Em 2001 e 2005 foi condenado pela prática de crime de condução ilegal, em penas de prisão suspensas na execução. Em 15.12.2008 foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de crime de furto qualificado, cometido em 12.3.2007.
20- Pretende o recorrente que lhe seja aplicado o instituto da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art.50º, e seguintes do Código Penal.
21- Contudo, o Tribunal “a quo” não suspendeu na execução a pena de prisão aplicada ao arguido, uma vez que dada a gravidade dos factos praticados pelo recorrente, os seus antecedentes criminais, a circunstância de não ter admitido a prática dos factos objecto do processo e os imperativos da prevenção geral e especial, não foi possível “concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizassem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, art.50º, e seguintes do Código Penal.
22- O Tribunal “a quo” teve em consideração para a escolha e medida das penas aplicadas ao arguido todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º e 71º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a prisão efectiva adequada às circunstâncias que abonam a favor e contra o arguido e em sintonia com a respectiva culpa, devendo manter-se nos precisos termos que constam do Douto Acórdão.
23-Assim, por que não enferma de nenhum vício ou nulidade, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis do Direito Constitucional e Criminal, dever-se-á manter na íntegra o Douto Acórdão.
Deve o Douto Acórdão recorrido manter-se na íntegra.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que o recurso não merece provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, de harmonia com o art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com nulidade do acórdão (art. 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário Secção Criminal STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ: de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt ; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321.
Delimitando-o, reside, pois, em analisar:
A) - da proibição de valoração de provas;
B) - da impugnação de matéria de facto;
C) - da redução da medida das penas;
D) - da suspensão da execução da prisão.
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No que ora releva, consta do acórdão recorrido:
Factos provados:
FARG e NF viveram como se de marido e mulher se tratasse, partilhando a mesma mesa, cama e habitação desde data não concretamente apurada do ano de 1992 até data não concretamente apurada do ano de 2010, mas posterior a 26.9.2010;
Durante o período em que residiram juntos fixaram residência em Santo Tirso e, pelo menos, no ano de 2010, já em S;
Desse relacionamento nasceram;
JR nasceu no dia 21 de Outubro de 1993;
Durante o período em que residiram juntos, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida NF e agrediu-a com recurso a paus, cordas e outras ferramentas que encontrasse, no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos, menores;
No dia 26 de Setembro de 2010, cerca das 18 horas, o arguido, dirigiu-se ao filho JR , que se encontrava na parte exterior da casa onde moravam - no Sítio do B - M -, agarrou-o pelos braços e arrastando-o, conduziu-o para o interior daquela residência, onde se muniu de um candeeiro e lhe desferiu uma pancada com tal objecto, atingindo-o na cabeça;
De seguida, o arguido, apercebendo-se que NF se dirigia a si, em auxílio do filho, desferiu-lhe um murro, atingindo-a no olho e fazendo-a cair no chão;
Com o comportamento descrito o arguido provocou no ofendido JR ferida inciso contusa na região occipital e equimoses dispersas, pelas quais nesse dia recebeu assistência hospitalar no Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, com o valor de 119,90 euros;
Com o comportamento descrito o arguido provocou na ofendida NF edema e hematoma peri-orbital direito, escoriações várias e dor na grelha costal esquerda, pelas quais nesse dia recebeu assistência hospitalar no Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, com o valor de 116,40 euros;
Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir JR , no seu corpo e saúde, provocando-lhe as lesões supra descritas, resultado que representou e concretizou, bem sabendo que se tratava do seu filho, e que ao actuar da forma descrita, agia com total desrespeito pela relação familiar que existe entre os dois;
Mais agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado, de maltratar a ofendida NF, o que conseguiu, atingindo-a e lesando a sua integridade física e mental, bem sabendo que, ao agir da forma descrita a submetia a sofrimento tisico e psicológico, resultado este que representou, bem sabendo que se tratava da sua companheira, que se encontrava no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos de ambos, menores;
O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
O arguido foi condenado em penas de prisão, por condução sem carta, por duas vezes, em 1991 e 1992, tendo-o sido ainda em 1993 por falsas declarações. Em 1994 foi condenado também em pena de prisão pela prática de crime de ofensas corporais perigosas e condução ilegal. Em 1996 foi condenado em pena de 2 anos de prisão, por crime de furto qualificado. Em 2001 e 2005 foi de novo condenado pela prática de crime de condução ilegal, em penas de prisão suspensas na execução. Em 15.12.2008 foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de crime de furto qualificado, cometido em 12.3.2007;
Em audiência negou os factos que cometeu, insinuando que teriam sido os militares da GNR os agressores da sua companheira;
O arguido assinala um contexto sócio-familiar de origem muito carenciado, proveniente de um meio rural do Baixo-Alentejo. Foi o penúltimo de 8 irmãos. Os primeiros anos foram marcados ou pela violência doméstica e alcoolismo do progenitor ou pela ausência deste, periodicamente emigrado. Em razão da carência económica, foi criado em contexto institucional (Casa Pia de Beja) dos 7 aos 10 anos, junto a alguns dos irmãos. Logo que a mãe conseguiu reorganizar a sua vida,
voltou para junto dela, integrando a família recomposta com o padrasto, com quem veio a ter uma boa relação;
Praticamente analfabeto, já que não concluiu sequer o 1º ciclo na idade própria, ainda criança passou a acompanhar a família no trabalho do campo e a guardar gado na herdade onde o padrasto era quinteiro. Esta situação veio a terminar cerca dos 17 anos, na sequência de um acidente rodoviário que vitimizou o padrasto, impedindo-o de continuar naquelas funções. Foi então que, junto a um dos irmãos, tomou a iniciativa de migrar para o Algarve, onde encontrava melhor oferta de trabalho, iniciando-se na construção civil. Teve percurso basicamente activo, ainda que indiferenciado e instável, alternando trabalhos de servente, assalariado agrícola e ajudante de mecânico;
Cerca dos 25 anos encetou a vida em comum com NF , 10 anos mais nova. Antes o arguido já tinha experienciado uma relação marital, tendo sido pai de dois filhos, actualmente com 25 e 22 anos, separando-se definitivamente quando conheceu NF . Conheceu-a no contexto do trabalho numa campanha agrícola no Algarve. Quer o próprio, quer a companheira não reconhecem a oportunidade ao presente processo. Atribuem os maiores contratempos da vida familiar à alegada intromissão de serviços, designadamente a CPCJ depois das ocorrências na base da presente acusação;
O arguido afirma que à data dos factos se debatia com dificuldades em controlar o filho mais velho e censura os mecanismos de promoção e protecção por o acusarem ao invés de o apoiarem em medidas de correcção do jovem. Quanto às questões da violência conjugal, são no presente negadas/desvalorizadas pelos dois elementos do casal. Têm crenças e valores arreigados a legitimar a punição fisica como prática educativa, bem como legitimação e banalização da pequena violência na vida conjugal, por parte de ambos. A vida familiar é avaliada em moldes satisfatórios, com elevada coesão, sendo a intromissão de terceiros considerada um transtorno;
O arguido no seu meio é tido como um indivíduo simples, muito ligado à família, advindo uma imagem social mais negativa da suspeita dos seus sucessivos envolvimentos em transgressões e crimes. Do seu trato, em particular do observável em meio prisional, ressaltam-se aspectos enquadráveis nalgumas dificuldades de controlo da raiva, sendo um indivíduo basicamente negativo/crítico aos outros nas interacções que estabelece, embora não propriamente pessoa violenta;
Encontra-se desde Novembro/2013 em cumprimento da condenação de 4 anos e 6 meses de prisão. Tem contado com o apoio efectivo da companheira, que o visita regularmente, não havendo qualquer sinal/intenção de perspectivar o futuro em separado. São pessoas referenciadas junto dos serviços pela carência económica, beneficiários das possíveis prestações sociais, entre o RSI e os contributos em géneros. Actualmente NF frequenta um curso de costura ministrado no Pólo de Formação de S, do qual aufere subsídio equivalente ao Salário Mínimo Nacional. O filho mais velho, JF, encontra-se agora fora do agregado, junto de familiares no Montijo. Os dois descendentes mais novos, de 9 e 7 anos foram recentemente retirados à família, por determinação judicial e colocados provisoriamente em meio institucional, dada a sinalização do risco. Esta medida é fundamentada na significativa incapacidade familiar em assegurar devidamente os cuidados educativos, tendendo todos os descendentes a evoluir para comportamentos problemáticos em meio escolar. Nenhum dos progenitores reconhece também a oportunidade desta medida de promoção e protecção;
Na altura da primeira reclusão frequentou a escola em meio prisional e concluiu o 1º ciclo. Depois das múltiplas condenações, acaba por tirar a carta de condução, em 1998.

Motivação:
Formou o tribunal a sua convicção, no que respeita à actuação do arguido, com base nos testemunhos prestados em inquérito por NF e JR , que tiveram conhecimento directo dos factos. Tais testemunhos, quanto ao sucedido em 26.9.2010, estão solidamente apoiados nos relatórios hospitalares de fls. 225 e 228, aliados ao testemunho prestado em audiência pelo militar da GNR que acorreu ao local naquele dia e que se apercebeu que o arguido havia agredido a mulher e o filho pelo que estes então lhe contaram e pelo que observou, tal como relatou em audiência.
As relações de parentesco e demais elementos identificativos dos membros da família resultam das correspondentes certidões e as despesas hospitalares dos respectivos documentos.
O mais apurado resulta do CRC do arguido e do relatório social.

Medida das penas:
Há que apreciar, à luz do artº 71º do Código Penal, a culpa do arguido, bem como a sua personalidade e todas as circunstâncias que rodearam os factos, para, pesando as necessidades de prevenção geral e especial, encontrar as concretas medidas das penas, dentro daquelas molduras abstractas e na medida da culpa do arguido.
A ilicitude do crime de violência doméstica é muito elevada, atendendo ao tempo de duração do mesmo. Igualmente elevada é a ilicitude do crime de ofensas à integridade física, já que o arguido excedeu de longe o mínimo necessário ao preenchimento do tipo (tomando-o evidentemente como qualificado).
O dolo é intenso e persistente, para além de directo.
O passado criminal do arguido tem também forte pendor agravante, aliado à circunstância de não ter demonstrado qualquer resquício de arrependimento, não se coibindo de levantar falso testemunho contra quem interveio no exercício das suas funções, naturalmente, para repor a ordem.
Apenas a capacidade de inserção demonstrada pelo arguido no passado é apta a funcionar como atenuante de relevo.
Mostram-se por isso justas por adequadas e proporcionais à culpa do arguido as penas de 3 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de violência doméstica e a de 2 anos e 6 meses de prisão, pelo restante.
Nos termos dos artºs 77º e 78º do Código Penal os crimes pelos quais o arguido deverá ser condenado encontram-se em relação de concurso, pelo que se procederá ao cúmulo das respectivas penas.
O limite máximo da pena única aplicável é de 6 anos de prisão.
O limite mínimo é o de 3 anos e 6 meses de prisão.
Atendendo ao conjunto dos factos provados e à personalidade do arguido revelada por aqueles, mostra-se justa por adequada a pena única de 5 anos de prisão.
O passado criminal do arguido e sobretudo a sua contumácia em aceitar o desvalor da sua conduta, já que valoriza aquele tipo de punição física como prática educativa, tal como a “pequena” violência na vida conjugal, impedem um juízo de prognose positiva acerca da sua postura futura relativamente aos seus filhos e à sua companheira, não sendo razoável concluir que a ameaça de pena e a censura do facto serão bastantes para o afastar da criminalidade, pelo que a execução da pena não deverá ser suspensa, nos termos do artº 50º do Código Penal.
*

Apreciando:

A) - da proibição de valoração de provas:
O recorrente manifesta a sua discordância em que tenham sido valorados os testemunhos prestados em inquérito por NF e JF (este indicado no acórdão, por lapso, como “JR ”), concluindo que não o poderiam ter sido.
No tocante ao depoimento de JF, fundamenta que o Ministério Público prescindiu, em audiência, do mesmo, que não compareceu por não se encontrar notificado, considerando terem sido violados os arts. 355.º, n.º 1, e 356.º, n.ºs 1 e 4, do CPP, além que, como seu familiar próximo, poderia sempre, em audiência, recusar-se a depor (arts. 134.º e 356.º, n.º 6, do CPP).
Relativamente ao depoimento de NF , invoca que a sua recusa, no inquérito, em depor, não obstou a que a diligência prosseguisse, o art. 134.º do CPP não inclui a possibilidade de recusa parcial de depoimento e a leitura de declarações não deve ser valorada independentemente daquelas que foram prestadas em audiência.
Quanto a ambos os depoimentos, por não se respeitarem, desse modo, as garantias de defesa e do contraditório, por referência ao disposto nos arts. 355.º e 356.º, n.º 6, do CPP e 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O Ministério Público entende que o recorrente não tem razão, essencialmente dada a não oposição à leitura das declarações e ao prévio cumprimento da advertência a que alude o art. 134.º do CPP.
Vejamos.
A problemática colocada releva em matéria de legalidade das provas convocadas, inserindo-se como autónoma relativamente ao tratamento processual das nulidades, em sintonia com o disposto no art. 118.º, n.º 3, do CPP, merecendo, por isso, apreciação, ainda que em sede de recurso de decisão final, como aqui sucede.
Conforme Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, págs. 11/12, as proibições de prova estão hoje legalmente consagradas com a autonomia, generalidade e consistência que permitem perspectivá-las como uma das construções basilares da dogmática processual penal. É o que revela o disposto no art. 118º nº 3, do Código de Processo Penal (CPP). Por outro lado e complementarmente, a lei positiva portuguesa prescreve e regulamenta expressamente um vasto espectro de expressões concretas de proibição de prova.
Em sentido idêntico, João Conde Correia, in “Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais”, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Ivridica, 44, Coimbra Editora, 1999, págs. 156/161, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 299, e Paulo Sousa Mendes, in “As Proibições de Prova no Processo Penal”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 147.
Das proibições de prova se distingue, em rigor, a violação das regras de produção da prova, esta, cominada de nulidade, de acordo com terminologia usada em muitos preceitos, embora, nem sempre, de forma esclarecedora e correcta (João Conde Correia, ob. cit,, págs. 27/28).
Decorre do acórdão que o tribunal, no âmbito em questão, valorou prova produzida em inquérito, sendo que, não obstante o princípio da imediação, consagrado no art. 355.º do CPP, no sentido de que só valem as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, se admite a valoração de provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, remetendo, no que ora interessa, para as regras a que essa leitura tem de obedecer, em sintonia com o art. 356.º do CPP, sem prejuízo da faculdade de recusa em depor constante do art. 134.º do mesmo diploma.
Implicando limitação relevante da imediação, a utilização dessa prova na convicção do tribunal, se em desrespeito dos legais procedimentos, tornar-se-á verdadeira proibição de prova, com o efeito de não poder valer para aquela (n.º 1 do art. 355.º do CPP).
Acompanhando João Conde Correia, in “A distinção entre prova proibida por violação dos direitos fundamentais e prova nula numa perspectiva essencialmente jurisprudencial”, Revista do CEJ n.º 4 (2006), pág. 189, as proibições de prova derivam fundamentalmente das opções constitucionais em matéria de investigação criminal e de protecção dos direitos, liberdades e garantias individuais, não será difícil defender que – pelo menos nesses casos – também a delimitação da área proibida deverá encontrar-se na Constituição: seja na identificação das provas absolutamente proibidas (…), seja, sobretudo, na identificação das provas relativamente proibidas (que a constituição autoriza, mas sujeita, como vimos, a uma série de apertados pressupostos materiais sem os quais a prova é considerada abusiva e, como tal, proibida).
Ainda, sublinha que serão proibidas todas as provas obtidas mediante uma compressão dos direitos fundamentais em termos não consentâneos com a autorização constitucional, ainda que aparentemente a prova seja admissível e apenas tenham sido violadas as formalidades processuais necessárias para a levar a cabo. (...) O que interessa é saber se essa formalidade ainda é uma condição constitucional para a admissibilidade da prova. (…) Nesta perspectiva, as proibições de prova são portanto – mesmo que o legislador as repute de nulidades – o reflexo processual do seu regime constitucional e só nesse contexto podem ser identificadas, lidas e compreendidas. Só um critério substancial, que esqueça a fisiologia da norma para se centrar na sua essência, poderá ser útil e ter suficiente capacidade distintiva entre ambos os mecanismos.
Haverá, pois, que atentar nos diversos direitos abrangidos pelo art. 32.º, n.º 8, da CRP, numa interpretação que compatibilize a produção e valoração das provas com a devida protecção dos mesmos, averiguando-se se a formalidade omitida se deve, ou não, considerar, em si mesma, como condição da sua admissibilidade.
A este propósito, não deixa de relevar que o recorrente suscita, pelo menos, preterição da faculdade de recusa de depoimento prevista no referido art. 134.º do CPP, que protege a liberdade de depor em razão de relações familiares e, assim, a não ser respeitada, implicando perturbação dessa liberdade e da vontade da testemunha.
Neste sentido, afigura-se que integra situação incluída no n.º 3 do art. 126.º do CPP, enquanto prova obtida sem consentimento e com intromissão na vida privada, devendo, pela sua relevância de protecção pessoal, ser vista como verdadeira proibição da prova e da sua utilização (Costa Andrade, ob. cit., pág. 203, e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 362), sujeita ao comando constitucional desse art. 32.º, n.º 8, da CRP, relativamente ao que Gomes Canotilho/Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, pág. 524, referem A protecção dos direitos pessoas em processo criminal pode fundamentar um direito de recusa a ser testemunha, para além dos casos previstos na lei, quando no caso concreto se verificar que o depoimento constitui uma «agressão desproporcionada» ao segredo e confiança exigidos no exercício de certas profissões (eficácia de direitos fundamentais com efeitos externos para além da lei e orientada para o caso concreto).
Ora, revertendo para o caso sub judice, as indicadas testemunhas foram ouvidas no inquérito, NF , perante orgão de polícia criminal (fls. 79) e, JF, perante o Ministério Público (fls. 149), sendo, respectivamente, companheira e filho do aqui recorrente, relativamente a quem, pois, haveria de dar-se cumprimento àquela advertência contida no n.º 2 desse art. 134.º, o que, resulta ter sido efectuado para ambos.
Com respeito à testemunha JF, manifestou o desejo de prestar declarações, pelo que a valoração destas, desde que cumpridas as legais exigências para a sua permissão de leitura em audiência, não suscita dúvida.
Acerca dessas exigências, tendo em conta a argumentação trazida pelo recorrente, importa atentar em que se constata, através da acta da audiência, a fls. 383, que não esteve presente, não se mostrava então notificado para comparecer e, segundo informação da mãe (NF ), encontrar-se-ia em Espanha, vindo o Ministério Público a manifestar, no início do julgamento, prescindir desse depoimento.
Apesar desta posição do Ministério Público nessa fase do julgamento, não pode deixar de entender-se que se reportou unicamente à presença da testemunha e sua relevância para a continuidade da audiência e nada impediria que a viesse a alterar no desenrolar do julgamento, nem, muito menos, que o tribunal não a acolhesse, seja em que momento fosse, desde que entendesse que o depoimento era necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, ao abrigo do art. 340.º, n.º 1, do CPP.
Por essa via, nenhum obstáculo legal se deparava, pois, a que o tribunal viesse a trazer à colação o depoimento, ainda que produzido em inquérito, por necessário, situação, aliás, que é reflectida na acta, a fls. 385, ao consignar-se que “Por poder ser importante para a descoberta da verdade o Tribunal decide proceder à leitura das declarações prestadas pela testemunha JF -, a realizar de imediato”, sendo que o fez na sequência de requerimento do Ministério Público nesse sentido e relativamente ao que a defensora do aqui recorrente manifestou nada ter a opor.
Tratando-se de declarações prestadas em inquérito perante o Ministério Público, com acordo da defesa, a sua leitura em audiência foi consentânea com a permissão legal do art. 356.º, nºs 2, alínea b, e 5, do CPP.
Por seu lado, independentemente de que a referida ausência de notificação da testemunha, explicada pela mãe por se encontrar em Espanha, tendencialmente transmitindo a ideia de uma impossibilidade relevante e continuada e, como tal, que fosse discutível para o recorrente que a permissão da leitura se acolhesse no disposto no n.º 4 desse art. 356.º (devido a “impossibilidade duradoira”), entende-se que a manifestação de acordo quanto a essa leitura comporta pressuposto diverso daquele e que, em concreto, foi respeitado.
Contrariamente ao que o recorrente aparenta sufragar, a situação prevista nesse n.º 4 do art. 356.º não configura pressuposto aplicável às restantes hipóteses consagradas nesse normativo, mas apenas reportado às específicas condições aí elencadas, entre outras, a de impossibilidade duradoira.
Permitida a leitura do depoimento nos termos descritos, a faculdade legal de recusa, prevista naquele art. 134.º, salvaguardada quando JF foi ouvido no inquérito, não é de todo aplicável no contexto dessa leitura, uma vez que não esteve presente em audiência e a eventualidade do que manifestasse, caso tivesse estado presente, não tem qualquer relevância para servir de impedimento à mesma.
Quanto a NF , decorre da acta, a fls. 384, que a leitura de declarações que prestara em inquérito, foi efectuada a coberto do disposto no art. 356.º, n.ºs 3, alínea b) e 5, do CPP, por se ter entendido verificarem-se discrepâncias entre aquelas e as feitas em audiência e mediante não oposição a essa leitura.
Em audiência, foi avertida para o efeito do mencionado art. 134.º, tendo manifestado que desejava prestar depoimento, pelo que este inevitavelmente foi produzido em respeito da prévia faculdade respectiva de recusa.
Todavia, o recorrente vem suscitar a questão de que aquelas declarações em inquérito não poderiam ter sido trazidas à audiência e valoradas pelo tribunal, dada a recusa, então, dessa testemunha, não obstante resultar, do auto respectivo, que, ainda assim, lhe foram indevidamente recolhidas.
Com efeito, a testemunha afirmou, no inquérito, não pretender prestar declarações relativamente aos “factos ocorridos durante a coabitação do casal”, mas apesar disso, passou a relatar ocorrência que situou no dia 26.09.2010 (durante a coabitação, conforme se deu por provado), reportada a actos que imputou ao aqui recorrente, cometidos na sua pessoa e na do filho João.
Ora, ainda que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, se configure que a recusa em depor possa ser parcial, desde que a relação de parentesco, de afinidade ou de convivência análoga à dos cônjuges só se observe relativamente a determinado arguido, existindo no processo vários, ou em casos de autonomia de factos perante aqueles que têm a ver com essa relação, a protecção legal da recusa manifestada não pode ver-se subvertida pela circunstância da testemunha, certamente pelo seu próprio desconhecimento das formalidade legais e suas implicações, vir, afinal, posteriormente à recusa, a mencionar factos verificados em circunstância que constitui, em si mesma, fundamento para usufruir desse mecanismo de salvaguarda.
À luz do que já ficou explicitado, embora a leitura das declarações tenha tido legal cobertura, a valoração das mesmas, em que o tribunal se apoiou na sua motivação, não é aceitável, uma vez que as declarações em inquérito ficaram subsequentemente inquinadas pela então recusa da testemunha.
Não, porém, contrariamente à posição do recorrente, de que algum obstáculo se impusesse relativamente à convicção formada assente em que se conferisse maior relevo às declarações em inquérito do que às efectuadas em audiência.
Nem, também, de que a leitura de declarações em audiência ofenda, de algum modo, as garantias de defesa e do contraditório - o que se estende ao depoimento do referido JF -, já que, ocorrida em audiência, nesta se permite a sua abordagem e discussão.
Essa valoração comporta, sim, pelos fundamentos indicados, decorrência de prova proibida e, neste sentido, razão assiste ao recorrente nesse âmbito.
Na verdade, se, como no caso acontece, o tribunal tão-só se estribou no depoimento prestado por NF na fase de inquérito e este, conforme referido, não pode ser considerado como subjacente à leitura efectuada, não deixando de assim ser pela circunstância de que tenha existido acordo nesta, implicações ao nível da matéria de facto poderão relevar, o que adiante será, tanto quanto se justifique, analisado.

B) - da impugnação de matéria de facto:
A modificação da matéria de facto pode verificar-se, segundo o disposto no art. 431.º do CPP, além do mais, “se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º”.
Tem-se, aqui, em vista, a impugnação traduzida na análise da prova, de forma alargada, não obstante dentro dos limites decorrentes do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 desse art. 412.º, na medida em que, como vem sendo pacificamente entendido, o recurso é mero remédio jurídico, e não novo julgamento com repetição dos meios de prova produzidos em 1.ª instância - exceptuado o caso em que seja admissível a renovação da prova -, para despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo.
Já Cunha Rodrigues o salientava, in “Lugares do Direito”, Coimbra Editora, 1999, págs. 498/499, ao referir que o Código de Processo Penal assume claramente os recursos como remédios jurídicos e não como meios de refinamento jurisprudencial, não visando o único objectivo de uma «melhor justiça».
Também, segundo Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo (…) Assim, ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória.
A esse propósito, lê-se no acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219, Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
Apresentando-se com uma finalidade processualmente específica e justificada, os contornos necessários à impugnação de facto nessa vertente ficaram devidamente explicitados no Acórdão do STJ, de Fixação de Jurisprudência, n.º 3/2012, de 08.03, publicado in D.R. I Série, n.º 77, de 18.04.2012.
No entanto, mesmo quando se considere a impugnação efectuada de forma processualmente válida, isso não equivale necessariamente à modificação da decisão de facto recorrida.
Não se bastará, para que venha a proceder, com a pretensão de dar-se como provada determinada versão, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre, já que a censura do tribunal ad quem não incidirá sobre a decisão do tribunal a quo que assente a sua convicção sobre a credibilidade da prova produzida, ou a falta dela, em elementos que relevam dos princípios da imediação e da oralidade, aos quais o tribunal de recurso não tem acesso, sem prejuízo dos limites do princípio da livre apreciação da prova.
Em concreto, nada impede que a impugnação visada pelo recorrente seja apreciada, dado que cumpriu minimamente o ónus de especificação, ao ter indicado os pontos de facto que considera incorrectamente julgados (que identificou, transcrevendo-os, como sendo os pontos vertidos nos parágrafos 9.º a 11.º do acórdão) e as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa (depoimentos de NF , de Guilherme Batista e de JF), embora, relativamente às mesmas, só aluda parcialmente (quanto às duas primeiras) à respectiva localização no suporte de gravação, só quanto a uma delas (depoimento de NF ) tenha procedido a breve transcrição de excerto e, no restante, se reporte tão-só ao afastamento da valoração do testemunho (de JF) e a “acareação” realizada (entre NF e Guilherme Batista) em audiência.
Sem prejuízo das limitações intrínsecas à impugnação, analisam-se as considerações carreadas ao recurso, não sem que, ainda, se tenha em conta o apreciado em A) quanto à indevida valoração do depoimento de NF prestado no inquérito.
Os pontos de facto suscitados prendem-se directamente com as acções objectivas imputadas ao recorrente, reflectidas nos mesmos, que aqui se transcrevem:
Durante o período em que residiram juntos, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida NF e agrediu-a com recurso a paus, cordas e outras ferramentas que encontrasse, no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos, menores;
No dia 26 de Setembro de 2010, cerca das 18 horas, o arguido, dirigiu-se ao filho JR , que se encontrava na parte exterior da casa onde moravam - no Sítio do B - M -, agarrou-o pelos braços e arrastando-o, conduziu-o para o interior daquela residência, onde se muniu de um candeeiro e lhe desferiu uma pancada com tal objecto, atingindo-o na cabeça;
De seguida, o arguido, apercebendo-se que NF se dirigia a si, em auxílio do filho, desferiu-lhe um murro, atingindo-a no olho e fazendo-a cair no chão;”.
Quanto ao depoimento, em audiência, de NF , negou que o recorrente a tenha alguma vez agredido, inclusive no dia 26.09.2010, em que, segundo disse, teria caído ao chão por ter muita roupa aí espalhada, não obstante ter afirmado que foi ao hospital, onde foi assistida.
No tocante ao ocorrido com seu filho, referiu que houve confusão entre ele e o recorrente, mas nada tendo visto em concreto, por se encontrar deitada, e que JF lhe disse que o pai lhe havia batido, vindo a receber, também, assistência no hospital.
Apesar de ter manifestado o desejo de prestar declarações, já se vê que o seu depoimento revelou o propósito de não contribuir para o esclarecimento dos factos, denotando alheamento inevitavelmente influenciado pela sua ligação ao recorrente, durante, segundo referiu, cerca de 21 anos, reflectido, mormente, na forma como foi respondendo às questões colocadas.
Identicamente, ao ser confrontada com a circunstância de Guilherme Batista, militar da GNR que acorreu à residência nesse dia 26.09.2010, ter afirmado que NF então disse que o recorrente a tinha agredido, bem como ao filho - o que, em rigor não consubstanciou acareação -, limitou-se a referir que não se lembrava nem do militar, nem de algo lhe ter dito, sendo que questionada acerca de razões que poderiam motivar que esse militar o tivesse mencionado, nada soube responder.
Se é certo que Guilherme Batista não presenciou qualquer agressão, não é menos verdade que, como referiu, viu o estado em que NF e JF se encontravam quando chegou ao local, necessitando de assistência hospitalar.
Aliás, esta foi prestada, como o comprovam os relatórios de fls. 225/228, citados na motivação do tribunal, nos quais são visíveis os tipos de lesões detectadas, de que os assistidos disseram, então, ter sido vítimas.
Neste aspecto, as lesões de NF , segundo as regras da experiência, não se compatibilizam com uma mera queda ao chão.
Por seu lado, pese embora a escassez de elementos resultantes do depoimento de NF , há que salientar a ausência de qualquer interesse pessoal do militar nas afirmações que fez, bem como o teor do depoimento, em inquérito, de JF, que foi esclarecedor, ainda que considerando alguma subjacente reacção negativa relativa à pessoa do recorrente.
Com efeito, JF - cujo depoimento podia ser, como foi, valorado - reportou-se, não só ao ocorrido nesse dia 26.09.2010, consigo e com sua mãe, como também à anterior vivência de agressões do recorrente àquela, mediante uso de objectos diversos como ficou retratado na matéria factual posta em crise.
Ouvido, em inquérito, quando contava 17 anos de idade e, assim, com suficiente percepção do que ocorria na sua residência e relativamente aos pais, afigura-se que não existe motivo para infirmar a credibilidade do depoimento, por maioria de razão, reportando-se a assuntos delicados e, naturalmente, para si bem perturbadores.
Assim não deixa de ser pela circunstância, referida por NF , de que nunca apresentou queixa e, também, em face de ausência de outros elementos, atentando na peculiar natureza dos actos em julgamento, reconhecidamente, pelos mais diversos motivos, como difíceis de relatar a terceiros e restringidos ao ambiente familiar.
No entanto, à estabelecida valoração do depoimento de JF, no sentido positivo que merece, importa aportar certa modificação quanto ao período em que as agressões se terão verificado, uma vez que resulta ter afirmado que estas se deram quando tinha cerca de 13 anos.
Deste modo, o período a fixar não deve corresponder àquele durante o qual o recorrente e NF residiram juntos, mas sim, com o inevitável rigor, com início em 2006 (tendo em conta que JF então perfez 13 anos).
O primeiro facto impugnado passa, pois, a ter a seguinte redacção:
Desde, pelo menos, 2006 e até data não concretamente apurada de 2010, mas posterior a 26.09.2010, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida NF e agrediu-a com recurso a paus, cordas e outras ferramentas que encontrasse, no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos, menores.
Os dois restantes factos impugnados não merecem ser modificados, integralmente se mantendo.
Em sintonia, passa a constar como facto não provado:
Durante período anterior a 2006, por diversas vezes, o arguido dirigiu-se à ofendida NF e agrediu-a com recurso a paus, cordas e outras ferramentas que encontrasse, no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos, menores.
Ainda, na matéria de facto fixada, bem como na motivação da mesma, tem-se em conta, como já se deixou transparecer, que onde se lê «JR » deve ler-se «JF», corrigindo-se tal lapso ao abrigo do art. 380.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP.
Finalmente, neste âmbito, no que respeita àquela motivação, a referência ao testemunho prestado em inquérito por NF é dada sem efeito, por inviabilidade de valoração nos termos sobreditos.
De todo o modo, note-se, dúvida não existe quanto ao enquadramento jurídico dos factos ora assentes, correspondendo ao que o tribunal entendeu merecerem, pelo que a condenação do recorrente continua inteiramente justificada.

C) - da redução da medida das penas:
Preconizando a redução da medida das penas que lhe foram cominadas, o recorrente invoca, no essencial, que o tribunal a quo, relativamente ao crime de violência doméstica, apenas apelou à ilicitude abstracta, já contida no tipo legal e, no tocante ao crime de ofensa à integridade física qualificada, não esclareceu a razão de ter fundamentado que a ilicitude excedeu o mínimo necessário, sendo que, para a qualificação, tão-só adveio a circunstância da vítima ser seu filho.
No tocante ao dolo, contesta a fundamentada persistência.
E, acerca dos seus antecedentes criminais, suscita que não revela qualquer reincidência em actos idênticos.
Analisando:
Como refere Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, II, pág. 1194, o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena.
Segundo Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, em Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, 1998, pp.25-51, e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, pp. 31-51 (32/33), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.
Por respeito à salvaguarda da dignidade humana, a medida da culpa constitui limite inultrapassável da medida da pena e, como já aludia Claus Roxin, in “Derecho Penal, Parte General”, tomo I, tradução da 2.ª edição alemã e notas por Diego-Manuel – Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99/100, a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação relevem como desenlace uma detenção mais prolongada (…) não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.
Ainda segundo Figueiredo Dias, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186/187, o modelo de determinação da medida da pena comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o “quantum” exacto de pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.
Esta (a medida da pena) deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos, sendo que culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena) - o mesmo Autor, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, págs. 231 e 214.
Esse juízo de culpa, que na realidade constitui o suporte axiológico-normativo da punição, reconduz-se a um juízo de valor e apreciação, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168), isto é, à censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente, entendida como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Almedina, 1971, vol. I, págs. 315 e seg.).
A confiança da comunidade na validade das normas, se não pode ceder em limites que lhe retirem sentido na ponderação e concordância prática das finalidades e exigências em presença, não poderá, do mesmo modo, constituir parâmetro que impeça a realização das finalidades de política criminal que justificam e conformam o regime penal.
Assim, essa validade é afirmada pela aplicação das penas adequadas, que traduza a interiorização e o respeito pelo sistema de valores fundamentais reconhecidamente aceites e, por isso, penalmente tutelados; mas, do mesmo modo, a comunidade deve sentir e compreender as opções de política criminal que se realizam através da formulação e aplicação do direito penal.
Devendo qualquer pena ter, quanto possível, um sentido pedagógico e ressocializador, a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e, em última análise, na comunidade, não pode ser descurada.
Desde logo, note-se que as exigências de prevenção geral associadas aos tipos de crimes cometidos pelo recorrente são bem assinaláveis, merecendo forte censura social.
Por seu lado, as exigências de prevenção especial não podem olvidar o tipo de personalidade inevitavelmente relacionada com esses actos, suscitando, por isso, que não seja a sua dimensão reduzida, uma vez que praticados a coberto da intimidade e com efeitos que se projectam, não apenas ao nível físico, mas sobretudo psicológico, incidindo em familiares indefesos e carentes de maior protecção, não justificados minimamente em suposta legitimação ou banalização, numa sociedade que se quer mais desenvolvida e humanizada.
Os factores ponderados no acórdão, se bem que muito sucinto, apresentam-se tendencialmente sopesados de forma conveniente.
O desvalor da acção do crime de violência doméstica é considerável, reputando-se que a ilicitude é efectivamente elevada, não se aceitando, como invoca o recorrente, que o tribunal se tenha quedado por fazer equivaler a violência a entidade subjacente ao tipo legal, sendo que atentou no “tempo de duração do mesmo”, o que releva nesse âmbito.
Também, nesta sede, diga-se, não é desprezível a circunstância da violência ter sido reflectida em actos de agressão com paus, cordas e outras ferramentas.
Quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, ainda que sobrelevasse que incidiu na pessoa de seu filho, a agressão com uma pancada na cabeça, servindo-se de um candeeiro, denota muito relevante grau de ilicitude, dada a manifesta energia colocada na acção e potencialmente desencadeadora de efeitos de importância inegável.
A intensidade do dolo, quanto a ambos os ilícitos, é, pois, considerável e, acerca da alegada persistência, nada há a censurar, tornando-se notória pela inevitável determinação colocada pelo recorrente nos actos praticados, sem olhar aos meios utilizados, manifestando, até, certa cobardia na sua execução.
Quanto aos antecedentes criminais do recorrente, ainda que não versando crimes idênticos, foram atendidos com o pendor agravante que lhes é característico.
Aliás, nem o seu comportamento anterior, nem a postura que assumiu em audiência, podem, de modo algum, deixar de consubstanciar factores que elevam a censurabilidade da sua conduta, enfim, a sua culpa.
Ponderados todos os aspectos que se deixaram vertidos, o grau de culpa, visto na globalidade dos elementos atendidos, tem relevo significativo, se bem que, quanto ao período durante o qual praticou os actos de violência doméstica, dada a operada modificação da matéria de facto, acrescida da circunstância de certa indeterminação do número de vezes em que ocorreram e dos seus contornos concretos, deva o recorrente, por isso, ser ligeiramente favorecido, reduzindo-se a pena para 3 anos de prisão, mantendo-se, contudo, a medida aplicada relativamente à ofensa cometida na pessoa do filho (2 anos e 6 meses de prisão).
No que respeita à pena única, é pacífico, na esteira da doutrina e da jurisprudência, que, ao determiná-la, do que se trata é de avaliar unitariamente o conjunto dos factos e na sua correlação com a personalidade do arguido, como se os mesmos constituíssem um facto global e com a conexão com essa personalidade, numa apreciação de dimensão e conexão novas, ultrapassando a visão compartimentada que esteve na base da fixação das penas singulares (entre muitos, o acórdão do STJ de 14.10.2009, no proc. n.º 328/07.9GFVFX.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime” cit., págs. 291/292), Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pruriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Os crimes em concurso revelam-se lesivos de bens pessoais e de gravidade considerável, cuja ressonância ético-valorativa é, por demais, assinalável.
Mostram-se, como referido, conexionados com personalidade de deficiente formação e inadequada sensibilização dos valores que, nas condições apuradas, se tornou visível.
Considerados os limites legais ora em presença, entende-se que essa imagem global aconselha, por proporcional, a aplicação da pena conjunta de 4 anos e 3 meses de prisão.

D) - da suspensão da execução da prisão:
A suspensão da execução da prisão foi afastada pelo tribunal a quo, no essencial, devido ao passado criminal e à desvalorização pelo recorrente da importância dos actos praticados, impedindo juízo de prognose positiva quanto ao seu futuro relativamente à companheira e ao filho.
Discordando, o recorrente aponta as circunstâncias concretas da sua vida, em grande parte reportadas pelo relatório social e dadas por provadas, mormente a vida sofrida desde a infância, o contexto sócio-familiar de origem muito carenciado, a sua condição de praticamente analfabeto, ser muito ligado à família e não referenciado por delitos idênticos ou como indivíduo violento.
Já se vê, entretanto, que outras circunstâncias, que não constam como provadas, não têm virtualidade para ser aqui apreciadas.
A suspensão da execução da prisão consubstancia medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico, que tem a virtualidade, além do mais, de dar expressão a que a prisão (e sua execução) constitui ultima ratio da punição (art. 18.º, n.º 2, da CRP), apesar de limitada pela salvaguarda das finalidades punitivas, obstando, assim, aos nefastos efeitos criminógenos que são comummente reconhecidos.
Do ponto de vista dogmático, é uma pena de substituição, pois é necessariamente aplicada em substituição da execução da pena de prisão concretamente determinada, revestindo a natureza de verdadeira pena e com carácter autónomo, com campo de aplicação, regime e conteúdo político-criminal próprios.
Por isso, a sua aplicação funda-se em critérios de legalidade e não de moralidade, havendo que respeitar as exigências legais para a sua aplicação, as quais, no essencial, se reconduzem à ideia da existência de prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do agente, sem esquecer todas as circunstâncias que na vertente da medida da pena, em concreto, se coloquem e que não colidam com as necessidades preventivas que se deparem.
Conforme Figueiredo Dias, ob. antes cit., pág. 343, A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos -«metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo e, a pág. 501, Ela (a prevenção geral) deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
São, pois, considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e não de culpa, que devem conduzir a apreciação acerca da suspensão, ou não, da execução da prisão, como também realça o mesmo Autor, ob. cit., pág. 344.
Conforme acórdão do STJ de 20.02.2008, no proc. n.º 08P295, in www.dgsi.pt, Para aplicação desta pena de substituição necessário se torna que o julgador se convença de que o facto cometido não está de acordo com a personalidade do arguido, que foi caso acidental, esporádico, ocasional, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas, não olvidando que a pena de substituição não pode colocar em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos.
Nisso reside o prognóstico favorável de que a censura da conduta e a ameaça da prisão são suficientes para a satisfação das finalidades preventivas da punição, sem descurar que, em qualquer caso, se tratará de decisão baseada num risco prudencial, tanto quanto possível atenuado pela adequada valoração que todas as circunstâncias concretas ofereçam.
Acresce que é dever do juiz assentar esse incontornável «juízo de prognose», favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, o que não quer dizer, obviamente, que tenha de atingir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do agente.
Todavia, só a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, deve a suspensão da execução da prisão ser determinada, sob pena de frustração das finalidades punitivas.
E, ainda, se é certo que a socialização do agente deve ser uma preocupação sempre presente na aplicação de qualquer que seja a pena, ela não é o objectivo primeiro nessa delicada tarefa de determinação da pena adequada, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção, como salienta Anabela Rodrigues, in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 12, n.º 2, pág. 182, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, sendo entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena, o da tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
Todos os elementos disponíveis e relevantes conferem uma séria reserva quanto ao prognóstico futuro do recorrente, em sede das exigências punitivas que se divisam e, além do mais, para que fiquem estas satisfeitas com a suspensão da execução da prisão.
Apesar das provadas condições pessoais do recorrente, não se descortina que estas confluam para a perspectiva de que esteja devidamente inserido, quer do ponto de vista social, quer familiar, a que se juntam características negativas de personalidade por si manifestadas, não só as inerentes aos factos, como também as que denota pela ausência de enquadramento adequado perante aspectos que entende desvalorizar ou de mais difícil resolução.
Para além das prementes exigências de prevenção geral que os crimes praticados reconhecidamente comportam, a sua conduta não aparece dissociada desses aspectos, nem pode ser vista como meramente ocasional, ainda que anteriormente não tenha sido condenado por delitos idênticos.
Conclui-se, pois, que a suspensão da execução da prisão não lhe deve ser concedida.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência,
- sem prejuízo da correcção efectuada, modificar a matéria de facto nos termos sobreditos;
- alterando a pena parcelar aplicada relativamente ao crime de violência doméstica, condená-lo neste âmbito na pena de 3 (três) anos de prisão;
- alterando a pena única aplicada, condená-lo na pena conjunta de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;
- no mais, manter o acórdão.

Sem custas (cfr. art. 513.º, n.º 1, do CPP).

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Processado e revisto pelo relator.
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(Carlos Jorge Berguete)
(João Gomes de Sousa)