Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
82/14.8TTSTR.E3
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: RETRIBUIÇÃO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
PACTO DE NÃO CONCORRÊNCIA
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – A atribuição a um trabalhador de um veículo automóvel, com despesas de manutenção a cargo da entidade empregadora, para o serviço e para o uso particular daquele, constituirá ou não retribuição, conforme se prove que essa atribuição é feita com carácter obrigatório ou como um acto de mera tolerância;
II – Assume carácter obrigatório essa atribuição, sendo por isso de computar na retribuição do trabalhador, se da matéria de facto consta que a empregadora “atribuiu” ao trabalhador viatura para uso profissional e para uso pessoal, incluindo em férias e fins-de-semana, assumindo a empregadora as despesas inerentes à utilização da mesma;
III – Tendo as partes acordado, por escrito e no contrato de trabalho, uma cláusula de não concorrência – que impedia o trabalhador de, após a cessação do contrato, exercer a actividade em empresas concorrentes da empregadora – não pode posteriormente esta, na vigência do contrato, denunciar unilateralmente tal cláusula e, assim, eximir-se ao pagamento da compensação prevista no n.º 2 do artigo 136.º do Código do Trabalho.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 82/14.8TTSTR.E3
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório[2]
BB, devidamente identificado nos autos, intentou, em 28-01-2014 e no extinto Tribunal do Trabalho de Santarém, a presente acção especial, de impugnação de despedimento colectivo, contra CC, Lda., também devidamente identificada nos autos, pedindo:
a) que seja declarado ilícito o seu (dele, Autor) despedimento promovido pela Ré;
b) a condenação da Ré a pagar-lhe:
i. a quantia de € 5.100,00 a título de indemnização de antiguidade;
ii. a quantia de € 5.780,00 referente a férias respeitantes ao ano da sua admissão e às vencidas em 1 de Janeiro de 2013 e correspondente subsídio;
iii. a quantia de € 4.142,43 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal referente ao trabalho prestado em 2013;
iv. a quantia de € 119.000,00 a título de compensação pecuniária devida pelo despedimento, prevista na cláusula 6.ª do contrato de trabalho;
v. as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude daquele;
vi. a quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais;
vii. juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas, desde a data dos respectivos vencimentos até integral pagamento.
Alegou para o efeito, muito em síntese e no que ora releva, que foi admitido ao serviço da Ré em 1 de Agosto de 2012, mediante a celebração de um contrato de trabalho sem termo, auferindo a retribuição base mensal de € 1.700,00, acrescida de € 340,00 mensais a título de isenção de horário de trabalho, dispondo ainda de uma viatura automóvel, um telemóvel e um computador, que podia utilizar na sua vida particular, sendo todas as despesas suportadas pela Ré, computando tal utilização numa contrapartida de € 850,00 mensais.
Por carta datada de 22 de Abril de 2013, a Ré comunicou-lhe a intenção de proceder ao despedimento colectivo de 13 trabalhadores, entre os quais o seu (dele, Autor), e por carta datada de 4 de Junho de 2013 comunicou-lhe a decisão de proceder ao seu despedimento, no âmbito do despedimento colectivo, com efeitos a partir de 22 de Junho de 2013.
O referido despedimento é ilícito, por não ter sido posto à sua disposição a compensação legal devida até ao termo do prazo de aviso prévio.
Por isso peticionou na acção o que entende serem as consequências legais desse despedimento, bem como créditos vencidos por virtude da vigência do contrato de trabalho e ainda e uma indemnização por danos não patrimoniais, por, alegadamente, o despedimento lhe ter provocado, entre o mais, sofrimento, angústia, ansiedade, desânimo, ansiedade e desequilíbrio financeiro no orçamento familiar.
Mais requereu a apensação aos presentes autos dos de providência cautelar de suspensão de despedimento colectivo que correram termos no referido tribunal de 1.ª instância, sob o n.º 336/13.0TTSTR.
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Por despacho de 30-01-2014 foi ordenada a requerida apensação e a citação da Ré para, querendo, contestar a acção, o que veio a fazer, por excepção e por impugnação, vindo a final a concluir pela procedência daquelas ou, caso assim se não entenda, pela improcedência da acção.
Mais pugnou pelo indeferimento da apensação dos autos à providência cautelar, “uma vez que a referida providência caducou, conforme resulta do disposto na alínea a) do artigo 40.º-A do CPT”.
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Foi deduzido o incidente de intervenção provocada dos demais trabalhadores abrangidos pelo despedimento colectivo da Ré: admitido o referido incidente e citados os intervenientes, por nenhum deles foi apresentado qualquer articulado.
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Entretanto, em 26-01-2015, foi proferida decisão que declarou extinta a acção, com fundamento na verificação da excepção dilatória de caso julgado.
Dessa decisão recorreu o Autor para este tribunal, que por acórdão de 01-10-2015 foi concedido provimento ao recurso e, por consequência, revogado a decisão recorrida e ordenado o prosseguimento dos autos com vista à apreciação dos pedidos.
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Tendo os autos baixado à 1.ª instância, aí prosseguiram os seus termos, vindo em 26-02-2016 a ser proferido saneador-sentença, que declarou a caducidade da providência cautelar, bem como a caducidade do direito de acção e, em consequência, absolvido a Ré de todos os pedidos formulados pelo Autor.
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Inconformado, também quanto a esta decisão, o Autor dela veio a interpor recurso para este tribunal, que por acórdão de 07-09-2016 deliberou nos seguintes termos:
«1. Revoga-se a sentença recorrida na parte em que declarou a caducidade do procedimento disciplinar apenso aos autos;
2. Declara-se a caducidade do direito de acção, assim confirmando, nesta parte, a sentença recorrida;
3. Por decorrerem da vigência do contrato de trabalho e da sua cessação (que não por despedimento ilícito) e não se mostrarem prescritos, ordena-se o prosseguimento da acção tendo em vista a apreciação dos pedidos formulados pelo Autor na petição inicial e a que se refere a alínea b), pontos ii., iii. e iv. do relatório do presente acórdão»
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Regressados os autos novamente à 1.ª instância, aí prosseguiram os seus termos, tendo-se procedido a audiência de julgamento, e foi proferida sentença, na qual se respondeu à matéria de facto e se motivou a mesma, sendo a parte decisória, na parte ora relevante, do seguinte teor:
«Pelo exposto julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, consequentemente:
a) Condena-se a ré no pagamento ao autor:
- da quantia de € 80.920,00 (oitenta mil, novecentos e vinte euros), a título de indemnização prevista pelo pacto de não concorrência;
- da quantia de € 2.561,59 (dois mil, quinhentos e sessenta e um euros e cinquenta e nove cêntimos), a título de férias não gozadas na totalidade do período do contrato de trabalho;
- da quantia de € 1.808,18 (mil oitocentos e oito euros e dezoito cêntimos), a título de subsídio de férias;
- da quantia de € 879,42 (oitocentos e setenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), a título de proporcionais de subsídio de Natal pelo trabalho prestado em 2013;
- da quantia de € 1.372,57 (mil trezentos e setenta e dois euros e cinquenta e sete cêntimos), a título de proporcionais de férias pelo trabalho prestado em 2013;
- da quantia de € 968,86 (novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e seis cêntimos) a título de proporcionais de subsídio de férias pelo trabalho prestado em 2013;
- de juros de mora à taxa de 4%, desde o vencimento de cada uma das quantias até integral pagamento».
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Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1º) O douto Tribunal a quo errou na apreciação da prova trazida aos presentes autos e produzida em sede na audiência de julgamento;
2º) Com efeito, foi produzida prova suficiente para dar como provados um conjunto de factos essenciais para o mérito da decisão e que não foram tidos em consideração;
3º) A viatura automóvel atribuída ao Recorrido era um instrumento de trabalho essencial ao desempenho das suas funções profissionais, sem a qual este não poderia nunca dar cumprimento às mesmas;
4º) A disponibilização de viaturas pela sociedade Recorrente tem como primeiro objetivo a satisfação das suas necessidades empresariais e não as necessidades pessoais dos trabalhadores abrangidos pelas mesmas;
5º) As funções desempenhadas pelo Recorrido eram as mesmas de outros trabalhadores da sociedade Recorrente, pelo que conforme era política interna da empresa, todos os trabalhadores e colaboradores afetos às funções de recolha beneficiavam de viatura;
6º) A utilização das viaturas para fins pessoais era considerada uma permissão da sociedade recorrente e não um direito, sendo que a mesma era uma decorrência da forma como era organizado o processo de recolhas;
7º) Nunca houve qualquer intenção de atribuir à utilização das viaturas um carácter retributivo, nem nunca foi exigido que tal acontecesse, nem pelo Recorrido nem por qualquer outro trabalhador da sociedade Recorrente nas mesmas circunstâncias;
8º) Por outro lado, julga ainda a Recorrente que erra o douto Tribunal a quo na decisão de direito que emite, porquanto a mesma, ao julgar nula a renúncia ao pacto de não concorrência operada pela ré, não vai de encontro do que resulta do regime previsto no artigo 136.º do Código do Trabalho, nem atende às circunstâncias concretas da situação que lhe foi submetida para julgamento;
9º) O argumento de que o pacto de não concorrência tem um caráter sinalagmático só pode ser entendido em face da interdependência entre a limitação da atividade do trabalhador e a necessária atribuição a este de uma compensação e não de outra forma;
10º) Por outro lado, o direito do Recorrido ao pontual cumprimento da obrigação por parte da sociedade Recorrente, que fundamenta a sentença recorrida de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil, não pode ser desligado da observância de todos os condicionalismos previstos no artigo 136.º do Código do Trabalho, nomeadamente no que diz respeito ao desempenho de atividade cujo exercício possa causar prejuízo ao empregador;
11º) Como também não pode desligar-se das circunstâncias concretas da situação em apreço, para as quais o douto Tribunal a quo foi sensível no plano abstrato, mas cego na sua ponderação no plano concreto, por não ter observado que, no caso do Recorrido, não houve qualquer investimento deste, durante o curto período de vigência do seu contrato, numa carreira, com prejuízo para outros projetos pessoais; como também não houve da parte do Recorrido qualquer evidência de que pretendesse estabelecer contactos tendo em vista novas oportunidades profissionais;
12º) Os alegados incómodos de um pacto de não concorrência não se verificaram no Recorrido, tendo, pelo contrário, a sentença recorrida provocado um desequilíbrio manifesto entre a compensação que arbitrou ser devida ao Recorrido e o benefício que a sociedade Recorrente poderá ter auferido durante os escassos 8 meses em que vigorou o pacto de não concorrência.
Termos em que devem as presentes proceder, por provadas, revogando-se a decisão recorrida, sendo substituída por outra que acolha os fundamentos ora alegados pela Recorrente».
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Não tendo o recorrido apresentado contra-alegações, veio o recurso a ser admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
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Recebidos os autos neste tribunal, tendo, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, sido presentes à Exma. Procuradora-Geral Adjunta, neles apôs o “visto”.
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Preparando a deliberação foi remetido projecto de acórdão aos exmos. Juízes desembargadores adjuntos.
Realizada a conferência, cumpre decidir.

II. Objecto do recurso
Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que delimitam o seu objecto (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), são as seguintes as questões trazidas à apreciação deste tribunal:
1. saber se existe fundamento para alterar a matéria de facto;
2. saber se podia a Ré fazer cessar unilateralmente o pacto de não concorrência;
3. as consequências jurídicas das respostas dadas à questões anteriores, tendo em conta a decisão recorrida.
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III. Factos
1. Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
A. O autor foi sócio fundador da ré em 1991, tendo exercido as funções de gerente nesta durante mais de vinte anos, até ter renunciado às mesmas em 31 de Julho de 2012.
B. Após o que foi admitido ao serviço da ré, em 1 de Agosto de 2012, mediante a celebração de um designado contrato de trabalho sem termo.
C. Tendo trabalhado por conta, sob a autoridade e direcção da ré, exercendo as funções de técnico de recolhas e colheitas junto dos clientes, excepto o cliente …, apoio à gerência, conservação das instalações e controlo das viaturas do parque automóvel.
D. O autor auferia o vencimento base de 1.700,00€ acrescido de 340,00€ relativos a isenção de horário de trabalho.
E. Foi, também, convencionada a atribuição ao autor uma viatura automóvel de 5 lugares (tendo, em concreto, sido entregue a viatura de marca …, modelo …, com a matrícula …), um telemóvel e um computador, podendo o autor usá-los na sua vida particular.
F. Foi acordado entre o autor e a ré que todas as despesas decorrentes da utilização do veículo automóvel (manutenção, seguro, impostos, combustível e portagens) e do telemóvel (facturas) corriam por conta da ré, o que ocorreu.
G. O autor utilizava o veículo automóvel e o telemóvel na sua vida diária, utilizando-o nos dias de semana fora do horário de trabalho, nos fins de semana, nos feriados e nas férias.
H. Sendo que o autor já usufruía das condições referidas em E. quando era gerente da ré.
I. A viatura …, com a matrícula … representava um encargo mensal de € 827,38 para a ré.
J. O veículo automóvel e o telemóvel atribuídos ao autor pela ré tinham o valor pecuniário mensal de € 850,00.
K. Estipula a cláusula 6ª do contrato de trabalho celebrado entre autor e ré “em caso de despedimento ou saída do CC por qualquer outro motivo, o 2.º Outorgante receberá uma indemnização correspondente a setenta salários mensais, esta indemnização justifica-se pelo facto do 2.º Outorgante ao deixar de trabalhar para a 1.ª Outorgante não poder trabalhar, no território nacional, durante um período de cinco anos, em empresas concorrentes da 1.ª Outorgante”.
L. Em 03 de Abril de 2013 a ré comunicou ao autor, por carta registada com aviso de recepção, que a referida “obrigação de não concorrência deveria ser declarada extinta, com efeitos imediatos, extinguindo-se de igual modo o ónus imposto ao autor, com as inerentes consequências legais e contratuais” (vd. fls. 272), o que o autor não aceitou.
M. O despedimento do autor veio a efectivar-se com efeitos a 22 de Junho de 2013.
N. O autor não gozou férias durante o período em que trabalhou para a ré.
O. No âmbito do Processo Especial de Revitalização que correu termos nesta comarca n.º 740/13.4TBSTR, foi aprovado e homologado a 22 de Outubro de 2013, plano de recuperação da ré do qual constam € 8.040,00 devidos ao autor, sendo que o valor após descontos passou a ser de € 7.594,66, a pagar em 48 prestações mensais de 158,22 € (vd. fls. 171).
P. A ré tem vindo a pagar este valor ao autor, que o aceita mensalmente.
Q. Após a cessação do contrato de trabalho celebrado com a ré, o autor não trabalhou para qualquer empresa concorrente da ré.
R. A ré pagou ao autor a quantia de € 2.040,00, a 27 de Setembro de 2012 e 14 de Janeiro de 2013, a título de subsídio de férias.
S. A ré pagou ao autor a quantia de € 2.040,00, a 14 de Janeiro de 2013, a título de subsídio de Natal.
T. A ré pagou ao autor a quantia de € 486,83, entre Janeiro e Junho de 2013, a título de duodécimos do subsídio de férias.
U. A ré pagou ao autor a quantia de € 507,52, entre Janeiro e Junho de 2013, a título de duodécimos do subsídio de Natal.
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2. Na 1.ª instância foram dados como não provado o seguinte:
- A viatura automóvel, o telemóvel e o computador foram atribuídos ao autor, não pela natureza ou responsabilidade das funções desempenhadas, mas sim pelo seu estatuto dentro da empresa, resultante do facto de ter sido ex-sócio e ex-gerente da mesma.
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3. A 1.ª instância motivou a matéria de facto, com eventual relevo para o objecto do recurso, nos seguintes termos:
(…)
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III. Fundamentação
1. Da impugnação da matéria de facto
Importa, antes de mais, deixar uma referência, digamos que prévia, em torno do ónus de impugnação da matéria de facto.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, quando os meios probatórios tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Não basta, pois, que o recorrente se limite a fazer uma impugnação genérica: ele tem de concretizar, e individualizar, qual a matéria que considera incorrectamente julgada, seja matéria que foi dada como provada, seja matéria que foi dada como não provada.
Importa ter presente que o recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª instância, estabeleceria os factos provados e não provados; antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.
Em tal situação, o tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (e quanto ao segmento indicado, se for o caso) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e, daí, pela alteração ou não da factualidade apurada (cfr. artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Para além da indicação dos factos concretos que impugna, e da resposta que, no seu entender, deve ser dado aos mesmos, o recorrente deve também indicar, em relação a cada um desses pontos/factos quais os meios de prova que, em sua opinião, levariam a uma decisão diferente, e quando esses meios de prova tenham sido gravados o recorrente terá de indicar ainda quais os depoimentos em que fundamenta a sua impugnação, indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda.
Sobre esta problemática, cabe referir que entendemos – na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça [vide, entre outros, os acórdãos de 19 de Fevereiro de 2015, (Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1), de 04 de Março de 2015, (Proc. n.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2), de 01-10-2015 (Proc. n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1), de 14-01-2016 (Proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1), de 11/2/2016, (Proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1 e de 03-11-2016 (Proc. n.º 342/14.8TTLSB.S1), disponíveis em www.dgsi.pt] – que impondo o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, um especial ónus de alegação quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, já não exigem os referidos normativos legais que o recorrente leve às conclusões a indicação dos concretos meios probatórios em que se baseia a sua discordância relativamente à decisão de primeira instância.
Quanto à concreta indicação dos meios de prova em que o recorrente sustenta a sua discordância, admite-se que a mesma possa ter lugar nas alegações, pois que consubstancia matéria relativa à correspondente fundamentação, sendo a indicação nas conclusões dos pontos de facto que se pretendem ver julgados de modo diferente imprescindível para que estas cumpram a sua função de sinalizar e delimitar o objecto do recurso e, consequentemente, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem no que diz respeito à decisão de facto.
Como se observou no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2015, «enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória».
Porém, volta-se a assinalar, quanto aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os mesmos, terão, obrigatoriamente, que constar das conclusões das alegações de recurso.
Ora, no caso, lidas e relidas as conclusões das alegações de recurso, temos dificuldade em descortinar qual ou quais os concretos pontos da matéria de facto que a recorrente impugna: o que parece resultar das referidas conclusões é tão só uma discordância quanto à apreciação da prova, rectius testemunhal, feita pelo tribunal recorrido, contrapondo-lhe a sua própria apreciação, no que à atribuição do veículo automóvel ao Autor diz respeito.
Se bem interpretamos as referidas conclusões, o que a recorrente sustenta é que essa atribuição era por motivos profissionais, sendo o uso pessoal do mesmo pelo Autor como mero acto de tolerância (por parte da Ré).
É certo que nas alegações, a Ré indica que impugna os seguintes factos:
«a) Apenas aos trabalhadores e colaboradores afetos às funções de recolha era atribuída viatura;
b) As recolhas apenas podiam ser feitas através da utilização das viaturas automóveis disponibilizadas pela sociedade Recorrente para o efeito;
c) A utilização das viaturas para fins pessoais era considerada uma permissão da sociedade recorrente e não um direito;
d) Atendendo às necessidades resultantes da organização do processo de recolhas, os trabalhadores e colaboradores adstritos a essas funções, estavam autorizados, por razões de eficiência, a levar a viaturas para casa, ocorrendo tal permissão tanto aos dias de semana como aos fins de semana».
Porém, o que, com um esforço acrescido, se retira das conclusões é, como se disse, tão só que a recorrente entende que a utilização da viatura a título pessoal pelo Autor decorria tão só de um acto de tolerância, de uma permissão da Ré.
Mas essa é uma questão de direito, e não propriamente de facto.
Aliás, em relação aos factos que a recorrente indica nas alegações pretender ver aditados, dir-se-á que alguns deles [os referidos em a) e b) já resultam da factualidade provada]; outros [o referido em c)] mais não são que uma conclusão jurídica a extrair; em relação a outro [o referido em d)], apesar de se afigurar parcialmente correcto, sempre imporia alguma rectificação e concretização.
Embora se afigure que a recorrente nem sequer cumpriu o ónus que a lei lhe impõe quanto à impugnação da matéria de facto, maxime quanto à indicação nas conclusões dos concretos pontos da matéria de facto que impugna, vejamos se existe fundamento para alterar a matéria de facto.
Para tanto revisitamos a prova testemunhal produzida.
Ora, como bem se assinala na motivação da 1.ª instância, «[t]odas as testemunhas, com excepção de …que não tem, nem teve, qualquer relação com a ré, referiram que o autor efectuava recolhas de amostras nos clientes e que as viaturas eram atribuídas aos colaboradores com estas funções, por da mesma necessitarem, dado terem de se deslocar para efectuar tal trabalho e muitas vezes em fins-de-semana, à noite, à vinda para ao trabalho, à ida para casa».
Contudo, como também bem se explicita na mesma motivação, resulta ainda dos diversos depoimentos que o Autor usava a viatura também na sua vida pessoal, seja aos fins de semana, férias ou feriados, sendo todas as despesas suportadas pela Ré.
Ora, se é certo que se pode compreender que no dia-a-dia de trabalho, e em função das funções por si desempenhadas, o Autor pudesse levar a viatura para casa, assim permitindo uma maior eficiência na deslocação aos locais de recolha das amostras, já é difícil aceitar que por razões profissionais o Autor utilizasse a viatura para fins pessoais nas férias ou até feriados e fins de semana; afigura-se pertinente perguntar: mas então nas férias o Autor também recolhia amostras ou tinha que recolher?
Entende-se que não: se as férias se destinam ao repouso do trabalhador e se nesse período o Autor utilizava a viatura que lhe estava atribuída apenas para fins pessoais, suportando a Ré as correspondentes despesas, não se vê como se possa concluir, como o faz a recorrente, que a utilização da viatura para fins pessoais resultava apenas de uma mera “permissão”, um acto de “tolerância” da Ré.
Atente-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado de forma reiterada que o critério a considerar que a atribuição a um trabalhador de um veículo automóvel, com despesas de manutenção a cargo da entidade empregadora, para o serviço e para o uso particular daquele, constituirá ou não retribuição, conforme se prove que essa atribuição é feita com carácter obrigatório ou como um acto de mera tolerância [por todos, vejam-se os acórdãos de 25-01-2001 (Revista n.º 3108/00), 14-02-2001 (Revista n.º 112/00), de 12-01-2006 (Recurso n.º 2837/05), de 12-09-2007 (Recurso n.º 1513/07), de 23-09-2009 (Recurso n.º 3843/08), de 18-12-2013 (Recurso n.º 248/10.0TTBRG.P1.S1) e de 30-04-2014 (Recurso n.º 714/11.0TTPRT.P1.S1).
Pois bem: face à atribuição da viatura ao Autor a título pessoal, uma vez que se presume constituir retribuição toda e qualquer prestação da empregadora ao trabalhador, competia àquela provar que o uso do veículo automóvel pelo trabalhador para fins pessoais se tratava de mera liberalidade ou de um acto de mera tolerância (cfr. artigo 258.º, n.º 3, do Código do Trabalho e artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
Ora, se a viatura é também “atribuída” para uso pessoal, incluindo em férias e fins-de-semana, assumindo a empregadora as despesas inerentes à utilização da mesma, tal representa para o trabalhador uma vantagem económica, como contraprestação da relação de trabalho, tornando até desnecessária a compra pelo mesmo trabalhador de uma viatura para uso pessoal.
Por isso, e independentemente da qualificação jurídica que seja dada pelas partes, não se vê como possa afastar-se a natureza retributiva decorrente da atribuição ao Autor da viatura para uso pessoal (assim como de outros instrumentos de trabalho, que agora não estão em causa).
Nesta sequência, pese embora, como se referiu, se entenda que a questão suscitada pela recorrente sob impugnação da matéria de facto melhor se enquadraria na questão jurídica inerente à qualificação ou não da natureza retributiva da utilização pelo Autor, para uso pessoal, da viatura automóvel, o certo é que não se lobriga fundamento para alterar a matéria de facto fixada na 1.ª instância.
Improcedem, por consequência, nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.
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2. Quanto a saber se a Ré podia fazer cessar unilateralmente o pacto de não concorrência
Relacionado com esta questão importa ter presente o que decorre da matéria de facto:
- consta do contrato de trabalho celebrado entre as partes (cláusula 6.ª) que «em caso de despedimento ou saída do CC por qualquer outro motivo, o 2.º Outorgante receberá uma indemnização correspondente a setenta salários mensais, esta indemnização justifica-se pelo facto do 2.º Outorgante ao deixar de trabalhar para a 1.ª Outorgante não poder trabalhar, no território nacional, durante um período de cinco anos, em empresas concorrentes da 1.ª Outorgante” (facto K);
- em 03 de Abril de 2013 a Ré comunicou ao Autor, por carta registada com aviso de recepção, que a referida “obrigação de não concorrência deveria ser declarada extinta, com efeitos imediatos, extinguindo-se de igual modo o ónus imposto ao autor, com as inerentes consequências legais e contratuais” , o que o autor não aceitou (facto L);
- o despedimento do autor veio a efectivar-se com efeitos a 22 de Junho de 2013 (facto M).
A 1.ª instância respondeu negativamente à questão equacionada, desenvolvendo para tanto a seguinte fundamentação:
«Na situação sub judice a ré veio unilateralmente considerar sem efeito a cláusula em apreço, renunciando à mesma, com a oposição do autor, sendo que se discute se a ré pode validamente eliminar esta cláusula do acordo, contra a vontade do autor.
Fundamentalmente debatem-se duas teses opostas, ambas com argumentos de valia.
Por um lado, argumenta o autor que está em causa um contrato sinalagmático (gerador de uma obrigação de non facere para o trabalhador e de uma obrigação compensatória para o empregador), o qual deve ser cumprido, inexistindo base legal para que a ré a possa, unilateralmente, eliminar.
Por outro lado, argumenta a ré que está em causa uma limitação da liberdade de trabalho do autor, a qual é instituída no exclusivo interesse da ré, sendo que à mesma cabe avaliar da necessidade desta salvaguarda e, caso tal não justifique, não poderá o autor opor-se à eliminação de um ónus que sobre si impende.
À primeira vista, dir-se-ia que à ré assiste razão. Efectivamente está em causa um ónus, uma limitação a uma liberdade fundamental do autor (princípio da liberdade de trabalho previsto nos artigos 47º nº 1 e 58º nº 1 da Constituição da República Portuguesa), sendo certo que esta limitação foi constituída no interesse da empresa, tendo em vista a protecção de informação sensível e com relevância concorrencial, com potencial causador de dano caso o trabalhador a utilizasse ao serviço de empresa concorrente. Daí que pudesse o empregador dar sem efeito unilateralmente esta limitação, situação que até beneficiaria o trabalhador, que se veria livre para trabalhar onde obtivesse lugar e usar do seu know-how.
No entanto, crê-se que a questão terá de ser analisada de forma mais aprofundada, sendo que esta análise imporá solução diferente.
Há que atentar nos efeitos desta cláusula sobre o trabalhador: cessando o seu contrato de trabalho, sabe que se encontra impedido de trabalhar em empresa concorrente em determinada circunscrição territorial. Porém, ao contrário que se possa pensar numa primeira análise, a limitação do trabalhador não se inicia com o fim do contrato de trabalho. Inicia-se antes com a forma como este gere a sua carreira (apostando tudo na empresa onde se encontra, muitas vezes com adiamento de projectos pessoais) como perspectiva o investimento em formação (não procurando outros segmentos do conhecimento dentro do seu ramo, por não serem úteis naquela empresa e não poderem ser utilizados por si em empresa concorrente), como não procura estabelecer contactos com outras entidades que lhe poderiam proporcionar oportunidades de trabalho. Acresce que aceitar a tese defendida pela ré teria o efeito perverso de permitir ao empregador reservar-se a possibilidade de tomar a decisão final no momento da cessação do contrato de trabalho ou em momento próximo deste, se lhe interessa ou não invocar a obrigação de não concorrência e pagar a correspondente compensação (vd. Conselheiro Júlio Gomes in “Algumas questões sobre as cláusulas ou pactos de não concorrência em Direito de Trabalho” Revista do Ministério Público nº 27, págs. 97 e 98, referindo-se à previsão contratual de possibilidade de renúncia unilateral por parte da empresa). Ficaria então o trabalhador à mercê da vontade do empregador, depois de ter já sofrido os efeitos decorrentes da consciência de que cessando o contrato não poderia trabalhar para a concorrência.
Estes aspectos, facilmente esquecidos, têm na base a legítima expectativa da parte que se sabe profissionalmente condicionada, pelo que se não se crê que se possa afirmar que a limitação do trabalhador se inicia com o fim do contrato e, eliminado o pacto de não concorrência antes de sobrevir tal momento, apenas estará em causa a eliminação de um ónus.
Ónus sim, mas estabelecido contratualmente.
Certo é que muitos trabalhadores não se encontrarão em posição de negar a inclusão deste pacto no seu contrato, também é certo que foi entendido pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 256/2004 datado de 14 de Abril de 2004, processo n.º 674/02, da 2.ª Secção e do qual é relator o Conselheiro Mário Torres, que o trabalhador não fica, em rigor, absolutamente privado do seu direito ao trabalho posto que a limitação voluntária ao exercício desse direito é sempre revogável (artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil). Note-se porém que esta possibilidade não é pacífica, existindo vozes na doutrina que consideram esta regra geral inaplicável, ainda que a título meramente subsidiário, a um regime especialmente singular (vd. Joana Vasconcelos, “Sobre a aplicação do artigo 81º do Código Civil às cláusulas de limitação da liberdade de trabalho” in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pp.201 e ss.).
No seguimento do que vem de expor, como se explica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2014, processo nº 2525/11.3TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “ O pacto de não concorrência tem obrigatoriamente carácter oneroso (cfr. arts. 36.º, n.º 2, c), LCT, 146.º, n.º 2, c), CT/2003, e 136º, n.º 2, c), CT/2009) e é sinalagmático (gera uma obrigação de non facere para o trabalhador e uma obrigação compensatória para o empregador), constituindo parte integrante do conjunto do contrato de trabalho [trata-se de uma cláusula acessória, conformadora de um efeito (acessório) da cessação do contrato].
Na atualidade, como se sabe, o Direito dos Contratos encontra-se enformado por uma filosofia dirigida à compatibilização da liberdade e da justiça contratuais.
Para isso, convocam-se princípios fundamentais, como é o caso dos da autonomia da vontade (nas suas vertentes da autorregulação e autorresponsabilidade) e da força vinculativa dos contratos (pacta sunt servanda). Ao mesmo tempo é conferida especial atenção à complexidade da relação contratual (constituída por uma multiplicidade de elementos que se coligam em função de uma “identidade do fim” e lhe imprimem um “carácter unitário e funcional”) e “à exata satisfação dos interesse globais envolvidos na relação obrigacional”, numa abordagem dinâmica, integrada e coerente desses múltiplos interesses (…).
Por outro lado, não pode desconhecer-se que todo o contrato consubstancia um equilíbrio global, um conjunto de “pesos e contrapesos” que lhe conferem uma coerência unitária, o que não se compadece com uma análise compartimentada das diferentes partes que o integram, nomeadamente das cláusulas atinentes ao estatuto remuneratório do trabalhador e das relativas à compensação estipulada como contrapartida da não concorrência.
Esta “compensação” – cujo pagamento, no entendimento de alguma doutrina estrangeira, representa uma condição de eficácia dos pactos deste tipo – não reveste, evidentemente, natureza retributiva (não há prestação, mas abstenção do trabalho).
Mas a sua estipulação é geradora de expectativas legítimas que não podem ser ignoradas, pelo que não parece razoável permitir – das implicações dos princípio da boa fé e numa adequada ponderação de todos os interesses envolvidos – que as mesmas possam ser unilateralmente frustradas pelo empregador.
Acresce, como sustenta Monteiro Fernandes, que a esta compensação deve considerar-se “aplicável, na generalidade, e por manifesta analogia, o regime protetivo que a lei desenha para a retribuição do trabalho”, uma vez que está em causa “um contravalor de um trabalho que o trabalhador fica privado de prestar” in “Direito do Trabalho”, Almedina, 16ª edição, p. 537”.
Conclui-se então como no douto Acórdão citado: na ausência de disposição legal que o consinta e tendo em conta todas as razões expostas, não pode deixar de concluir-se no sentido da impossibilidade de subtrair os pactos de não concorrência do princípio segundo o qual os contratos livremente celebrados dessem ser pontualmente cumpridos e só por acordo dos contraentes podem modificar-se (artigo 406º, n.º 1, do Código Civil), motivo pelo qual se julga nula a renúncia ao pacto de não concorrência operada pela ré».
A Ré rebela-se contra tal entendimento, argumentando, ao fim e ao resto, que a sentença recorrida não atendeu ao caso concreto, pois os incómodos de um pacto de não concorrência não se verificaram no recorrido, tendo, ao invés, «a sentença recorrida provocado um desequilíbrio manifesto entre a compensação que arbitrou ser devida ao Recorrido e o benefício que a sociedade Recorrente poderá ter auferido durante os escassos 8 meses em que vigorou o pacto de não concorrência».
Diga-se desde já que se entende que, também nesta matéria, a 1.ª instância decidiu com acerto, subscrevendo-se a fundamentação dela constante que, por isso, se transcreveu.
Daí que se imponham apenas algumas considerações sobre a matéria, no sentido da solução alcançada na 1.ª instância.
Como princípio geral é nula a cláusula do contrato de trabalho ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho que, por qualquer forma, possa prejudicar o exercício da liberdade de trabalho após a cessação do contrato (n.º 1 do artigo 136.º do Código do Trabalho).
Porém, verificados determinados pressupostos, a lei admite excepções a tal princípio: assim é que nos termos do n.º 2 do mesmo artigo é lícita a limitação da actividade do trabalho, durante o período máximo de dois anos após a cessação do contrato, desde que (a) conste de acordo escrito, (b) se trate de actividade cujo exercício possa causar prejuízo ao empregador e (c) seja atribuída ao trabalhador, durante o período de limitação da actividade uma compensação.
Em relação ao acordo escrito, não definindo especificamente a lei qualquer momento para a celebração do mesmo (embora o admita no contrato de trabalho ou na sua revogação), há-de entender-se que o pode ser aquando da celebração do contrato, na vigência do mesma, ou aquando da sua cessação.
E, tendo sido incluído no próprio contrato, e atendendo a que dele emergem direitos e obrigações para ambas as partes (para o Autor uma limitação do direito ao trabalho, no sentido de após a cessação do contrato não poder exercer determinada actividade, e um direito a uma compensação, e para a empregadora o dever de pagamento dessa compensação ao trabalhador, e o direito a que este, durante determinado período, não possa exercer uma actividade concorrencial), afigura-se ser medianamente aceite, tendo em conta os princípios da boa fé que devem presidir à celebração de qualquer contrato, que tal cláusula foi devidamente ponderada pelas partes, podendo, inclusive, ter sido relevante na celebração do contrato de trabalho com as cláusulas dele constantes.
Com efeito, pode admitir-se até que sem a inclusão daquela cláusula uma das partes não teria aceitado a celebração daquele contrato, ou não teria aceitado com o restante clausulado.
Ou seja, e tendo presente o disposto no artigo 405.º do Código Civil: as partes fixaram livremente o conteúdo do contrato de trabalho, nele incluindo a cláusula em apreço, o que significa que acordaram, livremente, direitos e obrigações para cada uma delas.
Por isso, não pode o mesmo contrato deixar de ser cumprido nos termos acordados, excepto se, por mútuo acordo, for modificado ou extinto, ou nos casos excepcionais previstos na lei (por exemplo, de alteração anormal das circunstâncias, prevista no artigo 437.º e segts do Código Civil).
Daí que não se vislumbre fundamento legal para a recorrente, de forma unilateral, fazer cessar o pacto de não concorrência.
Em defesa da sua pretensão, argumenta a recorrente que durante o período de vigência do contrato não houve qualquer investimento do recorrido, com prejuízo para outros projectos pessoais, como não houve qualquer evidência que pretendesse estabelecer contactos tendo em vista novas oportunidades (conclusão 11.ª).
Em relação a tal argumentação, objecta-se que existindo um pacto de não concorrência constante do contrato de trabalho não se vê como poderia o trabalhador, sem pôr em causa os princípios da boa fé que devem presidir à celebração e vigência do contrato, fazer neste período investimento em projectos pessoais, ou até estabelecer contactos tendo em vista novas oportunidade profissionais: ao trabalhador competia cumprir o acordado na matéria, como, de resto, cumpriu, uma vez que, como resulta da matéria de facto (n.º 18), após a cessação do contrato de trabalho celebrado com a Ré, não trabalhou para qualquer empresa concorrente da Ré.
Conclui-se, pois, mais uma vez, e tal como se concluiu na 1.ª instância, que a Ré não podia unilateralmente pôr termo ao pacto de não concorrência e, assim, eximir-se ao pagamento da compensação prevista no n.º 2 do artigo 136.º do Código do Trabalho.
Improcedem, pois, também nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.
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3. Das consequências da improcedência da impugnação da matéria de facto e da invalidade da denúncia unilateral do pacto de não concorrência.
Face à não alteração da matéria de facto, como resulta da fundamentação supra, terá a utilização, a título pessoal, da viatura automóvel por parte do Autor que integrar a retribuição, tal como entendeu a 1.ª instância, sendo que não vêm concretamente postos em causa os valores aí apurados com base em tal entendimento.
E o mesmo se verifica quanto à invalidade da denúncia unilateral do pacto de não concorrência: a recorrente sustentava a validade dessa denúncia unilateral.
Tendo a 1.ª instância declarado a invalidade/nulidade da denúncia do pacto de não concorrência, e, subsequentemente, fixado o montante compensatório devido ao trabalhador no correspondente às retribuições equivalentes ao período de dois anos, o qual não se mostra concretamente posto em causa pela recorrente, terá, forçosamente, que se manter.
Aqui chegados, nada mais resta senão julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
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4. Vencida no recurso, deverá a Ré/recorrente suportar o pagamento das custas respectivas (cfr. artigo 527.º do CPC).
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V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por CC, Lda., e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela Ré/recorrente.
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Évora, 12 de Outubro de 2017
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço
Moisés Pereira da Silva

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[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Paula do Paço, (2) Moisés Silva.
[2] O presente relatório corresponde, no essencial, ao constante dos anteriores acórdãos proferidos nos autos, também relatados pelo ora relator, acrescido das incidências processuais subsequentes.