Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
105257/22.7YIPRT.E1
Relator: MARIA EMÍLIA MELO E CASTRO
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Nos termos da 1ª parte do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, é dever do Tribunal “observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório”.
2. Numa forma processual que comporta apenas dois articulados, como é a ação especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, às exceções deduzidas na contestação a Autora deve poder responder em articulado ad hoc que o Tribunal lhe assinale para o efeito, dentro do poder/dever de conformação processual que lhe é cometido nos artigos 6.º, n.º 1 e 547.º do Código de Processo Civil ou, não existindo essa iniciativa, necessariamente, no início da audiência final, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 3.º do mesmo Código.
3. A obliteração desse contraditório quanto a exceção perentória cuja procedência determinou a decisão de mérito, permitiu considerar demonstrada matéria de facto que, de outro modo, poderia não se provar, assim como privou a Autora de alegar e demonstrar outra (em sede de contra exceção) que, se provada, poderia ter conduzido ao desfecho inverso.
4. Nessa medida, afigura-se insofismável que a omissão viciou a sentença final, pelo que independentemente da forma como se qualifique o vício, a violação do princípio do contraditório, deve conduzir à nulidade dessa decisão.
5. O excesso de pronúncia previsto na 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil persiste na linha dos ensinamentos do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, a via mais consolidada de qualificação do vício, sendo de aceitar que uma decisão de mérito que foi enformada por matéria não devidamente contraditada, por omissão de procedimento, está a exceder os limites da sua cognição, devendo ser considerada nula.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 105257/22.7YIPRT.E1
Forma processual – ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos
Tribunal Recorrido – Juízo Local Cível de Évora – J1
Recorrente(s) – (…) – Sociedade de (…) e Ar Condicionado, Lda.
Recorrido(a)(s) – (…) – Construção Civil, Obras Públicas e Particulares, Arquitetura e Engenharia, S.A.

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Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Relatório

I. Identificação das partes e descrição do objeto da ação.
(…) – Sociedade de (…) e Ar Condicionado, Lda., requereu junto do Balcão Nacional de Injunções a notificação de (…) – Construção Civil, Obras Públicas e Particulares, Arquitectura e Engenharia, S.A. para lhe pagar a quantia total de 6.186,17 euros, sendo € 6.084,17 de capital e € 102,00 de taxa de justiça.
Fundamentou a sua pretensão no facto de ter efetuado, como subempreiteira, trabalhos a mais que descreveu, na obra de execução do sistema de (…) do Hospital do (…), em (…), tendo enviado a fatura pertinente à Requerida, que não a pagou.
A Requerida deduziu oposição, excecionando a ineptidão do requerimento de injunção e impugnando, na sua totalidade, os factos alegados no mesmo requerimento.
Distribuída a injunção como ação para o cumprimento de obrigações pecuniárias, a Requerente respondeu espontaneamente à ineptidão arguida, concluindo pela respetiva improcedência.
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Convidada a Autora a apresentar articulado de aperfeiçoamento, veio fazê-lo, o que mereceu o contraditório da Ré.
Neste articulado, a demandada impugnou parcialmente a factualidade vertida naquele outro, excecionou o exercício do direito de resolução do contrato por incumprimento da contraparte e invocou, a título subsidiário (“em caso de reconhecimento do crédito invocado pela A. contra a R.”), a compensação de créditos, alegando, a esse título, ser titular de um crédito no valor de 9.688,43 euros, correspondente ao que despendeu com a contratação de empresas terceiras para suprir os defeitos, concluir e certificar os trabalhos da demandante.
Notificada dessa resposta, a Autora apresentou articulado, no qual sustentou a inadmissibilidade da reconvenção na forma de processo em aplicação, impugnou os documentos oferecidos pela contraparte e juntou outros.
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Realizou-se audiência final, em três sessões, finda a qual veio a ser proferida, em 5 de abril de 2025, sentença em cujo trecho decisório se exarou:
Face ao exposto, julgando totalmente improcedente a presente ação, decide-se:
a) absolver a ré do formulado pedido de pagamento quantia de € 6.186,17 e dos respetivos juros de mora;
b) condenar a autora no pagamento das custas.
Registe e notifique”.

II. Objeto do recurso.
Não se conformando com essa sentença, a Autora dela interpôs o presente recurso, culminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“A) Em Abril de 2019, a Autora obrigou-se a executar trabalhos a mais, incluídos no objecto do contrato de subempreitada o que implicou uma alteração na data inicialmente fixada para conclusão dos trabalhos – 31 de Dezembro de 2018. O que significa que, embora não concluídos os trabalhos em 31 de Dezembro de 2018, conforme inicialmente convencionado, esse facto não pode ser imputado à Autora (subempreiteira).
B) A Ré alegou que, em momento anterior a 6 de Junho de 2019, interpelou reiteradamente a Autora no sentido de diligenciar pela conclusão dos trabalhos que lhe haviam sido adjudicados e em boas condições de execução, protestando juntar documentos, o que não fez, não cumprindo o ónus de provar tais factos. A douta decisão fundamentou a prova de tal matéria na prova testemunhal, sendo certo que nada é referido, em sede de fundamentação, quanto a este ponto específico.
C) Só poderia ser dado como provado que a ré, “em momento anterior a 6 de Junho de 2019 interpelou reiteradamente a autora” se estivesse demonstrado no processo as datas em que foram feitas as várias interpelações e o conteúdo das mesmas. Acresce que tal matéria é conclusiva e contém formulações genéricas.
D) Ao dar como provado que a dona da obra já tinha feito notar à ré que o desempenho da Autora, como subempreiteira, “deixava muito a desejar”, “atenta a sua manifesta incapacidade de cumprir com os trabalhos que lhe haviam sido adjudicados”, “em boas condições de execução”, foram incluídas na matéria de facto afirmações genéricas e conclusivas.
E) Ao incluir na matéria de facto dada como provada as expressões “em consequência dos factos referidos nos pontos 9 a 15” e “viu-se na contingência de contratar uma empresa terceira” foram levadas à matéria de facto expressões conclusivas.
F) No âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito, ao abrigo da previsão do n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
G) A matéria dos pontos 13 e 14 dos factos provados deve ser excluída dos factos dados como provados e as expressões “em consequência” e viu-se na contingência” devem ser expurgadas da matéria de facto dada como provada.
H) Foi dado como não provado que “a ré não reclamou da Fatura n.º (…)”, facto que havia sido alegado pela Autora. Não é possível demonstrar materialmente um facto que não ocorreu (a Autora não pode demonstrar que a Ré não reclamou), pelo que a prova desse facto fluirá naturalmente da demonstração do facto positivo contrário, ou seja, era à Ré que cabia demonstrar que reclamou da factura. Não tendo feito, terá que ser dado como provado que a Ré não reclamou da factura n.º (…).
I) Ao decidir pela licitude da resolução do contrato de subempreitada, o Tribunal a quo proferiu uma “decisão surpresa” já que conheceu de matéria de direito que não fora invocada e sem que tal decisão tenha sido precedida de contraditório a exercer pelas partes.
J) A Ré apenas invocou a figura da compensação de créditos e foi proferido despacho no sentido de que essa possibilidade deve ser dada ao réu de modo a que este possa invocar a figura da compensação de créditos, devendo o juiz, se necessário, fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respectiva tramitação à dedução do pedido reconvencional.
K) Apesar do teor de tal despacho, o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia conhecer já que não pode apreciar ex officio de matéria que não é de conhecimento oficioso.
L) O Tribunal deve conter-se dentro do objecto do litígio, em função da causa de pedir, do pedido formulado e das excepções deduzidas pelo que a sentença é nula por excesso de pronúncia.
M) Como é entendimento consolidado na doutrina e jurisprudência, a simples mora de um dos contraentes não confere ao outro, sem mais, a possibilidade de resolução do contrato, já que é necessário que a mora seja convertida em incumprimento definitivo, o que só pode ser feito através da interpelação admonitória.
N) Tendo em consideração os factos que devem ser dados como provados, a Ré não logrou sequer provar a interpelação. Mas, ainda que ela tivesse ocorrido, teria necessariamente que ser uma interpelação admonitória e, para tanto, não basta alegar que “a ré interpelou reiteradamente a autora no sentido de diligenciar pela conclusão dos trabalhos que lhe haviam sido adjudicados, em boas condições de execução”.
O) O mesmo raciocínio vale para a “Declaração de não recepção da obra”, onde estão discriminados os defeitos e más execuções. Ao receber tal declaração, o que a Ré deveria fazer era interpelar a Autora para, num prazo razoável, proceder à eliminação dos invocados “defeitos e más execuções”, com a cominação de que, se tal não ocorresse, a obrigação se teria como definitivamente incumprida.
P) A Ré, sem fazer uso da interpelação admonitória, decidiu comunicar à Autora a resolução do contrato de subempreitada. O que vale por dizer que, inexistindo interpelação admonitória, inexistindo incumprimento definitivo, a resolução do contrato de subempreitada por iniciativa da Ré não é válida nem eficaz.
Q) Não foi alegado nem resultou provado que a Ré tenha feito qualquer denúncia, indicando inequivocamente e com grau de precisão os defeitos detectados na obra. Para tanto, não basta dizer que “a ré interpelou reiteradamente a autora no sentido de diligenciar pela conclusão dos trabalhos . . . e em boas condições de execução”.
R) A Ré não fez prova documental, que protestou juntar, que tenha feito interpelação ou denúncia e o que vem dado como provado é vago, genérico e conclusivo.
S) O dono da obra, perante defeitos denunciados, está obrigado a observar a prioridade dos direitos consignados nos artigos 1221.º a 1223.º do Código Civil. Ou seja, deverá primeiro exigir a eliminação dos defeitos; depois nova construção; e seguidamente a redução do preço ou, em alternativa, a resolução do contrato.
T) Se o dono da obra optar pela eliminação dos defeitos, tem que obter condenação do empreiteiro à prestação de facto, antes de recorrer a terceiro para a sua eliminação. Pelo que nunca a Ré poderia peticionar (no caso sub judice através da excepção de compensação de créditos) à Autora os custos que pagou a terceiro para eliminar esses defeitos, sem observância da prioridade dos direitos supra indicados.
U) O dono da obra deve, sob pena de caducidade, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu descobrimento. A dona da obra denunciou os defeitos através de declaração emitida em 6 de Junho de 2019. A Ré, na relação com a Autora, assume o papel de dona da obra e, ao invés de denunciar à Autora os invocados defeitos, decidiu, sem mais, pela resolução do contrato de subempreitada.
V) Os direitos de eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização caducam, se não forem exercidos dentro de um ano a contar da recusa de aceitação da obra ou da aceitação com reserva. Assim, tais direitos caducaram já que não foram exercidos no prazo de um ano a contar de 6 de Junho de 2019, data da “Declaração de não recepção da obra”.
X) No âmbito da acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato não é admissível a reconvenção. Havendo reconvenção ou se estivéssemos na presença de acção declarativa intentada pela Ré para exercer os direitos de eliminação de defeitos ou de resolução do contrato de subempreitada, a Autora poderia, em sede de réplica ou de contestação, invocar a caducidade. No âmbito do presente processo, a Autora não foi sequer convidada a apresentar resposta à excepção. Assim, estando excluída da disponibilidade da Autora suscitar a excepção de caducidade, a mesma é de conhecimento oficioso e pode ser alegada a qualquer momento do processo.
Z) A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 406.º, n.º 1, 432.º, n.º 1, 808.º, 828.º, 1220.º, n.º 1, 1221.º, 1222.º, 1223.º e 1224.º, n.º 1, do Código Civil e dos 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil”.
Concluiu, pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido por ela formulado.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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III. Questões a solucionar
Face ao teor das conclusões da Recorrente (que estão para o objeto do recurso como o pedido está para o objeto da ação – cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 212) as questões a solucionar neste acórdão são, pela ordem lógica que entre elas se julga existir, as que se identificam:
I. Saber se a sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia.
II. Se o Tribunal recorrido incluiu na decisão da matéria de facto expressões que da mesma devem ser expurgadas e se errou no julgamento dessa questão.
III. Estabilizado o facto, saber se o Tribunal recorrido errou no julgamento de direito.
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Fundamentação
I. Nulidade da sentença por excesso de pronúncia
Nas suas conclusões, a Recorrente insurge-se contra a legalidade da sentença recorrida, invocando que a mesma constitui “decisão-surpresa” quanto ao conhecimento que tomou da resolução do contrato e que, no seu entender, não deveria ter conhecido, já que se tratava de matéria não alegada.

I. a) Factualidade relevante para o conhecimento da nulidade
Para melhor circunscrever a discussão da nulidade invocada, alinham-se os factos processuais que interessam à sua decisão.
São eles:
(i) Notificada do articulado de aperfeiçoamento do requerimento inicial, a Ré apresentou resposta com o seguinte teor:
1. Não assiste qualquer razão à A., pelo que vão expressamente impugnados os factos não expressamente aceites, por verdadeiros.
2. Corresponde à verdade o vertido nos artigos 1º, 2.º, 3.º e 5.º da douta p.i. aperfeiçoada.
Porém,
3. Os trabalhos adjudicados pela R. à A. não foram concluídos no prazo e nos termos e condições contratualmente estabelecidas, pelo que nunca foram aceites.
Em razão de tal estado de situação,
4. A R. procedeu à resolução unilateral, com justa causa, do contrato de subempreitada celebrado entre ambas as partes - Vide doc. n.º 1, cujo teor se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.
5. Tal comunicação foi recebida pela A. em 8 de Julho de 2019 Vide docs. n.ºs 2 e 3.
Na verdade,
6. No dia 6 de Junho de 2019 foi levada a cabo a recepção provisória da obra entre dono de obra, Hospital do (…) de (…), e empreiteira, ora R..
Na sequência,
7. Foi emitida "Declaração de não recepção da obra", por se ter constatado que os "trabalhos referentes aos capítulos do (…) não estão concluídos em conformidade e em condições de serem recebidos provisoriamente, uma vez que não foram executados em observância das regras da boa execução" – cfr. documento a instruir o doc. n.º 1.
8. Em tal documento vêem descriminados detalhadamente os defeitos e más execuções detectadas – cfr. documento a instruir o doc. n.º 1.
Ora,
9. Todos os capítulos referentes ao (…), correspondem ao objecto do contrato de subempreitada celebrado entre A. e R., incluindo os trabalhos a mais.
Note-se que,
10. Em momento anterior à aludida recepção provisória da obra, a R. interpelou reiteradamente a A. no sentido de diligenciar pela conclusão dos trabalhos que lhe haviam sido adjudicados e em boas condições de execução – protesta juntar documentos.
Aliás
11. O dono de obra, já tinha feito notar à R. que o desempenho da A. como subempreiteira deixava muito a desejar, atenta a sua manifesta incapacidade de cumprir com os trabalhos que lhe haviam sido adjudicados, em boas condições de execução, o que, aliás, era do conhecimento integral, directo e pessoal dos funcionários da A. e assim também desta.
12.O dono de obra já tinha inclusivamente ameaçado a R. com a resolução do contrato de empreitada, caso a situação não se alterasse, por insustentável, essencialmente, por duas ordens de razões:
a) Em primeiro lugar, porque a falta de conclusão dos trabalhos referentes ao (…), impediam a utilização do espaço intervencionado, ou seja, a Unidade de Cuidados Intensivos por falta de Climatização e Ventilação;
b) Em segundo lugar, porque a empreitada tinha sido financiada por fundos da união europeia, ao abrigo do programa Alentejo 2020, e teria de ser concluída a breve trecho, sob pena de terem de ser devolvidos todos os apoios recebidos.
13. Por via de tal estado de situação e por corresponder à verdade, a R. não teve outra alternativa senão resolver o contrato de subempreitada, em causa.
Em consequência,
14. A R. viu-se na contingência de contratar empresas terceiras, no propósito confesso de suprir as desconformidades, concluir e certificar os respectivos trabalhos, nomeadamente, os plasmados na factura junta aos autos, pela A.
15. Para o efeito, a R. despendeu a importância de 9.688,43 euros – Vide docs. n.ºs 4, 5, 6 e 7. Protesta juntar documentos.
Sendo certo que,
16. A A. nunca impugnou judicialmente a resolução contratual operada pela R., e os motivos e razões invocados na mesma, até à presente data, o que configura aceitação, daquela.
Destarte
17. Não poderia vir a reclamar o pagamento da factura, em apreço, nos presentes autos, atenta tal resolução contratual.
Por mera cautela e dever de patrocínio,
18. Invoca-se a figura de compensação de créditos, em caso de reconhecimento do crédito invocado pela A. contra a R., nos presentes autos, nos termos do estatuído no artigo 847.º do CC, considerando que o valor supra aludido de 9.688,43 euros, é superior ao montante peticionado pela 4, nos presentes autos.
Ademais,
19. Nos presentes autos, está vedado à R. formular pedido reconvencional, no propósito de peticionar o indicado valor, assim como, formular pedido de indemnização civil pelos danos e prejuízos causados.
20. Pelo que tal compensação terá sempre de ser apreciada e admitida, sob pena de uma compressão inadmissível do direito de defesa da R. e assim uma violação do disposto no artigo 20.º da CRP.
21. Mais configuraria erro na forma do processo, o que consubstanciaria a nulidade prevista no artigo 193.º do CPC, sem possibilidade de aproveitamento dos actos praticados, por tal corresponder a uma significativa e palmar diminuição das garantias de defesa da R..
Face ao sobredito,
A) Deverá reputar-se por improcedente o pedido aventado pela A.;
Sem conceder;
B) Deverá operar a figura da compensação de créditos invocada pela R., sob pena de configurar, designadamente, a nulidade prevista no artigo 193.º do CPC e corresponder a uma violação do estatuído no artigo 20.º da CRP.
(…)”.
(ii) Na sequência da notificação dessa resposta, a Autora apresentou articulado com o seguinte teor:
Na sua contestação vem a R. invocar a compensação de créditos e alegar que os trabalhos a mais “nunca foram aceites”.
E para “provar” a pretensa compensação de créditos vem juntar documentos que, segundo alega, constituem “facturas”.
Desde logo se dirá que, como é jurisprudência pacífica e uniforme, no âmbito da Acção Declarativa Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contratos, regulada pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, a qual permite apenas dois articulados, não é admissível a dedução de reconvenção.
Sendo certo que, por força do disposto no artigo 266.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, a excepção de compensação de créditos tem de ser obrigatoriamente deduzida por via reconvencional.
Não sendo admissível o pedido reconvencional que visa a compensação de créditos, não é também admissível a junção de documentos que visam tal propósito.
De todo o modo, dir-se-á também que tais documentos são impugnados porque a A. desconhece o seu teor.
E porque “comprovativos de “transferência” e “extratos de conta” não são “facturas”.
Relativamente á alegação de que os trabalhos “nunca foram aceites”, vem a A. juntar documentos que provam o contrário e cuja junção só agora se faz face à posição assumida pela R. na contestação.
Assim, os trabalhos a mais foram discriminados em listagem, através de e-mails enviados à R., em 21 e 25 de Março de 2019, com a indicação de que a A. avançaria com a sua execução após aprovação (doc. 1).
10º
Através de e-mail, de 5 de Abril de 2019, a R. aprovou a listagem de trabalhos a mais (doc. 1).
11º
Através de e-mail, de 24 de Abril de 2019, a A. solicitou a aprovação do auto de trabalhos a mais (doc. 2).
12º
Através de e-mail, de 26 de Abril de 2019, a R. comunicou que “o auto está aprovado”.
13º
Na sequência da aprovação do auto, foi emitida a factura.
14º
Junta-se, como solicitado pela R., certidão permanente da A. (doc. 3).
(iii) Seguiu-se, sem mais articulados, a realização de audiência final, em cuja 1ª sessão foi proferido, logo após a tentativa de conciliação gorada, o seguinte despacho:
Nos presentes autos, a autora (…) – Sociedade de (…) e Ar Condicionado, Lda., ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, apresentou um requerimento de injunção onde demandou a ré (…) – Const. Civil, Obras Públicas e Particulares, Arquitetura e Engenharia, S.A, pedindo a condenação desta última no pagamento da quantia de € 6.186,17, conforme ali discriminado.
Nos termos do n.º 4 do citado artigo 10.º, as ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no referido diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.
Na sua oposição, a ré invocou a exceção da compensação de créditos, tendo a autora pugnado pela inadmissibilidade legal da dedução de tal exceção que, segundo a mesma autora, só pode ser deduzida pela via reconvencional, não sendo admissível a dedução de reconvenção na concreta forma processual em causa nestes autos.
(…)
Não obstante a ré não ter deduzido reconvenção, tendo-se limitado a alegar a compensação de créditos porque, como anunciou, não pretende a condenação da ora autora nestes autos na parte excedente do seu invocado crédito, fazendo aplicação dos aludidos princípios da gestão processual e da adequação formal, decide-se admitir a deduzida exceção da compensação de créditos e, consequentemente, admitir a junção aos autos dos documentos já oferecidos como prova dos correspondentes factos.
Notifique”.
(iv) Após a prolação desse despacho e da pronúncia das partes sobre requerimentos de prova, deu-se início à produção da prova admitida.

I. b) Aplicação do direito.
O processo civil nacional é dominado, salvas as exceções tipificadas na lei adjetiva, pelo princípio do contraditório, atualmente entendido, não apenas como a dialética requerimento/resposta que domina a atividade processual das partes (à qual o juiz tradicionalmente assistia impassível com o fito de obter os elementos que iriam enformar a sua decisão) mas como o direito de as partes participarem, elas mesmas, de forma ativa, no processo de formação da decisão judicial. De uma visão linear da contraditoriedade (entre partes) o processo civil evoluiu para uma geometria triangular do contraditório, da qual o Tribunal faz parte.
Segundo a Lição dos Professores Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na anotação aos n.ºs 3 e 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil:
Resultam estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de ser pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termo de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Código de Processo Civil anotado, volume 1.º, 4ª edição, Almedina, pág. 29).
Essa participação do Tribunal coloca-o numa posição de agente do contraditório, sendo essencial ao cumprimento do desiderato do processo equitativo constitucionalmente consagrado no artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Nesse sentido, dispõe o artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Sendo o objeto do processo constituído pelos factos essenciais que integram a causa de pedir, mas também pelos factos que constituem a matéria de exceção (artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a atenção à dinâmica da contraditoriedade não pode concentrar-se só no Réu (curando de que este tenha espaço processual para contraditar os fundamentos da ação), mas também deve ocupar-se da posição do Autor quando aquele outro esgrime factos impeditivos, modificativos e extintivos do direito que o demandante quer fazer valer.
Numa outra formulação: para a adequada construção, em contraditoriedade, do objeto do objeto, é tão importante que o Réu se defenda da alegação do Autor, como o é que este último tenha efetiva oportunidade de responder à matéria de exceção, refutando-a nos seus alicerces.
Não sendo aqui relevante tratar de saber se o Autor tem a faculdade ou o ónus de resposta às exceções, o n.º 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil contém um comando para as situações processuais em que a matéria de exceção é esgrimida com o último articulado admissível.
Segundo a norma, nesses casos, a parte contrária pode “responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”.
Na forma processual aplicável a esta ação, rege o disposto nos artigos 7.º a 10.º, 15.º e 16.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, estando previstas duas peças processuais: um requerimento de injunção e uma oposição, o primeiro, obedecendo a um modelo legal tabelar e, a segunda, proporcionando uma defesa sumária, que não carece, sequer, de obediência à forma articulada.
Ainda na mesma forma, segue-se, se necessário (será estatisticamente a norma, atenta a natural insuficiência daquelas peças), um convite ao aperfeiçoamento dirigido pelo Tribunal a uma ou a ambas as partes, nos termos do n.º 3 do artigo 17.º do mesmo regime.
Foi o que sucedeu, no caso vertente, já que, por despacho de 7 de março de 2023, a Autora foi convidada a suprir as insuficiências de alegação que tinham levado a Ré a sustentar a ineptidão do requerimento inicial.
Correspondido o convite e atuado o contraditório, a Ré veio defender-se, com resulta da factualidade acima enunciada, nos seguintes termos: por impugnação (artigos 1º e 2º do articulado), por exceção perentória extintiva (resolução do contrato, nos termos dos artigos 3º a 13º da mesma peça) e, a título subsidiário, por compensação (causa de extinção das obrigações, prevista no artigo 847.º do Código Civil, cuja qualificação processual está envolta em controvérsia, o que, para o caso, não assume relevo, como se verá).
Assim gizada a defesa da demandada, logo se verifica que à Autora assistia a faculdade (ou o ónus, para quem o defenda) de contraditar os fundamentos da resolução contratual invocada e os factos em que se baseava a compensação.
Como atuar esse contraditório?
Em articulado ad hoc que o Tribunal assinalasse para o efeito, dentro do poder/dever de conformação processual que lhe é cometido nos artigos 6.º, n.º 1 e 547.º do Código de Processo Civil ou, não existindo essa iniciativa, necessariamente, no início da audiência final, de acordo com o citado n.º 4 do artigo 3.º do mesmo Código.
No caso, a Autora veio espontaneamente responder à contestação, pelo que, em tese, esse contraditório estaria assegurado.
Sucede que o fez, se bem se crê, sem qualquer pronúncia sobre o mérito (factos e direito) da resolução ou da compensação esgrimidas. Em síntese, a demandante limitou-se a pugnar pela inadmissibilidade do que qualificou como pedido reconvencional (referindo-se à compensação – artigos 3º a 5º), a discretear sobre os documentos oferecidos pela contraparte (artigos 6º e 7º) e a oferecer, ela mesma, documentos (artigos 8º a 14º).
Sobre o exercício do direito de resolução e sobre os factos que fundamentam a compensação, nada disse.
Seguiu-se a audiência final, que se iniciou, precisamente, com um despacho sobre a admissibilidade da invocação da compensação de créditos como meio de defesa na dada forma de processo.
De acordo com a decisão então proferida, essa invocação (que o foi a título subsidiário, ou seja, para a hipótese de não proceder à exceção de resolução contratual e o crédito da Autora dever ser atendido), foi aceite pelo Tribunal como a arguição de uma exceção perentória.
Não interessando, para a economia do recurso, ingressar na discussão sobre o imperativo da adoção da via reconvencional para esse efeito (considerado o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil), há uma certeza: a partir desse momento processual, o objeto do processo passou a estar claramente circunscrito pela causa de pedir da Autora (contrato de subempreitada incumprido) e por duas exceções perentórias, uma delas, qualificada na contestação (ainda que sem a especificação separada exigida na 2ª parte, da alínea c) do artigo 572.º do Código de Processo Civil) e a outra, como tal qualificada pelo próprio Tribunal.
O que deveria ter sucedido, ato contínuo?
A resposta afigura-se clara e resulta do que acima se disse: o exercício do contraditório sobre as exceções, de novo, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
A determinação das consequências de não ter sido atuado/exercido esse contraditório, impõe um regresso às lições doutrinais e aos ensinamentos jurisprudenciais sobre o princípio do contraditório e, sobretudo, sobre os efeitos da sua violação nas decisões de mérito proferidas com conhecimento da matéria não contraditada.
Do princípio do contraditório decorre quer um direito de resposta de uma parte perante a outra parte, dado que qualquer das partes tem direito a pronunciar-se sobre as alegações da parte contrária (art. 3.º, nº 1 in fine), quer um direito à audição prévia da parte perante o tribunal, dado que, antes de decidir, o tribunal deve ouvir sempre ambas as partes (auditur et altera pars: cfr. artigo 3.º, n.º 3, 1ª parte). (…)
(…)
Os corolários do direito à audição prévia são os seguintes:
- Em regra, levantada por uma parte uma questão, o juiz deve ouvir a parte contrária antes de decidir (artigo 3.º, n.º 3, 1ª parte); neste caso, o direito à audição prévia exige que o tribunal cumpra previamente o dever de informar a parte e que a parte tenha tempo suficiente para poder responder;
- Igualmente em regra de molde a evitar as decisões surpresa, o juiz não pode decidir questões de direito ou de facto, mesmo que sejam de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre essas questões (artigo 3.º, n.º 3, 2ª parte)” (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL, pág. 101).
Sobre o conceito de “decisão-surpresa” lê-se:
No plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Esta vertente do princípio do contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objeto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Ob. Cit. pág. 32).
Vistos esses ensinamentos, é de concluir que a decisão de mérito, ínsita na sentença recorrida, no que concerne ao efeito extintivo da resolução do contrato celebrado entre as partes (decisão essa, adiante-se, que resolveu a totalidade do fundo da ação) não é uma decisão-surpresa.
Não é uma decisão-surpresa porquanto o Tribunal recorrido não conheceu de questão oficiosa que as partes não tivessem suscitado, nem efetuou qualquer qualificação jurídica para a qual aquelas não estivessem prevenidas.
Lê-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de maio de 2024:
O conceito de decisão-surpresa, quando esteja em causa o aspeto jurídico da causa, pressupõe que a solução dada pelo tribunal não fosse, de todo, previsível para as partes. Assim sucederá quando a solução do juiz se apresente como inovadora, pelo seu caráter invulgar e singular, objetivamente considerado e, bem assim, quando toda a discussão pretérita tenha sido feita à luz de um determinado instituto jurídico, ainda que na base de equívocos, sem qualquer alerta por parte do tribunal, e, na decisão, o juiz opte por outra via, nunca cogitada” (processo n.º 753/21.2T8VVD.G2, disponível em www.dgi.pt).
Na decisão-surpresa é, pois, inovadoramente, adotada uma “terceira via”, afastando-se o tribunal das soluções que as partes consideraram nos seus atos ou sobre as quais foram convidadas a se pronunciarem” (As outras nulidades da sentença cível, Paulo Ramos de Faria/Nuno Lemos Jorge, Julgar online, setembro de 2024, 25).
No caso não houve qualquer abordagem inovadora de institutos discutidos na ação ou o conhecimento de questões de apreciação oficiosa não aventadas pelas partes. Não há qualquer “terceira via”.
O Tribunal recorrido conheceu de exceção perentória que estava invocada pela Ré e cuja decisão se lhe impunha, não assistindo, nesta parte, razão à Autora.
O problema foi que essa exceção foi decidida sem que tivesse sido objeto de contraditório pela demandante.
Houve omissão do contraditório, estando o vício a montante da sentença, em concreto, na audiência final, antes do início da produção de prova.
Nesse ato deveria ter ocorrido o contraditório da Autora sobre a matéria de exceção, nesta compreendida, não só a resolução do contrato que determinou a decisão do mérito, mas também a compensação assim qualificada pelo Tribunal (e que veio a revelar-se, na economia da sentença, de apreciação desnecessária).
A não atuação desse contraditório importa a omissão do dever previsto no n.º 3, 1ª parte, do artigo 3.º do Código de Processo Civil, cujo trecho legal aqui se repete: “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório”.
Entendido o contraditório como um imperativo de dinâmica processual que se impõe ao juiz garantir e fazer observar, incumbia ao Tribunal recorrido assinalar à Autora a oportunidade para responder às exceções, o que vale dizer, no caso, conceder ao respetivo Mandatário, antes do início da produção de prova, a palavra para, querendo, se pronunciar sobre essa parte da defesa.
Essa atuação era tanto mais nítida quanto é certo que o Tribunal acabara de qualificar uma parte da mesma defesa (a compensação) como matéria de exceção, afastando, desse modo, o escolho da eventual inadmissibilidade da reconvenção.
Circunscrita a omissão, qual o tratamento que lhe deve ser reservado?
Duas vias se prefiguram imediatamente: enquadrar a omissão no regime das nulidades secundárias previsto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, segregando o seu efeito da sentença, posto que a nulidade cometida não foi tempestivamente arguida pela Autora, nos termos do artigo 199.º, n.º 1, do mesmo Código, ou, alternativamente, considerar que a mesma omissão (independentemente da sua qualificação como vício do processo ou vício da sentença) se comunicou necessariamente à decisão de mérito, inquinando-a, sendo este recurso o meio processual certo para conhecer do vício da sentença.
A relação entre as nulidades processuais cometidas a montante da decisão judicial e os vícios próprios desta é problemática.
Não está apenas em causa saber como interpretar e aplicar o brocardo “dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”, mas sobretudo determinar em que medida a nulidade cometida pelo Tribunal se transmite à decisão de mérito que ele profere com conhecimento de matéria que poderia não estar adquirida (demonstrada) se tivesse sido concedida à parte a oportunidade de a contraditar.
No comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de 23 de outubro de 2018 (processo n.º 1121/13.5TVLSB.L1-1), o Professor Miguel Teixeira de Sousa escreveu o seguinte:
(…). Efectivamente, são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso -- como aliás resulta expressamente da passagem transcrita de Alberto dos Reis --, o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. (…)
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões” (blogue do IPPC, Jurisprudência 2018 (163), Audiência prévia; dispensa; nulidade processual; consequências*, disponível em htttps://blogippc.blogspot.com)
Isoladas as três hipóteses, a situação desta ação insere-se na segunda delas. Ocorreu uma nulidade e após a mesma foi proferida uma decisão. A questão é a da consequência da primeira na segunda.
Acrescenta o mesmo Professor “se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC)”.
Quando “o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, a decisão é nula por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não pode conhecer” (João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Ob. Cit. Volume I, pág. 44).
A jurisprudência vem paulatinamente fazendo eco desta qualificação do vício, integrando a omissão do contraditório na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, por referência à locução “[conhecer] de questões de que não podia tomar conhecimento” (entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de setembro de 2022, do Tribunal da Relação do Porto de 5 de novembro de 2024 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de maio de 2024 e 20 de março de 2025, proferidos nos processos n.ºs 3395/16.0T8BRG.G1.S1, 938/23.7T8PVZ.P1, 753/21.2T8VVD.G2 e 275/24.T8FAF.G1, disponíveis em www.dgsi.pt).
A subsunção do vício a essa previsão está muito longe da pacificação doutrinal, como se pode comprovar pela leitura das críticas que lhe são dirigidas (nomeadamente no artigo “As outras nulidades da sentença cível” acima referido).
Parafraseando o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de junho de 2024 (processo n.º 31078/22.5T8LSB.L1-6, naquele suporte) estamos perante uma questão meramente formal (de qualificação do vício). Relevante será, como afirmado nesse aresto, salientar que existe, segundo se crê, uma posição sustentada a aceitar que mesmo quando qualificada como nulidade processual, a violação do contraditório pode ser invocada pela via do recurso, conduzindo à anulação da decisão recorrida.
As soluções de qualificação alternativas à sustentada pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa ainda não lograram, segundo se crê, fornecer uma base segura (um raciocínio consistente, com apoio na letra da lei, que aponte a solução) de qualificação do vício.
O excesso de pronúncia persiste, nessa medida, a via mais consolidada de qualificação, sendo de aceitar que uma decisão judicial cuja fundamentação acolhe matéria que não foi devidamente contraditada, por omissão de procedimento, está a exceder os limites da sua cognição, devendo ser considerada nula.
É esse, segundo se crê, o desfecho necessário deste recurso, considerado o que acima se expôs.
A obliteração do contraditório quanto à exceção perentória (resolução do contrato), quando foi a procedência desta a determinar a decisão de mérito, levou a considerar demonstrada matéria de facto que, de outro modo, poderia não se provar, assim como privou a Autora de alegar e demonstrar outra (em sede de contra exceção, como é a caducidade que agora veio esgrimir-se extemporaneamente nas alegações de recurso) que, se provada, poderia ter conduzido ao desfecho inverso.
A conclusão é filosófica, mas nem por isso será totalmente desacertada: um processo civil sem contraditório é um procedimento epistemologicamente viciado.
Assim e na medida do exposto, a sentença recorrida deverá ser declarada nula, devendo o processo reverter ao início da audiência final, para que seja concedida à Autora a oportunidade de exercer o contraditório sobre as exceções deduzidas pela Ré, seguindo-se os ulteriores termos.
O que acaba de se afirmar não prejudica a possibilidade de em função do esforço de prova desenvolvido (que compreendeu três sessões daquela audiência), as partes acordarem na manutenção total ou parcial da prova já produzida com a produção de outra que venha a ser admitida pelo Tribunal recorrido.

II. Insuficiência da decisão de facto.
A conclusão que acima se atingiu torna inútil a discussão dos restantes fundamentos do recurso, entre os quais se inclui, nas palavras da Recorrente, a inclusão, na decisão da matéria de facto, de “afirmações genéricas e conclusivas”.
Sem embargo e apenas na perspetiva de uma futura decisão, alinham-se algumas considerações que poderão vir a revelar-se úteis.
Estão em causa, sobretudo, os aspetos da decisão da matéria de facto que se transcrevem:
13. Em momento anterior a 6 de junho de 2019, a ré interpelou reiteradamente a autora no sentido de diligenciar pela conclusão dos trabalhos que lhe haviam sido adjudicados e em boas condições de execução.
14. A dona da obra já tinha feito notar à ré que o desempenho da autora como subempreiteira deixava muito a desejar, atenta a sua manifesta incapacidade de cumprir com os trabalhos que lhe haviam sido adjudicados, em boas condições de execução, o que, aliás, era do conhecimento integral direto e pessoal de funcionários da autora e assim também desta”.
O que se contém nessa parte da matéria de facto é transcrição das alegações da Ré contidas nos artigos 10º e 11º da contestação.
É bom de ver que não estamos perante factos, mas conclusões.
Apesar da responsabilidade da alegação pertencer às partes e estas estarem mandatadas (sendo de esperar que os srs. Advogados distingam facto de conclusão e que o façam não apenas em sede de recurso) o Tribunal não deve um respeito sacrossanto à formulação que as partes dão às suas alegações, posto que o princípio do dispositivo não o postula.
Se a alegação é conclusiva, como é claramente o caso, e não houve aperfeiçoamento, o Tribunal deve recorrer aos factos concretizadores da mesma que possam ter resultado da instrução, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil.
Lendo a motivação da decisão de facto crê-se que a abundante prova produzida teria permitido que, em vez das conclusões do n.º 13, estivessem na fundamentação de facto, eventualmente além de outras, as respostas às seguintes questões: quando e como a Ré interpelou a Autora? Quem recebeu a interpelação? A Autora foi interpelada para fazer o quê? Foi-lhe assinalado um prazo? Qual? Foi-lhe dito que se não cumprisse, o contrato seria resolvido?
Os factos que possam obter-se em resposta a essas questões são determinantes para a adequada subsunção jurídica, de forma que a fundamentação de facto, por não os fornecer, sempre teria de ser considerada deficiente, com as consequências previstas na alínea c), do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
*
III. Responsabilidade tributária
Procedendo o recurso e não tendo sido oferecidas contra-alegações, não são devidas custas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
**
*
Decisão
Face ao acima exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente o recurso de apelação interposto por “(…) – Sociedade de (…) e Ar Condicionado, Lda.” e declaram nula a sentença proferida em 5 de abril de 2025 na ação, determinando que o processo reverta ao início da audiência final, para que seja concedida à Autora a oportunidade de exercer o contraditório sobre as exceções deduzidas pela Ré, seguindo-se os ulteriores termos, sem prejuízo de as partes, assim o entendendo, acordarem na manutenção total ou parcial da prova já produzida, com a eventual produção de outra que venha a ser admitida pelo Tribunal recorrido.
Sem custas.
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Évora, 27 de novembro de 2025
Maria Emília Melo e Castro
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
Mário João Canelas Brás
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SUMÁRIO (elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
(…)