Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1107/16.8T9PTG.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
LAR DE IDOSOS
CULPA IN VIGILANDO
Data do Acordão: 04/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - O artigo 491.º do Código Civil contempla uma situação específica de responsabilidade subjectiva pela omissão das pessoas obrigadas à vigilância, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano.

II - Cabe aos responsáveis pelos lares de idosos desenvolver as tarefas necessárias à sua protecção e segurança das pessoas ali internadas, designadamente quando não possam viver autonomamente.

III - Existe responsabilidade civil se a entidade responsável pelo lar não tomou as providências necessárias para obstar a que uma idosa ali internada, padecente de doença de Alzheimer, necessitada de ser imobilizada na cama na decorrência de episódios anteriores de levantamento durante a noite, morresse asfixiada.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo Comum Singular n.º 1107/16.8T9PTG, da Comarca de Portalegre, foi proferida sentença em que se decidiu absolver as arguidas EE e AA de um crime de homicídio por negligência do artigo 137.º, n.º s 1 e 2, e 15.º, alínea a), ambos do CP e do pedido cível contra as mesmas deduzido.

Na sentença, foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por AC e JC contra a demandada civil SCM, e condenada esta a pagar aos demandantes, “em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido”.

Inconformada com o decidido, recorreu a demandada SCM, concluindo:
“a. O facto provado 8 está em contradição com os factos provados 11., 12., e 13., e com os depoimentos das testemunhas AM, Dr. MS e VB, deverá passar a ter a seguinte redacção: - “ A imobilização foi feita numa cama sem grades “.

b. Os factos provados 30. e 73. estão em contradição com os factos provados 26., 59., 58., 57., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104. e 110. não devendo ser considerados provados para efeitos de condenação da demandada.

c. O facto provado 61 deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: - “A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também no meio hospitalar”.

d. O facto provado 66 deverá ser corrigido passando a ter a seguinte redacção: - “Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16.03.2016, de que existe cópia a fls.599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN – Alojamento, Alimentação adequada às necessidades dos Utentes, respeitando as prescrições médicas, Apoio nos cuidados de higiene pessoal, Apoio no desempenho das atividades de vida diária, Tratamento de roupa, Apoio no cumprimento de planos individuais de medicação e no planeamento e acompanhamento regular de consultas médicas e outros cuidados de saúde”.

e. Os factos provados 68. e 69. estão em contradição com o facto provado 88, pelo que não poderão ser considerados provados e invocados para efeitos de condenação da demandada

f. O facto provado 71 está em contradição com o facto 87 pelo que não poderá ser considerado provado e invocado para efeitos de condenação da demandada

g. Os factos provados 74., 75., e 76 estão em contradição com os factos provados 11., 12., 13., 20., 26., 38., 39., 42., 43., 53., 56., 57., 58., 59., 60., 62., 63., 91., 96., 97., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104., 105. e 110. pelo que não poderão ser considerados provados nem serem invocados para efeitos de condenação da demandada

h. O facto 78 não está provado nem por documento ou prova testemunhal e está em contradição com o depoimento do Perito, pelo que não poderá ser considerado provado nem invocado para efeitos de condenação da demandada.

i. A imobilização da Dª MN numa cama sem grades não é um facto ilícito porque não constitui uma omissão de zelo exigível, em primeiro lugar porque não existe nenhuma disposição legal ou normativa que obrigue a demandada a deitar a ofendida numa cama com grades, vide Portaria 67/2012 de 21 de Março e Parecer da Segurança Social junto com o Documento nº 1 e Parecer do Conselho de Enfermagem da Ordem dos Enfermeiros junto como Documento nº 2.

j. Em segundo lugar a ofendida foi avaliada por mais de uma vez pelo Gabinete de Fisioterapia e Reabilitação Psicomotora e enfermeiros da demandada, que são técnicos especializados com competência para efetuar as avaliações, que determinaram que não tinha os critérios para lhe ser atribuída uma cama com grades, porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações, como excesso de peso, problemas de mobilidade, problemas cardiorrespiratórios ou feridas, vide factos provados 11, 12, 13

k. Não se verificou a violação do dever de vigilância porque o rácio de pessoal da demandada é bastante superior ao exigido legalmente, vide factos provados 100 e 101

l. As funcionárias que prestam serviço no 1º piso da ERPI, onde estava a Dª MN, são as mais bem preparadas, eficazes e da maior confiança da demandada, havendo permanentemente vigilância 24 sobre 24 horas vide factos provados 98. e 99.

m. Além da ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida, vide facto provado 58.

n. Em noites anteriores a ofendida pediu auxílio por voz ou utilizou o sistema de chamada existente, vide facto provado 57.

o. Mesmo num internamento em contexto hospitalar, não existe vigilância permanente nos quartos, com exceção do serviço de cuidados intensivos, vide facto provado 101.

p. Além de que circuito interno de vídeo fechado que a demandada possui tem a autorização N.º 5594/2016 dada pela com Comissão Nacional de Proteção de Dados que não permite a recolha de imagens de acesso ou interior de instalações sanitárias, zonas de espera, locais de lazer e repouso, corredores de acesso e interior dos quartos e cozinhas, vide Documento 3

q. Não se verifica assim a existência de facto ilícito nem a culpa, pressupostos da responsabilidade civil, devendo em consequência ser julgado improcedente o pedido de indemnização civil em que foi condenada

r. A não se entender assim, deverá ter-se em conta no valor da indemnização a idade da ofendida, o estado de saúde em que se encontrava, a esperança de vida e o facto de com toda a probabilidade ter falecido sem se aperceber o que estava a acontecer, por ter sofrido uma compressão lenta que a foi asfixiando lentamente e que ao mesmo tempo por falta de oxigénio lhe baixou o limiar de consciência, como foi referido pelo Perito em audiência de julgamento.”

Os demandantes responderam ao recurso pronunciando-se pela improcedência, e concluindo:

“I. Em nada são contraditórios os factos constantes dos pontos 8, 11, 12 e 13, uma vez que, não se põe em causa o teor das declarações prestadas pelas enfermeiras AM e VB, mas sim o facto das instruções por elas dadas e consequentemente, a forma como foi feita a imobilização, ser tecnicamente incorrecta, uma vez que, como explicou o Sr. Perito médico, as imobilizações podem ser realizadas com recurso a um lençol, como sucedeu in casu, mas sempre numa cama de grades e nunca numa “cama normal”.

II. A imobilização numa cama normal, não impede uma pessoa de cair, como veio a suceder, o que nunca aconteceria numa cama de grades, não colhendo qualquer credibilidade o que foi afirmado pelas enfermeiras da Recorrente, que a pessoa “pode saltar por cima”.

III. No que respeito aos pontos 30 e 73, se pode ser verdade que à funcionária não era exigível servir as ceias e vigiar os quartos em simultâneo, à Recorrente era exigível ter um sistema de vigilância eficaz e permanente, uma vez que as imobilizações que eram realizadas diariamente não eram seguras e possibilitavam quedas.

IV. Com efeito, uma funcionária naquele piso é manifestamente insuficiente como se veio a provar, uma vez que a qualquer momento um utente pode cair ou precisar de auxílio por qualquer razão.

V. No que respeita ao ponto 61, nunca a douta sentença diz que a Recorrente é um hospital, o que refere é que, como já se disse acima, as imobilizações, a serem necessárias, devem ser realizadas de forma segura, tal como se faz nos hospitais, em camas de grades.

VI. Relativamente ao ponto 66, entendemos que assistência médica corresponde à prestação de cuidados de saúde e acompanhamento, conforme consta claramente do Regulamento Interno, o que não restam dúvidas, a Recorrente se obrigou a prestar.

VII. No que concerne aos pontos 68 e 69, não são contraditórios, uma vez que quando MN entrou para a Instituição andava pelo seu próprio pé, falava, conhecia todas as pessoas com quem lidava e comia sozinha, de modo que, não evidenciava ainda muitos sintomas de Alzheimer, pese embora já tivesse alguns, nomeadamente a necessidade de usar fralda, alguma confusão espácio-temporal e necessitar de vigilância.

VIII. Quanto ao ponto 71, o facto de MN ter estado em outras Instituições, não está em contradição com o facto de os Demandantes alegarem que não queriam que esta estivesse sozinha em casa.

IX. Relativamente aos pontos 74, 75 e 76, MN foi imobilizada, numa cama sem grades, não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.

X. Pelo contrário, o lençol causou a sua asfixia, o que nunca teria ocorrido se esse método de contenção fosse utilizado numa cama de grades, como sucede nos hospitais.

XI. Deste modo, a utilização de um meio de contenção, implicaria uma vigilância permanente, o que não ocorreu em função do meio de organização do trabalho da Demandada.

XII. Como não assegurou vigilância permanente, MN acabou por escorregar da cama, o que não aconteceria com uma cama de grades e ninguém se apercebeu, acabando por asfixiar até à morte.

XIII. A imobilização teria de ser feita numa cama de grades e nunca como aconteceu.

XIV. A imobilização não se substitui a uma vigilância, muito pelo contrário, implica maior vigilância, por acarretar um risco de asfixia, que aparentemente as enfermeiras da Demandada desconheciam.

XV. Para além disso, importa ter em consideração que, por contrato celebrado em 16/03/2016, a SCM, obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência, de enfermagem, acompanhamento e vigilância, mediante o pagamento de uma mensalidade.

XVI. MN foi para o lar da Recorrente por ter sido diagnosticada com Alzheimer uma doença incurável e com tendência para piorar e assim, estaria sempre acompanhada, vigiada e em segurança.

XVII. Ora, a Recorrente assumiu obrigações perante MN que, incumpriu.

XVIII. O facto de as funcionárias não serem responsáveis criminalmente não significa que a Recorrente não seja responsável, uma vez que, esta tinha obrigação de organizar o serviço, o espaço e os recursos de modo a ser garantida a segurança dos utentes, que pagavam por esse serviço.

XIX. A Demandada ao permitir que MN estivesse sem vigilância adequada, incorrectamente imobilizada e ao permitir que esta escorregasse da cama, acabando por ser asfixiada com um lençol, até à morte, omitiu os deveres de cuidado a que, contratualmente, se tinha obrigado, sendo assim, responsável civilmente pela morte daquela.

XX. Pelo que, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que condenou a Recorrente, deve ser integralmente mantida, não merecendo qualquer reparo e consequentemente, ser o recurso improcedente.”

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto apôs o seu visto e teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. A ofendida MN, nascida em 17-06-1941, encontrava-se, desde 16-03-2016, a residir na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), Dr. ---, da SCM, sita …em Portalegre, onde dormia, inicialmente no quarto n.º 207 do 2.º piso, depois passou para o lar do Espírito Santo a 18/03/2016, voltando à ERPI a 13/09/2016, ficando no quarto n.º 113 do 1.º piso, passando posteriormente, a partir do dia 30/10/2016, para o quarto n.º 114, também do 1.º piso.

2. A ofendida padecia de doença de Alzheimer costumando mostrar-se muito agitada de noite, sendo frequente levantar-se várias vezes da cama, chamar as ajudantes e gritar durante toda a noite.

3. A 19/09/2016 a ofendida caiu da cama e não se queixou de nada.

4. A 30/10/2016 a ofendida caiu por duas vezes, a primeira durante a noite/madrugada, e a segunda no refeitório, cerca das 19h00, após o jantar, apresentando a face do lado direito inchada e negra perto da vista.

5. Nesse mesmo dia a ofendida foi observada nas urgências do hospital, verificando-se que não apresentava nenhuma fractura, apenas estava magoada com dores.

6. Cerca das 11h00 do dia 30/10/2016, a enfermeira MM ligou ao Dr. S. por causa da agitação nocturna da ofendida, tendo este dado indicações para se administrar ao jantar 2,5mg de Lorenin, um ansiolítico que ajuda a dormir.

7. Devido à sua agitação, para evitar quedas, a equipa de enfermagem do Lar determinou que, até ordem em contrário, a ofendida deveria ser imobilizada na cama, mediante a colocação de um lençol atado à cama, e atravessado como se fosse uma faixa, sobre o seu tórax, na região infra mamária, deixando os braços e as pernas livres.

8. Porém a imobilização foi feita numa cama sem grades ou qualquer outra protecção lateral, como é prática comum na ERPI, o que apenas prevenia que a ofendida se levantasse de noite e caísse, mas já não prevenia uma queda da cama, como veio a ocorrer.

9. A 4/11/2016 estavam a ser prescritos à ofendida medicamentos com efeito calmante ou similar.

10. Na ERPI existem camas articuladas (todas com grades), e camas simples, com uma altura de 50 cm do chão, nas quais podem ser colocadas grades amovíveis.

11. O gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM realizou uma avaliação à ofendida no dia 21/03/2016, e em face dos resultados determinou que aquela necessitava de uma cama sem barreiras e com altura reduzida, uma vez que não se encontrava acamada ou totalmente dependente, mas apenas necessitava de auxílio no banho e a vestir-se.

12. Na ERPI as camas articuladas são atribuídas a utentes acamados ou totalmente dependentes ou com complicações a outros níveis (excesso de peso, alteração saturação de oxigénio, feridas, alteração mobilidade, entre outras) que necessitam de permanecer mais tempo no leito. Estas camas são reguláveis em altura, o que facilita a transferência dos utentes e o trabalho dos auxiliares.

13. O gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM considerou que não houve alterações significativas na avaliação entre Março a Outubro de 2016 que fizesse justificar a alteração dos recursos físicos/ajudas técnicas (fornecimento de cadeiras de rodas, bengalas, andarilho, cama articulada, entre outros).

14. As arguidas EE e AA, na qualidade de ajudantes de lar, Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. --- da SCM, foram escaladas para assegurarem o turno do período nocturno do dia 04-11-2016, junto do 1.º piso, daquele Lar de idosos.

15. Assim, a arguida EE tinha de assegurar o turno até às 21h00m do dia 4-11-2016, para então ser substituída pela arguida AA, para vigilância e prestação de cuidados às utentes acomodadas no 1.º piso.

16. Na qualidade de ajudantes de lar, competia às arguidas a vigilância das utentes, a garantia da sua segurança e a prestação de cuidados básicos como a administração de medicação, a toma das refeições e o apoio na higiene diária.

17. Para vigilância das utentes, competia às arguidas a realização de rondas junto dos quartos das mesmas, a ocorrer obrigatoriamente no fim dos turnos do período nocturno, que terminavam às 21h00m.

18. E competia em especial uma vigilância permanente sobre as utentes instaladas no 1.º piso, por se encontrarem dependentes das ajudantes, como era o caso da ofendida.

19. Após o jantar, entre as 19h30m e as 20h00, de 04-11-2016, a arguida EE deitou a ofendida na cama em decúbito lateral direito, e imobilizou-a, tal como tinha sucedido nos dias anteriores, colocando-lhe uma faixa de lençol, sobre o tórax, na região infra mamária, e atou-a à cama, para a manter deitada e evitar que se levantasse e caísse durante a noite.

20. A imobilização realizada pela arguida EE obedeceu a todas as instruções transmitidas pelas enfermeiras na formação anual que ministram nessa matéria.

21. A arguida EE efectuou uma ronda de vigilância junto da ofendida, antes de ser substituída pela arguida AA, cerca das 21h00m dessa noite, verificando que se encontrava bem.

22. Por sua vez, ao assumir o turno que se iniciou às 21h00m daquela noite, a arguida AA foi de imediato para a copa do 1º piso, da Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas Dr. ---, preparar as ceias e de seguida procedeu à sua distribuição pelos utentes, tendo chegado ao quarto 114 por volta das 22h00.

23. O quarto 114 da ofendida era o último quarto do 1.º piso a ser servido e verificado.

24. No turno que se inicia às 13h00, e finda às 21h00, estão ao serviço duas ajudantes de lar para o 1.º piso, ao passo que no turno seguinte (das 21h00 às 09h00) já só se encontra ao serviço uma ajudante de lar para aquele piso.

25. A enfermeira de serviço sai da ERPI às 19h00, e a partir daí está acessível por via telefónica.

26. A ofendida não chamou, oralmente ou através do sistema de chamada, nenhuma das auxiliares.

27. Em hora não concretamente apurada, situada entre as 21h00m e as 21h30m, do dia 04-11-2016, a ofendida MN, apesar de se encontrar imobilizada com a referida faixa de lençol em volta do tórax, conseguiu movimentar-se na cama.

28. Assim, a ofendida, tentou sozinha libertar-se da faixa de lençol que a prendia à cama, agitando o corpo e exercendo força com os braços e mãos contra a mesma, até conseguir colocar os braços por baixo da faixa, a qual acabou por se deslocar da zona do tórax para a zona do pescoço.

29. Depois a ofendida foi escorregando lateralmente da cama, até que, por incapacidade de mudar de posição, acabou por ficar presa, com a faixa em roda do pescoço, que a foi lentamente comprimindo, produzindo-lhe asfixia até lhe causar a morte.

30. Nessa altura, ao precisar de auxílio, a ofendida não tinha nenhuma ajudante a vigiá-la que a pudesse ajudar, pois que a única ajudante de serviço encontrava-se a administrar a ceia aos outros utentes nos respectivos quartos.

31. Quando a arguida AA chegou ao quarto da ofendida para administrar a ceia, cerca das 22h00m, daquela noite, encontrou-a já prostrada e sem sinais vitais, inclinada em posição de decúbito lateral esquerdo e suspensa pelo lençol, a vincar-lhe o pescoço.

32. O óbito da ofendida foi certificado como tendo ocorrido pelas 21h30m, do dia 04-11-2016, sem causa de morte.

33. Da autópsia médico-legal resultou comprovado que a morte da ofendida se deveu a uma asfixia mecânica por constrição do pescoço – sufocação.

34. As arguidas são trabalhadoras da SCMP - SCM, com a categoria de Ajudantes de Lar, exercendo a sua actividade na ERPI - Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. ---, sita…, em Portalegre.

35. Exerciam, à data dos factos, essa actividade, no Piso 1 da referida ERPI.

36. No dia 04.11.2016 a arguida EE trabalhou no turno que teve início às 13h e termo às 21h.

37. E a arguida AA no turno que teve início às 21h e termos às 09h.

38. A SCMP tem uma Equipa de Saúde à qual cabe, entre outras competências, a determinação de utilização de medidas de contenção aos utentes.

39. As arguidas estão funcional e tecnicamente subordinadas às determinações da Equipa de Saúde, no que respeita a medidas de contenção dos utentes.

40. A Equipa de Saúde tinha determinado que a utente MN deveria ser sujeita, quando se deitasse, a medida de contenção para limitação dos seus movimentos.

41. Tal medida traduz-se na utilização de um lençol dobrado na diagonal, colocado na região infra-mamária, passando por baixo dos braços, sendo as pontas do lençol atadas nos lados da cama, devendo ser dada uma pequena folga.

42. No cumprimento de tais instruções, a arguida EE procedeu à imobilização da utente MN, nos termos supra indicados.

43. A arguida EE e a sua colega MHC, na ronda de final de turno, pelas 20.40h, verificaram que a utente MN se encontrava correctamente imobilizada, deitada na sua cama e que se encontrava calma.

44. As Ajudantes de Lar, no exercício das suas funções, devem registar no Livro de Ocorrências, no caso, no Livro de Ocorrências do Piso 1, as situações anómalas de que seja necessário outros funcionários da SCMP terem conhecimento, designadamente os funcionários que fazem o turno seguinte.

45. Não está previsto que as situações de imobilização, porque são medidas preventivas, tenham de ser levadas ao Livro de Ocorrências.

46. Na passagem de turno das 21h do dia 04/11/2016, apenas consta no Livro de Ocorrências da ERPI, Piso1: “O Sr. JR vai para o quarto pois não se estava a sentir bem. Tinha diarreia também. Ao jantar só quis a sopa.” - Assinado por MHC.

47. A arguida AA entrou de serviço às 21.00h.

48. Nada constava do Livro de Ocorrências, nem nada lhe foi assinalado na passagem do turno, que justificasse, antes de dar início às tarefas que lhe competia executar, verificar como se encontrava a utente MN.

49. Assim, deu início à primeira de tais tarefas, ou seja, servir uma refeição ligeira, composta por uma bebida e bolachas e verificar posicionamentos.

50. O quarto mais próximo do local onde se encontram tais alimentos e os utensílios necessários, é o quarto 101, pelo que iniciou tal serviço nesse quarto.

51. A arguida chegou ao quarto 114 pelas 22h e deparou com a utente MN aparentemente sem vida.

52. Procedeu de imediato ao contacto com a Equipa de Saúde, tendo esta promovido os procedimentos necessários à situação.

53. Desde as 21h às 22h nada se verificou que justificasse que a arguida AA se deslocasse ao quarto da utente MN.

54. Naquela noite havia mais 3 utentes no Piso 1 a quem foram aplicadas medidas de contenção.

55. É frequente haver utentes sujeitos a medidas de contenção pelas mesmas razões da utente MN.

56. Também a malograda MN tinha sido sujeita a tal medida algumas vezes, antes do dia 4/11/2016, sem que nada, igualmente, tenha justificado algum procedimento especial.

57. Em noites anteriores a utente MN pediu auxílio por voz ou utilizando o sistema de chamada existente.

58. Tal sistema permite que a Auxiliar, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se aperceba da chamada da utente.

59. A utente MN não utilizou a campainha de chamada existente junto da sua cama e ao seu alcance, nem chamou oralmente nenhuma das arguidas.

60. A arguida AA nunca se ausentou do 1º Piso.

61. A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também em meio hospitalar, sendo que no hospital de Portalegre todas as camas têm grades.

62. As arguidas são funcionárias zelosas e diligentes.

63. As arguidas cumpriram as suas funções de acordo com as orientações superiormente estabelecidas.

64. Os demandantes são filhos e únicos herdeiros de MN, falecida no estado de viúva.

65. A demandada SCM é proprietária do lar residencial do Espírito Santo, …, em Portalegre.

66. Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16/03/2016, de que existe cópia a fls. 599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem, acompanhamento e vigilância.

67. Mediante o pagamento mensal da importância de 700,00€, acrescido de despesas com vestuário, medicamentos, fraldas, entre outros.

68. À data da entrada no lar, MN, tinha 75 anos de idade e padecia de Alzheimer, há pouco tempo, evidenciado, ainda, poucos sintomas da referida doença.

69. MN ainda não era muito dependente de terceiros para satisfazer as suas necessidades de alimentação, higiene e vestuário.

70. Mas, tendo em consideração a natureza da doença, a sua evolução e irreversibilidade, e por saberem que mais cedo ou mais tarde, necessitaria de cuidados e atenção constantes, os demandantes decidiram colocar a sua mãe na aludida instituição.

71. Evitando assim os riscos inerentes ao facto de esta residir sozinha, em Portalegre, longe dos demandantes.

72. Os demandantes ficaram absolutamente convencidos que naquele local, a sua mãe, teria acesso a cuidados e vigilância que não lhe conseguiam prestar, atento o facto de residirem com as respectivas famílias e trabalharem longe da residência daquela.

73. Precisando de auxílio, ninguém apareceu para lho prestar, verificando-se a inexistência de qualquer vigilância entre as 21h00 e as 21h30.

74. Com o comportamento adoptado pelas funcionárias – auxiliares e enfermeiras da SCM que, agindo sob as suas ordens e instruções, prenderam MN com uma faixa de lençol a uma cama sem grades, e não asseguraram a vigilância devida, a instituição incumpriu, de forma grave, as obrigações que tinha assumido.

75. Omitindo os deveres de cuidado a que estava obrigada.

76. Causando assim directamente a morte de MN.

77. A morte de MN não foi instantânea ou imediata.

78. Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço a até à morte, MN momentos de aflição, dor e sofrimento.

79. Faleceu sozinha.

80. Os demandantes nutriam pela sua mãe um grande amor.

81. A morte desta, nas circunstâncias em que ocorreu, constituiu um rude golpe que não estavam preparados para enfrentar.

82. Visitavam-na regularmente durante o período em que esteve no lar da demandada, telefonavam diariamente para se inteirarem do seu estado e sempre cuidaram para que nada lhe faltasse.

83. Nas várias visitas que faziam à sua mãe, sempre lhe mostraram o amor e carinho que tinham por ela.

84. A sua morte e o sofrimento que esta envolveu, causaram e continuam a causar uma grande dor aos demandantes.

85. Choram e sentem a falta da sua mãe diariamente.

86. Continuam a sentir uma imensa dor e saudade e não se conformam com a sua morte, nas circunstâncias em que ocorreu.

87. A Dª MN antes de ter entrado no Lar Residencial do Espirito Santo da Demandada, já tinha estado em dois estabelecimentos de Lar.

88. E quando entrou no dia 16.03.2016, vinha com a indicação de que sofria de Alzheimer e com diagnóstico de demência, perdia-se no espaço e no tempo, e por isso necessitava de supervisão e orientação para a sua higiene pessoal, com indicação que usava fralda de noite e que necessitava de vigilância.

89. Durante a estadia da Dª MN nos estabelecimentos da Demandada, verificaram-se várias ocorrências de agitação.

90. Os episódios de agitação eram muito frequentes e por vezes puseram em causa a integridade e segurança da própria Dª MN e de outras utentes.

91. E como medida de prevenção, de modo a assegurar a integridade física da Dª MN e das outras utentes, foi por várias vezes imobilizada durante a noite com um lençol que passava por baixo da zona infra mamária e ia atar às extremidades laterais da cama.

92. Era dada folga no lençol para permitir que a utente Dª MN pudesse durante a noite mudar de posição na cama.

93. Para além de permitir que os braços e as pernas estivessem sempre livres.

94. E se fosse necessário durante a noite a utente ir à casa de banho, chamava a ajudante de lar através da campainha que estava ao seu alcance na cama.

95. A ordem para imobilizar a Dª MN bem como as outras utentes que necessitavam de o ser, era dada pela enfermeira e executada pela ajudante de lar que estivesse de serviço.

96. As enfermeiras da Demandada davam formação às ajudantes de lar do modo e técnica para efectuarem as imobilizações às utentes.

97. Além de que a Demandada tem a preocupação de efectuar permanentemente formação às suas funcionárias.

98. E as ajudantes de lar que prestam serviço no 1º piso do ERPI onde estão os utentes mais dependentes, local onde estava a Dª MN, são as mais bem preparadas, mais eficazes e da maior confiança da Demandada.

99. Além de que este 1º piso do ERPI - Estrutura Residencial para Pessoas Idosas Dr. --- tem permanentemente 24 sobre 24 horas vigilância pelo menos por uma ajudante de lar.

100. Os rácios de pessoal da Demandada são bastante superiores aos exigidos legalmente, mas mesmo assim é impossível ter uma ajudante de lar de modo permanente em todos os quartos.

101. Nem tão pouco em internamento em contexto hospitalar, existe vigilância permanente nos quartos, com excepção do serviço de cuidados intensivos.

102. A actividade da Demandada está sujeita à fiscalização e à avaliação do seu funcionamento, quanto à qualidade e regularidade dos serviços prestados aos utentes, nomeadamente quanto às condições de instalação e alojamento, adequação do equipamento, alimentação e condições higienossanitárias, pelos Serviços do Instituto da Segurança Social.

103. E no âmbito dessa fiscalização e avaliação, os Serviços do Instituto da Segurança Social, no âmbito dos relatórios de 7/10/2016, de 02/11/2016, e Setembro/2018, não detectaram qualquer irregularidade à resposta social ERPI ou mesmo qualquer proposta de alteração ao seu funcionamento.

104. A Demandada possui uma estrutura organizada e com procedimentos bem definidos.

105. Não existiu qualquer incumprimento ou omissão por parte das arguidas.

106. A Demandada nos termos do n.º 3 do artigo 1º do Compromisso da Irmandade da SCM, tem reconhecida a sua personalidade jurídica civil, com estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social, sendo considerada uma entidade da economia social, nos termos da respectiva Lei de Bases, e natureza de Pessoa Colectiva de Utilidade Pública.

Mais se provou com relevo para a determinação da sanção, que:
107. As arguidas não têm antecedentes criminais.

108. A arguida EE trabalha como empregada de limpeza a tempo parcial, aufere um vencimento mensal superior a 400,00€, vive com o seu filho de 20 anos, estudante do 12.º ano, suporta 300€ de renda, e 100€ de prestação mensal do crédito automóvel; tem o 9.º ano de escolaridade.

109. A arguida AA trabalha como ajudante de lar na SCM, aufere um vencimento mensal superior a 600,00€, vive em casa própria paga, com o seu filho de 18 anos, estudante do 12.º ano, e com o seu marido, que trabalha por conta própria e aufere um rendimento mensal de cerca de 600,00€; tem como habilitações escolares o grau de licenciatura em serviço social.

110. A arguida AA é considerada pela SCM como uma excelente funcionária, extremamente competente e responsável.”

Foram considerados não provados os seguintes factos:

“i) Da acusação:
A. Depois disso e apesar de saber que a ofendida se mantinha agitada durante a noite e de que a mesma se encontrava imobilizada na cama, a arguida EE não se manteve vigilante, de forma permanente, junto do quarto onde a ofendida se encontrava, desde essa altura e até ao final do seu turno, que terminava às 21h00m;

B. Por sua vez, ao assumir o turno que se iniciou às 21h00m daquela noite, competia à arguida AA ir logo para junto das utentes do 1.º piso;

C. Ao assim agir, bem sabiam as arguidas que a ofendida, enquanto doente idosa e imobilizada, tinha de ser vigiada para garantia da sua segurança e que na qualidade de ajudantes de lar especialmente encarregues daquela utente, estavam obrigadas a vigiá-la e a zelar pela sua segurança;

D. E ao actuarem da forma descrita, cada uma das arguidas agiu ciente de que atentas as circunstâncias, era previsível que a sua conduta pudesse contribuir de forma determinante para a colocação em perigo de vida da ofendida, atenta a possibilidade de ocorrência de um acidente e asfixia decorrente da imobilização da ofendida e não obstante, não se conformaram-se com tal possibilidade;

E. A conduta das arguidas colocou assim a ofendida em risco, concretizado, de asfixia e foi causadora da sua morte;

F. Com a sua conduta, cada uma das arguidas, violou o especial dever de cuidado que impendia sobre as mesmas de vigiar a ofendida, de garantir a sua segurança e de lhe prestar os cuidados básicos, que constituíam as suas funções principais como funcionárias da instituição, o que era do seu conhecimento;

G. E tal conduta configura, por parte das arguidas, uma violação de deveres de cuidado e a omissão de cuidados básicos que as arguidas tinham de prestar a ofendida, que só por descuido, desinteresse e incúria ocorreu;

H. Ambas sabiam também que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.

ii) Do pedido de indemnização civil:

I. As demandadas arguidas não asseguraram a vigilância devida.

J. As demandadas arguidas omitiram os deveres de cuidado a que estavam obrigadas.

iii) Da contestação das arguidas:

K. Nada permitia prever a situação que levou à morte da utente MN.

iv) Da contestação da demandada civil SCM:
L. Não existiu qualquer incumprimento ou omissão por parte da Demandada.

M. Nem a morte da Dª MN foi causada por qualquer acção ou omissão da Demandada, não se verificando qualquer nexo de causalidade.”

E a motivação da decisão de facto foi a seguinte:
“O tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto, com base na apreciação crítica da prova produzida em sede de julgamento e, em resultado de uma avaliação englobante do contexto probatório.

Em particular, a convicção do tribunal baseou-se, quanto aos factos considerados como provados na apreciação conjugada e de acordo com as regras de experiência comum, nos seguintes elementos de prova:

- nos depoimentos de todos os ajudantes, enfermeiros, médico, que prestam serviço na SCM, o seu Provedor, e a Directora da ERPI, e dos agentes da PSP que foram chamados ao local, na medida em que, ou se encontravam presentes no momento da ocorrência de parte dos factos, tendo presenciado os mesmos no exercício das suas funções; ou prestaram depoimento a partir do seu conhecimento e experiência profissionais quanto ao modo de funcionamento do lar, e/ou dos procedimentos de imobilização de utentes; os quais com reconhecida clareza e segurança nos seus depoimentos, revelaram-se inteiramente credíveis com tal conhecimento de causa e inequívoca isenção, mostram-se inteiramente compatíveis entre si, merecendo total credibilidade.

- nas declarações dos demandantes civis quanto aos danos não patrimoniais por si sofridos e ao estado de saúde da ofendida, as quais se revelaram credíveis e de acordo com os juízos de normalidade de dois filhos que perdem inesperadamente a mãe nestas trágicas circunstâncias.

- nas declarações da médica neurologista da ofendida, do seu irmão e cunhada, ao estado de saúde da ofendida, as quais se revelaram claras e corroborantes.

- no teor da prova pericial consubstanciada no relatório médico-legal junto aos autos a fls. 444-450, o aditamento ao relatório de autópsia médico-legal, de fls. 513-519, o relatório de exame toxicológico, de fls. 451, o relatório de exame toxicológico complementar (medicação), de fls. 520, e a análise histológica, de fls. 452/453; bem como as declarações do Sr. Perito que prestou diversos esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, os quais se revelaram esclarecedores.

- foram ainda considerados os documentos constantes dos autos, designadamente a participação de fls. 2/3, o aditamento, de fls. 191, o certificado de óbito, de fls. 8, o registo do óbito (SICO), de fls. 13, os dados de identificação civil da ofendida, de fls. 9, a reportagem fotográfica, de fls. 26-29, as fotografias de fls. 697-720, a certidão de habilitação de herdeiros de fls. 587/598, o contrato de fls. 599-601, e os documentos da SCM, designadamente o processo clínico, de fls. 63-67, as prescrições terapêuticas, de fls. 474-493, o registo de administração terapêutica, de fls. 496-502, as informações, de fls. 277, 495 e 564, a certidão de ocorrências, de fls. 68-147 e 436-443, as cópias de contratos de trabalho, de fls. 461-473, o regulamento interno, de fls. 222-266 e 602-609, o quadro de pessoal, de fls. 267-273 e 277-279, os documentos sobre formação profissional, de fls. 304-316 e 393-434, e os documentos sobre fiscalização, de fls. 332-390 e 552-563, o registo de consulta de fls. 614, o perfil profissional da arguida AA de fls. 615, e o relatório de avaliação de fls. 686/687.

Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal teve em conta os certificados de registo criminal constante dos autos a fls. 764/765.

Quanto às condições pessoais das arguidas o tribunal teve em consideração o teor das suas declarações a esse respeito prestadas na audiência de julgamento, por se afigurarem plausíveis e credíveis.
*
Perante este conjunto de elementos de prova não se provou a versão constante do libelo acusatório e do despacho de pronúncia, na medida em que resultou claro que a morte da ofendida não pode ser imputada à actuação das duas arguidas.

Efectivamente a arguida EE limitou-se a seguir as instruções que lhe foram transmitidas, quer pelas enfermeiras para imobilizarem a ofendida com a faixa de lençol, tendo-o feito de acordo com a formação que lhe foi ministrada; quer pelo gabinete de fisioterapia e reabilitação psicomotora da SCM, o qual determinou que a arguida não devia dormir numa cama com grades.

Mais se provou, pelas declarações credíveis da ajudante de lar MHC –, a qual esteve igualmente a trabalhar no turno das 13h00 às 21h00, do dia 4/11/2016, juntamente com a arguida EE –, que foi feita uma ronda pelos quartos antes do fim do turno, sendo o quarto da ofendida o último a ser visto, mesmo antes das 21h00, e que esta estava calma e correctamente deitada na sua cama.

Tendo em conta que o procedimento de imobilização já tinha vindo a ser executado à ofendida desde há alguns dias, até nova ordem em contrário, é manifesto que a arguida EE nada tinha que dizer à arguida AA na mudança de turno, nem nada tinha que inscrever no livro de ocorrências, sendo que as imobilizações não devem constar desse livro mas do processo clínico da utente.

Assim se conclui que nenhuma censura se pode assacar ao comportamento da arguida EE, pois que, infelizmente, era e é, prática corrente, na SCM, imobilizar utentes a camas sem grades com uma faixa de lençol.

E o mesmo se diga da actuação da arguida AA, pois que nada lhe sendo dito que o justificasse, não tinha que fazer nova ronda pelos quartos no início dos turnos, antes lhe competia ir para a copa preparar as ceias e servi-las, demorando cerca de uma hora até chegar ao último quarto que era precisamente da ofendida.

De acordo com a prova produzida a ofendida terá escorregado da cama entre as 21h00 e as 21h30, sendo que nunca chamou a ajudante nem carregou no botão. Como o corpo da ofendida não chegou a tocar o chão também não terá havido barulho da queda, sendo que qualquer barulho, que pudesse ter ocorrido dos movimentos da ofendida na cama, não poderia ser audível pela arguida que a essa hora estava ocupada a preparar as ceias e a servi-las, sendo a única ajudante de serviço nesse piso.

A morte da ofendida deveu-se antes à circunstância de a mesma ter caído da cama e ficar pendurada pelo lençol que estava enrolado à volta do seu pescoço, o qual lentamente foi empurrando a língua para a parede posterior da laringe impedindo a passagem do ar, causado assim asfixia que levou à morte.

Veja-se que a ofendida foi colocada a dormir em decúbito lateral naquela noite, o que significa que, ao virar-se de barriga para cima, a folga da faixa ficou muitíssimo maior, o que permitiu que a ofendida colocasse os braços debaixo da mesma, e ao realizar vários movimentos na cama, acabou por arrastar a faixa até à zona do pescoço, o que veio a revelar-se fatal caso a mesma caísse da cama, como veio a suceder.

Sendo que, no caso em concreto, atenta a medicação que a ofendida tomava e que induzia o sono, o quadro demencial, a sua idade avançada, a fraca musculatura e a debilidade física, resulta provável que a ofendida estivesse a dormir enquanto estava lentamente a asfixiar, tal como sucede nos casos de apneia grave, o que explica que a mesma não tenha feito nenhum barulho audível, nem chamado a ajudante.

Ora, como claramente esclareceu o perito médico-legal, uma pessoa agitada tem que dormir numa cama de grades, sendo inconcebível ser amarrada a uma cama estreita sem qualquer protecção lateral, especialmente tendo em conta que a ofendida já tinha caído da cama por duas vezes durante a noite.

Neste âmbito não colhe a justificação muitas vezes oferecida pelas enfermeiras e Directora da ERPI que uma cama de grades era mais perigosa para a ofendida por não impedir que a mesma saltasse da cama e caísse de uma altura superior.

E não colhe pelo simples motivo que tal nunca sucederia com a mesma imobilização que foi feita à ofendida, pois esta impede que aquela se levante da cama, quer esta tenha ou não grades, sendo que as grades impedem que caia da cama pendurada pelo lençol. É assim que se faz nos hospitais.

Na última sessão de julgamento a enfermeira VB e a Directora da ERPI avançaram com outro argumento que seria o desconforto da ofendida, o que no seu entender provocaria ainda maior agitação. Ora, salvo o devido respeito, tal argumento afigura-se-nos absolutamente despropositado, pois que, muito maior desconforto causa a imobilização do que as grades, e a mesma não deixou de ser executada inúmeras vezes, noite após noite, pois como a enfermeira VB reconheceu, acima do conforto do utente está a sua segurança, saúde e vida.

Outrossim a discussão que foi trazida aos autos quanto às camas articuladas e autonomia dos utentes também é despicienda, pois, como se apurou, é possível colocar grades amovíveis na cama onde a ofendida dormia, sendo tal uma medida básica de segurança, a qual foi pura e simplesmente ignorada.

Do mesmo modo se diga quanto à hipótese de a sufocação da ofendida ter sido causada pela obstrução das entradas de ar na cara por ter ficado comprimida contra o lado do colchão – hipótese possível mas não provável de acordo com o perito médico-legal – na medida em que, tal cenário também nunca se poderia verificar numa imobilização feita numa cama de grades.

Optando a demandada por imobilizar utentes em camas sem grades ao mesmo tempo que não dispõe de recursos técnicos (câmaras de vídeo), nem meios humanos suficientes para vigiar 24 horas por dia cada utente, não pode deixar de ser responsável por esta morte, na medida em que a mesma era espectável e previsível, atento o historial de quedas da ofendida e o seu elevado grau de agitação nocturna, o qual se encontra devidamente reportado no histórico de ocorrências a fls. 68-147 e 436-443.”

E a fundamentação da decisão em matéria cível foi a seguinte:
“O filho da vítima AC constitui-se assistente, e juntamente com o seu irmão, JC, deduziram um pedido de indemnização civil contra as arguidas e a SCM, no montante de 110.000,00 €, pelos danos não patrimoniais ocorridos em consequência da morte da sua mãe.

A responsabilidade civil por perdas e danos emergente de crime é regulada pelos artigos 129.º e seguintes do Código Penal, fundando-se o pedido de indemnização civil formulado no processo penal respectivo na indemnização por danos emergentes da prática de um crime (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal).

Deste modo, porque a responsabilidade aqui em análise é apenas a responsabilidade civil por factos ilícitos, e tendo o tribunal já concluído pela inexistência de uma conduta ilícita por parte das arguidas EE e AA, claudicará igualmente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes civis contra aquelas, acarretando, em consequência, a absolvição das arguidas também nesta sede.

Resta apenas apurar a responsabilidade civil da demandada SCM tendo em conta a factualidade provada.

a) Dos pressupostos da responsabilidade civil:
Nos termos do artigo 1154.º do Código Civil (CC), o «contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».

Mais refere o artigo 219.º do mesmo diploma que «A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir».

No caso vertente, resultou provado que as partes celebraram um contrato de prestação de serviços.

Dispõe o artigo 798.º, n.º 1, do referido diploma, «O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.»

Sendo que, o artigo 800.º, n.º 1 do mesmo código estatui que «O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.».

Mais refere o artigo 799.º do CC que «Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.»

A propósito veja-se o teor no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-01-2007 (Proc. 9667/2006-7), in dgsi.pt, assim sumariado: «I- Tem a natureza de contrato de prestação de serviços (artigo 1154.ºdo Código Civil) aquele em que uma sociedade se obriga a prestar, mediante retribuição, assistência a pessoas idosas internadas num lar.

II- Os serviços a que a ré se obrigou dirigiam-se e beneficiavam, não a parte contratante, mas o progenitor desta, aquele que estava internado no lar destinado a pessoas idosas, traduzindo-se tais serviços naqueles que os filhos estão obrigados perante os pais e que são de natureza fungível (prestação de cuidados de alimentação, saúde e higiene: ver artigo 2003.º do Código Civil)) sendo, assim, deles credora a parte contratante, não o terceiro beneficiário.

III- Não tendo a referida sociedade cumprido as suas obrigações por forma a assegurar ao assistido autonomia, independência, manutenção das capacidades físicas e psíquicas, alimentação adequada, bem-estar, higiene, tratamento de roupas, o que se lhe impunha de acordo com o regime legal e contratual (ver Despacho Normativo n.º 12/98 in DR. 47/98, série I-B), houve incumprimento contratual.

IV- O incumprimento foi causa de agravamento da saúde do assistido tanto sob o ponto de vista físico como psíquico que se repercutiu na própria filha e tal incumprimento deve considerar-se culposo (artigos 798.º e 799.º do Código Civil).

V- No plano da responsabilidade importa atentar em que a obrigação de indemnizar comporta uma componente de responsabilidade contratual por incumprimento, a que se aludiu, mas também uma componente de indemnização por desrespeito de direitos de personalidade, de valores inerentes à pessoa humana (saúde, honra e dignidade) fundada na responsabilidade que à sociedade prestadora de serviços sempre se impunha perante a pessoa que ficou a seu cargo.

VI- Importa, portanto, no plano da responsabilidade por danos morais, ter em atenção não apenas o sofrimento da autora, mas igualmente o do seu progenitor, também autor, cada um fundado em diversa responsabilidade, a contratual no que respeita à autora, a extracontratual, quanto ao autor, por desrespeito dos seus direitos de personalidade.».

Ora, face à factualidade dada como provada nos presentes autos, facilmente se constata que se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, constituindo-se assim a demandada SCM na obrigação de indemnizar as demandantes.

Efectivamente, apurou-se que nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16/03/2016, de que existe cópia a fls. 599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem, acompanhamento e vigilância.

Tal como na responsabilidade extracontratual ou delitual, na responsabilidade contratual são quatro os pressupostos: o facto ilícito (constituído pela omissão do zelo exigível), a culpa (que aqui se presume nos termos do artigo 799º, n.º 1 do CC), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Com efeito, apurou-se a existência de um facto ilícito que consistiu na imobilização da ofendida numa cama sem grades e na violação do dever de vigilância, por falta de pessoal suficiente ou infra-estruturas adequadas, como um circuito de vídeo fechado, para monitorizar devidamente a ofendida.

Mais se apurou a culpa da demandada, na sua modalidade de negligência, e que consistiu na omissão dos deveres de cuidado, acompanhamento e vigilância a que estava contratualmente obrigada.

Bem como a produção de danos, designadamente, a perda da vida da vítima; o desgosto causado aos demandantes pela perda do seu familiar, e os sofrimentos causados à vítima antes de falecer.

Finalmente, verificou-se a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos, mormente a circunstância da observância dos deveres de cuidado omitidos serem susceptíveis de levar à morte prematura da vítima, sendo assim a omissão desse dever a causa e condição adequada a produzir a morte da vítima. Essa mesma morte causou profundo desgosto aos demandantes.

Face ao exposto, dúvidas não subsistem de que face à factualidade provada, que evidencia que da actuação ilícita e culposa da demandada SCM, resultaram danos não patrimoniais para a vítima e os demandantes, assim se concluindo que a demandada civil deverá ser condenada no seu ressarcimento, nos termos do artigo 496.º do CC.

b) Ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e pelos seus familiares:

Em matéria de danos não patrimoniais impõe-se ao Tribunal encontrar «o quantum necessário para obter aquelas satisfações que constituem a reparação indirecta» - vde. Galvão Telles, in Direito das Obrigações, Coimbra Editora, pg. 377.

Nesta sede, o dinheiro não tem a virtualidade de apagar o dano, mas este pode ser contrabalançado «mediante uma soma capaz de proporcionar prazeres ou satisfações à vítima, que de algum modo atenuem ou, em todo o caso, compensem esse dano», como refere Pinto Monteiro, in Sobre a Reparação dos Danos Morais, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro 1992, n.º 1, 1º ano, APADAC, pg. 20.

Com efeito, quanto aos danos não patrimoniais, todos os sofrimentos apurados na factualidade provada constituem efectivamente danos de natureza não patrimonial que merecem a tutela do direito e justificam a atribuição de indemnização, nos termos do aludido artigo 496.º, n.º 1.

Note-se que o artigo 496.º, n.º 4, 2.ª Parte do CC estabelece expressamente que «no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.».

Sendo que o n.º 2 do citado artigo 496.º é claro quando refere que «Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem».

Efectivamente dispõe o artigo 70.º do CC, concretizando o disposto nos artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa, aplicáveis ao presente caso, que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, havendo lugar a responsabilidade civil.

Como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 11/07/2007 (Proc. 0711856), in dgsi.pt «O art. 496.º do CCivil consagra a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E a doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, limitam a indemnização àqueles casos que tenham efectiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, à liberdade pessoal, às lesões corporais e de saúde, aos demais direitos de personalidade, etc (cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac.STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs.), sendo ainda objecto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indirectamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos (Vaz Serra, RLJ, ano 105.º e 108.º, p 37 sgs. e 223; Ac STJ de 27-12-69, BMJ, 141.º, 331; Ac STJ de 22-11-78, BMJ, 204.º, 262).

A gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e tudo segundo critérios de equidade (cfr A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais (Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80, de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399; Ac STJ, de 25-6-2002, CJ/STJ, ano X, t. II, p. 128) e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: a de compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente (cfr A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538).»

Outrossim, o Acórdão da Relação de Coimbra de 15/09/2009 (Proc. 170/2001.C2), in dgsi.pt decidiu o seguinte: «A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante (natureza mista).

A gravidade do dano terá de ser aferida em termos objectivos, tendo em consideração as circunstâncias do caso, mas, desde já, se refira que não bastam simples incómodos ou contrariedades para justificar o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais.

Com relevo para a fixação do quantum indemnizatório, que é operado segundo critérios de equidade, haverá que ponderar, designadamente, o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do demandado, os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência e as flutuações do valor da moeda – cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. I, 9.ª Ed., Almedina, 1996, 629.

No que concerne especificamente aos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima em consequência da sua morte deve atender-se ainda ao grau de parentesco (mais próximo ou mais remoto), à maior ou menor intensidade do relacionamento entre a vítima e os titulares do direito à indemnização, já que esta visa compensar os familiares a quem a vítima faltou pela tristeza, angústia, falta de apoio, carinho e companhia.

A propósito saliente-se o decidido pelo Acórdão da Relação de Évora de 10-04-2012 (Proc. 133/08.5GCCUB.E1), in dgsi.pt: «1. Os valores constantes da Portaria nº 377/2008, que cuida da apresentação de propostas de indemnização pelas seguradoras, não são de aplicação judicial obrigatória. Não devem, no entanto, os tribunais menosprezar as virtualidades de um diploma que se pretende uniformizador, o que apenas se prossegue se judicialmente se lhe atender como quadro de critérios ou valores de referência.

2. Na fixação do dano morte deve atender-se, também, à idade da vítima.

3. Na fixação dos danos não patrimoniais sofridos pela viúva e pelas duas filhas do falecido, justifica-se diferenciar a mãe, das filhas, e, entre estas, distinguir a situação da filha não residente, da da filha que sempre residiu com a vítima.»

Há ainda que ter em consideração como parâmetro orientador e coadjutor na fixação da indemnização a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, a qual indica valores médios de indemnização pelas compensações devidas a título de danos morais aos herdeiros e de dano moral da própria vítima (cfr. artigos 2.º, alínea a), 5.º e Anexo II da referida Portaria).

Assim, no que concerne ao cônjuge com 25 ou mais anos de casamento, o Quadro A da Tabela II actualizada prevê a fixação do valor da indemnização até 25.650,00 €; ao passo que para um filho com idade menor ou igual a 25 anos prevê-se o valor de 15.390,00€, e para um filho com idade superior a 25 anos fixa-se o valor de 10.260,00€.

No que concerne ao dano moral da própria vítima, o quadro D da Tabela II prevê que 72 horas é considerado clinicamente o período crítico de sobrevivência, fixando o valor de 2.052,00€ nas primeiras 24 horas, até 72 horas o valor de 4.104,00€, e o montante de 7.182,00€ em mais do que 72 horas, podendo qualquer dos valores ser alvo de majoração até 50% em função do nível de sofrimento e antevisão da morte.

Contudo, estes valores constituem uma referência ao julgador e não se tratam de parâmetros rígidos, pois naturalmente que valor apontado tem de variar não só em função da idade concreta, dado que, a título meramente exemplificativo, 25 anos é uma idade, 40 é outra e 70 outra é; como fundamentalmente tem de depender das restantes circunstâncias como o grau de proximidade e afectividade.

A propósito veja-se o decidido no Acórdão do STJ de 28-11-2013 (Proc. 177/11.0TBPCR.S1), in dgsi.pt:

«1. Os Tribunais, na fixação equitativa dos montantes indemnizatórios a atribuir aos lesados, em sede de acidentes de viação, não estão vinculados á aplicação das tabelas constantes da Portaria nº 377/08, de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/09, de 25 de Junho. Reportando-se estas, apenas, a um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação extrajudicial de propostas razoáveis destinadas a indemnizar o dano corporal.

2. Não se deve confundir a equidade com a mera arbitrariedade ou com a entrega da solução a critérios assentes no puro subjectivismo do julgador, devendo aquela traduzir a “justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”.

3. O dano sofrido pela vítima antes de morrer varia em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer.

4. Para se responder actualizadamente ao comando vertido no art. 496.º do CC (danos não patrimoniais) há que constituir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados, devendo a mesma ser significativa e não miserabilista.

5. É adequada a compensar os danos não patrimoniais suportados pela vítima antes de morrer a quantia de € 20 000,00, tendo em conta o atropelamento que sofreu, com culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel ligeiro, com graves lesões corporais (que determinaram, como causa necessária, a sua morte), tendo a mesma, por efeito do embate, ficado prostrada e abandonada (o veículo prosseguiu a sua marcha) na berma da estrada, encoberta por fetos e vegetação, em estado consciente (gemia com dores e rezava). Assim tendo permanecido durante cerca de meia hora, tendo-lhe sido prestados os primeiros socorros no local, durante cerca de 45 minutos até que foi transportada para o Hospital onde entrou com paragem cardio-respiratória, sem responder a manobras de recuperação.

6. A morte repentina de algum dos nossos entes mais próximos e, por regra, queridos, causa, em princípio, não obstante a idade avançada dos mesmos, mais sofrimento e pesar, de que o decesso anunciado por via de doença grave e sem cura à vista.

Entende-se como justo e equitativo a atribuição da indemnização pelo desgosto da morte da mãe, mulher ainda activa, na trágica e repentina situação em que a mesma ocorreu e sucintamente descrita em 5., para mais com o abandono ocorrido e com as maiores angústias dele decorrentes, de € 20 000,00 para a filha, solteira, com 58 anos, que com a vítima convivia e de € 15 000,00 para a outra filha, que vivia distante. Ambas tendo sofrido com o nefasto evento.».

No caso em apreço logrou provar-se que a falecida e os demandantes filhos mantinham uma relação afectiva forte, e que a morte da sua mãe, nas circunstâncias em que ocorreu, causou profundo choque emocional e desgosto aos demandantes
Não é um facto da vida que possa ser esperado pelos filhos assistirem ao desaparecimento prematuro e repentino da sua mãe, pelo que, a lesão traumática resultante de tal evento – nas hipóteses em que, como a presente, o relacionamento entre aqueles se pauta por uma grande correspondência de afecto e carinho – reveste grau elevadíssimo e duradouro.

Na verdade, não existe, nem poderá existir, dúvida de que os demandantes sofreram e sofrem com a perda do seu familiar directo, sendo por todos sabido da dor decorrente da perda deste ente querido. São laços profundos que são quebrados com a morte, laços que não mais se poderão reconstruir e que causarão nos demandantes uma profunda e irreversível tristeza, que atenta a morte inesperada e imprevisível se tornam ainda mais penosos e cruéis.

Ora este desgosto e sofrimento constituíram e constituem, sem dúvida, violação do direito à integridade psíquica ou moral que lhes assistia, representando por isso danos não patrimoniais suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.

Por último, refira-se que são igualmente dignos de tutela os sofrimentos que a vítima experienciou nos últimos instantes da sua vida, especialmente se considerarmos que asfixiou lentamente até sufocar durante cerca de 30 minutos, embora exista uma probabilidade de a mesma ter falecido enquanto se encontrava a dormir, o que minoraria de sobremaneira o seu sofrimento.

«Entre os danos não-patrimoniais a indemnizar há que distinguir entre os sofridos pela vítima antes da morte, os sofridos especialmente pelos familiares e o dano especificamente constituído pela perda do direito da vida da vítima.» - cfr. Acórdão do STJ de 14-05-1998 (Proc. 98A990), in dgsi.pt.

Ainda, a considerar nos termos do artigo 494.º, ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.

Nesses termos, afigurando-se os danos morais em apreço como merecedores da tutela do direito, o Tribunal, obedecendo a um juízo de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, conclui, como adequado e proporcional fixar, já de acordo com o valor monetário actual, nos termos dos artigos 564.º, n.º 1 e 566.º, ambos do Código Civil, os seguintes valores:

- O montante indemnizatório de 12.500,00 € devido a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte da sua mãe;

- O montante indemnizatório de 10.000,00 € devido aos demandantes em partes iguais (5.000,00 € a cada demandante), na qualidade de herdeiros legais da vítima (cfr. artigos

c) O Dano Morte:
Por último, cumpre proceder à análise de fixação do quantum indemnizatório devido pela perda do bem mais precioso de todos, a vida.

De facto, sendo o dano morte o último e decisivo dos danos não patrimoniais seria, por uma questão de princípio, um contra-senso negar a sua reparação patrimonial. Todos os princípios aplicáveis aos danos não patrimoniais são automaticamente aplicáveis ao dano morte. Não sofre destarte qualquer dúvida que o direito à vida, nos termos do artigo 496.º do CC, constitui um dano autónomo, susceptível de reparação pecuniária.

Com efeito, tendo como suporte constitucional o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e como suporte legal, os artigos 68.º, 70.º, n.º 1 e 71.º, n.º 1 do Código Civil, poder-se-á afirmar que o direito à vida é um direito pessoal, inerente à personalidade e de aquisição automática sendo, a sua perda, indemnizável.

Já não se apresenta uniforme o entendimento respeitante à consideração se o direito à reparação deste dano nasce, por direito próprio, na esfera jurídica das pessoas referidas nos n.º 2 e 3 e pela ordem aí estabelecida ou se nasce no património da vítima e se transmite, por via sucessória, para essas mesmas pessoas.

No entanto, embora in casu a questão não se suscite, este Tribunal segue o entendimento de que o direito à reparação do dano morte nasce, jure proprio, na esfera jurídica das pessoas elencadas nos n.º 2 e 3 do artigo 496.º do CC.

Neste âmbito, e desde logo, salientam-se as considerações de Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. I, 10.ª Ed., Almedina, 2000, pgs. 611/612 que, contrapondo-se à tese defendida por Galvão Telles, aponta a seu favor o argumento histórico da norma legal do artigo 496.º em virtude de se ter substituído no decurso dos trabalhos preparatórios do Código a expressão “transmite-se aos herdeiros” por “cabe”.

Ao argumento histórico junta-se quer o argumento literal, dado que a lei não distingue os danos não patrimoniais causados à vítima dos sofridos pelos familiares, querendo abranger quer uns quer outros; quer o argumento sistemático pois o preceito encontra-se inserido no domínio da responsabilidade civil, e não no capítulo do Direito sucessório, o que não sucederia se estivéssemos perante uma transmissão mortis causa.

Além de que, há que atender ao facto de que, aquando da feitura do n.º 2 do artigo 496.º em 1966, o cônjuge não era herdeiro legitimário, tendo na altura um papel muito remoto na sucessão legítima, e integrou logo então, o primeiro grupo de pessoas com direito à indemnização. Ainda, não releva para a legitimidade dos familiares identificados neste preceito legal, o facto de terem ou não repudiado a herança ou sejam indignos sucessoriamente, por facto não relacionado com a morte da vítima, pois, a lei quis-lhes atribuir esse direito por título próprio, que não hereditário. Parece, portanto, claro que, a intenção do legislador reside na aquisição originária e não numa transmissão sucessória, reforçada pelo facto de o direito à indemnização pela perda da vida não responder pelos encargos da herança.

Aliás, a alteração ao artigo 496.º operada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto vem, no nosso entender, fazer cair por terra a tese de transmissão mortis causa ao prever no novo n.º 3 que «Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes». Efectivamente, pese embora a protecção legal crescente oferecida pelo legislador à união de facto, o unido de facto não integra ainda qualquer classe de sucessíveis legais, mas ainda assim é titular do direito à indemnização pelo dano morte por direito próprio, o que só se concebe à luz da tese que propugnamos.

Logo, conclui-se que, tanto a letra como o espírito da lei apontam no sentido compreensivo de que nenhum direito de indemnização pelo dano morte se atribui via sucessória, aos herdeiros da vítima, sendo que, toda essa indemnização é atribuída aos familiares ex novo por direito próprio, nos termos e segundo a ordem dos n.º 2 e 3 do artigo 496.º, que tiveram uma relação privilegiada com a vítima, não existindo dois direitos de indemnização por dois títulos diferentes, mas apenas um, tendo em conta o carácter unitário do direito à indemnização de todos os danos não patrimoniais em causa. E não choca que, se possa exigir a reparação de um dano relativo a um bem pertencente a outra pessoa. Aliás, a atribuição de um direito próprio já vem na linha do artigo 71.º, n.º 2 do CC.

A favor da aquisição jure próprio do direito de indemnização das pessoas elencadas no n.º 2 do artigo 496º, posiciona-se também Ribeiro de Faria, in Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 1990, pgs. 493 e 494 por razões de ordem legal e da própria história da disposição. No mesmo sentido, Vaz Serra, Fundamento da responsabilidade civil e em especial, responsabilidade por acidentes de viação terrestre e por intervenções lícitas, in BMJ, 90, 203/204, já considerava válida a hipótese de não se tratar de transmissão, mas de um direito próprio dessas pessoas. Outrossim, Pereira Coelho, in Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pgs. 174 e sgs., e Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, 4.ª Ed. renovada, Coimbra Editora, 2000, pgs. 322 e sgs

Nesta linha de pensamento, temos igualmente Maya de Lucena, in Danos não patrimoniais: o dano da morte - interpretação do artigo 496º do Código Civil, Almedina, 1985, pgs. 48, 49 e 68 que, criticando severamente a orientação seguida por Galvão Telles vem dizer que, o momento da morte é logicamente o primeiro momento após a vida, pois, só surge quando esta já se extinguiu. Num plano lógico, o direito à indemnização só aparece num instante imediatamente posterior ao da morte, e portanto, quanto ao presumido de cujus, quando já não existe um titular para tal direito, isto é, quando já não há um suporte jurídico para ele.

Como refere Gomes da Silva, in Direito das Sucessões, Lisboa, 1978, pg. 76: «A morte é morte, a vida é vida, e por isso, o momento da morte já não pode estar na vida: o momento da morte é o primeiro, depois do último momento da vida.». E como reforça Leite Campos, A indemnização do dano da morte, in “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra”, Vol. L, Coimbra, 1974, pg. 290, nesta matéria: «Ou é ou não é morte,(...) se ainda existia vida não é ainda morte, se não existe, já não é vida. Não é possível conciliar estas duas afirmações, não se pode ser e não ser.».

E como o dano é um pressuposto fundamental da responsabilidade civil, já não se verificando na esfera da vítima, nunca poderia integrar o seu património e ser transmissível aos herdeiros. É esta também a orientação de Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2.º Vol., reimpressão, A.A.F.D.L., Lisboa, 1999.

Entre nós, a Jurisprudência também se divide inevitavelmente neste âmbito, sendo significativos neste sede, os Acórdãos do Supremo de 9/05/1996, 18/03/1997, 15/04/1997 e 10/02/1998 e da Relação de Coimbra de 14/11/1995.

A título meramente exemplificativo veja-se o Acórdão do STJ de 27-11-2008 (Proc. 08P1413), in dgsi.pt:

«III - Por conseguinte, cessando a personalidade jurídica, cessa a capacidade para ser sujeito de relações jurídicas. Nenhum direito pode radicar-se numa personalidade extinta, nem no património de uma pessoa que deixou de existir. A morte impede a possibilidade de aquisição de direitos, de sorte que não podem ancorar-se no património da pessoa falecida direitos que supostamente nasceriam com o próprio evento da morte. Se a morte pode dar lugar ao surgimento de direitos, esses direitos não nascem nem se radicam na esfera jurídica do finado, mas na esfera jurídica de outras pessoas, que, estando ligadas ao falecido por um vínculo especial de parentesco, gozam de protecção legal, no sentido de que a lei prevê que a morte desse seu entre querido possa constituir para elas uma causa adequada de danos, sejam patrimoniais, sejam não patrimoniais. É o caso dos arts. 495.º, n.º 3, e 496.º do CC, que constituem excepção ao princípio-regra de que a indemnização cabe ao próprio titular do direito violado ou do interesse lesado com a infracção da disposição legal destinada a protegê-lo.

IV - Se a morte é um dano que não se verifica já na esfera jurídica do seu titular, muito menos se hão-de produzir nessa esfera danos que, pressupostamente, se teriam verificado em consequência do evento “morte”. E, muito menos, danos que são pura e simplesmente ficcionados, imaginando que a vítima viveria um certo número de anos, em conformidade com a esperança média de vida e que, se vivesse, as coisas lhe haveriam de correr de determinada maneira, do ponto de vista profissional e patrimonial. Isto é ficção, por muito modesto e mediano que se desenhe o horizonte dos possíveis que se desdobrariam ao finado, se, por hipótese, ele fosse vivo. Para além do absurdo de se conceber que radicam na esfera jurídica do finado os danos que advieram em consequência da sua própria morte.»

Do mesmo modo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 30-05-2013 (Proc. 364-F/2000.G1), in dgsi.pt decidiu que «I - O direito à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da morte, tal como sucede com a indemnização pelo dano morte, surge na titularidade das pessoas mencionadas no n.º 2 do art. 496.º do Código Civil por direito próprio. II - Assim, não sendo transmissível aquele direito, não é o mesmo susceptível de ser penhorado.».

Outrossim, o Acórdão da Relação de Coimbra de 28-05-2008 (Proc. 321/05.6PAPBL.C1), in dgsi.pt: «No caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio (iure próprio), nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do artº 496º do Código Civil».

No que respeita ao quantum indemnizatório, a vida é um valor absoluto, independente da idade, condição sociocultural, ou estado de saúde, pelo que irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma. Importam, tão-somente os outros critérios do artigo 494º, aplicável ex vi do n.º 4 do artigo 496.º do CC.

Daí que, quanto aos critérios de fixação do quantum indemnizatório pela perda do direito à vida não seja de acolher, como se refere no Acórdão do STJ de 8-6-2006 (Proc. 06A1464), in dgsi.pt «a tese que privilegia a vida que desempenha um "papel excepcional" na sociedade ("um cientista, um escritor, um artista") em relação a uma vida "normal" ou a uma vida "sem qualquer função especifica na sociedade (uma criança, um doente ou um inválido)" acenada pelo Cons. Dário Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 188».

Quando muito «aqueles factores poderão ser ponderados nos cômputos indemnizatórios dos danos morais próprios dos herdeiros da vítima ou do dano patrimonial mediato por eles sofrido em consequência da perda. Em acerto de tese pode também ser feita uma ponderação de factores culturais, de personalidade ou etários na fixação da indemnização pelo sofrimento da vítima (dano não patrimonial próprio) nos momentos que precederam a morte, na percepção da aproximação desta, no estoicismo ou capacidade de resignação perante as dores físicas e morais» (ibidem).

Na esteira de Leite de Campos, A Vida, a Morte e sua Indemnização, in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, Ano 4, n.º 7, Julho, 1985, pgs. 80 a 96, entendemos que a indemnização pelo dano da morte deverá ser aferida pelo valor da vida para a vítima enquanto tal, não pelo custo da vida humana para a sociedade e para os que dependem da vítima; o prejuízo é igual para todos os homens e, consequentemente, a indemnização deve ser a mesma para todos. A indemnização deve ser medida por dois parâmetros: pela consideração de que a morte é o prejuízo supremo, envolvendo o desaparecimento da pessoa; e pela finalidade desta reparação de não deixar o agressor numa situação patrimonial melhor do que a que teria se não fosse a morte da vítima.

Daí que essa indemnização – havendo, obviamente, que respeitar “o grau de culpabilidade do agente” e “a situação económica deste e do lesado” (cfr. artigos 496.º, n.º 4 e 494.º do CC) – tenha, sobretudo, que atender, no seu simbolismo, ao “valor social” e à “representatividade comunitária” da vítima, dentro de parâmetros que considerem os seus feitos em prol da comunidade, incluindo naturalmente o núcleo familiar de enquadramento, e as esperanças que seriam ainda de alimentar quanto ao seu futuro contributo para o bem estar dos seus concidadãos e, na sua representação simbólica, à dinâmica da própria “praxis” jurisprudencial.

Diríamos, assim, que à falta de outro critério legal, na determinação do respectivo montante compensatório importa ter em linha de conta, além da vida em si, a vontade e alegria de viver da vítima, a sua idade, e a sua saúde. São estes elementos que nos permitem aferir a quantidade e a qualidade da vida que ficou por viver.

Mais uma vez, há que ter em consideração como parâmetro orientador e coadjutor na fixação da indemnização a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, a qual indica valores médios de indemnização pelas compensações devidas do direito à vida (artigos 2.º, alínea a), 5.º e Anexo II da referida Portaria).

Assim, caberá aos herdeiros em partes iguais o valor de 61.560,00€ se a vítima tivesse à data da morte até 25 anos, o valor de 51.300,00€ se tivesse entre 25 e 49 anos, o valor de 41.040,00€ se tivesse entre 50 e 75 anos, e o valor de 30.780,00€ se tivesse mais de 75 anos.

Como se faz notar no douto Acórdão do STJ de 05/05/2005 (Proc. 03B2182), in dgsi.pt., «Prevalece, todavia, hoje neste plano um entendimento diferente, sensível à circunstância de que tais indemnizações têm ficado aquém dos valores que seriam exigíveis. E a jurisprudência mais recente é efectivamente no sentido do seu incremento.

Com razão anota o acórdão uniformizador n.º 4/2002, citado na sentença, que a jurisprudência do Supremo tem evoluído no sentido de que a compensação dos danos morais não pode ser «miserabilista», antes, «para responder actualizadamente ao comando do artigo 496.º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar».

A destruição do bem vida envolve a destruição de todos os outros bens de personalidade: o ser humano não fruirá mais dos prazeres dos sentidos, da razão, do movimento, dos sentimentos. A morte é um dano único que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais. O montante da sua indemnização deve ser, pois, superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis. Nesse sentido, cabe à jurisprudência um papel importante da determinação do montante indemnizatório pela supressão da vida humana. E a jurisprudência mais recente tem vindo a apontar valores que consideramos adequados atendendo às circunstâncias da vida nas sociedades modernas e consumistas dos nossos dias, não podendo a vida humana valer menos que certos bens como por exemplo um automóvel.

Hoje em dia, a jurisprudência toma mais como referência um valor médio a rondar os 50.000,00 €. Fazendo variar tal valor em função dos supra apontados critérios (grau de culpabilidade do agente, da situação económica deste e do lesado) bem como em função da idade da vítima e da sua consequente esperança de vida.

A propósito, o Acórdão do STJ de 28-11-2013 (Proc. 177/11.0TBPCR.S1), in dgsi.pt decidiu igualmente que «É adequada a quantia arbitrada de € 50 000,00 para indemnização da perda do direito à vida».

Assim, na esteira do entendimento jurisprudencial quanto ao incremento dos quantitativos da indemnização por dano morte, há que atender ao valor social da vida (que na realidade tem um valor incalculável e inatingível através de qualquer quantia monetária) e levar em conta as circunstâncias do caso, nomeadamente a idade da vítima e a sua inserção familiar.

No caso em apreço, logrou provar-se com relevância para esta questão, que a vítima mortal à data da morte tinha 75 anos de idade, padecendo de Alzheimer, e os filhos, nutriam bastante carinho por ela.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), in https://www.ine.pt, «A esperança de vida à nascença foi estimada em 80,80 anos, sendo 77,78 anos para os homens e 83,43 anos para as mulheres no período 2016-2018».

Porém, é consabido que a esperança de vida de uma pessoa idosa diminui de sobremaneira a partir do momento em que deixa de viver em sua casa e passa a viver num lar.

Cumpre também considerar nos termos do artigo 494.º ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.

Neste âmbito cumpre ter presente a jurisprudência constante do Acórdão do STJ de 14-12-2016 (Proc. 619/04.0TCSNT.L1.S1), in dgsi.pt, com referência à morte de um homem de 70 anos: «X - Tendo ficado provado que o pai das autoras: (i) estava internado no lar de idosos desde 04-04-1998; (ii) era doente e tinha sofrido uma trombose; (iii) estava acamado e morreu por asfixia em consequência do incêndio que ali deflagrou em 15-05-1999; e que (iv) era um ponto de referência para a família, sendo, à data da morte, uma pessoa feliz e alegre (apesar destas características terem diminuído no lar), é de considerar que a indemnização pelo dano morte, devida pelo ISSS e fixada em € 25 000 no acórdão recorrido, se encontra aquém dos limites dentro dos quais se deve situar um juízo equitativo que salvaguarde os princípios da proporcionalidade e da igualdade, devendo, consequentemente, a mesma elevar-se para € 60 000.».

Pelo exposto, atendendo aos elementos supra enunciados, configura este Tribunal justo e adequado fixar de acordo com os juízos de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o montante indemnizatório de 60.000,00 € devido pela demandada aos demandantes, em partes iguais, por direito próprio (cabendo a quantia de 30.000,00€ a cada demandante), pela perda do direito à vida da sua mãe.

Nos termos dos artigos 805.º, n.º 3, e 559.º, n.º 1, ambos do CC, incidem juros vincendos de mora à taxa legal de 4%, nos termos da Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril, contados desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, conforme jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2002, de 9/05/2002, publicado no DR I-A, de 27/06/2002, na medida em que as indemnizações atribuídas foram objecto de cálculo actualizado (à luz do n.º 2 do citado artigo 566.º), na presente decisão.

Termos em que, deverá o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelos demandantes civis AC e JC, ser julgado parcialmente procedente por provado e em consequência, serem absolvidas as demandadas civis EE e AA do pedido, e condenada a demandada civil SCM a pagar aos demandantes, em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido.

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam (a) à impugnação da matéria de facto por via da invocação (a.1) do erro notório na apreciação da prova e (a.2) da contradição insanável, socorrendo-se ainda, pontualmente, a demandada do recurso a provas gravada e (b) à impugnação em matéria de direito no respeitante (b.a.) à obrigação de indemnizar e (b.2) ao montante indemnizatório.

(a) Da impugnação da matéria de facto
A recorrente impugnou a factualidade dada como provada na sentença por via da invocação de dois vícios de texto: o erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável entre os factos provados e entre estes e a fundamentação.

Socorreu-se ainda da prova gravada e da prova documental e perícia, utilizando simultaneamente a via ampla de impugnação prevista no art. 412º, n.º 3, do CPP.

Através da invocação dos dois vícios da sentença e do acesso à prova gravada e a documentos do processo, pretende a demandada recorrente a alteração da matéria de facto, no sentido de se considerarem não provados muitos dos factos provados.

Assim, distinguem-se duas situações que se abordarão separadamente, e que se problematizaram, (a.1.) a primeira, no âmbito do erro notório na apreciação da prova e da via ampla de impugnação; (a.2.) a segunda, no âmbito da contradição insanável, também com algum acesso à prova gravada e à examinada em audiência.

(a.1.) Do erro notório na apreciação da prova
A recorrente impugnou o facto provado em 78., recorrendo também à prova gravada. Apresar do recurso à via ampla de impugnação, adianta-se que, neste ponto, a recorrente tem razão. E para detectar o erro de julgamento seria logo bastante a análise do texto da sentença. No entanto, tendo sido especificada prova oral, da análise desta resulta apenas a corroboração de um erro que já se tornava evidente.

Como se sabe, o recorrente dispõe de duas vias processuais de reacção à “sentença de facto” – a invocação de um vício de decisão, quando o erro resulta logo do próprio texto da sentença, estando nela patente e sendo logo visível (art. 410º, nº 2 do CPP), ou a impugnação ampla da matéria de facto, caso a demonstração exija o confronto com (e a análise das) provas examinadas em audiência (art. 412º, nº 3, do CPP). A recorrente fez uso das duas disposições legais do seguinte modo:

Alega que o facto 78. não está provado nem por documento nem por prova testemunhal, está em contradição com o depoimento do Perito (que especifica), pelo que não poderá ser considerado provado nem invocado para efeitos de condenação da demandada. Diz também que do próprio exame crítico da prova resultaria isso mesmo. E, como se adiantou já, assiste-lhe razão.

O facto impugnado é o seguinte: “78. Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço a até à morte, MN sofreu momentos de aflição, dor e sofrimento.”

Refere a recorrente que “o Perito Dr. LC, médico que autopsiou a ofendida, gravação entre as 16 horas e 09 minutos e com termo pelas 16 horas e 34 minutos, referiu no seu depoimento entre os minutos 20:44 a 24:31 que a morte da Dª MN pode ter ocorrido durante o sono, sem ter acordado, porque sofreu uma lenta compressão e à medida que foi ficando sem oxigénio, começou a baixar o limiar de consciência e morre e por isso pode não ter tido consciência do que se estava a passar. Além de que a medicação que estava a tomar faz baixar mais o limiar da consciência e por isso muito provavelmente não deverá ter tido consciência do que se estava a passar.”

Se olharmos a motivação da matéria de facto da sentença, pode ali ler-se efectivamente que “no caso em concreto, atenta a medicação que a ofendida tomava e que induzia o sono, o quadro demencial, a sua idade avançada, a fraca musculatura e a debilidade física, resulta provável que a ofendida estivesse a dormir enquanto estava lentamente a asfixiar, tal como acontece nos casos de apneia grave, o que explica que a mesma não tenha feito nenhum barulho audível, nem chamado a ajudante.”

E nenhuma outra explicação se descortina na sentença para justificação da demonstração do facto 78. Ou seja, a sentença não só não permite compreender como se logrou chegar à sua demonstração, como, na objectivação da convicção se refere uma análise de prova que deveria ter conduzido ao resultado probatório contrário.

Em suma, inexiste prova bastante para que se possa afirmar factualmente que “Durante o lapso temporal em que a faixa se enrolou no seu pescoço e até à morte, MN sofreu momentos de aflição, dor e sofrimento”, pelo que este enunciado fáctico passará a integrar os factos não provados da sentença, assim se corrigindo o erro de facto detectado.

(a.2.) Da contradição insanável entre os factos provados
A recorrente impugna ainda extensamente muitos outros factos provados, mormente por via da invocação do vício da contradição insanável, mas também alude a alguns depoimentos e documentos, alguns dos quais juntos em fase de recurso.

Duas notas iniciais se justificam:
Independentemente da (in)tempestividade desta junção, os documentos que juntou não se revelam em concreto decisivos para a decisão do recurso. Referentes a boas práticas no exercício da enfermagem, à assistência e imobilização de idosos acamados, respeitam a procedimentos gerais de imobilização, cumprindo sempre (designadamente aqui, na decisão do caso) aferir, sim, quais as exigências de procedimento que em concreto, e relativamente a esta concreta pessoa se impunham.

Por outro lado, e uma vez retirado da matéria de facto provada o enunciado 78., da leitura de toda a “sentença de facto” (composta pelos factos provados, não provados e sua justificação) resulta claro qual o episódio de vida em apreciação. E essa clareza persiste mesmo no confronto da impugnação do recurso. Ou seja, a sentença de facto justifica adequadamente todos os factos provados e estes descrevem um episódio unitariamente lógico e coerente e de acordo com as provas. Esta a percepção que resulta clara da sentença, no sentido de o tribunal ter sabido apreender e percepcionar devidamente o episódio de vida em apreciação.

Adianta-se, por último, que não se detectam contradições relevantes e juridicamente consequentes, consignando-se que, na ausência destas, não se justificariam nunca pontuais melhorias de redacção ou acertos de redacção de factualidade, já que os recursos são remédios jurídicos que visam reparar erros de julgamento e não meios de mero aprimoramento de decisões.

Mas concretizando, a recorrente invoca as seguintes contradições entre os factos:

“a. O facto provado 8 está em contradição com os factos provados 11., 12., e 13., e com os depoimentos das testemunhas AM, Dr. MS e VB, deverá passar a ter a seguinte redacção: - “ A imobilização foi feita numa cama sem grades “.

b. Os factos provados 30. e 73. estão em contradição com os factos provados 26., 59., 58., 57., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104. e 110. não devendo ser considerados provados para efeitos de condenação da demandada

c. O facto provado 61 deverá ser corrigido, passando a ter a seguinte redação: - “A prática de contenção que foi utilizada no caso da utente MN é correntemente utilizada em outras instituições de acolhimento de idosos e também no meio hospitalar”.

d. O facto provado 66 deverá ser corrigido passando a ter a seguinte redacção: - “Nos termos do acordo ajustado entre a falecida e os seus dois filhos e a SCM, datado de 16.03.2016, de que existe cópia a fls.599 a 601, esta última obrigou-se a prestar a MN – Alojamento, Alimentação adequada às necessidades dos Utentes, respeitando as prescrições médicas, Apoio nos cuidados de higiene pessoal, Apoio no desempenho das atividades de vida diária, Tratamento de roupa, Apoio no cumprimento de planos individuais de medicação e no planeamento e acompanhamento regular de consultas médicas e outros cuidados de saúde”.

e. Os factos provados 68. e 69. estão em contradição com o facto provado 88, pelo que não poderão ser considerados provados e invocados para efeitos de condenação da demandada

f. O facto provado 71 está em contradição com o facto 87 pelo que não poderá ser considerado provado e invocado para efeitos de condenação da demandada

g. Os factos provados 74., 75., e 76 estão em contradição com os factos provados 11., 12., 13., 20., 26., 38., 39., 42., 43., 53., 56., 57., 58., 59., 60., 62., 63., 91., 96., 97., 98., 99., 100., 101., 102., 103., 104., 105. e 110. pelo que não poderão ser considerados provados nem serem invocados para efeitos de condenação da demandada”.

Da leitura de todos os apontados enunciados resulta claro que, independentemente de alguns deles poderem ser sujeitos a pontuais melhorias de redacção na sua concordância, inexistem verdadeiras contradições, juridicamente consequentes. Pois o vício da contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e decisão ocorre apenas quando a fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados, sendo uma incompatibilidade inultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a matéria de facto e a decisão, existindo como que uma colisão. Essa colisão não ocorre factualmente, em nenhum momento, aqui.

Como os demandantes acertadamente contrapuseram, na resposta às imputadas contradições, “I. Em nada são contraditórios os factos constantes dos pontos 8, 11, 12 e 13, uma vez que, não se põe em causa o teor das declarações prestadas pelas enfermeiras AM e VB, mas sim o facto das instruções por elas dadas e consequentemente, a forma como foi feita a imobilização, ser tecnicamente incorrecta, uma vez que, como explicou o Sr. Perito médico, as imobilizações podem ser realizadas com recurso a um lençol, como sucedeu in casu, mas sempre numa cama de grades e nunca numa “cama normal”.

II. A imobilização numa cama normal, não impede uma pessoa de cair.

III. No que respeito aos pontos 30 e 73, se pode ser verdade que à funcionária não era exigível servir as ceias e vigiar os quartos em simultâneo, à Recorrente era exigível ter um sistema de vigilância eficaz e permanente, uma vez que as imobilizações que eram realizadas diariamente não eram seguras e possibilitavam quedas.

IV. Com efeito, uma funcionária naquele piso é manifestamente insuficiente como se veio a provar, uma vez que a qualquer momento um utente pode cair ou precisar de auxílio por qualquer razão.

V. No que respeita ao ponto 61, nunca a douta sentença diz que a Recorrente é um hospital, o que refere é que, como já se disse acima, as imobilizações, a serem necessárias, devem ser realizadas de forma segura, tal como se faz nos hospitais, em camas de grades.

VI. Relativamente ao ponto 66, a assistência médica corresponde à prestação de cuidados de saúde e acompanhamento, conforme consta claramente do Regulamento Interno.

VII. No que concerne aos pontos 68 e 69, não são contraditórios, uma vez que quando MN entrou para a Instituição andava pelo seu próprio pé, falava, conhecia todas as pessoas com quem lidava e comia sozinha, de modo que, não evidenciava ainda muitos sintomas de Alzheimer, pese embora já tivesse alguns, nomeadamente a necessidade de usar fralda, alguma confusão espácio-temporal e necessitar de vigilância.

VIII. Quanto ao ponto 71, o facto de MN ter estado em outras Instituições, não está em contradição com o facto de os Demandantes alegarem que não queriam que esta estivesse sozinha em casa.

IX. Relativamente aos pontos 74, 75 e 76, MN foi imobilizada, numa cama sem grades, não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.”

A decisão da matéria de facto é, pois, nesta parte, integralmente de manter.

(b) Da impugnação em matéria de direito
(b.a.) Da obrigação de indemnizar
Na sentença julgou-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra a demandada civil SCM, condenando-se esta a pagar aos demandantes AC e JC, “em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ (noventa e cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo-a da parte remanescente do pedido”.

A recorrente argumenta aqui, essencialmente, do modo seguinte:
“A imobilização da Dª MN numa cama sem grades não é um facto ilícito porque não constitui uma omissão de zelo exigível, em primeiro lugar porque não existe nenhuma disposição legal ou normativa que obrigue a demandada a deitar a ofendida numa cama com grades (…)

Em segundo lugar a ofendida foi avaliada por mais de uma vez pelo Gabinete de Fisioterapia e Reabilitação Psicomotora e enfermeiros da demandada, que são técnicos especializados com competência para efetuar as avaliações, que determinaram que não tinha os critérios para lhe ser atribuída uma cama com grades, porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações, como excesso de peso, problemas de mobilidade, problemas cardiorrespiratórios ou feridas.

Não se verificou a violação do dever de vigilância porque o rácio de pessoal da demandada é bastante superior ao exigido legalmente.

As funcionárias que prestam serviço no 1º piso da ERPI são as mais bem preparadas, eficazes e da maior confiança da demandada, havendo permanentemente vigilância 24 sobre 24 horas.

Além da ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida.

Em noites anteriores a ofendida pediu auxílio por voz ou utilizou o sistema de chamada existente, vide facto provado.

O circuito interno de vídeo fechado que a demandada possui tem a autorização N.º 5594/2016 dada pela com Comissão Nacional de Proteção de Dados que não permite a recolha de imagens de acesso ou interior de instalações sanitárias, zonas de espera, locais de lazer e repouso, corredores de acesso e interior dos quartos e cozinhas.

Não se verifica assim a existência de facto ilícito nem a culpa, pressupostos da responsabilidade civil, devendo em consequência ser julgado improcedente o pedido de indemnização civil em que foi condenada.”

A esta argumentação contrapuseram os demandantes:
“MN foi imobilizada, numa cama sem grades, o que não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança.
Pelo contrário, o lençol causou a sua asfixia.

A utilização de um meio de contenção, implicaria uma vigilância permanente, o que não ocorreu em função do meio de organização do trabalho da Demandada.

Como não assegurou vigilância permanente, MN acabou por escorregar da cama, o que não aconteceria com uma cama de grades e ninguém se apercebeu, acabando por asfixiar até à morte.

A imobilização teria de ser feita numa cama de grades e nunca como aconteceu.

A imobilização não se substitui a uma vigilância, muito pelo contrário, implica maior vigilância, por acarretar um risco de asfixia, que aparentemente as enfermeiras da Demandada desconheciam.

MN foi para o lar da Recorrente por ter sido diagnosticada com Alzheimer uma doença incurável e com tendência para piorar e assim, estaria sempre acompanhada, vigiada e em segurança.

A Demandada ao permitir que MN estivesse sem vigilância adequada, incorrectamente imobilizada e ao permitir que esta escorregasse da cama, acabando por ser asfixiada com um lençol, até à morte, omitiu os deveres de cuidado (…)”.

Num enquadramento jurídico algo impreciso, o tribunal situou a responsabilidade civil da demandada no âmbito do incumprimento de contrato. Mas a resposta jurídica para o episódio de vida em apreciação deve encontrar-se no contexto das normas que regem a culpa in vigilando.

Como se pode ler na "Colectânea de Jurisprudência", tomo 4, n.º 233, agosto-outubro 2011, p. 251-254, “O concurso entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extra-contratual é um concurso aparente de normas, não existindo aplicação cumulativa das duas vias de responsabilidade à mesma situação.

Se o dano resulta da infracção de um dever geral de conduta deve prevalecer a responsabilidade extra-contratual; se ocorre apenas a violação de um crédito, prevalece a responsabilidade contratual.”

No caso dos autos, estamos perante uma situação de uma obrigação decorrente do dever de vigilância por internamento de idoso (idosa) com incapacidade natural em lar. E a esta constatação jurídica é indiferente o tipo ou extensão da assistência médica que em concreto que deveria ou não ser prestada pela demandada (daí ser indiferente a impugnação da matéria de facto nessa parte), uma vez que resulta indiscutível que o dever de vigilância, em concreto, incluiu os cuidados e a assistência necessários a que a idosa dormisse em segurança e a que episódios como o presente não ocorressem.

Trata-se por isso de responsabilidade fundada na culpa in vigilando, como se disse.

O art. 491º do CC contempla uma situação específica de responsabilidade subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância.

Uma vez que não estamos perante danos provocados a terceiros é de afastar a presunção que inverte o ónus da prova prevista no art. 491º do CC, que só existe para o caso de danos a terceiros e não abrange os danos próprios daquele que necessita de vigilância.

Neste sentido, pode ler-se A.Varela e Pires de Lima, CC anotado Vol. I 3ª ed. P. 466 e Rodrigues Bastos, “ Notas ao Código Civil, vol. II Lisboa, 1988 p. 491, onde se pode ler: “A norma em exame só prevê os danos causados a terceiro. Isto não significa que quando a pessoa necessita de vigilância e cause um dano a si própria não possa haver responsabilidade do obrigado a vigilância, só que, em tal caso não é aplicável a inversão do ónus da prova de que trata este artigo (Enneccerus-Lehmann, ob. Vol. II § 237 ali citado).”

Ou seja, como referem A.Varela e Pires de Lima, ob. Cit., p. 466, “no que toca aos danos causados à pessoa que deve ser vigiada vigoram os princípios gerais, nomeadamente o art. 486º.”

Assim sendo, nos termos do art. 487º nº 1 do CC “é ao lesado que incumbe a prova da culpa do autor na lesão”.

“Para a compreensão do “dever de vigilância” deve apelar-se ao “padrão de conduta exigível”, com suficiente plasticidade, impondo-se a indagação casuística e a convocação do “pensamento tópico”, pelo que importa valorar, designadamente, a idade do incapaz, a perigosidade da actividade, a disponibilidade dos métodos preventivos, a relação de confiança e proximidade, a previsibilidade do dano” (Ac. TRC de 17.09.2013, rel. Jorge Arcanjo).

É entre outros, objectivo específico dos estabelecimentos de Lares de Idosos “proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas” (Norma II, nº 1, al. a) do Despacho Normativo nº 67/89, de 26 de Julho), constitui obrigação dos lares de idosos garantir-lhes “a prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das necessidades dos idosos, designadamente, alimentação, cuidados de higiene e conforto, de ocupação, médicos e de enfermagem, tendo em vista a manutenção da sua autonomia” (cfr. nº 2, alíneas a) e c) do preceito citado).

Daqui deriva que, sem prejuízo da independência e autonomia dos idosos quando possível, cabe aos lares desenvolver todo um conjunto de tarefas necessárias à protecção e segurança dos seus internados, encontrando-se entre estas, necessariamente, a obrigação de controlarem o seu comportamento, o que se impõe particularmente em relação àqueles que tenham evidenciado “comportamentos desajustados” da realidade.

Competia assim aos demandantes demonstrarem que o lar não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, para prevenir o evento danoso. E essas providências serão ditadas pelas “particulares normas técnicas ou legislativas inerentes ás especiais actividades ou regras de experiência comum” (Vaz Serra, Da Responsabilidade Civil 368, e Ac. STJ de 17.02.77, BMJ 26, p. 166.)

O padrão de conduta exigível na vigilância será assim o de uma pessoa média colocada nas mesmas circunstâncias e depende, especialmente, da natureza e valor do interesse protegido em questão, da perigosidade da situação, das condições de perícia que é de esperar de quem exerce a vigilância, da previsibilidade do dano, da relação de proximidade ou da particular confiança entre as partes envolvidas, bem como da disponibilidade e custos de métodos preventivos ou alternativos.

Ora, essa omissão resulta efectivamente da matéria provada.

E para chegar a esta conclusão, há que apreciar no seu conjunto todos os “elementos factuais” susceptíveis de ponderação. Ou seja, mostra-se errado isolar e avaliar de per si, individualmente, cada “parcela de actuação” (que individualmente até podem ser válidas e legais), como pretende a recorrente, mas sem proceder, como sempre se impõe, a uma análise conjunta de todas essas parcelas de actuação (da demandada).

A concreta aferição do dever de vigilância obriga à concreta contextualização dessas parcelas de actuação, no âmbito das concretas condições e das cautelas e cuidados que, sempre em concreto, serão de exigir.

Assim, in casu, tratava-se de garantir a segurança nocturna de uma pessoa idosa padecente de doença de Alzheimer, necessitada de ser imobilizada na cama na decorrência de episódios anteriores de levantamento durante a noite, situando-se o seu quarto num piso com uma única funcionária cuidadora de todos os internados, e sem câmaras de vigilância nos quartos.

Assim, não obsta à responsabilização da demandada a circunstância de “a imobilização numa cama sem grades não ser um facto ilícito”, “de não ter critérios para lhe ser dada uma cama com grades porque não estava acamada ou totalmente dependente nem possuía outras complicações”, “o rácio de pessoal da demandada ser superior ao exigido legalmente”, “as funcionárias serem bem preparadas”, “a ofendida ter junto da sua cama e ao seu alcance um interruptor do sistema de chamada que permite que a funcionária de serviço, esteja em que local estiver, não só naquele piso mas também em qualquer ponto das instalações, se apercebe da chamada da ofendida” (lembre-se que a falecida pode ter asfixiado sem disse se ter chegado a aperceber), “ em noites anteriores a ofendida ter pedido auxílio por voz ou utilizado o sistema de chamada existente.”

Para além das “cama de grades”, resulta da sentença que a demandada dispunha nas suas instalações também de grades amovíveis para colocação pontual em camas sem grades. E se não dispusesse, podia dispor. Esta grade amovível podia ter sido colocada e prevenido o episódio sucedido.

Este “aditamento de segurança” à imobilização por lençol, (através da colocação de grade amovível) justificava-se claramente aqui, face à globalidade dos factos provados. Ou seja, justificava-se para esta pessoa em concreto, nas suas concretas circunstâncias: pessoa idosa padecente de Alzheimer, com episódios de instabilidade de sono já conhecidos da demandada, que se encontra num quarto sem câmara de vigilância, situado num piso onde uma única funcionária presta assistência a vários quartos e a vários idosos.

Por tudo se conclui que a demandada não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, para prevenir o evento danoso. Esta sua omissão resulta efectivamente da matéria de facto provada e, como tal, deve ser responsabilizada pelo evento danoso.

(b.2) Do montante indemnizatório
Por último, a recorrente impugna o quantum indemnizatório argumentando que “deverá ter-se em conta no valor da indemnização a idade da ofendida, o estado de saúde em que se encontrava, a esperança de vida e o facto de com toda a probabilidade ter falecido sem se aperceber o que estava a acontecer, por ter sofrido uma compressão lenta que a foi asfixiando lentamente e que ao mesmo tempo por falta de oxigénio lhe baixou o limiar de consciência, como foi referido pelo Perito em audiência de julgamento.”

A sentença fixou em 95.000,00€ o valor global da indemnização, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efectivo e integral pagamento, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, absolvendo a demandada da parte remanescente do pedido”

Face à alteração da decisão em matéria de facto, resultando agora por demonstrar o enunciado fáctico especificado em 78., que passou a ocupar a matéria de facto não provada, o montante indemnizatório parcelar de 10.000,00 €, que a sentença considerara devido aos demandantes em partes iguais (5.000,00 € a cada demandante) na qualidade de herdeiros legais da vítima, deve ser agora dado sem efeito, atenta a ausência total de base factual.

O montante indemnizatório de 12.500,00 €, considerado na sentença como devido a cada um dos demandantes pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte da sua mãe, encontram-se ali suficientemente justificados, tanto factual como juridicamente. Para essa justificação se remete, tanto mais que a recorrente verdadeiramente nem o impugna como valor a se. Adita-se que o valor arbitrado se enquadra nos comumente atribuídos em casos semelhantes, assim respeitando também o referente jurisprudencial. Veja-se, por exemplo o acórdão desta Relação de 18.10.2018, com a mesma relatora do presente, e em que a título de ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos em consequência de morte de mãe idosa foi fixado valor igual ao presente.

Já o valor fixado pela perda do direito à vida se mostra elevado, tendo em conta as circunstâncias concretas que a sentença apreciou, e ainda duas outras a que não foi dado o devido destaque.

Assim, disse-se na sentença que “no caso em apreço, logrou provar-se com relevância para esta questão, que a vítima mortal à data da morte tinha 75 anos de idade, padecendo de Alzheimer, e os filhos, nutriam bastante carinho por ela.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), in https://www.ine.pt, «A esperança de vida à nascença foi estimada em 80,80 anos, sendo 77,78 anos para os homens e 83,43 anos para as mulheres no período 2016-2018».

Porém, é consabido que a esperança de vida de uma pessoa idosa diminui de sobremaneira a partir do momento em que deixa de viver em sua casa e passa a viver num lar.

Cumpre também considerar nos termos do artigo 494.º ex vi artigo 496.º, n.º 4 do CC, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), e a situação económica da demandada muito superior à dos demandantes.”

Após citar jurisprudência de apoio, consigna acertadamente, a propósito dos valores mais baixos que decorreriam da aplicação da Portaria n.º 377/2008, que “hoje em dia, a jurisprudência toma mais como referência um valor médio a rondar os 50.000,00 €”. E conclui “ atendendo aos elementos supra enunciados, configura este Tribunal justo e adequado fixar de acordo com os juízos de equidade, tomando como referência os valores médios praticados pela jurisprudência e a Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, actualizada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, o montante indemnizatório de 60.000,00 € devido pela demandada aos demandantes, em partes iguais, por direito próprio (cabendo a quantia de 30.000,00€ a cada demandante), pela perda do direito à vida da sua mãe.”

Se na sentença se identificou correctamente esse valor médio a que os tribunais têm chegado (e a sentença alude aqui acertadamente à importância do referente jurisprudencial em decisões como a presente), não se percebe a sua concreta elevação para € 60.000,00, tanto mais que as circunstâncias do caso justificaria sim uma ligeira descida para € 45.000,00. Nesta decisão, para além das circunstâncias referidas na sentença e já transcritas, deve ainda ter-se em conta que a doença de Alzheimer de que a falecida padecia tem um quadro clínico de evolução altamente incapacitante e limitativo da qualidade de vida. Por outro lado, e no que respeita à demandada, não basta considerar que tem uma capacidade económica muito superior à dos demandantes, devendo ainda ter-se em conta que se trata de uma instituição de solidariedade social sem fins lucrativos.

Justifica-se, por tudo, a redução deste montante para € 45.000,00, computando-se agora a indemnização total em € 70.000,00.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, alterando-se a matéria de facto conforme justificado em 3.(a.1), e reduzindo-se o valor global da indemnização para € 70.000,00, conforme explanado em 3.(b.2.), mantendo-se no mais a sentença.

Custas cíveis na proporção do vencimento.

Évora, 14.04.2020
(Ana Barata de Brito)
(Carlos Berguete)