Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
122/14.0TBOLH.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. O período da cessão do rendimento disponível a que se refere o n.º2 do art.º 239.º do CIRE, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/7,inicia-se com o encerramento do processo de insolvência, a declarar no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante nos termos da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, caso esse encerramento não haja sido declarado anteriormente por insuficiência de bens a liquidar, ainda que o processo haja de prosseguir para liquidação integral da massa e rateio final.
2. De acordo com a redação do n.º7 do art.º 233.º do CIRE, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/7, em vigor desde 1 de julho de 2017, o legislador clarificou e admitiu expressamente o encerramento do processo de insolvência, ainda que existam bens a liquidar e sem ter lugar a liquidação integral da massa e rateio final, mas apenas para efeitos de contagem do início do prazo de cessão do rendimento disponível.
3. Não tendo sido declarado o encerramento de insolvência, nos casos de inexistência de bens ou direitos a liquidar, o encerramento será declarado pelo juiz no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do art.º 237 e n.º2 do art.º 239.º. Mas, havendo bens ou direitos a liquidar, esse encerramento determina apenas o início do período de cessão do rendimento disponível, como prescreve o n.º6 do art.º 233.º na sua atual versão.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório.
Nos presentes autos de insolvência, em que AA, residente na Rua …, …, …, em Olhão, foi declarada insolvente, por decisão de 31 de janeiro de 2014, e por decisão de 21 de março de 2014 foi prolatado despacho inicial relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, em 30 de novembro de 2017 foi proferido despacho de encerramento do processo de insolvência com o seguinte teor:
Foi proferido despacho inicial relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, nos termos a que alude o art. 237.º, al. b), do CIRE.
Existe ativo a liquidar.
Assim:
I) declaro encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art. 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE, sem prejuízo do prosseguimento do apenso respeitante à liquidação do ativo e dos pagamentos a efetuar aos credores;

II) não existindo motivos para considerar que a insolvência é culposa, declara-se que a mesma é fortuita – art. 233.º, n.º 6, do CIRE;

III) declaro produzidos os efeitos previstos no art. 233.º, do CIRE, exceto os que forem incompatíveis com o deferimento liminar da exoneração do passivo acima decidido e ainda com o referido em I.;
Registe e dê cumprimento ao disposto nos arts. 230.º, n.º 2, e 247.º do CIRE, publicitando esta decisão nos seguintes termos:
- notifique a insolvente, o Ministério Público e os credores;
- publique-se;
- comunique à Conservatória do Registo Civil competente;
- registe no Registo Informático de Execuções;
- comunique ao Banco de Portugal”.
Inconformado com este despacho de encerramento da insolvência veio o Ministério Público interpor o presente recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O Mmo. Juiz a quo, após a prolação do despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, decidiu declarar encerrado o processo de insolvência, nos termos do previsto no art.º 230º n.º 1, al. e) do CIRE, declarando que não se produziam os efeitos previstos no art.º 233 do CIRE.
2. A única questão a decidir nos presentes autos consiste em saber se uma vez proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e perante a existência de bens a liquidar, podia ter sido ordenado o encerramento do processo.
3. O corpo do n.º 1 do art.º 230º do CIRE delimita o seu campo de aplicação, restringindo-se aos factos determinantes do encerramento do processo de insolvência que se verificam na hipótese de ele prosseguir após a declaração de insolvência.
4. Quando o processo prossiga as causas do seu encerramento constam das alíneas do n.º 1, merecendo especial relevo para a decisão do presente recurso as alíneas a) e e), esta introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.
5. Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o encerramento só deverá ser determinado depois de realizada a liquidação e o rateio final, ressalvando-se apenas a situação prevista no art.º 239º n.º 6 do CIRE.
6. Só se procede ao rateio final e distribuição do respetivo produto pelos credores após a liquidação dos bens que integram a massa insolvente, donde para que esta possa ser feita deve estar pendente a instância insolvencial.
7. Tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património que deve ser liquidado na pendência do processo ou não há e, então, o processo pode e deve ser encerrado no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.
8. O que resulta da alínea e) do n.º 1 do art.º 230º é que o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que pende, e se à data do despacho inicial já existirem elementos que revelem a inexistência de bens, deve o tribunal declarar o encerramento.
9. Se a liquidação ainda não tiver sido iniciada ou concluída, não há fundamento para a aplicação da alínea e) do art.º 230º do CIRE, aplicando-se o regime regra previsto na alínea a) do mesmo preceito legal.
10. Não faz qualquer sentido, uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência, quando ainda não foi levada a cabo a primordial função do mesmo, erigida pelo legislador a finalidade do processo de insolvência, a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.º 1º n.º 1 do CIRE).
11. A existência de bens na massa para liquidar impede o encerramento no despacho inicial de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, razão porque inevitável é o art.º 230º n.º 1 al. e) dever ser objeto de interpretação restritiva.
12. O encerramento do processo de insolvência constitui uma fase final do mesmo, pelo que deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos no mesmo processo, referidos no art.º 1º, do CIRE.
13. Assim, se à data do despacho inicial do pedido de exoneração do passivo restante já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de ativo a liquidar, deve o juiz declarar o encerramento do processo de insolvência.
14. Mas se o património do devedor tiver bens para liquidar e a liquidação e o rateio ainda não tiver terminado, então não existe fundamento para encerrar o processo no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, mesmo que esta decisão seja apenas para efeitos de início do período de cessão.
15. Ao interpretar o art.º 230º n.º 1 al. e) do CIRE como se o mesmo permitisse encerrar o processo de insolvência sem a liquidação e o rateio estarem realizados, o tribunal interpretou erradamente aquela norma, dando-lhe um sentido que não é adequado à situação concreta.
Nestes termos deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos para realização da liquidação e rateio final.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
Colhidos os legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a única questão a decidir consiste em saber se proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, e havendo bens a liquidar, podia ter sido ordenado o encerramento do processo.
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IIIFundamentação fáctico-jurídica.
1. A matéria de facto relevante para responder à questão colocada consta do antecedente relatório, com transcrição da decisão recorrida.
Vejamos, pois, adiantando-se, desde já, que a razão não está do lado do Digno Recorrente.
2. O regime da exoneração do passivo restante vem regulado nos arts. 235.º a 248.º do CIRE [1].
De acordo com o estatuído no art.º 235.ºdeste diploma legal «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.» - nosso sublinhado
Trata-se de um regime específico da insolvência das pessoas singulares e traduz-se na possibilidade conferida a esses devedores, em situação de insolvência, de uma liberação definitiva quanto ao passivo (mais propriamente à exoneração dos débitos correspondentes a esses créditos, pois não se fica exonerado de créditos, estes perdem-se - cf. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Quid Juris, pág. 778), que não sejam integralmente pagos no respetivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
Pretendeu o legislador, com a inovação deste instituto e introduzido no C.I.R.E., conceder uma certa reabilitação económica, profissional e social, recomeçando, de novo, a sua atividade profissional sem o peso desses débitos, com a correspondente perda, para os credores, de parte dos seus créditos, que serão extintos, salvo alguns créditos taxativamente indicados, que pela sua natureza dele estão excluídos (art.º 245.º/2 do C.I.R.E), ou como refere Luís M. T. de Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência”, 4.ª Edição, 2012, pág. 316, “o devedor tem a possibilidade de obter um fresh start e recomeçar uma atividade económica, sem o peso da insolvência anterior”.
Como foi sublinhado no Ac. do T. da Rel. do Porto, de 15/3/2011, in www.dgsi.pt/jtrp, Processo 2887/10.0TBGDM-E.P1, “ (…) Estamos, pois, perante um importante benefício que é concedido ao devedor singular e que se filia na ideia de que quem passou por um processo de insolvência aprende com os seus erros e terá no futuro um comportamento mais equilibrado no plano financeiro.”
Consequentemente, e tendo em conta os evidentes prejuízos para os credores, o legislador estabeleceu alguns requisitos para a sua concessão, desde logo torna-se “necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta” – Cf. Acs. Rel. Porto de 7.10.2010, Processo n.º 2329/09.3 TBMAI-A.P1 e 8.6.2010, Processo n.º 243/09.1 TJPRT-D.P1, e de 15/3/2011, Processo 2887/10.0TBGDM-E.P1, in www.dgsi.pt/jtrp.
E estatui o n.º2 do art.º 239.º, do C.I.R.E:
O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte” (nosso sublinhado).
Decorrentemente, uma das imposições legais para a concessão deste benefício é a obrigação do devedor, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ceder o seu rendimento disponível a uma entidade, designada fiduciário e escolhida pelo tribunal.
Assim, flui expressamente do n.º2 do art.º 239.º que o despacho inicial sobre a exoneração do passivo restante, a proferir em caso de ausência de motivo para a sua rejeição liminar ( art.º 238.º e n.º1 do art.º 239.), determina que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado o período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário.
Aliás, a alínea b) do art.º 237.º reforça esse entendimento, ao condicionar a concessão efetiva da exoneração do passivo restante à prolação desse despacho inicial e observância das condições previstas no art.º 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.
Trata-se de um prazo fixo de cinco anos, sem possibilidade de modificação pelo prudente arbítrio do juiz, como realçam Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 905: “ Decorre do preceito em anotação - e as als. b) e d) do art.º 237 e o art.º 235.º confirmam-no – que o prazo é fixo, não dependendo, portanto do prudente arbítrio do juiz. A razão de ser deste regime reside em o prazo, sendo manifestamente estabelecido em benefício dos credores, constituir o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos”.
Assim, era claro que só com o encerramento do processo se iniciava a contagem do prazo de cessão, não com a prolação do despacho inicial mencionado no n.º2 do art.º 239.º.
Como refere Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, Almedina, pág. 540, “O período da cessão segue-se ao encerramento do processo de insolvência ( art.º 239.º/1). Isto é, a cessão dos rendimentos disponíveis e a decisão sobre o pedido de exoneração terão lugar após o encerramento do processo de insolvência”.
Na verdade, o encerramento do processo de insolvência previsto na alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, segundo essa orientação, reportava-se apenas aos casos em que era detetada insuficiência da massa, nos termos do art.º 232.º.
Sobre o âmbito de aplicação desta alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, [2] afirma Alexandre de Soveral Martins, ibidem, que se no “despacho inicial o juiz decretasse sempre o encerramento do processo quando nessa altura o processo de insolvência ainda não estivesse encerrado, o devedor com bens sairia profundamente beneficiado… Daí que a existência de bens na massa para liquidar impeça que o juiz decrete o encerramento no despacho inicial. E isto apesar do art.º 230.º/1, al. e), que deve por isso ser objeto de interpretação restritiva. É que o preceito parece ter surgido para «situações em que se verifica a insuficiência de bens do insolvente e este beneficia do deferimento do pagamento das custas»( nosso sublinhado).
E acrescenta o Autor (pág. 542), “Se não há insuficiência da massa e há liquidação, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final ( art.º 230.º/1, al. a)”.
No mesmo sentido se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 875, referindo: “ Com efeito, tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património atual que deve ser liquidado, ou não há. Neste último caso, tanto pode suceder que a inexistência seja conhecida à data do proferimento do despacho inicial do incidente, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva – ou possa – o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só terá lugar após a concretização da liquidação e rateio” ( nosso sublinhado).
Esta era também a orientação da jurisprudência, isto é, de que o período da cessão do rendimento disponível só se iniciava com o encerramento do processo, quer por ter havido liquidação integral da massa, quer por insuficiência desta ou qualquer ouro fundamento previsto no art.º 230 [3].
Na verdade, escreveu-se no sumário do Acórdão desta Relação, de 11/5/2017 (Bernardo Domingos), disponível em www.dgsi.pt:
II- A contagem do prazo fixo, de cinco anos, previsto para a duração da cessão de rendimento disponível, não tem como referência a data em que é proferido o aludido despacho inicial, mas sim, a data de encerramento do processo de insolvência, que pode não coincidir, e geralmente não coincide, com a data em que é proferido o aludido despacho inicial, mesmo cumprindo os prazos previstos no n.º 1 do artigo 239.º do CIRE.
III- A data do início do período de cessão poderá começar a contar-se da data do despacho inicial, mas apenas quando se determine a insuficiência da massa, nos termos do artigo 232.º e de acordo com o artigo 230.º, n.º 1, alínea e), ambos do CIRE.
IV- Tendo sido ordenado que se procedesse a liquidação dos bens existentes, o período de cessão só começa a contar da data do rateio final (cf. o artigo 230.º, n.º 1, alínea a), do CIRE), momento em que a lei prevê o encerramento do processo”.
Orientação também reafirmada no recente Acórdão desta Relação, de 13/07/2017, proferido no processo º 2990/11.9TBABF-C.E1 (Relator: Albertina Pedroso), e no qual o ora relator interveio como adjunto, aí se afirmando:
“Pois que, pese embora a sageza da construção jurídica que vem ensaiada pelos insolventes no recurso – de que as demoras do processo e da liquidação a eles se não ficaram a dever, antes que aos credores e ao próprio Tribunal, assim não devendo vir a ser prejudicados por elas, e que as alterações da lei em 2012 já comportam a tese que ora pretendem ver prevalecer –, tal esbarra na redação que apresenta o nº 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, também, pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril e pelo Decreto-lei n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro:
“O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte” (…). [Assim mesmo: “durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência”.]
E esbarra, também, na redação da alínea b) do artigo 237.º do CIRE:
“A concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.º 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial” (…). [Assim mesmo: “durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência”.]

É, pois, tal despacho de encerramento do processo de insolvência que vai marcar o termo inicial do período de cinco anos para a cessão dos rendimentos que o Tribunal dela não excecione nos termos do número seguinte. (…)”
Do que se deixa dito, era fácil concluir que não podia ter sido declarado encerrado o processo de insolvência quando nele se reconhece existir ativo a liquidar, já que uma das causas de encerramento do processo de insolvência é a realização do rateio final ( al.ª, n.º1, do art.º 230.º).
Como refere Menezes Leitão [4], o artigo 230.º “que se inspira no art.º 176.º da Ley Concursal espanhola, pretende estabelecer uma tipificação das causas de encerramento do processo de insolvência desenvolvido nos artigos seguintes”.
A realização do rateio final, que tem lugar depois de encerrada a liquidação e elaboração da conta, conduz ao encerramento do processo de insolvência.
Com efeito, estabelece o art.º 182.º, n.º1, que “Encerrada a liquidação da massa insolvente, a distribuição e o rateio final são efetuados pela secretaria do tribunal quando o processo for remetido à conta e em seguida a esta…”
Por isso se entendia que prosseguindo o processo para liquidação da massa insolvente, apenas constituía fundamento para o encerramento do processo a realização do rateio final, nos termos da alínea a) do n.º1 do art.º 230.º do CIRE, razão pela qual o período de cessão só começava a contar da data do rateio final (artigo 230º n.º 1 al. a) do CIRE), momento em que a Lei prevê que o juiz declare o encerramento do processo.
Só que esta orientação foi expressamente afastada pelo legislador, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 97/2017, de 30 de junho, em vigor desde 1 de julho de 2017 (seu art.º 8.º), em particular com o aditamento do n.º7 ao artigo 233.º ( o qual estabelece os efeitos do encerramento do processo de insolvência), com a seguinte redação:
O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível”.
E este diploma legal acrescentou no n.º6 do art.º 6.º (norma transitória) o seguinte regime:
Nos casos previstos na alínea e) do n.º1 do artigo 230.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei”.
Assim, perante este novo quadro legal, deixou de ser sustentável e defensável a anterior orientação, tal como ainda sustenta o Digno recorrente.
Na realidade, como se referiu, havendo lugar à liquidação, o período de cessão só começava a contar da data do rateio final (artigo 230º n.º 1 al. a) do CIRE), por ser este o momento do encerramento do processo, situação que levava a que a exoneração se traduzisse num mecanismo extremamente longo e penoso para o insolvente, o qual tinha de aguardar pela liquidação total do ativo e rateio final para ver encerrado o processo e iniciado o período de cessão de cinco anos.
Daí que o legislador, conhecedor dessa realidade, clarificasse esse regime, admitindo expressamente o encerramento do processo de insolvência, ainda que existam bens a liquidar, apenas para efeitos de contagem do início do prazo de cessão do rendimento disponível.
Assim, não tendo sido declarado o encerramento de insolvência, nos casos de inexistência de bens ou direitos a liquidar, o encerramento será declarado pelo juiz no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do art.º 237 e n.º2 do art.º 239.º. Mas, havendo bens ou direitos a liquidar, esse encerramento determina apenas o início do período de cessão do rendimento disponível, como prescreve o n.º6 do art.º 233.º na sua atual versão.
Não fazia sentido admitir-se expressamente o encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, mesmo havendo bens ou direitos a liquidar, e que a contagem do período de cessão do rendimento disponível se inicia a partir da data da entrada em vigor desde diploma legal (1/7/2017), nos casos em que não tenha sido declarado o encerramento do processo e tenha sido proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, e continuar a manter a anterior interpretação restritiva do âmbito de aplicação da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º.
Neste sentido se pronunciaram os recentes Acórdãos desta Relação de 25/01/2018, proferido no processo n.º 774/16.7T8OLH.E1 [5], e de 8/2/2018, proferido no processo n.º 412/17.0T8OLH.E1 [6], disponíveis em dgsi.pt.
Deste modo, uma vez que foi ordenado o prosseguimento do apenso respeitante à liquidação do ativo e pagamentos a efetuar aos credores, reconhecendo-se haver que proceder à liquidação dos bens existentes, declarando-se encerrado o processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, importa compreender que esse encerramento apenas tem efeitos quanto ao início do período de cessão do rendimento disponível, sem prejuízo do regime previsto n.º6 do art.º 6.º da norma transitória citada, ou seja, no caso concreto, teve início em 1 de julho de 2017, dado que o despacho inicial foi proferido em 21 de março de 2014.
Resumindo, atento o novo quadro legal, não se pode continuar a acompanhar a posição defendida pelo Digno recorrente, defensável apenas à luz do anterior regime (antes das alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 79/2017).
Improcede, pois, a apelação.
Não são devidas custas.
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IV- Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. O período da cessão do rendimento disponível a que se refere o n.º2 do art.º 239.º do CIRE, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/7,inicia-se com o encerramento do processo de insolvência, a declarar no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante nos termos da alínea e) do n.º1 do art.º 230.º, caso esse encerramento não haja sido declarado anteriormente por insuficiência de bens a liquidar, ainda que o processo haja de prosseguir para liquidação integral da massa e rateio final.
2. De acordo com a redação do n.º7 do art.º 233.º do CIRE, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/7, em vigor desde 1 de julho de 2017, o legislador clarificou e admitiu expressamente o encerramento do processo de insolvência, ainda que existam bens a liquidar e sem ter lugar a liquidação integral da massa e rateio final, mas apenas para efeitos de contagem do início do prazo de cessão do rendimento disponível.
3. Não tendo sido declarado o encerramento de insolvência, nos casos de inexistência de bens ou direitos a liquidar, o encerramento será declarado pelo juiz no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do art.º 237 e n.º2 do art.º 239.º. Mas, havendo bens ou direitos a liquidar, esse encerramento determina apenas o início do período de cessão do rendimento disponível, como prescreve o n.º6 do art.º 233.º na sua atual versão.
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V- Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter o despacho recorrido.
Sem custas, por não serem devidas.

Évora, 2018/03/08
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] ) Aprovado pelo art. 1º do DL 53/2004 de 18.02, com sucessivas alterações, em particular as decorrentes da Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, Dec. Lei n.º 26/2015, de 6 de fevereiro, Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho (estas em vigor desde 1 de junho de 2017), e Lei n.º 114/2017, de 29/12, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação, também adiante designado abreviadamente por CIRE.
[2] ) Cujo texto é o seguinte: “Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º”.
[3] ) Nomeadamente, nesta Relação, os Acórdãos de 10.03.2016, Proc.º N.º 3693/11.0TBSTB-E.E1; de 09.02.2017, Proc.º N.º 2698/10.2TBSTB.E1; de 23.03.2017, Proc.º N.º 360/11.8TBSSB.L.E1, e mais recentemente de 11.05.2017, Proc.º N.º 1124/10.1TBSSB-R.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] ) “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, 2017, 9.ª edição, pág. 281.
[5] ) Onde se lê: “A recente intervenção legislativa em sede de CIRE, aditando o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, determina que, ainda que existam bens ou direitos a liquidar, deve declarar-se o encerramento do processo de insolvência aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante”.
[6] ) “Resulta do n.º 7 do artigo 233.º do CIRE, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30.06, que a existência de bens ou direitos a liquidar não obsta ao encerramento do processo de insolvência no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante; porém, nessa hipótese, o encerramento determina unicamente o início o período de cessão do rendimento disponível”.