Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
845/13.1TBABF.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
ACÇÃO PENDENTE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Constitui acção para cobrança de dívidas do devedor, consagrada no artigo 17.º-E, nº 1 do CIRE, a acção condenatória, onde se pede a declaração de incumprimento definitivo de um contrato promessa, com consequente condenação da promitente vendedora no pagamento do sinal em dobro; encontrando-se o devedor submetido a processo especial de revitalização, com administrador judicial provisório já nomeado, vedada está a interposição de acção para cobrança de dívida; se, não obstante esta proibição, esta seja instaurada, deve a mesma ser declarada extinta, mesmo que tenha obtido decisão de mérito, se o plano de recuperação vier a ser aprovado e homologado; deve ser despojado direito de requerer a extinção da acção, com fundamento no instituto do abuso de direito, o devedor/demandado que não leva ao conhecimento da acção da declarativa, da pendência do processo de revitalização, nem cria as condições necessárias para o aditamento à relação de bens, no âmbito do dito processo especial, da dívida a que alude a acção condenatória, apesar de dela ter conhecimento.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação nº 845/13.1 TBABF.E1




Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

(…), casado, residente na Rua (…), nº 615, (…), intentou a presente ação, na forma de processo ordinário, contra (…) - Promoção Imobiliária Unipessoal., Lda., com sede na (…), (…), (…), pedindo que, declarando-se o incumprimento definitivo e culposo da demandada, relativamente ao contrato promessa de compra e venda, celebrado com o demandante, em 11 de Março de 2011, referente a uma moradia unifamiliar, a construir no prédio urbano sito no lugar de (…), freguesia e concelho de (…), descrito na Conservatória sob o nº (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…), se condene a Ré pagar-lhe a quantia de € 470.000,00, correspondente ao dobro do sinal passado, reconhecendo-se ao Autor o direito de retenção “sobre o prédio em causa para garantia do seu crédito”, para tanto articulando factos, que, em seu critério, fundamentam a procedência da ação, a qual, sem qualquer oposição, foi julgada procedente.


Inconformada com a sentença, apelou a demandada, culminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:

- A Ré manifestou junto do Tribunal Judicial de (…), ainda em 08 de Fevereiro de 2013, a vontade de (em conjunto com um devedor) encetar negociações conducentes à sua revitalização, tendo-se assim iniciado Processo Especial de Revitalização, nos termos dos artigos 17º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, processo que corre termos no referido Tribunal (1º juízo), sob o nº …/13.2 TBABF;

- Assim, em 12 de Fevereiro de 2013, foi proferido o despacho a que se alude no artigo 17.º-C, nº 3, a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, através do qual se designou administrador judicial provisório, culminando tal despacho no efeito previsto no nº 1 do artigo 17.º-E em que “(a) decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobranças de dívidas conta o devedor (…)”;

- Decorreu, de seguida, prazo para reclamação de créditos, até 05 de Março de 2013, e o Autor não reclamou o seu invocado crédito (potencial ou condicional), sendo elaborada lista provisória de credores em que o Autor, naturalmente, não figurava;

- A ação declarativa em questão, cuja sentença ora se recorre, foi intentada em 23 de Abril de 2013, portanto posteriormente ao despacho de nomeação já referido;

- Posto isto, verifica-se então que a referida ação não deveria ter dado entrada em juízo numa data posterior à consolidação deste efeito, devendo antes o Autor ter procurado reclamar o seu crédito no âmbito do Processo Especial de Revitalização já em curso – o que, manifestamente, não sucedeu;

- Note-se que a Ré, ao ser citada para essa ação durante o mês de maio de 2013, consciente e descansada com as implicações jurídicas e legais do Processo Especial de Revitalização, não interveio no processo movido pelo Autor, uma vez que em sua mente esse processo decorreria de qualquer lapso formal, inconsequente, por nulo, e que essa nulidade configuraria exceção dilatória de conhecimento oficioso do Tribunal (o mesmo em que decorria o Processo Especial de Revitalização – artigos 577.º, b) e 578.º do Código de Processo Civil);

- Não se revela necessário que a recorrente lance mão da contestação para informar o Tribunal de que se encontrava pendente um Processo Especial de Revitalização, pois tal não configura qualquer obrigação a cargo da devedora, até porque é legal e obrigatoriamente publicado, em vários locais (nomeadamente, no portal Citius), o anúncio do Processo Especial de Revitalização e da nomeação do administrador provisório, fatores que tranquilizaram a recorrente e contribuíram para a natural e sequente não intervenção no processo em causa;

- Porém, em vez de conhecer e declarar esta nulidade, o Tribunal Judicial de Albufeira deu, erroneamente, andamento ao processo acabando por considerar confessados os facto articulados pelo Autor, face à falta de contestação da Ré, e por proferir a sentença ora recorrida, que sem encontra ferida de nulidade;

- Sentença esta que está expressamente em contradição com a regra prevista no mencionado artigo 17.º-E, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, como tal, não poderá nunca produzir quaisquer efeitos;

- Portanto, in casu, e perante o exposto, não subsistem dúvidas, quanto à nulidade da sentença recorrida, bem como de todo o processo no âmbito da qual aquela foi proferida;

- Deveria o Autor ter reclamado o seu crédito para todos os efeitos o que não fez. Se tanto e para os efeitos de verificação ulterior de crédito deveria o Autor intentar ação condigna e em tais moldes, o que também não o fez;

- Certo é que a presente ação não poderia ter prosseguido e muito menos ter sido concluída com a sentença em apreço, não tendo decorrido qualquer processo válido e eficaz, com o decurso do prazo para defesa e contraditório, nos termos e moldes legais adequados e formalmente exigíveis, até por que se assim fosse, em ação válida, ou meio adequado (reclamação de créditos e sua impugnação), a Ré promoveria naturalmente a sua defesa e contraditório, porquanto o alegado crédito não é real, não corresponde minimamente à realidade o alegado;

- Não foi a Ré que abdicou de direito de defesa, mas o Autor que abdicou do seu direito de invocar reclamar em sede própria e formalmente exigível o seu suposto direito, pelo que é nulo todo o processado, devendo ser considerada nula a sentença proferida.


Contra-alegou a apelada, votando pela improcedência do recurso.


Face às conclusões das respetivas alegações, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da seguinte questão: saber se o presentes autos são ou não nulos.

Foram colhidos os vistos legais.




Fundamentação


A - Os factos


- A presente ação foi instaurada a 23 de Abril de 2013;


- Por ocasião da citação, ocorrida na primeira quinzena de Maio de 2013, a demandada (…) - Promoção Imobiliária Unipessoal., Lda. tomou conhecimento que o demandante (…) lhe exigia o pagamento da quantia de € 470.000,00;


- Em 24 de Junho de 2013, foi proferido despacho a julgar “confessados os factos articulados pela Autora”;


- A ação de revitalização da demandada foi interposta em 08 de Fevereiro de 2013;


- O despacho de nomeação do administrador judicial provisório foi proferido a 12 de Fevereiro de 2013;


- A decisão a homologar o plano de recuperação conducente à revitalização da demandada foi exarada em 11 de Outubro de 2013;


- O plano antes referido não contemplou o crédito a que aludem os presentes autos.





B - O direito


- O princípio da cooperação - princípio orientador do direito processual civil -, que engloba não só deveres das partes para com o tribunal, “mas também deveres das partes entre si e do tribunal para com as partes”, visa obter uma “justa composição do litígio” [1];


- Sempre que a vontade real do legislador não seja clara e inequívoca, importa ter em consideração “critérios de carácter objetivo”, como sejam o da presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e o da rejeição de um sentido decisivo da lei, se no texto desta “não se encontrar um mínimo de correspondência verbal”[2];


- As ações são declarativas ou executivas; nestas, o credor requer providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida; naquelas, as de condenação têm por objetivo exigir a prestação de uma coisa, pressupondo ou prevendo a violação de um direito[3];


- Nomeado, no âmbito do processo especial de revitalização, o administrador judicial provisório, fica vedado por em juízo “quaisquer” ações contra o devedor, para receber créditos; por outro lado, as ações já instauradas, com idêntico fim, ficam suspensas, “durante todo o tempo em que perdurarem as negociações” [4];


- As ações já pendentes extinguem-se, “logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação” [5];


-“O primeiro recurso estabelecido (…) para disciplinar o caso omisso é o da norma aplicável aos casos análogos - norma essa que pode estar contida numa lei posterior (…). A analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações”[6];


- A lista definitiva contemplada no processo especial de revitalização pode ser alterada[7];


- “A figura do abuso de direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar, indissoluvelmente ligado, à aplicação do direito e dentro da máxima “perde o direito quem dele abusa” e em oposição ao velho adágio romano “qui suo jure utitur neminem laedit”[8]; ou seja: nem sempre a atuação a coberto de um poder legal, formal, conduz a soluções justas. Casos existem em que a mesma se revela iníqua, ferindo o sentimento de justiça dominante. Um deles coincide com a adoção de comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas criadas. Excedendo a pretensão formulada, manifestamente, as sérias expectativas incutidas na contra-parte, importa considerar o exercício do direito abusivo, despojando-se dele o seu titular[9].


“O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira “válvula de segurança” vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer ato ilícito” [10].


C- Aplicação do direito aos factos apurados


Dúvidas inexistem que o legislador, ao consagrar o processo especial de revitalização, conhecia os diversos tipos de ações. Além disso, é de presumir que exprimiu “o seu pensamento em termos adequados”.


Assim sendo, ao aludir a “ações para cobrança de dívidas contra o devedor” não tinha em mente, apenas, as ações executivas e as típicas ações declarativas de dívida. Se fosse este o seu propósito, tê-lo-ia dito. Neste sentido, aponta ainda expressão “quaisquer”.


Deste modo, os presentes autos materializam a uma ação para cobrança dívidas contra o devedor.


Como total, não podia ser posta em juízo, atenta a circunstância de a demandada (…) – Promoção Imobiliária Unipessoal., Lda. se encontrar em processo de revitalização, com administrador provisório já nomeado.


Por isso, o presente ação deveria ser declarada extinta, com a aprovação e homologação do plano de recuperação. Na verdade, se as ações pendentes o são, por maioria ou, pelo menos, igualdade de razão, o devem ser as ações, que, não obstante a proibição da instauração, o foram. A razão justificativa é a mesma.


Acontece, porém, que, não tendo o plano de recuperação sido aprovado e homologado[11], não se verifica o pressuposto da sua extinção.


Sucede, ainda, que, na hipótese de extinção da presente ação, em consequência de aprovação e homologação do plano de recuperação, tal solução revelar-se-ia iníqua, “ferindo o sentimento de justiça dominante”, uma vez que o atual comportamento da demandada, ao requerer a nulidade de todo o processo, não está em linha com a sua conduta anterior e às legítimas expetativas dela decorrente.


Efetivamente, não só em sede de contestação ou de requerimento avulso, informou os presentes autos da pendência do processo de revitalização – violando o dever de cooperação –, como também não criou condições para o aditamento à relação créditos, no âmbito do dito processo especial, da dívida a que aludem os presentes autos, que era do seu conhecimento desde, pelo menos, a primeira quinzena de Maio de 2013, altura da sua citação.


Incutiu, assim, a demandada (…) – Promoção Imobiliária Unipessoal, Lda., com as mencionadas omissões, no demandante (…) sérias expectativas de resolução do litígio, pelo que se considera abusivo o retorno à situação anterior à instauração deste processo, com a necessidade de interposição de nova ação.


Existiam, pois, razões para fazer funcionar, se necessário, a “válvula de segurança” [12] do abuso de direito, despojando a dita demandada do direito à declaração de extinção da presente ação.


Em síntese[13]: constitui ação para cobrança de dívidas do devedor, consagrada no artigo 17.º-E, nº 1 do CIRE, a ação condenatória, onde se pede a declaração de incumprimento definitivo de um contrato promessa, com consequente condenação da promitente vendedora no pagamento do sinal em dobro; encontrando-se o devedor submetido a processo especial de revitalização, com administrador judicial provisório já nomeada, vedada está a interposição de ação para cobrança de dívida; se, não obstante esta proibição, esta seja instaurada, deve a mesma ser declarada extinta, mesmo que tenha obtido decisão de mérito, se o plano de recuperação vier a ser aprovado e homologado; deve ser despojado direito de requerer a extinção da ação, com fundamento no instituto do abuso de direito, o devedor/demandado que não leva ao conhecimento da ação da declarativa, da pendência do processo de revitalização, nem cria as condições necessárias para o aditamento à relação de bens, no âmbito do dito processo especial, da dívida a que alude a ação condenatória, apesar de dela ter conhecimento.


Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando improcedente a apelação, manter a sentença recorrida.


Custas pela apelante.


Évora, 12 de Março de 2015


Sílvio José Teixeira de Sousa


Rui Machado e Moura


Maria da Conceição Ferreira


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[1] Artigo 7.º, nº 1 do Código de Processo Civil e José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 514.
[2] Artigo 9.º, nºs 1 e 2 do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59.
[3] Artigo 9.º, nºs 1 e 2 do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59.
[4] Artigo 17.º-E, nº 1, parte final, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[5] Artigo 17.º-E, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[6] Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, pág. 59 e artigo 10.º, nºs 1 e 2 do Código Civil.
[7] Artigos 10.º, nºs 1 e 2 do Código Civil e 146.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[8] Acórdão do STJ de 18 de Março de 2010 (processo nº 387/1993.S1), in www.dgsi.pt (cfr. ainda os acórdãos do STJ de 16 de Dezembro de 2010 (processo nº 1584/06.5 TBPRD.P1.S1), e de 15 de Dezembro de 2011 (processo nº 2/08.9 TTLMG.P1.S1), no mesmo portal) e artigo 334.º do Código Civil.
[9] Artigo 334º do Código Civil e Acórdãos do STJ de 18 de Dezembro de 2008, 19 de Dezembro de 2007, 6 de Novembro de 2007, 2 de Maio de 2007, 15 de Maio de 2007, 28 de Junho de 2007, 1 de Março de 2007 e 30 de Outubro de 2003, in www.dgsi.pt..
[10] Acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 2010 (processo nº 1584/06.5 TBPRD.P1.S1), in www.dgsi.pt..
[11] Certidão de fls. 102 a 115 e informação da secção de fls. 118.
[12] Acórdão do STJ de 16 de Dezembro de 2010 (processo nº 1584/06.5 TBPRD.P1.S1), in www.dgsi.pt..
[13] Artigo 663.º, nº 7 do Código de Processo Civil.