Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/15.5GCBNV-A.E1
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ESCUTAS TELEFÓNICAS
LOCALIZAÇÃO CELULAR
SUSPEITO
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Data do Acordão: 05/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A falta de suspeito ou suspeitos determinados contra quem dirigir as escutas telefónicas, os pedidos de obtenção de dados de tráfego ou os pedidos de localização celular, é obstáculo intransponível à realização deste tipo de meios de obtenção de prova.
II - Recolher informações de pessoas inocentes, na esperança de, de entre estas, se “apanhar” algum suspeito, é desproporcional aos fins visados, sendo, pois, uma compressão inconstitucional e ilícita do direito à privacidade e à inviolabilidade das comunicações.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1.Relatório

No âmbito do inquérito nº 54/15.5GCBNV, a correr termos na 2ª secção do DIAP de Santarém, a Srª. Juiz da secção de instrução criminal, J2, da instância central da comarca de Santarém, proferiu despacho que, considerando inamissível em face do regime legal vigente, desde logo por a diligência não ser dirigida contra pessoa determinada, o acolhimento da pretensão do MºPº no sentido de se proceder à notificação das operadores de serviços telefónicos móveis para viram juntar aos autos informação relativa à identificação de telefones e/ou IMEI’s que, na janela temporal durante a qual ocorreram os factos em investigação naquele inquérito, acusaram presença nas BTS relativas às células que identifica, e, bem assim, os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registadas através delas naquele período, indeferiu a correspondente promoção.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que defira o levantamento do sigilo a que estão vinculadas as operadoras em questão, notificando-as para, em prazo a fixar, procederem à junção aos autos da informação relativa à identificação de telefones e/ou IMEI’s que, no período compreendido entre as 17:00h e as 20:00h, do dia (...), assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 66 e, no período compreendido entre as 18:45h do dia (...) e as 8:00h do dia 2/2/15 assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 67, bem como todos os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registados no período referido e através das referidas BTS, para o que formulou as seguintes conclusões:

1. A pretensão do Ministério Publico indeferida pelo douto despacho recorrido visava o levantamento do sigilo a que estão vinculadas as operadoras MEO, Vodafone e NOS, notificando-as para, em prazo a fixar, procederem à junção aos autos da informação relativa à identificação de telefones e/ou IMEI’s que no período compreendido entre as 17:00h e as 20:00h, do dia (...) e entre as 18:45h do dia (...) e as 8:00h do (...) assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 66 e 67, bem como todos os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registados no período referido e através das referidas BTS;
2. Pretende-se pois, ter acesso a dados armazenados (“conservados”) e que permitam a identificação dos suspeitos. Não se pretende qualquer interceção em tempo real a qual, de resto e por ora, não é possível
3. Os autos têm como objeto o apurar a identidade dos autores da prática de quatro crimes de roubo p. e p. pelo artigo 210º, nº 2, al. b) por referência ao artigo 204º, nº 2, als. a) e f) do Código Penal.
4. À semelhança do caso retratado no Ac. do TRE de 20.01.2015, proferido no processo nº 648/14.6GCFAR-A.E1, do qual foi relator o Sr. Desembargador Dr. João Gomes de Sousa (disponível in www, dgsi.pt) “Tais crimes não cabem na previsão das als. a) e b) do artigo 11º da Lei n. 109/2009 por não estarmos face a crimes (a) nela previstos ou que (b) foram cometidos por meio de um sistema informático. Mas cabem na previsão da al. c) do mesmo preceito na medida em que se trata de crimes em relação aos quais se torna necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.
5. E continua o citado preceito “Estas solicitação e constatação determinam que o regime processual aplicável seja o da Lei 109/2009 (dados informáticos conservados) e caberá na previsão do regime processual que ela estatui nos artigos 11º a 17º, sendo certo que serão os artigos 3º e 9º da Lei nº 32/2008 a definir o essencial do regime probatório aplicável por se tratar de dados conservados relativos a localização celular.”
6. Assim, o crime em investigação cabe no conceito de “crime grave” atento o disposto na al. g) do artº 2º;
7. Tais crimes (4) foram praticados por três indivíduos de raça negra, altos, com alturas compreendidas entre os 1,80 cm e os 1,90 cm de altura, dois deles fortes e o outro magro, sendo este o mais alto, falam português com sotaque descrito como sendo de indivíduos de origem estrangeira, nomeadamente (...) e que tenham estado no dia (...) no (...) e entre tal data e o (...) na (...);
8. Pese embora os suspeitos não sejam pessoas determinadas, são, pelo menos determináveis.
9. Nos termos da al. e), do art. 1.º, do CPP, suspeito “é toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou nele participou ou se prepara para participar».
10. “Da interpretação deste normativo resulta claramente que a lei não exige, nem faria sentido que o fizesse, que o suspeito fosse uma pessoa determinada ou identificada, apesar de pressupor a existência de uma pessoa determinada, não exige, como é evidente, que se conheça a sua identificação completa.” (cf Ac. TRE de 21.05.2013, relator Sr desembargador João Gomes de Sousa, disponível in www.dgsi.pt)
11.”Neste conceito estão incluídas todas e quaisquer pessoas que tenham praticado um facto típico, ilícito, culposo e punível, pois basta que se trate de uma pessoa (de um ser humano) responsável pelos seus actos. Por outro lado, tem de ser uma pessoa relativamente à qual existem indícios de que cometeu (no caso) um crime;” (cf Ac. TRE de 21.05.2013, relator Sr desembargador João Gomes de Sousa, disponível in www.dgsi.pt).
12. A diligência probatória requerida pretendia um duplo objectivo de localização e identificação pois que, para além de tudo o mais, os suspeitos terão que estar nos dois lugares abrangidos pelas BTS elencadas abrangendo o local da prática dos factos e o local onde o veículo utilizado na fuga foi abandonado;
13. No caso dos autos os suspeitos são três indivíduos de raça negra, altos, com alturas compreendidas entre os 1,80 cm e os 1,90 cm de altura, dois deles fortes e o outro magro, sendo este o mais alto, falam português com sotaque descrito como sendo de indivíduos de origem estrangeira, nomeadamente (...) e que tenham estado no dia (...) no (...) e entre tal data e o (...) na (...).
14. O indeferimento pela Mm.ª Juiz de Instrução Criminal vai contra as próprias finalidades da investigação, nos termos do disposto no artigo 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal pois que não podendo recorrer a este meio de prova toda a investigação é colocada em causa, uma vez que não se afiguram outros meios de prova pelos quais se consiga obter o objectivo visado de identificação e localização dos autores dos crimes em causa, justificando-se o recurso ao meio de obtenção de prova pretendido

O recurso foi admitido, tendo a Srª Juiz sustentado o despacho recorrido, dando por reproduzidos os fundamentos nele plasmados, a que acrescentou as seguintes considerações:

Não se olvida da bondade da fundamentação jurídica esgrimida no Acórdão do TRE, de 20.01.2015, invocado em sede de recurso pela Exm.ª Sr.a Procuradora-Adjunta, contudo afigura-se-nos que in casu falha a premissa de determinabilidade do conceito de “suspeito”, previsto no artigo 187.°, n.° 4 do C.P.P. e artigo 9.°, n.° 3 da Lei n.° 32/2008, até porque foram identificados como autores dos factos ora em causa três indivíduos de raça negra, com alturas compreendidas entre l,80m e 1,90 m de altura, dois deles forte e um magro, com sotaque de origem estrangeira, nomeadamente (...), os quais usavam gorros passa montanhas, uma vez que o leque da sua determinação através da diligência requerida se mostra desde logo improfícuo, dado o número indeterminado e elevado de sujeitos com características semelhantes às supra referidas que irão ser identificados como tendo usado naquele dia e hora as BTS relativas às células melhor identificadas nos autos.
Ora, afigura-se-nos que apenas poderá ocorrer a compressão de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade e reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade das comunicações (cfr. artigos 26.°, n.° l, 34.°, n.° l ej 18.°, n.°s 2 e 3, todos da CRP), quando a diligência requerida seja apta a produzir efeitos úteis, o que não sucederá no caso sub judice.

O Sr. Procurador-geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no qual - considerando, em síntese, que o que se pretende através da promoção indeferida, e porque não está concretizado nenhum alvo com certas e determinadas características, é obter informações que abarcam um universo ilimitado, incaracterístico e indiferenciado de destinatários, não sendo tanto a autorização para uso de um certo meio de prova, mas antes a autorização para que se abra um caminho que possa vir a tornar-se meio de obtenção de prova o que se pretende, tratando-se, assim, manifestamente, de pretensão que, para além de ferir os ditames legais, se apresenta desprovida de razoabilidade, sendo desproporcionada e inadequada – se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.
Não havendo arguidos constituídos nem outros sujeitos processuais que o recurso pudesse afectar, não foi determinado o cumprimento do disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.


2. Fundamentação
Revestem-se de interesse para a decisão do recurso os seguintes elementos processuais que o instruem:
- o inquérito foi despoletado com o auto de notícia ( fls. 5-7 ) dando conta da ocorrência, na tarde do dia (...), de um assalto a várias lojas do (...), que, de acordo com a descrição feita pelos ofendidos, foi perpetrado por três indivíduos[1] encapuzados, com cerca de 1,80/1,90m e pronúncia (...), armados com armas de fogo curtas, com luvas e vestidos de negro, um deles com casaco verde fluorescente, os quais, agredindo-os ou apontando-lhes tais armas, roubaram dinheiro e alguns bens a vários lojistas, pondo-se depois em fuga numa viatura pertencente a um desses lojistas;
- sendo desconhecida a identidade dos autores dos factos participados, e com vista a apurá-la, o MºPº elaborou promoção ( fls. 70-71 ) nos seguintes termos:

Investiga-se, no presente inquérito factualidade passível de consubstanciar a prática de, pelo menos, 4 crimes de roubo, p.p. pelos art°s 210°, n°s l e 2, al. b) por referência ao art° 204º, n° 2, als. f), todos do Código Penal.
Desconhece-se a identidade dos suspeitos uma vez que estes atuaram com a face coberta.
Das diligências de prova já desenvolvidas apenas foi recuperada a viatura matrícula (….), subtraída na data da prática dos factos pelos suspeitos e na qual encetaram a fuga, a qual foi encontrada no (...), tendo-se logrado obter a informação de que a mesma aí se encontrava parqueada desde o (...).
Os valores subtraídos são fungíveis, sendo muito difícil seguir o respetivo “rasto”.
Assim, a única forma de se lograr a identificação dos autores do crime em investigação será o recurso à localização celular dos telemóveis que, muito provavelmente, teriam na sua posse.
Mostra-se, pois, essencial à investigação nestes autos a obtenção, junto da MEO, Vodafone e NOS da informação relativa à identificação de telefones e/ou IMEIs que:
1. No período compreendido entre as 17:00h e as 20:00h, do dia (...), assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 66 e
2. No período compreendido entre as 18:45h do dia (...) e as 8:00h do (...) assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 67
3. Bem como todos os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registados no período referido e através das referidas BTS.
Dada a confidencialidade dos dados em questão (dados de tráfego), nos termos do disposto nos art°s 3°, 4° e 9° da Lei n° 32/2008, de 17.07, conclua-se ao meritíssimo juiz com a seguinte promoção:
Atentas as razões expostas, requer-se que se determine o levantamento de sigilo a que está vinculada as operadoras MEO, Vodafone e NOS, notificando-se estas entidades para, no prazo a fixar, procederem à junção aos autos da informação relativa à identificação de telefones e/ou IMEI's que:
1. No período compreendido entre as 17:00h e as 20:00h, do dia (...), assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 66 e
2. No período compreendido entre as 18:45h do dia (...) e as 8:00h do (...) assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor identificadas a fls. 67
3. Bem como todos os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registados no período referido e através das referidas BTS.

- essa promoção veio a ser indeferida pelo despacho objecto de recurso, cujo teor é o seguinte:

Investigam-se nestes autos factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Vem assim o Ministério Publico promover que se notifiquem as operadoras de telecomunicações móveis MEO, Vodafone, e NOS, para, em prazo a fixar juntarem aos autos informação relativa à identificação dos telemóveis e/ou IMEI’s que no período compreendido entre as 17h e as 29h do dia (...), assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor id. a fls. 66, e entre as 18h45 do dia (...) e as 8h do (...) assinalaram presença nas BTS relativas às células melhor id. a fls. 67, bem como os dados de tráfego relativos a todas as comunicações registadas no período referido e através das referidas BTS.
Naturalmente que, tratando-se da obtenção de dados de tráfego referentes a comunicações telefónicas, bem como dados de localização celular, a sua obtenção sempre estará sujeita à disciplina do artigo 187.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal, aplicável também por via dos artigos 189.º, n.º 2 do mesmo código e também do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, por referência ao seu artigo 4.º, n.ºs 2, al. a) e n.º 7, als. a) e b).
Das normas citadas resulta que o acesso a estes dados só pode ocorrer mediante despacho fundamentado do juiz, e está subordinado aos seguintes pressupostos:
a) Tratar-se da investigação de um crime “do catálogo” ou seja, crime para o qual esteja expressamente previsto na lei o recurso a este meio de obtenção de prova (artigo 187º, n.º 1, als. a) a g) e artigo 2º, n.º 1, al. g), da Lei 32/2008);
b) “se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (artigo 187º, n.º 1, do CPP e 9º n.º 1 da Lei 32/2008);
c) Ser a diligência dirigida contra as seguintes pessoas:
i) Ao suspeito ou arguido;
ii) A pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido; ou
iii) A vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido. (artigo 187º, n.º 4 do CPP e artigo 9º, n.º 3, da Lei 32/2008).
O artigo 9.º, n.º 4, da Lei 32/2008, de 17/07, estatui ainda que “A decisão judicial de transmitir os dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à protecção do segredo profissional, nos termos legalmente previstos.”.
Esta última norma decorre naturalmente do facto destes meios de obtenção de prova configurarem uma compressão de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, como o direito à privacidade e reserva da vida privada e familiar e à inviolabilidade das comunicações (artigo 26º, n.º 1 e 34º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), direitos que gozam mesmo de tutela penal (artigos 192º e 194º do Código Penal).
Assim sendo, qualquer compressão destes direitos deve observar os requisitos previstos no artigo 18.º, n.º 2 e 3 da C.R.P., nomeadamente:
a) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (n.º 2, 1.ª parte);
b) que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo (n.º 2, in fine);
c) que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito (n.º 3, in fine).
Coloca-se pois a questão se saber se com este regime legal é ou não possível deferir o promovido.
Pretende-se pois que sejam recolhidos dados relativos à localização celular e tráfego telefónico de todos os telemóveis que durante os períodos supra referidos activaram as várias “células” identificadas a fls. 71.
Tal diligência não é pois dirigida contra pessoa determinada e podemos afirmar com um elevado grau de certeza (face ao número de células e ao lapso temporal em causa) que irá abranger pessoas que nada têm a ver com os factos em investigação.
Pelo exposto, resultaria desde logo violada a norma dos artigos 187.º, n.º 4 do C.P.P. e
9.º, n.º 3, da Lei n.º 32/2008, de 17/07, que delimitam de forma clara as pessoas que podem ser alvo destas diligências.
Por outro lado este “lançar de rede”, recolhendo informações de inocentes na esperança de, de entre estes, se apanhar algum suspeito, afigura-se como sendo desproporcional aos fins visados, sendo pois uma compressão inconstitucional e ilícita do direito à privacidade e à inviolabilidade das comunicações.
Assim sendo, deve concluir-se que a falta de suspeito ou suspeitos determinados contra quem dirigir este tipo de meios de obtenção de prova (escutas telefónicas, pedidos de obtenção de dados de tráfego ou localização celular) é obstáculo intransponível à sua realização[2].
*
Pelo exposto, indefiro o promovido a fls. 70 e 71.
Devolva os presentes autos de inquérito ao Ministério Público.


3. O Direito
Atentas as conclusões do recurso, a única questão submetida à nossa apreciação reside em determinar se, no caso, se mostram, ou não, reunidos os pressupostos legais para ordenar às operadoras telefónicas o fornecimento dos dados de localização celular e de tráfego pretendidos pelo recorrente.

O recorrente defende que sim, considerando que, para além de os crimes em investigação caberem no conceito de “crime grave” definido na al. g) do art. 2º da Lei nº 32/2008 de 17/7, os suspeitos da sua prática, não sendo pessoas determinadas, são, pelo menos, determináveis em face de um conjunto de características que lhes foram atribuídas ( raça, estatura, corpulência, sotaque ), e, por isso, o despacho recorrido vai contra as finalidades da investigação e coloca-a em causa na medida em que não estão disponíveis outros meios de prova para alcançar o objectivo visado, de identificação e localização dos autores dos crimes.


Diferentemente, o despacho recorrido, depois de traçar o regime legal aplicável ao caso, fundamenta o indeferimento no facto de a diligência, não sendo dirigida contra pessoa determinada, ir seguramente abranger pessoas alheias aos factos em investigação, recolhendo informações de inocentes na esperança de, entre eles, se apanhar algum suspeito, e implicando, por isso, uma compressão inconstitucional e ilícita do direito à privacidade e à inviolabilidade das comunicações.

Sendo indiscutível que os crimes de roubo em investigação se enquadram no conceito de “criminalidade violenta[3] e, nessa medida, estão entre os crimes definidos como graves pela al. g) do art. 2º da Lei nº 32/2008 de 17/7, e não sofrendo dúvidas que as diligências pretendidas pelo recorrente se poderiam revelar de grande interesse, se não mesmo cruciais, para chegar à identidade dos autores desses crimes, resulta evidente que o cerne da questão do presente recurso se prende com a noção de “suspeito”, decisiva na medida em que a lei só admite a autorização para a transmissão de dados ( entre eles os pretendidos pelo recorrente, mormente os de localização celular ) quando os mesmo sejam relativos a arguido ( que – ainda - os não há no inquérito ) ou a suspeito.
A densificação do conceito encontra-se, em primeira linha, na al. e) do art. 1º do C.P.P., que define “suspeito”, na perspectiva que para aqui nos interessa, como “toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu (…) um crime, ou que nele participou (…)”.
Em traços gerais, e especificamente na matéria em que ora nos movemos, a jurisprudência tem entendido que, para o preenchimento da noção, não é necessário que seja conhecida a identificação civil da pessoa em concreto relativamente à qual se visa a utilização do meio de obtenção de prova em causa. No entanto não pode ser uma mera abstracção; ainda que não identificada, é necessário que se trate de pessoa concreta, determinável, passível de individualização.[4]

Ora, o que se sabe a respeito dos agentes dos factos em investigação é insuficiente para determinar a respectiva identificação, num universo que pode abranger um número indefinido de pessoas que caibam nos perfis genéricos que possam ser traçados a partir das características que acerca daqueles foram apuradas.
E a lei apenas permite a autorização da transmissão de dados relativos a suspeitos(s), não que se ande “à cata” de quem eles possam ser de entre a pluralidade de pessoas, a grande maioria das quais totalmente alheias aos factos em investigação, cujos dados de outra forma seriam, por arrastamento, à revelia da lei, transmitidos. Sem qualquer garantia, ademais, de que entre os dados transmitidos alguns respeitassem aos agentes dos factos pois nem mesmo se sabe se eles traziam consigo telemóveis. Assim, a autorização pretendida pelo recorrente iria, segura e necessariamente, trazer para a investigação, tornando-as alvos da mesma, sem qualquer justificação factual para o efeito, um sem número de pessoas inocentes que iriam ver postergados os respectivos direitos à inviolabilidade dos meios de comunicação privada, com consagração no nº 1 do art. 34º da C.R.P.
A ingerência das autoridades públicas nomeadamente nas telecomunicações e nos demais meios de comunicações só é permitida nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal, de acordo com a ressalva à proibição estabelecida no nº 4 daquele preceito. Estando em causa um direito fundamental, as respectivas restrições têm de se conformar com o quadro apertado traçado no art. 18º nº 2 da C.R.P. e complementado no caso pela norma do nº 2 do art.9º da Lei nº 32/2008, devendo reger-se pelos critérios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade.
Ora, o resultado acima aludido, que adviria do acolhimento da promoção que o despacho recorrido desatendeu, não pode deixar de ser considerado, no mínimo como excessivo por confronto com os fins visados, que não podem ser obtidos a todo o custo e com sacrifício injustificado dos direitos de terceiros, representando a decisão que o consentisse uma clara violação do princípio da proporcionalidade, o que a feriria de ilegalidade. Além de que subsistem sérias dúvidas de que a diligências pretendidas vissem a lograr a obtenção dos resultados pretendidos, mormente a identificação dos agentes dos crimes.
Tanto basta para concluirmos pelo total acerto da decisão recorrida, que vai de encontro ao entendimento largamente maioritário da jurisprudência[5],[6], com o qual também concordamos.


4. Decisão
Pelo exposto, julgam o recurso improcedente e, em consequência, mantêm o despacho recorrido.
Sem tributação

Évora, 19 de Maio de 2015

Maria Leonor Esteves

António João Latas

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[1] No recurso afirma-se que se trata de indivíduos de raça negra, dois deles fortes e o outro magro, características que, no entanto, não vêm mencionadas no auto de notícia nem nos demais elementos que acompanham estes autos.

[2] neste sentido, ente outros, cfr. Ac. da Rel. de Évora de 10/18/2011, proc. n.º 19/11.6GGEVR-A.E1; Ac. da Rel. de Évora de 06/26/2012, proc. n.º 342/11.0JAFAR.E1 e Ac. Rel. de Coimbra de 05/22/2013, proc. n.º 141/12.1GBTCS-A.C1, todos in www.dgsi.pt

[3] Assim, expressamente, cfr. Ac. STJ 13/3/08, proc. nº 08P924.

[4] Como se refere no Ac. RE 30/9/10, proc. nº 49/10.5JAFAR-A.E1“A noção legal de suspeito contida na al. e) do art. 1º do CPP pressupõe uma pessoa determinada, relativamente à qual existam indícios da prática de um crime e que, por isso, possa ser sujeito de direitos e deveres nos termos do Código de Processo Penal, antes mesmo de ser eventualmente constituído como arguido. A exigência de individualização do suspeito enquanto interveniente processual (…) não se confunde com a sua identificação completa, mas não dispensa a existência de dados factuais tendentes a essa identificação, com base nos quais possa individualizar-se uma pessoa determinada.”

[5] Assim, e para além do já citado na nota anterior, cfr., entre outros, os Acs. RE 23/9/10, proc. nº 20/10.7GCLLE-A.E1, 18/10/11, proc. nº 19/11.6GGEVR-A.E1, 17/5/11, proc. nº 16/10.9GEBJA-A.E1, 8/11/11, proc. nº 1/11.3GIEVR-A.E1, 26/6/12, proc. nº 342/11.0JAFAR.E1, e RP 11/2/15, proc. nº 2063/14.2JAPRT-A.P1.

[6] A solução encontrada no Ac. RE 20/1/15, proc. nº 648/14.6GCFAR-A.E1, de autorizar a transmissão dos dados e sujeitá-la, a posteriori, a um controle judicial, apresenta-se, s.d.r. e a nosso ver, apenas como uma forma de conter/minimizar as consequências da violação dos direitos de terceiros alheios à investigação, sem no entanto a evitar num quadro em que legalmente não é admissível. É, ao fim e ao cabo, um remédio para o mal já feito.