Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
359/17.0T8FAR.E2
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ARMA DE FOGO
POSSE
REGISTO DE ARMAS
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O registo de armas, como qualquer outro, apenas faz presumir que o direito existe na esfera jurídica do titular inscrito.
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 359/17.0T8FAR.E2

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) propôs a presente acção contra (…) pedindo que seja o réu condenado no reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre as armas descritas no art.º 3º da petição inicial e na restituição à autora das armas descritas nos números 1 a 3 do mesmo artigo 3º.
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O R. contestou alegando que todas essas armas lhe pertencem porque foram dadas pelo marido da A., seu irmão.
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Foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
A) Declaro que a Autora é proprietária das seguintes armas:
Espingarda de caça de marca H. J. Hussey com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Monte Cario com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Holland & Holland com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Lazaro Arriaga com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Browning com o nº (…);
Espingarda de caça de marca J. Lagoas com o nº (…);
Revólver de marca Smith & Wesson com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Perazzi com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Victor Sarasqueta com o nº (…);
Espingarda de caça grossa de marca Tikka com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Browning com o nº (…);
Espingarda de caça de marca BenelH com o nº (…);
Espingarda de caça de marca J. P. Sauer com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Perazzi com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Browning com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Remington Arms com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Unique com o nº (…);
Revolver de marca Smith & Wesson com o nº (…);
B) Condena o Réu a restituir à Autora as seguintes armas:
Espingarda de caça de marca H. J. Husseycom o nº (…);
Espingarda de caça de marca Monte Cario com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Holland & Holland com o nº (…).
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Desta sentença recorre o R. impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.
Termina pedindo a absolvição dos pedidos.
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A A. contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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A impugnação da matéria de facto pretende que se deem por não provados os factos descritos nos n.ºs 4, 5, 6, 8, 9, 10 e 11, ou seja, quase toda a que vem exposta na sentença. Isto prende-se com a razão de três das armas estarem na posse do R., que o seu irmão lhe cedeu essas mesmas armas, etc..
Alega que ou não há prova para a resposta positiva a estes factos ou que ela não está indicada na sentença.
Salvo o devido respeito, não tem razão.
A sentença considerou o seguinte: as testemunhas … (armeiro), … (sobrinho da autora e parente do seu falecido marido) e … (parente da autora e do seu falecido marido) explicaram que a razão que levou ao registo das armas em nome do réu se prendeu exclusivamente com o objectivo de evitar que as mesmas respondessem pelas dívidas que (…) tinha. A testemunha (…) referiu que, após a morte do irmão, o réu dirigiu-se à sua oficina a fim de recolher três armas que ali se encontravam por terem ali sido deixadas por (…).
Apreciada a prova, não vemos motivos para discordar da validade desta fundamentação, não deixando de ser significativo o último facto referido.
Num ponto, no entanto, o recorrente tem razão. Não se pode dar por provado o n.º 10 (Após o óbito do marido a Autora solicitou ao Réu a devolução das armas indicadas em 6) pois que tal não vem alegado. Em todo o caso, ele seria sempre indiferente pois que isso não determina nada.
Por último, atendendo ao contexto geral, o que nos parece é que as armas estavam sempre na posse do marido da A., podendo o R. utilizá-las o que em nada contende com o direito de propriedade ou mesmo com a posse do primeiro. Por outro lado, não podemos deixar de ter em conta o facto de o marido da A. ter falecido em 2014 e nunca o R. ter reivindicado as armas; ainda menos verosímil é tal passividade antes do falecimento alegando o R., como alega, que as armas lhe foram dadas entre 1993 e 1995. Ainda mais notório da fragilidade desta posição é o facto de o R. não ter deduzido pedido reconvencional pedindo o reconhecimento do direito de propriedade das armas e sua restituição.
Em suma, é mais credível a versão da A. do que a do R..
Assim, nada se altera salvo quanto à eliminação do n.º 10.
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Neste tribunal, foi levantada uma questão prévia sobre que as partes se pronunciaram.
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A matéria de facto é a seguinte:
1- A Autora é a única herdeira de (…), com quem foi casada;
2- O Réu e (…) eram irmãos;
3- (…) era dono das seguintes armas:
Espingarda de caça de marca H. J. Husseycom o nº (…);
Espingarda de caça de marca Monte Cario com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Holland & Holland com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Lazaro Arriaga com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Browning com o nº (…);
Espingarda de caça de marca J. Lagoas com o nº (…);
Revolver de marca Smith & Wesson com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Perazzi com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Victor Sarasqueta com o nº (…);
Espingarda de caça grossa de marca Tikka com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Browning com o nº (…);
Espingarda de caça de marca BenelH com o nº (…);
Espingarda de caça de marca J. P. Sauer com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Perazzi com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Browning com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Remington Arms com o nº (…);
Carabina de recreio de marca Unique com o nº (…);
Revólver de marca Smith & Wesson com o nº (…);
4- Para evitar que as armas respondessem por dívidas que tinha, (…) solicitou ao Réu que as mesmas fossem registadas em seu nome;
5- O Réu acedeu a essa solicitação, tendo as armas sido registadas em seu nome;
6- (…) facultou ao Réu a utilização temporária das seguinte armas:
Espingarda de caça de marca H. J. Husseycom o nº (…);
Espingarda de caça de marca Monte Cario com o nº (…);
Espingarda de caça de marca Holland & Holland com o nº (…);
7- Tais armas mantêm-se em poder do Réu;
8- As restantes armas mantiveram-se sempre em poder de (…);
9- Após o seu óbito, estas armas mantiveram-se em poder da Autora;
10- (eliminado);
11- O Réu passou a intitular-se dono das armas, invocando o registo das mesmas a seu favor.
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O problema é o seguinte: a A. tem a posse de diversas armas – seja porque as tem mesmo em seu poder (o que nunca esteve em causa) seja porque, não as tendo em seu poder, algumas delas foram entregues ao R. por acto não translativo do respectivo direito.
Quanto ao primeiro aspecto, o art.º 1252.º, Cód. Civil, faz presumir a posse naquele que exerce o poder de facto sobre a coisa. Este poder de facto manifesta-se aqui pela detenção que vinha já do tempo do falecido marido da A.. Não se pode negar que as armas estiveram sempre na «zona de disponibilidade empírica» (Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 268) da Autora.
Em sentido contrário, o R. invoca registo a seu favor. Este registo, como qualquer outro, apenas faz presumir que o direito existe na esfera jurídica do titular inscrito. No nosso caso, esta presunção cessa com o facto de, na entrega das armas ao R., não ter havido qualquer acto de transmissão do direito de propriedade (n.º 4); apenas se fez um registo em desconformidade com a realidade. E mais uma vez notamos que o R. não pediu a sua restituição limitando-se a defender a improcedência da acção.
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O recorrente esgrima ainda com o disposto na Lei n.º 5/2006 que regulamenta o regime jurídico das armas e suas munições.
Alega que só podem ser proprietários daquelas armas as pessoas previamente autorizadas pela entidade policial competente e que sejam titulares de licença de uso e porte de arma de armas da(s) classe(s) C e/ou D, nos termos dos art.ºs 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 2, ambos da citada Lei.
Esta prevê dois modos de aquisição, quais sejam a compra e venda e a doação (art.º 5.º, n.º 1; 6.º, n.º 1; 7.º, n.º 1; 8.º, n.º 1, etc.). A lei diz, nas situações respeitantes a cada tipo de arma, que as armas da classe X são adquiridas mediante declaração de compra e venda ou doação.
Contudo, existem outras formas jurídicas de aquisição além daquelas duas, sendo a usucapião uma delas e a sucessão hereditária outra (ou até mesmo o casamento em regime de comunhão uma vez que os bens de um se integram no património de ambos). E o facto de esta lei não prever outros tipos de aquisição não significa (1.º) que eles não existam e que (2.º) e que eles sejam inválidos. Afirmar que a A. perdeu o seu direito equivale a admitir uma espoliação sem indemnização, o que a Constituição não permite no seu art.º 62.º, n.º 2.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 23 de Abril de 2020
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos