Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
331/08.1GCSTB.E1
Relator: JOSÉ MARIA MARTINS SIMÃO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
CONSUMAÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍCIOS DA SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 09/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário: I – Os vícios previstos no artigo 410.º do Código de Processo Penal têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, como é entendimento jurisprudencial uniforme, sem recurso a elementos que lhe sejam estranhos, não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, ou até mesmo em audiência, nem a documentos insertos nos autos.
II – Da aceitação, designadamente, dos princípios da imediação e da oralidade. Complementados pelos princípios do contraditório, da livre apreciação da prova e do «in dubio pro reo», resulta que o tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova, na medida em que foi relevante o funcionamento do princípio da imediação
III – Sem embargo, pode controlar a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
IV – O crime de maus tratos/violência doméstica inclui, na sua descrição típica, uma pluralidade de actos parciais.
V – Estamos perante um crime único, embora de execução reiterada, pelo que a consumação do crime dá-se com a prática do último acto de execução.
VI – O momento decisivo, o «tempus delicti», é o momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico.
VII – Os vários actos parciais cometidos pelo arguido, que justificam a reiteração e continuidade do comportamento delitivo devem ser concretizados «pontualmente», em vez de descritos de forma genérica e de modo conclusivo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Relatório
Nos presentes autos de processo comum singular, com o número acima mencionado do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, a acusação foi julgada procedente por provada e em consequência o arguido L, foi condenado como autor material de um crimes de maus tratos a cônjuge, previsto e punido pelo art. 152º nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de pagar à assistente, no prazo de seis meses, a quantia a que se alude no parágrafo que se segue.
O pedido cível foi julgado parcialmente procedente, tendo o arguido sido condenado a pagar à assistente (…) a quantia de € 8.000, improcedendo no demais o pedido;
Inconformado o arguido recorreu, tendo concluído a motivação do seguinte modo:
“1ª- O arguido ora recorrente foi condenado pelo crime tipificado no art. 152º nº 1 e 2 do C.Penal, numa pena de prisão suspensa embora nos termos do art. 50º do C. Penal.
2ª- Ora a sentença proferida, ao dar por verificados os elementos objectivos exigidos pelo art. 152º nº 2 do C.Penal por referência ao seu nº1 al. a) com base em factos não enunciados na enumeração dos factos provados da fundamentação enferma do vício previsto no art. 410º nº 2 al. b) do CPP, que não é possível vencer de outro modo salvo pela realização de novo julgamento após reenvio.
3ª- O recorrente entende que, salvo o devido respeito, houve factos que foram incorrectamente julgados, havendo provas que justificariam decisão contrária aquela outra que foi proferida:
Facto 2.- da matéria provada [ todo o seu enunciado] pois foi valorada de forma genérica e conclusiva sem se ter apurado o lugar, o tempo, a motivação da prática dos factos e quais as suas circunstâncias relevantes e a adquirida por um depoimento sem credibilidade e sugestionado.
Provas que justificam decisão contrária
Declarações do arguido [ 20100621095600 306012 65172 html]
Depoimento da testemunha C [ 20100621095600 306012 65172.html]
Facto 3. – da matéria provada [ na parte em que enuncia que o recorrente disse à primeira que lhe batia] pois que nenhuma testemunha referiu este facto.
Depoimento da testemunha (…) [ 20100621095600 306012 65172.html]
Depoimento da testemunha (…) [ 20100621095600 306012 65172.html]
Factos 12., 13., 14., 15. e 17. – da matéria provada [ na totalidade do seu enunciado] pois estão em contradição com os factos 3., 4. e 5 da enumeração da matéria não provada da fundamentação.
Provas que justificam decisão contrária
A factualidade não provada enunciada nos pontos 3., 4. e 5.
Factos 6. 7. - da matéria não provada [ na totalidade do seu enunciado] pois a própria testemunha (…) refere que entrou em casa do pai para evitar alguma situação de agressão e que se sentou no topo da mesa ao lado do sofá onde o pai estava deitado tendo pegado numa faca, e que tendo confrontado o seu pai, recusando-se a sair da casa dele, no auge de discussão entre ambos admite ter batido com a faca na mesa que se encontrava junta ao sofá, onde o pai se encontrava. Pegar numa faca, mantendo-a na mão e bater com a mesma numa mesa junto do arguido, nas circunstâncias e do modo como descreve, este depoimento tem de ser valorado com provocação e ameaça.
Provas que justificam decisão contrária
Depoimento da testemunha (…) [ 20100621095600 306012 65172.html]
Declarações do arguido [ 20100621095600 306012 65172. html]
4ª – Pelo exposto a douta sentença proferida enferma do vício previsto no art. 410 nº 2 al. c) do CPPenal quanto aos factos dados como provados e que agora se pretende sejam considerados não provados, bem como, quanto aos factos não provados e que agora se pretende sejam considerados provados.
5ª- Também relativamente a este vício deve ordenar-se a realização de novo julgamento, após reenvio (art. 426º do CPP), ou caso assim não seja o doutamente entendido, deve o recorrente ser absolvido da prática do crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º nº 1 e 2 do C.Penal e antes condenado pela prática do crime p. e p. no art. 143º em pena de multa.-
6ª- A douta sentença recorrida violou os arts. 283º nº 3 al. b) e 410º nº 2 als. b) e c) do CPP, 32º da CRP e 152º nº 1 e 2 do C.Penal.
Nestes termos, deve ser proferido douto Acórdão a ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, ante a referida contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, ou, caso assim não seja o doutamente entendido, deve ser decretada absolvição do ora arguido por ausência de factos, que sejam pressupostos suficientes da sua responsabilização criminal da prática de crime de maus tratos a cônjuge, como é de Justiça”.
O Digno Procurador Adjunto respondeu ao recurso pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
A assistente respondeu ao recurso dizendo:
“1. A sentença recorrida não padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
2. Desde logo, tal vício só se compreenderá por um mero lapso de escrita do Mmo Juiz “ a quo”, ou por ter elaborado a sentença provavelmente sobre decisão diversa e por desatenção de correcção final do texto.
3. Pois que, em momento algum, nem mesmo na acusação se refere os anos de 1998 e inícios de 2001, mas sempre e como foi dado como provado no ponto 2 dos factos o momento é, “Desde data não concretamente apurada, aproximadamente no ano de 2004…”
4.Pelo que e como se vê trata-se efectivamente de um lapso.
5. Os lapsos corrigem-se, sem necessidade de reenvio para novo julgamento, o que deverá ser feito.
6. Assim como não padece a decisão do vício de erro notório na apreciação da prova.
7. O arguido vem alegar que existem provas que justificariam decisão contrária àquela que foi proferida, contudo não cumpre os requisitos do art. 412º, nº 4 do CPP.
8. Uma vez que competia ao arguido indicar concretamente as passagens em que se funda a sua impugnação.
9. O que não fez, pois limitou-se a fazer referência ao CD, sem especificar qual ou quais os pontos concretos da prova que importariam decisão diversa.
10. Quanto à alegada contradição existente entre os factos 12, 13, 14, 15 e 17 da matéria dada como provada com os factos 3, 4 e 5 da matéria dada como não provada, não se vislumbra qualquer contradição entre os mesmos.
11. Em resposta aos factos 6 e 7 da matéria não provada e que o arguido entende ter resultado da prova produzida matéria que implicaria decisão contrária, não obstante o arguido transcrever partes do depoimento da testemunha C , o mesmo já não fez quanto às declarações do arguido.
12. Ora, mais uma vez o arguido não indica concretamente as passagens em que funda a sua impugnação, pelo que se desconhece qual é efectivamente a prova que implicaria decisão diversa.
13. O facto 6 só poderia ser dado como não provado, uma vez que a testemunha afirmou peremptoriamente que não fez qualquer gesto que pudesse ser entendido como qualquer tipo de ameaça.
14. Quanto ao facto 7 também do depoimento da mesma testemunha, claramente se verifica que a sequência factual e o momento em que o arguido agarra a cadeira é distinto da faca.
15. Fundamentação que a douta sentença claramente motiva.
16. Ao condenar o arguido, como autor de um crime do art. 152º, nº 1 e 2 do CP, entendemos que a douta sentença recorrida não se mostra passível de qualquer censura”.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu o seu douto parecer no sentido da procedência parcial do recurso.
Observado o disposto no artº 417º, nº 2 do CPPenal o arguido não respondeu.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
O arguido é casado com (…) há cerca de 33 anos, tendo desta relação nascido duas filhas;
Desde data não concretamente apurada, mas aproximadamente no ano de 2004, o arguido em diversas ocasiões desferia murros e pontapés em (…) e apelidava-a de «puta»;
No dia 6 de Julho de 2008, pelas 19H00, no interior da residência do casal, (…), o arguido começou a discutir com (…)e a filha de ambas, (…), dizendo à primeira que lhe batia;
Em determinado momento, procurou o arguido atingir a sua filha com uma cadeira, ao que (…) tentou agarrar, por trás, o arguido de modo a impedir o seu propósito;
Então, o arguido desferiu, com a cadeira, uma pancada em (…), atingindo-a no peito;
Em consequência, a (…) sofreu contusão da parede torácica, hematoma na região frontal e na mama, escoriações nos lábios e cotovelo, lesões que demandaram 15 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho;
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de molestar física e psiquicamente (…), atingindo-a na sua integridade física e moral, o que conseguiu;
Sabia que a conduta empreendida não lhe era permitida e constituía crime;
Como consequências das lesões referidas, a demandante teve muitas dores;
Durante esse período, a demandante teve dificuldade em fazer a sua vida normal, atentas as dores que tinha, nomeadamente conduzir, levantar pesos, dificuldade em movimentar os braços;
A demandante teve que tomar medicação, mormente analgésicos, e colocar gelo nas zonas negras;
Tanto estas lesões, como as que resultaram de outros actos perpetrados pelo arguido contra a sua pessoa ao longo dos anos, a demandante tentava esconder de terceiros, evitando assim que alguém desconfiasse que ela era alvo de agressões;
A demandante tinha vergonha que as pessoas soubessem que era alvo de agressões por parte do arguido, pois que para a sociedade em geral, pareciam ser um casal muito feliz;
(…) sentia regularmente angústia e medo, sentindo-se amedrontada por, a qualquer momento, poder ser alvo de agressões físicas ou verbais;
Tais agressões tanto podiam ocorrer quando a demandante se encontrava sozinha ou à frente das filhas;
A demandante saiu de casa no dia 6 de Julho de 2008, não levando consigo, nessa data, quaisquer bens;
A demandante tomou, pelo menos até sair de casa, antidepressivos e ansioliticos;
(…) tinha viatura automóvel, na qual se deslocava para os seus afazeres;
O arguido é agricultor e vende produtos que cultiva no mercado do Livramento, em Setúbal, três vezes por semana, arrecadando entre € 100 e € 150 semanais em tal actividade;
Mora com a mãe;
Tem duas filhas já autónomas;
O arguido era tido, fora do seu meio familiar, como pessoa pacífica, calma, ordeiro, respeitador, e bom pai e marido;
Não tem antecedentes criminais.

Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a causa, nomeadamente que:
Tenha (…), na sequência dos actos praticados pelo arguido no dia 6 de Julho de 2008, ficado 15 dias sem trabalhar;
A mãe do arguido vivesse com este e demandante;
A demandante se sentisse sufocada, acorrentada, ou sem liberdade de escolha ou de acção;
A demandante se limitasse a agir de forma a agradar o arguido, para que não pudesse ser alvo de repreensão posterior;
A demandante tomasse antidepressivos e ansioliticos por causa do arguido;
A filha do arguido tenha alguma vez pegado numa faca de modo provocatório para com este;
O arguido tenha, vendo a filha com uma faca, agarrado numa cadeira com o propósito de se defender.

MOTIVAÇÃO
A prova da prática de maus tratos resulta, normalmente, da conjugação de múltiplos indícios, mais ou menos subtis. É raro existirem testemunhas oculares, ou uma qualquer prova isolada que, por si só, permita esclarecer cabalmente o sucedido. Grande parte dos indícios resultam de conversas, meias palavras, rumores, impressões. Os testemunhos são, de um modo geral, opinativos.
Não é o caso.
Uma das filhas do casal assistiu – segundo o próprio arguido – aos factos. E, na qualidade de testemunha, relatou o sucedido.
Vejamos então.
O arguido negou, no essencial – sem grande convicção, diga-se –, toda a factualidade por que vem acusado. E, relativamente à factualidade do dia 6 de Julho de 2008, apresentou uma versão alternativa da mesma, alegando ter-se limitado a defender-se da sua filha que, com uma faca, o ameaçava.
Esta versão aparentou, logo à partida, muito pouca verosimilhança – o arguido não logrou detalhar como ocorreu, em concreto, tal ameaça, nem porque o ameaçava a sua própria filha com uma faca (facto que, confirmou, nunca antes ocorrera). E, uma vez mais, não conferiu o arguido às suas palavras a mais pequena de credibilidade, descrevendo o sucedido de forma distante, impassível, mais ou menos automática. E, sobretudo, não denotou, em momento algum, indignação por, de acordo com a sua versão dos factos, se encontrar a ser julgado por factos que não praticou.
Após a inquirição da filha do arguido – (…) – a versão relatada pelo arguido passou mais a semelhar-se com um delírio inconsequente: aquela testemunha, de modo muito emotivo (falava, afinal, do seu próprio pai…) descreveu o sucedido de forma credível. A sua versão do sucedido – muito próxima, quanto ao essencial, da resultante da acusação – foi pormenorizada quanto baste, sentida. Verosímil.
Também (…) logrou descrever o sucedido de modo muito convicto e convincente. Confirmou, igualmente no essencial, a acusação. Esclareceu, sem hesitações, pormenores quanto sobre os mesmos questionada.
Conjugados os depoimentos destas duas testemunhas com as declarações do arguido, não poderia deixar qualquer pessoa de ficar convencida de que a factualidade descrita na acusação corresponde à verdade.
(…), ex-empregada do arguido e assistente, amiga de ambos, descreveu a assistente, com quem, em determinado momento, convivia diariamente, como uma pessoa fundamentalmente triste – o que se revela compatível com a vida familiar que a assistente (e a sua filha) descreveu. Acresce ter ainda descrito uma lesão que visionou no pescoço da assistente também compatível com os actos praticados pelo arguido e descritos na acusação.
As testemunhas (…) denotaram desconhecimento total sobre a vida familiar do arguido, mas descreveram-no como uma pessoa pacífica, respeitadora, trabalhadora. Aparentaram isenção e, fundamentalmente, credibilidade. Contudo, a descrição que fizeram do arguido não é, de modo algum, incompatível com a prática pelo mesmo dos factos por que vem acusado: o crime de maus tratos é frequentemente praticado por pessoas que, fora das paredes da casa de morada de família, se revelam pacíficas e muito respeitadoras dos outros. Dentro de casa transformam-se. Existem muitas explicações técnicas para explicar esta aparente metamorfose, mas nenhumas dúvidas existirão, julgamos, sobre a dualidade de comportamentos que um indivíduo pode ter - dentro e fora de casa.
Finalmente a documentação clínica de fls. 13 e ss. e exame médico de fls. 22 e 23 sustentam a descrição da assistente e da sua filha que, de modo tão profundamente sentido, fizeram da realidade que vivenciaram.
No que respeita às condições sócio-económicas do arguido atendeu às suas próprias declarações.
Relativamente aos antecedentes do arguido, atendeu o tribunal ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

III- O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.
As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).
Perante as conclusões do recurso as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Se a decisão recorrida padece dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova;
2ª- Da impugnação da matéria de facto.
3ª- Do enquadramento jurídico- penal dos factos.

III- 1ª- Se a decisão recorrida padece dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova;
O recorrente alega que o Mmo Juiz ao efectuar o correspondente enquadramento jurídico faz referência a que “ o arguido foi casado com a assistente e que a agrediu física e psicologicamente, por diversas vezes, entre os anos de 1998 e inícios de 2001, de forma habitual e continuada”, no entanto, estes dizeres não constam da enumeração dos factos provados, pelo que a decisão recorrida padece do vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas; proposições contraditórias são as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade (cfr. o Ac. do STJ de 8.05.96, Procº nº 327/96).
Este vício existe quando há uma incompatibilidade, que não é possível resolver através da decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Só há lugar ao reenvio do processo para novo julgamento, quando não for possível sanar o vício através da decisão recorrida.
Ora, ao factos a que se refere o recorrente nem sequer constam da matéria provada, pelo que estamos perante um mero lapso de escrita, que importa corrigir sem necessidade de reenviar para novo julgamento.
Assim, em substituição dos factos indicados pelo recorrente deverão constar os do nº 2 da matéria provada, isto é: “Desde data não concretamente apurada, mas aproximadamente no ano de 2004, o arguido em diversas ocasiões desferia murros e pontapés em (…) e apelidava-a de puta”.
O recorrente alega também, que a decisão padece do erro notório na apreciação da prova quanto aos factos dados como provados e que agora pretende que se sejam considerados não provados, bem como quanto aos factos não provados e que pretende que sejam dados como provados.
Este vício existe sempre que o juízo formulado revele uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em critérios ilógicos, arbitrários de todo insustentáveis. A incongruência há-de ser de tal modo evidente que não passa despercebida ao comum dos observadores, ao homem médio (cf. por ex., Ac STJ de 27-5-98, BMJ 477, pág. 338 e de 14-10-2001, C.J., ano IX, tomo II, pág. 182).
Na definição do Professor Germano Marques da Silva, erro notório é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja quando um homem de formação média facilmente dele se dá conta (Curso de Processo Penal, III, pág. 341).
Há pois um erro notório na apreciação da prova quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência, ou se baseou em juízos ilógicos arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.
Este vício e os demais previstos no art. 410º têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum”, como é entendimento jurisprudencial uniforme, sem recurso a elementos que lhe sejam estranhos, não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, ou até mesmo em audiência, nem a documentos (Ac. STJ de 19-12-90, BMJ 402, pág. 232, de 22-9-93, C.J. ano I, tomo III, pág. 210).
Do texto da decisão recorrida não vislumbramos que a mesma contenha qualquer erro notório na apreciação da prova, isto é, que se tenha decidido contra o que se provou, ou não provou, ou que se tenha dado como provado qualquer facto que não podia ter acontecido de acordo com as regras da experiência.
Inexistem, pois, os vícios invocados.

II- 2ª- Da impugnação da matéria de facto.
O arguido alega que foram incorrectamente julgados os factos nºs 2, 3, 12, 13, 14, 15 e 17 e os factos nºs 3, 4, 5, 6 e 7 da matéria não provada.
Em processo penal, no que respeita à apreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz, artº 127º do CPPenal.
A livre apreciação da prova não se trata de uma operação puramente subjectiva, por meio da qual se chega a uma conclusão unicamente com base em impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas de uma valoração racional e crítica a efectuar, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, de forma a permitir objectivar a apreciação de modo que, a convicção pessoal há-de ser objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Com este princípio estão intimamente relacionados, os da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento se realizem oralmente, de modo que todas as provas (excepto, naturalmente, aquelas cuja natureza não o permite) terão de ser apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo, o da imediação, diz respeito à proximidade que o julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa e formal.
Estes princípios da oralidade e da imediação são muitos importantes para a apreciação da prova uma vez que, oferecem maiores possibilidades de certeza e da exacta compreensão dos elementos levados ao conhecimento do tribunal.
Como salienta, o Professor Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", Vol. I, pág. 233 e 234, " só os princípios da oralidade e imediação (---) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais".
Os meios de que o tribunal da primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que, o Juiz percepciona, as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, a linguagem a voz, que hão-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que as testemunhas hão-de merecer.
Neste sentido, se pronunciou o Ac.Rel. Porto de 5-6-02, in Procº nº 210320, in www.dgsi.pt, onde se escreve: ".... não podemos deixar de estar vinculados àquela situação de privilégio de que desfrutam os julgadores na primeira instância (....) o recurso não traduz uma repetição do julgamento, com análise de prova, mas sim um remédio para as situações que patenteiam erro de julgamento. Com efeito, o tribunal de recurso sofre um certo handicap relativamente ao tribunal perante o qual se produziu directamente a prova, onde têm pleno cabimento os princípios da imediação e da oralidade, complementados pelos do contraditório, livre apreciação da prova e in dubio pro reo. A prova escrita não consente a percepção do que aconteceu e não é escrito...os olhares, os esgares, as hesitações, o recato feito de personagem com papel bem desempenhado".
Da aceitação destes princípios resulta que o tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova, na medida em que foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, no entanto, pode controlar a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Feitas estas considerações vejamos os factos:
Quanto ao facto nº 2 da matéria provada alega o recorrente que tal matéria foi valorada de forma genérica e conclusiva sem se ter apurado o lugar, o tempo, a motivação da prática dos factos e quaisquer outras circunstâncias relevantes e que por isso, tal matéria não pode ser tida em consideração.
Mais refere que as provas que justificam decisão contrária são as declarações do arguido e da testemunha (…).
O arguido negou a prática de tal matéria, no entanto, a assistente e a testemunha (…) confirmaram-na, tendo a primeira referido que “ começaram a haver mais agressões a partir de 2004…… batia-me com murros e pontapés. Ele chamava-me puta” e a segunda, “ assisti a várias agressões físicas e verbais… eles estavam a explorar o restaurante. Levantei-me, andava a mãe a fugir do pai e a levar porrada. Agredia com a mão, murros e pontapés. Vi isto várias vezes. Para além das agressões físicas, chamava-a “puta” e “ordinária”.
As declarações da assistente e da testemunha foram convictas pelas razões que constam da fundamentação de facto, pelo que não nos merece reparo o facto nº 2. Sobre a questão de tais imputações serem vagas e genéricas, oportunamente, abordaremos tal questão.
Quanto ao facto nº 3 alega o recorrente que não se provou o segmento da parte final “dizendo à primeira que lhe batia”, pois que este facto não foi adquirido. Nesta parte assiste razão ao recorrente, uma que esta afirmou que “ele não ameaçava, dava logo” e a testemunha (…), nada referiu sobre este facto.
Relativamente aos factos 12, 13, 14, 15 e 17 o recorrente alega que tais factos estão em contradição com os nºs 3, 4 e 5 da matéria não provada.
Não vislumbramos que tais factos estejam em contradição uns com os outros e o recorrente não invoca provas que impõem decisão diversa quanto aos primeiros, pelo que não nos merecem qualquer reparo.
Por fim, alega o recorrente que os factos nºs 6 e 7 da matéria não provada devem ser considerados como provados, o que fundamenta no depoimento da testemunha Carla Oliveira, que transcreve.
O tribunal baseou a sua convicção quanto a estes factos, para os considerar como não provados, nas declarações da assistente e da testemunha (…), que foram convictos pela razões constantes da motivação.
O arguido alega que o depoimento da testemunha (…) impõe decisão contrária, mas, não lhe assiste razão.
Esta testemunha afirmou: “numa situação de confronto, de nervos, eu provavelmente bati com a faca na mesa ou qualquer coisa… não apontei a faca na direcção do pai…. Não fiz qualquer gesto que pudesse ser entendido como qualquer tipo de ameaça, (…) que estava com a faca na mão a descascar um pêssego, e nessa altura quando ele levantou a cadeira para me por fora de casa eu larguei tudo e desatei a fugir de casa .(…) ele veio a correr atrás de mim e deu-me com uma cadeira de campismo..”, factos que foram corroborados pela assistente.
Deste depoimento e das declarações da assistente não resulta que a filha do arguido tenha pegado na faca de modo provocatório, nem que o arguido tenha agarrado numa cadeira com o propósito de se defender, como o recorrente pretende fazer crer. Aqueles depoimentos foram convictos para o tribunal a quo, pela razões que constam da motivação, que nos dispensamos de reproduzir e que o tribunal de recurso não pode sindicar, na medida em que foi relevante para formar a convicção do tribunal, o funcionamento do princípio da imediação e oralidade, perante o qual foi produzida directamente a prova.

3- Do enquadramento jurídico- penal dos factos.
O crime de maus tratos/violência doméstica, com excepção dos casos em que se realiza através de um único comportamento, pressupõe uma reiteração das condutas que preenchem o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime: nomeadamente, injúria, ofensa à integridade física e ameaça.
De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crimes as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto integradoras de um tipo de crime, são, antes valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos sobre o cônjuge.
Assim, entre o crime previsto no art. 152º do C. Penal e os crimes de ofensas à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação que o podem integrar estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena prevista no art. 152º, e deixando de ter relevância autónoma os crimes que o podem integrar.
O crime de maus tratos/violência doméstica inclui na sua descrição típica uma pluralidade de actos parciais.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto, in C.J., ano XXVIII, Tomo V, pág. 220 « A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém os adventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único».
Dado que estamos perante um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos dá-se com a prática do último acto de execução. O momento decisivo, o tempus delicti, é o momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico.
No caso em apreço, caso os factos integrem o crime de maus tratos, o que veremos em seguida, o último acto singular do crime verificou-se no mês de Julho de 2008, por isso, a existência do crime tem de ser apreciada nos termos do art. 152º do C.Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro e não como consta da decisão recorrida.
Estabelece este preceito:
«1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a)Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2- (…) Se o agente praticar o facto no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos».
O bem jurídico protegido por este crime é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge.
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima para que esteja preenchido o tipo de crime.
Como refere Plácido Conde Fernandes, em Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ nº 8, 1º semestre « o bem jurídico, enquanto materialização directa da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos».
De acordo com a corrente jurisprudencial maioritária e mais recente dos nossos tribunais superiores, à realização do crime de maus tratos, face á lei antiga, não bastava, por regra uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação da habitualidade.
Esta regra era excepcionada pela verificação de uma única acção agressiva se ela fosse suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física, emocional ou psíquica da vítima.
Neste sentido, vide o Ac. STJ de 06-04-2006, C.J. Ano XIV, Tomo II, págs. 166 e segs; de 13-11-97, CJ, ano V, tomo III, pág. 235 e de 5.02.04 (Proc. nº 2857/03-3).
Esta é a orientação que subjaz ao art. 152º do C. Penal na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, como resulta do segmento “Quem, de modo reiterado ou não”, tendo o legislador deste modo posto fim à questão colocada na doutrina e na jurisprudência sobre se o crime de violência doméstica exigia como elemento objectivo do crime a reiteração de condutas ou não.
Assim, o crime de violência doméstica exige a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos, ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade humana.
O critério de interpretação de reiteração há-de assentar num conceito fáctico e criminológico que dê lugar a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si (cfr. Ac. da Relação do Porto de 11 de Junho de 2007, da Relação de Coimbra de 13 de Junho de 2007 e do S.T.J. de 6 de Abril de 2006, em www.dgsi.pt).
Como refere Plácido Fernandes no artigo citado, a pág. 307 “ É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante”.
No caso em apreço, no que respeita às agressões e injúria que ocorreram antes de Julho de 2008, apenas consta da matéria de facto provada que «desde data não concretamente apurada, mas aproximadamente desde o ano de 2004, o arguido em diversas ocasiões desferia murros e pontapés em Maria da Conceição e apelidava-a de “puta”».
Esta descrição da conduta do arguido mostra-se algo indefinida, vaga e genérica, em relação ao tempo, ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e injúria e respectiva motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de murros e pontapés em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidos, ao local do corpo da ofendida atingido e suas consequências, em termos de lesões corporais e desconhece-se também a motivação da conduta em causa.
Os vários actos parciais cometidos pelo arguido, que justificariam o comportamento reiterado e continuo deviam estar concretizados e não descritos, como acontece no caso em análise, de forma genérica e conclusiva.
Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, consagrado no art. 32º da Constituição, traduzindo aquela uma mera imputação genérica que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal.
Neste sentido, se pronunciaram os Acórdãos de STJ de 06-05-2004, Proc. 908/04-5ª, de 21-02-2007, proc. 4341/06-3ª, de 02-04-08, proc. 4197/07-3ª e de 15-11-2007, proc.3236/07-5ª.
Perante a escassa matéria de facto provada, analisada à luz das considerações tecidas e dado que a agressão, que ocorreu no dia 6 de Julho de 2008, não foi suficientemente intensa, que justifique a aplicação do disposto no art. 152º nº 1 e 2 na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, os factos integram apenas um crime de ofensa à integridade física simples p. e p, no art. 143º nº 1 do C.Penal.
Poderá condenar-se o arguido pela prática do crime previsto no art. 143º nº 1 do C.Penal?
O art. 358º nº 3 do C.Penal estabelece que o disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Portanto, este preceito equipara a “alteração da qualificação jurídica” a uma alteração não substancial dos factos, mandando aplicar o nº 1, ou seja, a comunicação da alteração ao arguido e a concessão, se ele o requerer, do “tempo estritamente necessário para a preparação da sua defesa”.
O recorrente pugnou, para além do mais, pela sua condenação pela prática do crime p. e p. no art. 143º do C.Penal em pena de multa (vide 5ª Conclusão ).
O nº 3 do art. 358º refere-se à alteração da qualificação jurídica por iniciativa do tribunal. Só nestes casos se justifica o contraditório para evitar uma decisão surpresa. Se é o próprio arguido que pugna por tal alteração, da qual resulta uma condenação por crime menos grave, não há qualquer alteração relevante para efeitos do disposto no nº 1, dado que o arguido se defendeu relativamente a todos os factos e acaba por ser condenado por crime diferente, mas consumido pela acusação.
Nestes casos, não há necessidade de dar cumprimento ao disposto no art. 358º nº 3 do CPPenal. Da mesma forma nos termos do nº 2, se a alteração não substancial resultar de factos alegados pela defesa, não é necessária a comunicação ao arguido, para deles se defender. Afigura-se-nos que a ideia do legislador é a que o arguido não possa ser surpreendido, nem prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica. Sempre que dessa alteração não surja qualquer surpresa, nem prejuízo na sua defesa, por resultar de factos alegados pelo próprio, ou de adesão do tribunal á qualificação jurídica pela qual o mesmo pugnou, não é necessária a comunicação ao arguido para preparação da sua defesa, art. 358º nº 1 do CPPenal.
O arguido pugnou, além do mais, pela sua condenação pelo crime de ofensa à integridade física simples. Assim, nada obsta que seja condenado por aquele crime sem se dar cumprimento ao disposto no art. 358º nº 1 do CPPenal uma vez que não foi posta em causa a sua defesa.
O crime de ofensa à integridade física simples é de natureza semi-pública. A queixa foi apresentada pela ofendida no dia que se seguiu aos factos, logo é tempestiva, art. 115º nº 1 do C.Penal.

III-4ª- Da medida da pena e do pedido de indemnização civil.
O arguido incorreu no crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no art. 143º nº 1 do C.Penal a que corresponde a pena de prisão até 3 anos ou multa de 10 a 360 dias.
O arguido é delinquente primário, apenas se provou em concreto uma agressão e já não vive com a ofendida. Assim, a pena de multa satisfaz as finalidades da punição, isto é a protecção de bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade, pelo que se opta por esta, nos termos o art. 70º do C.penal.
A medida pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas a circunstâncias que não fazendo, parte do tipo de crime deponham a favor o agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade dolo, as condições pessoais do agente e a sua situação económica (art- 71º nº 1 e 2 do C.Penal).
Deste preceito e do art. 40º do C. Penal infere-se que, o modelo de determinação da medida da pena é aquele que comete à culpa a função de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da medida da pena; à prevenção geral, a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela de bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, segundo os quais a pena deve representar um reforço da imperatividade da vigência da norma violada e do sentimento de segurança da comunidade face à mesma norma (prevenção geral positiva), e dissuadir a prática de novos crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa); e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de reintegração do agente na sociedade.
O grau de ilicitude do facto é elevado dado que o arguido violou o interesse penalmente protegido da integridade física da ofendida, o dolo é directo, as exigências de prevenção geral são prementes dado que as agressões praticadas no seio da família nuclear exigem especiais cuidados da sociedade, o arguido está integrado social e profissionalmente pelo que as exigências de prevenção especial não são significativas.
O arguido exerce a profissão de agricultor e vende produtos que cultiva no mercado do Livramento em Setúbal, onde aufere a quantia de cerca € 400 a € 600,00 por mês.
Perante este quadro tendo em atenção para além dos elementos referidos, o limite máximo da pena, julgamos adequada a pena de multa de 160 dias à taxa diária de € 5,00 o que perfaz a multa de € 800,00.
O arguido nada disse em relação ao pedido de indemnização civil, mas há que ter em conta que a lei impõe o dever de retirar da procedência do recurso as consequências legalmente impostas a toda a decisão recorrida, art. 403º nº 3 do CPPenal.
A decisão recorrida, na parte relativa ao pedido de indemnização cível refere «Resulta da factualidade assente que o arguido, com a conduta supra descrita atentou voluntariamente contra a integridade física e moral da assistente. E que os factos se prolongaram durante muitos anos. E que transformou o arguido durante esse período, a vida da assistente numa vida de “angustia e medo”. Também a assistente sofreu dores e transtornos da conduta do arguido no dia 6 de Julho de 2008 . (…)
Entende o tribunal, nos termos do art. 496º, nº 1 do Código Civil, e considerando os factos provados ser adequada a reparar os referidos danos a indemnização à assistente no montante de € 500 (pelas consequências da agressão do dia 6 de Julho de 2008) e € 7.500,00 por todo o sofrimento por que passou a assistente, o que perfaz € 8.000,00 ».
O tribunal fixou o total da indemnização na quantia referida com fundamento nas agressões e injúrias ocorridas num período de pelo menos de 4 anos, o que não foi acolhido por este Tribunal por falta de concretização. Tendo em conta que o tribunal a quo fixou a indemnização por danos não patrimoniais em duas parcelas, uma das quais (de € 500,00) relativa aos factos que ocorreram no dia 6 de Julho de 2008 e que para efeitos de condenação penal este tribunal só teve em conta estes factos, também só as consequências que resultaram destes factos ( agressão de 6 de Julho) serão tidas em conta para a fixação da indemnização civil , pelo que por se afigurar justo e adequado se mantém aquele montante.

IV Decisão
Termos em que acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de em conceder provimento parcial ao recurso e consequentemente revogar a decisão recorrida nos seguintes termos:
a)absolver o arguido da prática do crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º nº 1 do C.Penal;
b)condenar o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no art. 143º nº 1 do C.Penal na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a multa global de 800,00 (oitocentos euros);
c)Julgar o pedido cível parcialmente procedente por provado e condenar o demandado a pagar a quantia de € 500,00 a título de danos não patrimoniais à assistente e absolvendo-o quanto ao mais.
Condena-se o arguido em 3 Ucs de taxa de justiça.
Custas cíveis pela demandante e demandado na proporção do decaimento vencimento

Évora, 12-09-2011

(José Maria Martins Simão – Maria Onélia Madaleno)