Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
609/21.9PT8PTM.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
SINAL
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
EQUIDADE
BOA-FÉ
Data do Acordão: 11/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) - Embora as providências cautelares exijam apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, requeiram, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, (o fumus boni iuris), tal não tem qualquer tradução numa eventual discricionariedade do tribunal quanto à verificação dos fundamentos jurídicos.

ii)- Na aplicação do direito e na observância do ónus da prova, a exigência do tribunal não sofre qualquer aligeiramento pelo facto de o procedimento processual e probatório se revelar simplificado.

iii)- Um contrato que passa por uma alteração (radical) e anormal das circunstâncias, como é o contrato promessa de compra e venda, cujas entregas a título de sinal deixam de ser pagas apenas porque a situação pandémica (Covid-19) obrigou ao encerramento da atividade de esteticista da promitente compradora, confere a esta direito à resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (art. 437º,1 CC).

iv)- Pretender que a promitente-compradora devia ter pago as prestações a título de sinal, quando não podia obter proventos do seu trabalho, sua única fonte de rendimentos, afeta os princípios da boa fé e tal exigência não tem cobertura nos riscos do próprio contrato.

v)- Não sendo de impor ao promitentes-vendedores que aceitem para sempre o não pagamento das quantias contratadas, por força dos efeitos da situação pandémica na contraparte, impõe a justiça do caso que se procure nas opções legais: resolução ou modificação do contrato, o melhor equilíbrio entre os interesses cruzados.

vi)- Sopesando-se os interesses de ambas as partes, pela via da equidade. (sumário da relatora)

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

A… e mulher R…, residentes na …, Genéve, Suíça, vieram intentar contra V…, com morada na …, Albufeira, providência cautelar de restituição provisória da posse, convertida pelo Mmº Juiz em apreciação liminar e, nos termos do art. 379º CPC, em procedimento cautelar comum.

Para o efeito alegaram ter celebrado com a requerida contrato de arrendamento do imóvel onde a mesma habita, tendo esta deixado de pagar as correspondentes rendas, do mesmo modo, celebraram entretanto com a requerida contrato-promessa de compra e venda do mesmo imóvel. Sucedeu que a requerida deixou de habitar o imóvel, abandonando-o, para, posteriormente, voltar a ocupá-lo, mudando para o efeito a respetiva fechadura e impedindo assim os requerentes de aceder ao mesmo.

Concluíram pedindo o decretamento da providência e, consequentemente, serem os Requerentes restituídos à posse da fração autónoma identificada pela letra “…, destinada a habitação, localizada no 1º andar do prédio urbano sito em …, freguesia da Guia, concelho de Albufeira, inscrito na matriz sob o art. nº …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº ….

Uma vez que os autos seguiram os termos do procedimento cautelar comum, foi a requerido citada para deduzir oposição, o que veio a fazer.

Alegou esta que continua a viver no imóvel e que apenas se ausentou momentaneamente do mesmo, tendo facultado a chave a mediadora imobiliária ao serviço dos requerentes, para o mesmo ser exibido a potenciais compradores.

Admitiu não ter liquidado atempadamente todas as quantias devidas a título de rendas, fez algumas transferências de dinheiro ao abrigo do acordado sinal, que não completou devido à situação pandémica que a forçou a encerrar a sua atividade profissional, sendo ainda seu propósito vir a adquirir o imóvel, uma vez terminada aquela situação.

Alegou ainda que os requerentes não a interpelaram validamente para celebração do contrato definitivo.

Confirmou que os requerentes lhe mudaram a fechadura do imóvel, obrigando-a a mudá-la de volta para continuar a poder a aceder-lhe, como sempre tinha feito.

Concluiu pela improcedência do procedimento, por não verificados os pressupostos legais em que deve assentar.

Realizada audiência de julgamento o tribunal a quo julgou a providência procedente e determinou que os Requerentes sejam restituídos à posse da fração autónoma identificada pela letra “…”, destinada a habitação, localizada no 1º andar do prédio urbano sito em …, freguesia da Guia, concelho de Albufeira, inscrito na matriz sob o art. nº …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº ….

Inconformada com tal decisão veio a requerida recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

I – Estamos em crer não estarem reunidos os pressupostos de facto e de Direito para ser decretada a providencia cautelar requerida nos autos.

II – Mesmo sem entrar a fundo na questão jurídica da causa, certo é que nem na ação principal, se vislumbra que venha a merecer acolhimento uma tese de incumprimento contratual da Apelante quando nem sequer ainda foi suscitada a revogação do contrato de arrendamento ou a sequer o incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda.

III – Por último, e atentos os factos provados 10 e 11, o presente recurso tem que ter efeito suspensivo e terá de prevalecer por ora o primado da defesa do lar da Apelante como seu núcleo essencial de vida, ainda por cima em estado de pandemia.

Tudo são razões para que Vossa Excelências, Venerandos Juízes-Desembargadores, revoguem a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo e a substituam por outra que não decrete a providência cautelar pretendida pelos Apelados – que a matéria de fundo seja relegada para a ação principal que seguramente intentarão os Apelados.

A parte contrária não apresentou contra-alegações.


II

Deu-se como indiciariamente provado, o seguinte:

1- Os Requerentes, pela Ap. 3169 de 2009/10/18, têm inscrita a seu favor a aquisição da fração autónoma identificada pela letra “…”, destinada a habitação, localizada no 1º andar do prédio urbano sito em … freguesia da Guia, concelho de Albufeira, inscrito na matriz sob o art. nº …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o nº …, com o valor patrimonial de € 104.732,06.

2- O prédio onde a fração se insere tem a licença de utilização nº …, emitida pela Câmara Municipal de Albufeira em 26.05.2006.

3- Em 25 de Maio de 2018, por documento particular escrito, Requerentes e Requerida outorgaram um contrato a que chamaram “Contrato de arrendamento” onde declararam que os Primeiros Outorgantes, aqui Requerentes, dão de arrendamento à Segunda Outorgante, aqui Requerida, a fração autónoma supra identificada, destinando-se a habitação da Segunda Outorgante.

4- Mais declararam que o contrato era celebrado pelo período de 1 (um) ano, a começar no dia 01 de Junho de 2018 e terminar em 31 de Maio de 2018 (tendo querido dizer 2019), renovando-se automaticamente no seu termo por períodos iguais e sucessivos de 1 (um) ano.

5- Que a renda mensal seria de € 400,00 (quatrocentos euros) e devia ser paga até ao dia 08 de cada mês a que dissesse respeito.

6- E que na data de assinatura do contrato a Segunda Outorgante pagaria a quantia de € 1.200,00 (Mil e Duzentos Euros) sendo que o montante de € 400,00 (Quatrocentos euros) seria pago a título de renda devida pelo mês de Junho de 2018 e o remanescente a título de caução, dando os Primeiros Outorgantes, no contrato a integral quitação.

6 (2º nº 6)- Em 19 de Setembro de 2018, por documento particular escrito, Requerentes e Requerida outorgaram um contrato a que chamaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda” onde os Primeiros prometeram vender à Segunda e esta prometeu comprar, pelo preço de € 147.000,00 (Cento e Quarenta e sete mil euros) a fração autónoma supra identificada.

7- Mais se convencionou que o preço seria pago da seguinte forma:

a) € 400.00 (Quatrocentos euros) a título de sinal e princípio de pagamento, com a assinatura do contrato promessa;

b) € 400,00 (Quatrocentos euros) até ao dia 8 de cada Mês, nos meses de Novembro e Dezembro de 2018;

c) € 5.000,00 (Cinco Mil euros) em Dezembro de 2018 a título de reforço de sinal;

d) € 400,00 (Quatrocentos euros) até ao dia 8 de cada Mês com data de início dos pagamentos em Janeiro de 2019 e término a Dezembro de 2019, a título de reforço de sinal;

e) A quantia de € 10.000,00 (Dez mil euros) em Janeiro de 2020 a título de reforço de sinal;

f) O remanescente do preço, no valor de € 126.000,00 (Cento e vinte e seis mil euros), seria pago pela Promitente Compradora aos Promitentes Vendedores na escritura pública de compra, mediante cheque bancário.

8- E que a escritura de compra e venda seria outorgada até Agosto de 2020, em data, hora e local a indicar pela Promitente Compradora, devendo esta informar os Promitentes Vendedores com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias úteis.

9- E que os Promitentes vendedores, aqui Requerentes investiam a Promitente Compradora, aqui Requerida, na posse da fração no dia 01 de Outubro de 2018.

10- A Requerida passou a habitar a fração, com o seu companheiro e um amigo deste, a partir do dia 01 de Junho de 2018.

11- É no apartamento que arrendou e prometeu comprar, que a Requerida dorme, confeciona as suas refeições, recebe familiares e amigos e faz a sua vida social em geral.

12- A requerida pagou aos Requerentes, até 18 de Novembro de 2020, pelo menos, o montante de € 8.682,00, entre valores a título de rendas, sinal e prestações para as despesas do condomínio do edifício.

13- Não tendo pago as rendas referentes a Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021.

14- Tendo feito o último pagamento de € 157,00, em 18 de Novembro de 2020.

15- Nada mais tendo pago até hoje.

16- Em 21 de Dezembro de 2020, os Requerentes enviaram carta à Requerida com o seguinte teor:

“Assunto: Interpelação – Contrato de Promessa de Compra e venda.

Exma. Senhora.

(…)

Em 19 de Setembro de 2018, foi outorgado contrato de promessa de compra e venda do qual V.Exa dispõe de uma das vias.

Nos termos previstos na cláusula “quarta” do referido supra citado contrato de promessa, a escritura de compra e venda seria outorgada até agosto de 2020, facto que não veio a ocorrer, pelo que nos termos previstos na legislação em vigor, venho solicitar que no prazo máximo de 30 dias, informe da data e hora para a realização da escritura de compra e venda.

Caso assim não entenda e decorridos os trinta dias a contar da receção da presente comunicação, cumpre desde já informar V.Exa de que procederei em conformidade com o que a legislação dispõe para o incumprimento de V.Exa nos termos previstos na cláusula “sexta” do contrato de promessa de compra e venda outorgado”.

17- Não tendo a Requerida marcado a escritura pública no prazo constante da carta,[1] nem posteriormente.

18- No dia 29 de Janeiro de 2021, a Requerida entregou as chaves de que dispunha à senhora G…, medidora imobiliária que tinha celebrado contrato com os requerentes, tendo em vista a eventual futura alienação do imóvel a terceiro, ficando sem qualquer chave.

19- Tendo retirado tudo o que era seu do imóvel, não deixando roupa nos roupeiros, nem comida no frigorifico.

20- E ainda solicitado junto das entidades competentes a resolução dos contratos de água e luz que estavam em seu nome.

21- E ainda pediu a extinção do contrato de telecomunicações, que incluía a “internet”.

22- A referida G… entrou no imóvel com as chaves que recebeu e dormiu lá uma noite.

23- E, posteriormente, a pedido dos Requerentes, entregou-as à nova mediadora “Kaiser Properties”.

24- Posteriormente, e após o recebimento das chaves, os Requerentes pediram à D. A… da “Kayser Properties” para mudar o canhão da fechadura, o que esta pediu a um profissional para fazer e foi efetivamente feito, e celebraram, os Requerentes, contratos para fornecimento de água e luz em seu nome.

25- No dia 01 de Março de 2021, a Requerida forçou a fechadura da porta da fração, abriu a porta e entrou, mudando o canhão da fechadura e retornando a habitar no imóvel.

26- A sua entrada no imóvel, o forçar a fechadura e mudar o canhão, foi tudo feito sem o consentimento e contra a vontade do Requerentes.

27- Os Requerentes pretendem vender o imóvel, tendo, inclusive, celebrado contrato de mediação com a agência “Kaiser Properties”, mas a realidade supra descrita impede a sua venda.

28- A Requerida entregou o imóvel em causa a G…, porque esta lhe disse que se propunha comprar o apartamento e substituir a Requerida no contrato celebrado com os Requerentes (compra e venda), sendo devolvido à Requerida o que já havia pago aos requerentes, o que a Requerida, que estava sem fundos para efetuar mais pagamentos, aceitou, entregando a casa a G… apenas porque esta lhe fez crer que lhe seria restituído esse dinheiro, o que subsequentemente verificou não vir a ocorrer, vendo-se privada do imóvel e do dinheiro.

29- A Requerida ainda não marcou a escritura pública de compra e venda, em virtude de a ausência de rendimentos do seu trabalho, por via do estado de pandemia e absoluta proibição legal para o exercício da sua atividade, não lhe ter permitido reunir o montante em falta para completar os 147 mil euros combinados como preço global.

30- Quando a Requerida se apercebeu que fora substituído o canhão da fechadura da sua residência, de imediato participou tal facto à GNR de Albufeira tendo esta força policial elaborado o correspondente expediente, ao qual foi atribuído o registo n.º G0001688/21.220080350, no dia 1 de Março de 2021.

31- A Requerida mantém o propósito de vir a celebrar o contrato de compra e venda, assim que terminar o atual estado pandémico.

Foi considerada não provada a matéria dos artºs 11º (11. Carta essa que foi recebida pela Requerida” e 29º do requerimento inicial, bem como a matéria dos artigos 9º, 11º e 12º da oposição.

Facto que se adita oficiosamente como suficientemente indiciado, resultante da instrução da causa (art. 5º, 2, a) CPC):

- V…, requerida, exerce a profissão de esteticista (identificação por si prestada em Declarações de Parte, registada em ata de audiência de 05/07/2021).

Factos que se aditam oficiosamente resultantes de conhecimento notório (art. 5º, 2, c) CPC):

- A crise causada pelo coronavírus afetou de forma grave a área de atividade ligada à beleza e à estética, que teve de fechar portas e parar completamente o atendimento, dada a relação de proximidade física a que tal atividade obriga, entre profissional e cliente.

- Essa atividade foi entretanto retomada, sujeita embora a orientações e cumprimento de normas da Direção Geral de Saúde.


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artºs. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), é a seguinte a questão a decidir:

Se não estão reunidos todos os pressupostos de facto e de Direito para ser decretada a providência cautelar, nomeadamente, por não se ter demonstrado o receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito dos apelados, pressupostos integrantes de todo o procedimento cautelar comum.

No caso, o procedimento cautelar comum foi facultado pelo uso fundamentado do art. 379º CC.

O seu decretamento depende da prova sumária (summaria cognitio) do direito ameaçado e do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente (art. 362º CPC).

A providência só é decretada se houver probabilidade séria da existência do direito e se se mostrar suficientemente fundado o receio da sua lesão, ou de perpetuação da sua lesão (art. 368º, 1 CPC).

Embora as providências cautelares exijam apenas a prova sumária do direito ameaçado, ou seja, requeiram, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, (o fumus boni iuris), tal não tem qualquer tradução numa eventual discricionariedade do tribunal quanto à verificação dos fundamentos jurídicos.

Na aplicação do direito e na observância do ónus da prova, a exigência do tribunal não sofre qualquer aligeiramento pelo facto de o procedimento processual e probatório se revelar simplificado. Uma exigência reforçada pelas consequências da inversão do contencioso (art. 369º CPC) suscetíveis de converter a tutela transitória em tutela definitiva.

Por outro lado, toda a providência cautelar tem de assentar num pressuposto geral: na constatação do prejuízo que a demora na decisão da causa em ação comum acarreta para o titular do direito (periculum in mora). O que a providência visa prevenir.

Trabalhemos os factos:

Entre apelante e apelados (estes através de um terceiro, mediador imobiliário) foram celebrados dois contratos que se sucederam no tempo:

Um contrato de arrendamento inicial deu lugar a um contrato-promessa de compra e venda com direito de ocupação (habitação).

O 1º contrato: contrato de arrendamento:

- Foi celebrado em 25 de Maio de 2018.

- A começar em 01 de Junho de 2018 e a terminar em 31 de Maio de 2019, renovando-se automaticamente no seu termo por períodos iguais e sucessivos de 1 (um) ano.

- Renda mensal de € 400,00.

- Foram entregues na data da celebração 1.200 euros a título de caução.

- A renda de Junho ficou paga.

Sobraram 800 euros que cobrem 2 meses. Se outras entregas não tivessem sido feitas (e veremos que sim), os meses de Julho e Agosto estariam pagos através da caução.

O 2º contrato: contrato-promessa de compra e venda com imediata investidura de posse da promitente-compradora:

- Celebrado em 19 de Setembro de 2018, reportado à fração anteriormente arrendada.

- Preço total 147.000 euros.

- O preço seria pago da seguinte forma:

a) € 400.00 a título de sinal e princípio de pagamento, com a assinatura do contrato promessa;

b) € 400,00 até ao dia 8 de cada Mês, nos meses de Novembro e Dezembro de 2018;

c) € 5.000,00 em Dezembro de 2018 a título de reforço de sinal;

d) € 400,00 até ao dia 8 de cada Mês com data de início dos pagamentos em Janeiro de 2019 e término a Dezembro de 2019, a título de reforço de sinal;

e) A quantia de € 10.000,00 em Janeiro de 2020 a título de reforço de sinal;

f) O remanescente do preço, no valor de € 126.000,00 (Cento e vinte e seis mil euros), seria pago pela Promitente Compradora aos Promitentes Vendedores na escritura pública de compra, mediante cheque bancário.

- Ficou acordado que a escritura de compra e venda seria outorgada até Agosto de 2020, em data, hora e local a indicar pela Promitente Compradora, devendo esta informar os Promitentes Vendedores com a antecedência mínima de 5 dias úteis.

- E que os Promitentes vendedores investiam a Promitente Compradora, aqui Requerida, na posse da fração no dia 01 de Outubro de 2018.

- A Requerida passou a habitar a fração, com o seu companheiro e um amigo deste, a partir do dia 01 de Junho de 2018 enquanto arrendatária.

- A requerida pagou aos Requerentes, até 18 de Novembro de 2020, pelo menos, o montante de € 8.682,00, entre valores a título de rendas, sinal e prestações para as despesas do condomínio do edifício.

O que nos possibilita definir a seguinte relação creditícia entre apelante e apelados:

Na data do contrato de arrendamento foi entregue um montante que permite dar como pagas as rendas de junho, julho e agosto de 2018, no valor total de 1.200€.

Mas está provado que, no total, pagou pelo menos 8.682€ pelo que:

Sobram 7.482€ (8.682€-1.200€). O que permite compensar os proprietários pela ocupação, independentemente da qualificação contratual, usando o valor anteriormente estabelecido para a renda, idêntico a prestações mensais do 2º contrato, por um período de 18 meses e 24 dias. Ou seja, as “rendas” estariam pagas até abril de 2020 (ainda que este último mês não completamente).

Mas resulta da factualidade provada que não foram pagas as “rendas” referentes a dezembro de 2020 e janeiro de 2021.

Assim, o facto 13:

“13- Não tendo pago as rendas referentes a Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021 – resposta ao artº 7º do requerimento inicial”.

Aqui a expressão “rendas” pode não ter o sentido normativo equivalente a prestação num contrato de arrendamento porque em setembro de 2018 havia sido celebrado um contrato promessa de compra e venda, substituindo o de arrendamento. Podendo entender-se como prestação paga a título de sinal, entregas estabelecidas no contrato promessa, embora com equivalência a um valor mensal de ocupação.

Sendo a partir destas prestações, inclusive (Dezembro de 2020 e Janeiro de 2021), que se pode considerar ocorrer não pagamento.

Dando-se implícitamente por compensados mais 7 meses de ocupação, que não estavam cobertos no nosso anterior cálculo.

Com confirmação nos factos 14 e 15:

“14- Tendo feito o último pagamento de € 157,00, em 18 de Novembro de 2020.”

“15- Nada mais tendo pago até hoje.”

Aqui chegados, dúvidas não haverá que os apelados demonstraram, à partida, ser titulares de um direito de propriedade e de um direito de crédito que emerge primeiramente dum contrato de arrendamento e depois dum contrato promessa de compra e venda, embora, os contornos das duas figuras não se tenham mantido suficientemente estanques no evoluir histórico desta relação negocial.

O contrato promessa de compra e venda, celebrado em segundo lugar, parece ceder a dado momento ao conteúdo da relação negocial anterior (arrendamento), quer pela aceitação de montantes a que as partes chamaram de “rendas”, quer pela aceitação de rendas pagas até 18 de novembro de 2020.

Ora, o contrato promessa de compra e venda não só fora celebrado anteriormente (18/09/2018), como previa a realização da escritura até agosto de 2020, pelo que, tendo-se provado o pagamento de rendas até novembro de 2020 (este mês de forma incompleta) tal terá o significado de que, pelo menos, até esse momento (nov. 2020) as partes entenderam, implicitamente, não ser de impor a data prevista no 2º contrato para a escritura, pagando e aceitando o pagamento de contraprestações por ocupação muito para além daquela data. Convertendo a obrigação de marcar a escritura a cargo da apelante, de prazo certo em obrigação de prazo incerto.

Ao que, decerto, não terá sido indiferente o contexto pandémico.

Ainda assim importa deixar definido: os apelados mantêm na sua esfera jurídica um direito base que é o direito real e um direito dele derivado, que é um direito creditício que lhes advém da relação negocial com a apelante e, cujo valor e consistência dependerá do contrato que se considere eficaz aquando da instauração da providência cautelar (valor que nesta providência não é pedido nem invocado, pelo que, não importa determiná-lo).

Porquanto, outra interpelação não ocorreu, capaz de resolver a relação contratual.

Estando embora provado que os apelados, promitentes-vendedores, em 21/12/2020, enviaram carta à apelante, promitente compradora, solicitando-lhe que no prazo máximo de 30 dias, (novo prazo) informasse da data e hora para a realização da escritura de compra e venda, não só não se provou a receção dessa carta pela destinatária (não prova do facto 11) como, nenhuma outra lhe sucedeu a invocar a perda de interesse na prestação por parte dos promitentes vendedores, logo, a resolver o contrato (art. 224º e art. 808º CC).

Resultou igualmente demonstrado que:

No dia 29/01/2021, a apelante, depois de retirar todos os seus bens da fração e de resolver os contratos de telecomunicações, água e luz, entregou as chaves de que dispunha à senhora G…, mediadora imobiliária que tinha celebrado contrato (de imediação imobiliária) com os apelados. Supostamente agindo em seu nome, como representante destes.

Estando ainda provado no facto 28 que: - a Requerida entregou o imóvel em causa a G…, porque esta lhe disse que se propunha comprar o apartamento e substituir a Requerida no contrato celebrado com os Requerentes (compra e venda), sendo devolvido à Requerida o que já havia pago aos requerentes, o que a Requerida, que estava sem fundos para efetuar mais pagamentos, aceitou, entregando a casa a G… apenas porque esta lhe fez crer que lhe seria restituído esse dinheiro, o que subsequentemente verificou não vir a ocorrer, vendo-se privada do imóvel e do dinheiro

Após o recebimento das chaves, os apelados pediram à D. A… da “Kayser Properties” nova mediadora por eles contratada, para mudar o canhão da fechadura, o que esta fez.

Decorreu o mês de fevereiro de 2021.

No dia 01/03/2021, a apelante pretendendo reocupar a fração e vendo que a fechadura tinha sido substituída, forçou a nova fechadura da porta da fração, abriu a porta e entrou, mudando o canhão da fechadura e retornando a habitar no imóvel, o que fez depois de ter participado o facto à GNR, que tomou conta da ocorrência. Sem consentimento dos apelados, que pretendem vender o imóvel.

A apelante ainda não marcou a escritura pública de compra e venda, em virtude de a ausência de rendimentos do seu trabalho, por via do estado de pandemia e absoluta proibição legal para o exercício da sua atividade, não lhe ter permitido reunir o montante em falta para completar os 147 mil euros combinados como preço global.

Sendo essa atividade, a de esteticista.

Mantém, contudo, o propósito de vir a celebrar o contrato de compra e venda, assim que terminar o atual estado pandémico.

Este segundo conjunto de factos permite-nos o seguinte desenvolvimento:

A entrega voluntária das chaves da fração à representante da 1ª mediadora, só ocorreu depois de esta, induzindo-a em erro, ter assegurado à apelante que iria ocorrer uma mudança de titularidade da fração, que passaria para a sua esfera jurídica (dela mediadora), que se substituiria em novo contrato, sendo devolvido à apelante o que já havia pago aos apelados. O que não ocorreu nem quanto à primeira nem quanto à segunda parte da informação.

A propósito desta entrega das chaves teceu o tribunal a quo as seguintes considerações:

“Por outro lado, ocorre que, efetivamente, em determinado momento, a requerida deixou de estar no imóvel, tendo aberto mão do mesmo.

Por isso, não obstante lhe ter sido conferida a posse aquando do contrato, pode sustentar-se que essa posse foi interrompida. Cessou, e tal ocorreu por decisão da requerida.

Admite-se que, face à análise dos factos considerados indiciariamente provados, seja discutível que, tendo em conta o quadro negocial oportunamente concretizado entre as partes, tenha efetivamente ocorrido a intenção de abrir mão da posse por parte da requerida, na medida em que a mesma apenas aceitou deixar e esvaziar o apartamento porque lhe foi dito que o apartamento iria ser alienado e que lhe iam devolver o dinheiro pago a título de sinal.

Era uma perspetiva que veio a verificar-se não ser real, tendo a requerida sido induzida em erro pela mediadora que lhe transmitiu tal informação (ou seja, e como se referiu em sede de fundamentação da decisão de facto, se a requerida tivesse sabido que não lhe iria ser entregue o dinheiro pago a título de sinal como prometido, a mesma não deixaria o imóvel como deixou). De resto, isso mesmo se verifica da circunstância de, ao constatar que não recebia o prometido dinheiro do sinal, a requerida ter procurado reocupar o imóvel.

Ainda assim, entendemos que, mesmo que, em virtude de um erro, e apenas se tendo verificado transitoriamente, efetivamente ocorreu o ato de abrir mão da posse do imóvel durante um certo lapso de tempo por parte da requerida em (?).

Aceitamos ter aqui aplicação, a respeito do contrato de arrendamento, que igualmente se encontrava em vigor, a jurisprudência constante do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-10-2016 (proc. nº 28/14.3T8STR.E) segundo a qual:

I – A entrega, pelo arrendatário, da chave do locado ao senhorio, que a aceita, materializando a entrega do próprio locado, traduz a revogação real do contrato de arrendamento, desde que não sejam estabelecidas cláusulas compensatórias ou quaisquer cláusulas acessórias.

II – A revogação do contrato implica na sua extinção, pelo que resulta inútil apreciar da sua extinção com fundamento na resolução.

Ou seja, tudo visto, entendemos que a requerida não deveria ter aberto mão do imóvel e, sobretudo, não deveria tê-lo feito sem existir um entendimento com os requerentes, posto que, na verdade, a requerida confiou no que lhe foi transmitido pela mediadora (sem se saber que poderes deteria a mesma exatamente e, em particular, se lhe permitiriam efetuar em nome dos requerentes um acordo do teor do que se provou ter ocorrido entre a requerida e essa mediadora), sem saber se era real o que lhe foi transmitido pela mediadora. A requerida tornou-se responsável pela conduta por si assumida. Já os requerentes não.

Deste modo, deve a requerida arcar com as consequências dessa sua conduta, ao abrir mão da posse do imóvel, a qual lhe vedava reapossar-se novamente do mesmo, como fez, mudando a fechadura respetiva.”

Com todo respeito, divergimos das consequências desenvolvidas nesta fundamentação.

A declaração tácita de revogação do contrato que se extrai da entrega voluntária da fração, foi determinada pelo erro sobre os motivos: a promessa de retorno das quantias entregues.

A apelante entregou a fração pela circunstância de lhe ter sido prometido que, fazendo-o, viria a ser reembolsada de quantias por si anteriormente pagas no âmbito do contrato-promessa. Abrindo-se-lhe a possibilidade de um novo contrato-promessa.

E, o erro sobre os motivos quando recai sobre as circunstâncias é suscetível de produzir os mesmos efeitos da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias (art. 252º, 2 e art. 437, 1 CC). Ou seja, pode ser resolvido ou modificado segundo juízos de equidade, segundo a justiça do caso.

Não houve assim revogação (válida) do contrato promessa porque condicionada por um erro sobre os motivos.

Importa ainda atender aos seguintes factos:

- A apelante exerce a profissão de esteticista.

- A crise causada pelo coronavírus afetou de forma grave a área de atividade ligada à beleza e à estética, que teve de fechar portas e parar completamente o atendimento, dada a relação de proximidade física a que tal atividade obriga entre profissional e cliente.

- Essa atividade foi entretanto retomada sujeita a orientações e cumprimento de normas da Direção Geral de Saúde.

- A Requerida ainda não marcou a escritura pública de compra e venda, em virtude de a ausência de rendimentos do seu trabalho, por via do estado de pandemia e absoluta proibição legal para o exercício da sua atividade, não lhe ter permitido reunir o montante em falta para completar os 147 mil euros combinados como preço global.

- A Requerida mantém o propósito de vir a celebrar o contrato de compra e venda, assim que terminar o atual estado pandémico.

O não cumprimento das entregas em falta do contrato promessa de compra e venda, foi determinado por uma alteração não apenas anormal, mas, radical das circunstâncias.

A relação negocial em si passou por um desequilíbrio superveniente radical e imprevisível.

Quando as partes celebraram o contrato promessa em 18 de setembro de 2018, não havia sinais de proximidade duma situação pandémica. A atividade profissional de esteticista, obrigando a um contacto próximo entre profissional e cliente, ficou impedida por força da situação pandémica que se viveu a partir de inícios de 2020. Quem contratou até 2019 contando com rendimentos seguros e suficientes provenientes do seu trabalho, “circunstancias que fundaram a sua decisão de contratar”, viu-se, a partir de 2020 confrontado com uma alteração superveniente das circunstâncias, ou seja, viu alterada a sua base do negócio.

Ora, um contrato que passa por uma alteração anormal das circunstâncias, confere à parte lesada direito à resolução do contrato ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (art. 437º,1 CC).

Pretender que a apelante devia ter pago “rendas” ou prestações a título de sinal, quando não podia obter proventos do seu trabalho, presumivelmente a sua única fonte de rendimentos, afeta os princípios da boa fé e tal exigência não tem cobertura nos riscos do próprio contrato. Pretender que os apelados aceitem para sempre o não pagamento de tais quantias, por via da situação pandémica, será igualmente desajustado à justiça do caso e desconforme a um juízo de equidade, devendo neste ser encontrado o melhor equilíbrio entre os interesses cruzados.

A apelante está em situação de poder vir a beneficiar do direito à resolução ou modificação do contrato, sopesando-se os interesses dos apelados, pela via da equidade.

O que, na avaliação dos pressupostos gerais do procedimento cautelar fragiliza o primeiro dos seus pressupostos constitutivos: o direito ameaçado dos requerentes. A alteração anormal das circunstâncias, superveniente, coloca os requerentes, ora apelados, perante a possibilidade de revisão do contrato, de revisão do seu direito.

Podendo ser revisto, o seu direito é um direito ainda indefinido. Depende da iniciativa da outra parte.

O segundo pressuposto específico do procedimento cautelar em causa resulta igualmente fragilizado.

A alteração anormal das circunstâncias tem igualmente alcance na avaliação do “fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente”.

A única causa para o não pagamento prende-se com a pandemia e com a impossibilidade de exercer a profissão/atividade, até então exercida.

Não se vislumbra do comportamento da apelante qualquer indício de não querer pagar, de fuga, de ausência, de desvio de bens.

A apelante não deu qualquer sinal de se querer colocar em situação de não ter rendimentos de modo a inviabilizar o efetivo ressarcimento dos Requerentes no caso de vir a ser condenada numa indemnização ou vir a acordar em prestações modificadas.

Sendo que a sua atividade profissional foi retomada e daí lhe advindo os rendimentos necessários para cumprir o que se vier a definir. De resto a apelante mantém interesse em comprar a fração.

Não se mostrando igualmente verificado, com a necessária segurança jurídica, o segundo pressuposto da providência cautelar não especificada: o receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito do requerente.

Não se encontrando preenchidos os pressupostos legalmente consagrados para o procedimento cautelar comum, a providência não deve ser decretada.

IV

Termos em que, acorda-se em revogar a decisão recorrida e julgar improcedente o presente procedimento cautelar, dele absolvendo a requerida.

Sem custas.

Évora, 25 de novembro de 2021
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Maria Adelaide Domingos
José António Penetra Lúcio
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[1] Não provado o seu recebimento, cujo ónus probatório cabe ao emitente.