Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
974/14.4TBLLE.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: FACTOS INSTRUMENTAIS
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
BENFEITORIAS
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- O art.º 611.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil, aplica-se também aos factos instrumentais.
II- Na segunda alternativa colocada pelo art.º 808.º, n.º 1, Cód. Civil (interpelação para cumprir sob pena de se converter a mora em incumprimento definitivo), a perda de interesse na prestação não tem relevo.
III- A mobília de uma casa (lá colocada por quem a habita) não é uma benfeitoria, nos termos do art.º 216.º, Cód. Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

A propôs a presente acção contra B, Lda. pedindo que: a) se condene a Ré a pagar-lhe a quantia total de €94.000,00, correspondendo €84.000,00 ao dobro do sinal prestado e € 10.000,00 ao valor das benfeitorias realizadas, acrescida de juros de mora; b) se reconheça ao Autor o direito de retenção sobre a fracção autónoma que identifica na petição inicial.
Alegou que celebrou com a Ré um contrato-promessa de compra e venda da referida fracção autónoma, pelo preço de € 170.000,00, tendo paga à Ré a quantia de € 42.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento, e tendo recebido da Ré a referida fracção autónoma para que a utilizasse desde então. Alegou também que realizou obras na referida fracção autónoma, adquiriu móveis e equipamentos, tudo no valor total de €10.000,00. Mais alegou que as partes acordaram também que o Autor marcaria a escritura pública de compra e venda para o dia e cartório notarial certo, sendo que a Ré não compareceu nem se fez representar. E que, nessa sequência, o Autor remeteu comunicação escrita, por via postal registada, pela qual convocava a Ré para agendar escritura pública em dia certo e hora determinada, e advertia a Ré de que, caso a escritura não se realizasse nesse dia, o Autor perderia imediata definitivamente o interesse em adquirir a referida fracção autónoma, considerando definitivamente incumprido o contrato-promessa.
Alegou, por fim, o Autor que no dia e hora agendados, o Autor esteve representado no acto pela sua procuradora, sendo que a Ré não compareceu nem se fez representar.
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Regularmente citada, a R. não contestou.
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Foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a R. do pedido.
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Desta sentença recorre o A. alegando que a sentença é nula e que lhe assiste o direito invocado na p.i.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos.
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Começaremos pela arguição da nulidade.
Alega o recorrente nestes termos:
A sentença recorrida é nula nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º n.º 1 al. d) do CPC por omissão de pronúncia quanto aos factos invocados pelo ora Apelante no requerimento junto aos autos em 3 de Junho de 2015, e sobre o qual o Tribunal não se pronunciou na sentença proferida, não obstante a tal estar obrigado.
Os fatos alegados no requerimento junto aos autos em 3 de Junho de 2015 revestem-se de extrema importância na decisão da causa já que constituem prova da existência de incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado entre a Apelada e o Apelante.
No dito requerimento (a sentença é de Junho), o A. informou o Tribunal que o Banco registou, a 18 de Maio de 2015, o prédio em questão em seu nome e que sobre isso nada se diz na sentença.
Mas não há nulidade.
O problema que se discute na acção é saber se estamos perante uma situação de mora ou de incumprimento; no primeiro caso, o A. não pode reaver o sinal em dobro; no segundo, pode.
E o tribunal debruçou-se precisamente sobre esta questão acabando por entender que se tratava da primeira situação.
Ou seja, o mérito da causa, o concreto problema que o recorrente colocou ao conhecimento do tribunal foi por este tratado. O art.º 615.º, n.º 1, al. d), refere-se aos temas em discussão na lide, às questões jurídicas que o tribunal tem perante si para resolver.
Assim, julga-se improcedente a arguição na nulidade da sentença.
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No entanto, cremos que por outra via se deve dar atenção ao alegado pelo recorrente.
Nos termos do art.º 611.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil, a sentença deve «tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão»; pretende-se com isto que a decisão seja a que melhor se adapta à realidade existente a dada altura. Mas nem todos estes factos devem ser atendidos. Apenas o serão aqueles que «segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida».
À primeira vista pode parecer que o posterior registo de propriedade a favor de terceiro em nada contende com a relação substancial invocada pelo A. e respectivos pedidos. Na verdade, nada do que o A. pede tem por efeito a transferência do direito de propriedade sobre o imóvel prometido vender; pelo contrário, o que resulta do pedido é que o A. não quer mais comprar a fracção, não quer para si esse direito de propriedade.
Sendo assim, o posterior registo deixaria incólume o direito cujo reconhecimento vem pedido.
Mas o direito que o A. pretende fazer valer é o direito de resolver o contrato promessa (com a consequente devolução do sinal, nos termos do art.º 442.º, n.º 2, 2.ª parte, Cód. Civil) e para tal ele tem que ter fundamento no incumprimento.
Estando o imóvel agora registado em nome de terceiro, não podemos deixar de concordar com o recorrente quando afirma que este facto é relevante uma vez que ele inviabiliza o cumprimento, por parte da R., do contrato promessa, ou seja, inviabiliza a transferência do direito de propriedade.
Ou seja, é um facto que pode vir a dar mais razão ao A. na sua defesa de que estamos perante um caso de incumprimento e não de mora sendo que tal facto é mesmo constitutivo da resolução pretendida. Não se trata, em bom rigor, de um facto directamente constitutivo do direito do A. pois que este é a perda de interesse na prestação do devedor, mas antes de um facto instrumental integrativo daquela perda de interesse. Não significa, note-se, que seja um facto determinante; significa só que é um facto que pode ter relevância para a decisão; para já, cabe apenas tomar nota dele.
Mas esta natureza não impede a aplicação do art.º 611.º.
O art.º 662.º, n.º 1. permite que a Relação adite o facto em questão e o aprecie.
É isso o que se fará.
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A matéria de facto é a seguinte:
1- Desde de Abril de 2009, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial, a favor da Ré, sob o nº 7367/19980402-I, a fracção autónoma destinada a habitação, correspondente ao rés-do-chão, lado esquerdo, designada pela letra I, do prédio urbano descrito sob o n.º 7367.
2- A 12 de Abril de 2012, o Autor e a Ré celebraram o acordo denominado “contrato promessa de compra e venda” pelo qual a Ré prometeu vender ao Autor, e este prometeu comprar, pelo valor de €170.000,00, a fracção autónoma supra referida.
3- Pelo referido acordo, as partes estabeleceram que a escritura pública de compra e venda seria celebrada no prazo máximo de 60 dias contados da data da celebração do contrato.
4- Pelo referido contrato o Autor pagou à Ré a quantia de €42.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento, e a Ré entregou a fracção autónoma ao Autor para que a utilizasse.
5- Posteriormente, as partes acordaram que a escritura pública seria celebrada a 17 de Abril de 2012, pelas 14:30 horas, no Cartório Notarial.
6- Nesse dia, hora e local, o Autor fez-se representar por procurador para outorgar em seu nome a escritura definitiva supra referida e a Ré não compareceu nem se fez representar, o que inviabilizou a outorga da escritura.
7- O Autor realizou obras na referida fracção autónoma, designadamente pintou as paredes, bem como instalou móveis e equipamentos de cozinha, móveis na casa de banho, mobilou-a com camas, mesas-de-cabeceira, mesa de jantar, cadeiras e sofás, instalou candeeiros e cortinados, tendo despendido pelo menos a quantia de €10.000,00.
8- A 6 de Janeiro de 2014, o Autor remeteu, por via postal registada, uma comunicação à Ré em que a convocava para outorgar a escritura pública em questão no dia 6 de Março de 2014, às 11:30 horas, no Cartório Notarial, e na qual advertia a Ré de que, caso a outorga não se realizasse naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor perderia definitivamente o interesse na aquisição, considerando definitivamente incumprido o contrato-promessa.
9- No dia 6 de Março de 2014, pelas 11:30 horas, o Autor compareceu no Cartório Notarial para outorgar a escritura definitiva e a Ré não compareceu nem se fez representar, o que inviabilizou a outorga da escritura definitiva.
10- O Banco registou, a 18 de Maio de 2015, o prédio em questão em seu nome.
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Em relação ao mérito da causa, o recorrente alega como segue:
Ao Apelante que aguardou cerca de dois anos pela outorga da escritura, assistem motivos para invocar, nos termos em que o fez, a perda de interesse na prestação
A comunicação enviada pelo Apelada para a sede da Apelante com data de 6 Janeiro de 2014 constitui uma interpelação admonitória, na qual a Apelante foi inequívoca quanto às consequências da não comparência da Apelada para a outorga da escritura na data agendada, valendo a mesma como incumprimento definitivo na sequência do qual perderia o interesse na aquisição do referido imóvel.
A não comparência da Apelada para a outorga da escritura de compra e venda do imóvel prometido, por duas vezes consecutivas, consubstancia uma situação de incumprimento definitivo e não de simples mora.
No caso em apreço verifica-se a existência de incumprimento definitivo porquanto a Apelada já não é proprietária da fração objeto do contrato promessa de compra e venda Apelante, fração cuja titularidade da propriedade se mostra já registada a favor do Banco, pela AP. 4278 de 2015/05/18, conforme se afere da consulta da certidão do registo predial junta aos autos.
Verifica-se assim uma impossibilidade prática e legal, imediata e absoluta, de a Apelada poder satisfazer a prestação a que se obrigou.
Verifica-se, assim, por parte e culpa da Apelada, um incumprimento definitivo e absoluto do contrato promessa de compra e venda que celebrou com a Apelante.
Deve operar a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o Apelante e a Apelada.
Ao Apelante assiste o direito a receber a quantia de 84.000,00 euros, correspondentes ao dobro do sinal e princípio de pagamento que prestou.
Ao Apelante assiste o direito a ser ressarcida na quantia de 10.000,000, a título de benfeitorias realizadas no imóvel objeto do contrato promessa de compra e venda.
Tendo obtido a traditio da coisa objeto do contrato prometido, a Apelante goza do direito de retenção sobre a coisa, o qual lhe deve ser reconhecido.
O tribunal violou as seguintes normas jurídicas: art.ºs 442.º, n.º 2, 754.º, 755.º, n.º 1, al. f), 795.º, 798.º, 799.º, nº 1, e 801.º do Cód. Civil.
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Como já se disse, problema é saber se estamos perante uma situação de mora ou de incumprimento definitivo.
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O art.º 442.º, n.º 2, tem na base da sua previsão o incumprimento do contrato promessa causal da entrega do sinal (art.º 441.º): se «quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação» e «se o não cumprimento do contrato» se dever à outra parte.
Esta terminologia leva-nos, sem margem para dúvidas, para a regulamentação do cumprimento e incumprimento das obrigações. Neste capítulo deparamo-nos com o art.º 808.º que estabelece que se, por causa da mora, o credor perder interesse na prestação, ou se esta não for realizada em prazo razoável, «considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação». Assim, e nos termos do art.º 801.º, n.º 2, o credor pode resolver o contrato. Como escreve Baptista Machado (aliás, citado na sentença), o «direito de resolução, diz-se, é um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento. O que significa que precisa de se verificar um facto que crie este direito — melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo. Tal facto ou fundamento é aqui, obviamente, o facto de incumprimento ou situação de inadimplência» («Pressupostos da Resolução por Incumprimento» in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 1991, p. 131).
A mora, enquanto fundamento do incumprimento definitivo que permite a resolução, deve estar associada a outras circunstâncias.
Por um lado, a mora deve ter uma «consequência relativamente importante sobre a economia da relação, consequência esta traduzida na perda do interesse na prestação por parte do credor» (idem, ibidem, pp. 162-163). Esta perda de interesse tem de ser aferida objectivamente (isso mesmo o diz o art.º 808.º, n.º 2) de forma a que não seja por um simples capricho que o contrato venha a ser resolvido. E o mesmo diz a jurisprudência constante (por exemplo, o ac. do STJ, de 3 de Abril de 2003, o da Relação de Coimbra, de 11 de Fevereiro de 2008, e o da Relação de Évora, de 28 de Maio de 2015).
Por outro lado, e em alternativa à perda de interesse do credor, este pode transformar a mora em incumprimento mediante a «não realização da prestação no prazo que for, razoavelmente, fixado pelo credor, sob a cominação estabelecida no preceito legal (interpelação admonitória), sendo que, neste caso, o contraente não faltoso fixa ao outro um prazo para o cumprimento da obrigação, findo o qual a obrigação se tem por definitivamente não cumprida» (do citado ac. da Relação de Évora). Isto porque não «seria justo manter o credor indefinidamente vinculado ao contrato (…) visto que ele, embora com direito ao ressarcimento dos danos moratórios, ficaria sempre sujeito a ter de cumprir por seu lado — bem como a ter de receber a prestação retardada» ( Baptista Machado, loc. cit., p. 163).
Neste caso, a mora é um pressuposto da resolução por incumprimento mas não necessita da perda de interesse (autónoma) para aquele efeito.
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Tendo estas considerações como pano de fundo, importa ver em que termos a sentença se pronunciou.
Por um lado, entendeu que «não basta alegar genericamente que se perdeu em definitivo o interesse no contrato, sem elencar factos dos quais resulte, ainda que minimamente, a materialização de tal perda»; por outro lado, também se entendeu que «não foi efectuada qualquer interpelação admonitória válida à Ré para cumprir a sua obrigação (outorgar o contrato definitivo)».
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Contra este entendimento, o recorrente defende, como se viu, que o decurso do prazo de 2 anos (entre a celebração do contrato e a escritura designada pela segunda vez) lhe fez perder o interesse na prestação.
O decurso do tempo que dura a mora, por si só, é insuficiente para que o credor deixe de ter como relevante a prestação do devedor. No decurso do tempo, as coisas mudam tal como pode mudar a simples vontade de fazer o negócio, queremos dizer, é legítimo ao credor resolver o contrato só por causa do tempo de mora que lhe fez perder o interesse que antes tinha no negócio. Mas este tempo tem que ser explicado nas mudanças que ocasionou, na mudança que operou na pessoa e condições de vida do credor, mesmo que estas alterações se não prendam intimamente com o negócio.
E isto não está explicado na tese do recorrente.
O registo feito em Maio de 2015 a favor do Banco é irrelevante uma vez que a perda de interesse susceptível de levar à resolução do negócio deve ser vista em função do momento em que tal interesse desaparece. E isto terá acontecido antes do dito registo, ou seja, não foi este o determinante ou sequer o influenciador da criação da perda de interesse.
Havendo só mora, havendo só o passar do tempo, a solução passa pela outra alternativa do art.º 808.º: a conversão da mora em incumprimento definitivo.
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Neste campo, o recorrente defende que a comunicação para celebrar a escritura no dia 6 de Janeiro de 2014 «constitui uma interpelação admonitória, na qual o Apelante foi inequívoco quanto às consequências da não comparência da Apelada para a outorga da escritura na data agendada, valendo a mesma como incumprimento definitivo na sequência do qual perderia o interesse na aquisição do referido imóvel».
Concordamos (embora aqui nem seja necessário falar em perda de interesse na prestação).
Foi fixado um prazo para o devedor realizar a sua prestação, prazo este que é bem razoável (dois meses); acresce que esta é a segunda marcação da escritura para formalização da compra e venda. A partir daqui, cabe ao devedor agir, seja comparecendo e outorgando na escritura, seja ficando quieto.
Nesta segunda hipótese, a que se verificou, só se pode concluir que não há cumprimento. O credor não tem que fazer mais do que já fez.
A sentença considerou que a notificação de 6 de Janeiro não é válida pelo seguinte motivo:
«Sucede que, tendo as partes estipulado no contrato que a marcação da escritura pública deveria ser comunicada pelo Autor à Ré através de carta registada com aviso de recepção, consideramos que, pelo menos, uma forma de comunicação do mesmo grau de exigência e garantia deve ser usada para a interpelação admonitória efectuada pelo Autor à Ré, quando esta se destina precisamente a agendar a escritura pública de compra e venda com a cominação da definitiva perda de interesse do Autor pelo negócio».
A carta de 6 de Janeiro foi registada mas sem a/r.
A «função do aviso de recepção não é outra que proporcionar ao remetente uma prova segura de que a notificação se concretizou, na pessoa devida, e numa dada data» (cfr. ac. do STA, de 13 de Março de 2013, embora o que aqui estivesse em questão prendia-se, naturalmente, com o princípio da legalidade). Apenas isto ele acrescenta ao correio registado. É um benefício para o remetente e não para o destinatário. Se, porventura, a carta não foi recebida, a este caberá alegar tal facto de forma a se poder aplicar o art.º 224.º, Cód. Civil.
Ou seja, o a/r não é uma formalidade essencial da declaração nem a sua omissão a invalida.
Por este motivo, entendemos que a declaração de Janeiro de 2014 é válida e tem a eficácia que o recorrente lhe pretendeu dar: converter a mora em incumprimento definitivo.
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O A. pede a devolução do sinal em dobro e pede-o com base na resolução do contrato que, por sua vez, tem a sua base no incumprimento definitivo da R..
O A. não formula explicitamente o pedido de resolução mas é ele o suporte do seu pedido formal.
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O sentido literal do art.º 442.º, n.º 2, não impede que se reconheça o direito da devolução do sinal em dobro. Sendo certo que a lei fala em devolução do valor da coisa objecto do contrato promessa quando haja tradição, entendemos que esta consequência não é obrigatória. A parte cumpridora pode pedir o sinal em dobro quer haja quer não haja tradição da coisa. Mesmo admitindo, nesta situação, que não é possível uma convenção (anterior, claro, ao incumprimento) que afaste a indemnização no valor da coisa (ao invés do sinal em dobro) (cfr. Ana Prata, O Contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, Almedina, Coimbra, 1995, p. 884), a lei não impede que o contratante cumpridor peça só o sinal uma vez que a lei fala expressamente em «faculdade» de pedir isto ou aquilo.
Assim, aceitamos que o A. possa pedir a devolução do sinal em dobro e não o valor da coisa prometida vender a que se refere a 2.ª parte do n.º 2 do art.º 442.º.
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Os demais pedidos (respeitantes a benfeitorias e direito de retenção) não foram apreciados porque o seu conhecimento ficou prejudicado pela solução dada à questão principal.
Cabe apreciá-los agora.
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O direito ao pagamento das benfeitorias resulta do art.º 1273.º, Cód. Civil.
Sendo conhecida a noção de benfeitorias (art.º 216.º), está bem de ver que o A. não tem o direito que se arroga.
O que ele fez foi o seguinte: pintou as paredes, bem como instalou móveis e equipamentos de cozinha, móveis na casa de banho, mobilou-a com camas, mesas-de-cabeceira, mesa de jantar, cadeiras e sofás, instalou candeeiros e cortinados.
Nada disto se integra na noção de conservação ou melhoramento da coisa em si. Com efeito, a benfeitoria é realizada na estrutura da coisa e integra-se nesta; não é um acessório da coisa.
A despesa que o recorrente teve foi, basicamente, com o recheio da casa, a mobília. Estes bens (camas, mesas, etc.) são coisas autónomas tal como o é a fracção onde eles foram colocados. A coisa em si, a fracção, manteve-se na mesma, não foi objecto de melhoramentos. O desaparecimento destes móveis em nada afecta a casa nem o seu valor; são bens do A. que este pode sempre levar consigo quando quiser.
Apenas a pintura se poderia integrar no conceito de benfeitoria mas desconhecemos as razões da sua realização (era imperativo pintar a casa em nome da sua conservação?, ou foi um capricho do A.?). E seria importante saber tais razões pois que o regime do art.º 1273.º depende do tipo de benfeitorias de que se trata.
Assim, improcede este pedido.
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Resta a questão do direito de retenção.
O art.º 755.º, n.º 1, al. f), Cód. Civil, confere o direito de retenção, sobre a coisa prometida vender, ao beneficiário da promessa de transmissão do direito, «pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442.º».
Já vimos que houve incumprimento definitivo da R. e que o A. pretende reaver o dobro do sinal entregue. O direito de retenção funciona mesmo no caso de resolução do contrato pois que o que se pretende garantir é a indemnização que resulta do incumprimento. Como escreve Ana Prata (ob. cit., p. 890) «só o direito de retenção, que pode ser oposto ao adquirente do bem, pode garantir o promissário, pois, numa situação em que a execução específica foi impossibilitada, resta-lhe um direito indemnizatório, que, sem aquela garantia real, nunca conseguiria efectivamente exercer».
Assim, deve tal direito ser reconhecido.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente em função do que:
- condena-se a R. a pagar ao A., a título de dobro do sinal e por incumprimento definitivo do contrato promessa, a quantia de €84.000,00, acrescida de juros a contar da citação e até integral pagamento;
- reconhece-se ao A. o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender e acima identificado.
No mais mantém-se o decidido.
Custas por ambas as partes na proporção do vencido.
Évora, 21 de Janeiro de 2016


Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos