Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
21/21.0GTSTB-B.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: BUSCA
INDÍCIOS
BUSCA DOMICILIÁRIA
DOMICÍLIO
Data do Acordão: 05/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Os condutores de veículos de longo curso não habitam, residem ou têm como centro de vida privada, pessoal e/ou familiar um veículo, ainda que de longo curso, onde percorrem longas distâncias, em trabalho, por vários dias ou mesmo meses.
II. Mais correto será dizer que o veículo que conduzem, nessas circunstâncias, se não é o seu local de trabalho em termos jurídico-laborais, anda lá muito próximo, mas não coincide de todo com o centro da sua vida pessoal, familiar e social reservada ou privada, ainda que a coberto de um entendimento amplíssimo, como o que é aparentemente subscrito pelo recorrente. Tratar-se-á de um espaço integrado e condicionado pela esfera profissional, mas não é o centro reservado do seu direito à intimidade, liberdade individual e familiar, bastante diverso daqueloutro.
III. O conceito de domicílio haverá, também, que estar em consonância com a tutela penal que lhe é conferida e que, como é sabido, tem a devida ressonância constitucional enquanto mandato positivo de incriminação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Instrução Criminal de Setúbal - Juiz 1, no âmbito dos autos com o NUIPC 21/21.0GTSTB foi, em 7 de março de 2022, proferido o seguinte despacho (transcrição):
” Das Buscas
O Ministério Público requereu que seja autorizada busca domiciliária e emitidos mandados a autorizar a sua realização, dos veículos e reboques que identifica.
Alega para tanto que se investigam nestes autos factos suscetíveis de integrar a prática de diversos crimes de furto de combustível, ocorridos em várias zonas do país, bem como crime de falsificação de ou contrafação de documento.
Relativamente aos veículos e reboques, não estando em causa o domicílio (casa habitada) pode o Ministério Público, se assim o entender, ordenar a realização de buscas, ao abrigo do disposto no artigo 174, nº1, 2 e 3 CPP.
Pelo exposto, não autorizo a realização das buscas aos veículos e reboques requeridas pelo Ministério Público.
Notifique.
*
Requereu ainda o Ministério Público que seja autorizada busca domiciliária e emitidos mandados a autorizar a sua realização às residências de:
- AAA, sita na Rua (….); e
- BBB, sita em (…).
Mais se requer que a busca abranja os anexos, garagens, caixa do correio, outras dependências que se encontram no domínio dos suspeitos, logradouros bem como nos terrenos adjacentes que sejam utilizados pelo(s) suspeito(s), com menção expressa da possibilidade de arrombamento, em caso de necessidade, tudo com vista à apreensão de objetos que estejam relacionados com os factos e/ou outros meios de prova essenciais para a prova da prática do crime indiciado.
De acordo com os relatórios do OPC juntos e com o requerimento do Ministério Público os referidos suspeitos, de nacionalidade romena, serão condutores de veículos pesados e reboques provenientes da Roménia e autores de parte dos furtos de combustível em investigação, integrando um grupo/associação de indivíduos que fazem desta conduta ilícita o seu modo de vida. Tudo indica que os meios para consumação dos ilícitos se encontram no interior dos veículos identificados nos autos.
Quanto à residência dos suspeitos nada de concreto consta dos autos que nos permita concluir pela existência de indícios suficientes de que os objetos utilizados na prática dos ilícitos em investigação ou meios de prova da sua prática possam estar guardados nos domicílios identificados. Como se referiu, dos referidos indícios, resulta antes mais provável que tais objetos se encontram no interior dos referidos veículos.
Pelo exposto, não autorizo a realização das buscas domiciliárias requeridas pelo Ministério Público.
Notifique.
*
Devolva os autos ao Ministério Público.”
*
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público promoveu, junto da Meritíssima Juiz, a realização de busca a veículos pesados/camiões e a reboques associados, promoveu também a realização de buscas domiciliárias a duas residências identificadas dois suspeitos, e bem assim promoveu a atribuição do segredo de justiça nos presentes autos.
2. No presente inquérito investigam-se vários furtos de combustíveis, ocorridos em várias zonas do país, tendo sido possível identificar um vasto número de camiões, bem como as suas matrículas e reboques associados.
3. Tais veículos têm matrícula estrangeira e são oriundos da XXX tendo sido possível apurar que transportam mercadorias para Portugal.
4. Nesta senda, entende o Ministério Público que tais veículos, uma vez que consubstanciam um transporte de longo curso que, como é do conhecimento geral, os seus condutores-motoristas pernoitam no seu interior e transportam consigo bens pessoais, entendeu que a autoridade judiciária competente para a emissão dos respectivos mandados de busca é o Juiz de Instrução, nos termos do artigo 177º, nº1 do Código de Processo Penal.
5. A necessidade da recolha de prova recai sobre a alçada do Ministério Público, sendo que, no caso concreto, mais nenhuma outra diligência de prova se mostra susceptível realizar o avanço da investigação e a identificação de possíveis suspeitos.
6. Assim, a realização de busca às residências identificadas consubstancia-se numa diligência de prova necessária porquanto, existe a possibilidade de no interior destas estarem outras provas relacionadas com a prática deste ilícito e que nomeadamente permitiam identificar cabalmente todos os seus intervenientes.
7. Por fim, o Meritíssimo Juiz não se pronunciou relativamente à promoção da atribuição de segredo de justiça nos presentes autos, incorrendo assim em omissão de pronúncia nos termos do artigo 379º nº1 al) c) do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos demais de Direitos, deve ser concedido provimento ao recurso e, consequentemente, devem os despachos formulados serem revogados por outros que autorizem a realização das buscas aos camiões identificados, e bem assim às residências, e em consequência deve o Meritíssimo Juiz proceder à emissão dos competentes mandados de busca.
E, bem assim, deve o referido despacho ser considerado nulo, nos termos do artigo 379º nº1 al.c) do Código de Processo Penal.”
*
Previamente à prolação do despacho a admitir o recurso, o Mº Juiz proferiu o seguinte despacho (transcrição):
“Da nulidade do despachado por omissão de pronúncia
Alegou o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 379º, 1, c) CPP, a omissão de pronúncia por não ter o Tribunal proferido decisão quanto ao segredo de justiça aplicado pelo Ministério Público.
Como resulta da citada norma, a verificar-se a omissão alegada, a mesma configura uma nulidade que deve ser arguida em recurso, podendo o Tribunal supri-la – artigos 279º, 1, 414º, 4, 380ºº, 3 e 97º CPP.
Melhor compulsados os autos, verifica-se que ocorreu a omissão de pronúncia alegada, não tendo este Tribunal tomado posição quanto ao Segredo de Justiça aplicado, pelo que se impõe suprir a nulidade devidamente invocada.
Por despacho de 28/02/21 o Ministério Público determinou, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a aplicação do segredo de justiça ao presente inquérito com fundamento nos interesses da investigação, atendendo à natureza da factualidade indiciada nestes autos. Os autos foram conclusos ao juiz de instrução criminal em 07/03/22.
O instituto do segredo de justiça constitui uma exceção ao princípio da publicidade do processo penal — conferir artigo 86º do Código de Processo Penal. Os interesses da investigação e as concretas circunstâncias que justifiquem a opção pelo afastamento daquela regra de publicidade deverão ser, assim, excecionais.
Refere do artigo 86º, 3 CPP que “sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.”
No caso vertente, o prazo máximo de 72 (setenta e duas) horas a que alude o normativo supra citado atingiu o seu termo no dia 03/03/22. Tendo os autos sido conclusos em 07/03/22, estando nesta última data decorrido o prazo a que alude o n.° 3 do ar. 86.° Código de Processo Penal, sem prejuízo da renovação da decisão pelo Ministério Público, não valido a sujeição dos presentes autos a segredo de justiça
Notifique.”.
*
O recurso foi admitido, fixado o respetivo regime de subida e efeito e ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação.
*
Neste Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos:
“ (…)
− Indicação das normas jurídicas violadas: não indicadas nas conclusões.
o Tendo em conta o disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) e artigo 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, não indicando o recorrente, de forma especificada, expressa ou autónoma, a norma ou normas jurídicas que tenham sido violadas, impõe-se ponderar se deve ser proferido despacho que convide o recorrente a proceder , no prazo de 10 dias, ao aperfeiçoamento do recurso apresentado, nomeadamente em sede de conclusões, sob pena de não ser conhecido o recurso (cf. ainda Ac. Tribunal Constitucional n.º 320/2002).
- O verdadeiro ónus do recorrente consiste na apresentação da motivação (exposição de modo circunstanciado, das razões de direito e de facto pelas quais diverge da decisão recorrida) e das conclusões (formular, no final da peça, as respetivas conclusões, com a indicação resumida dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão).
- As conclusões têm a função importante de definir e delimitar o objeto do recurso, circunscrevendo assim o campo de intervenção do tribunal a quo.
- Consta-se que em nenhuma das conclusões o recorrente indica, de forma específica e autónoma, quais as normas jurídicas violadas, i.e., as normas que constituem fundamento jurídico da decisão e deviam ter sido corretamente interpretadas e aplicadas.
- Porém, a nosso juízo, percebe-se o sentido do recurso, no que se refere `à matéria de direito, pois o recorrente refere na motivação as normas que constituíram o fundamento jurídico da decisão e o modo como foram interpretadas e aplicadas. Parece-nos, assim, que se consegue deduzir e delimitar o objeto do recurso, nomeadamente a nível das normas jurídicas violadas e cuja incorreta interpretação/aplicação conduziu à decisão que se visa alterar.
- Não sendo essa indicação específica, expressa ou autónoma das normas jurídicas violadas fundamento particular do recurso ordinário, devem vigorar as regras gerais da recorribilidade e admissibilidade do recurso, pelo que não nos parece imperioso a indicação específica da recorribilidade que está em questão.
- Divisa-se na motivação e conclusões apresentadas que o recorrente pretende a revogação da decisão recorrida, por entender que as buscas promovidas deveriam ter sido deferidas e que sobre a aplicação do segredo de justiça o Mmo. JI a quo haveria de se ter pronunciado.
- As menções com que o artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal onera o recorrente não devem considerar-se de tal modo obrigatórias que devam conduzir à rejeição do recurso, face às causas taxadas e previstas no artigo 417º, n.º 6 do Código de Processo Penal, pelo que o incumprimento que vem sendo assinalado deve considerar-se uma irregularidade processual que, caso condicione a apreciação do recurso, deve ser mandada sanar ou, se for irrelevante para o conhecimento do recurso, não carece sequer de ser suprida
- Constata-se, de facto, que o Ministério Público na 1.ª instância identificou suficientemente as questões objeto de recurso.
- Deste modo, é de considerar manifestamente irrelevante, no caso, a não indicação expressa, especificada ou autónoma da norma ou normas jurídicas violadas na decisão recorrida, como condição para o conhecimento do recurso.
- Não carecendo de ser suprida, pode o processo avançar no estado em que se encontra, não se justificando, pois, a prolação de despacho de aperfeiçoamento, da qual não derivaria algo de útil ou inovador para a posição processual ou substantiva do recorrente e recorrido.
− Sentido com que foram interpretadas e aplicadas e sentido com que o deveriam ter sido ou erro na determinação da norma aplicável: entende o recorrente que quer as BUSCAS domiciliárias, quer as não domiciliárias, por “interpretação extensiva” (?) do conceito de domicílio, deveriam ter sido deferidas e que há omissão de pronúncia quanto à aplicação do segredo de justiça ao processo, oportunamente requerido pelo Ministério Público recorrente.
2. OBJETO DA DECISÃO. QUESTÕES DE FUNDO:
2.1. Relatório e âmbito do recurso (402.º e 403.º Código de Processo Penal):
Considerando que os recursos são concebidos como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial;
Considerando que o recurso, através do ónus da motivação e conclusões, consubstancia um pedido dirigido ao tribunal ad quem com as razões através das quais se justifica onde e porquê se discorda do decidido e se pede como deve ser reponderada a decisão impugnada;
Considerando que é pacífica a jurisprudência de que as conclusões da motivação do recurso, deduzidas por artigos, não só resumem as razões do pedido, mas delimitam, em princípio, o objeto do recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, e se fixam os limites cognitivos do tribunal ad quem;
Considerando que na fase de recurso persistem princípios do processo penal, designadamente o da verdade material, com os limites impostos pelo reformatio in pejus
2.1.1. O recurso vem interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO da decisão do Juiz de Instrução que indeferiu as BUSCAS domiciliárias e não domiciliárias promovidas e não se pronunciou sobre a aplicação do segredo de justiça requerido pelo Ministério Público, nos termos que a seguir melhor se desenvolvem.
2.2. Parecer sobre as questões a decidir. Quadro factual. Enquadramento jurídico. Análise.
Comecemos por analisar o recurso na parte em que o MM. JI reconheceu haver omissão de pronúncia e reparou a decisão que, por via dessa omissão, se apresentava como nula – artigos 379.º, n.º 1, alínea c) , n.º 2, 410.º, n.º 3 e 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.
a) Da omissão de pronúncia quanto à aplicação do segredo de justiça: o Mmo. JI, na sequência da interposição do recurso pelo Ministério Público, reconheceu a invocada omissão e correspondente nulidade e veio a supri-la, com os fundamentos que constam previamente ao despacho que admitiu o recurso interposto.
Mostrando-se sanada a nulidade invocada, não se estando perante decisão recorrida que conheça, a final, do objeto do processo, sobre esse despacho abre-se nova instância de recurso e decai a presente, pelo que não há que conhecer da questão.
b) Quanto às buscas promovidas aos camiões de longo curso e indeferidas pelo JI, por ter entendido que o Ministério Público tinha legitimidade para as ordenar:
Dos elementos indiciários constantes dos autos em que o Ministério Público recorre resulta, em súmula e a nosso juízo:
O OPC que, no âmbito do inquérito onde foi apresentado recurso, investiga vários furtos de combustível, veio a identificar vários veículos pesados de mercadorias, uns com matriculas verdadeiras, pelo menos um com matrícula falsa, de origem romena, que eram utilizados/usados nos furtos de combustível que haviam sido denunciados e objeto de diferentes NUIPC, sugerindo a emissão de mandados de busca e apreensão para essas viaturas (camiões e reboques) por haver suspeitas fundadas de que nelas se encontrariam os meios usados para a concreta subtração de combustível, sendo ainda importante as buscas e apreensão para ulterior realização de perícia, designadamente aos tacógrafos.
A par das buscas aos veículos e reboques, o OPC sugeriu a emissão de mandados de busca domiciliária e não domiciliária em relação a duas suspeitas envolvidas, estando em causa, pelo menos indiciariamente, uma atuação concertada de vários indivíduos, condutores ou não desses veículos, que através do furto de combustível se permitiam oferecer preços mais vantajosos no transporte internacional de mercadorias.
Na sustentação das suspeitas quanto à autoria e modus operandi o OPC relatou as diligências subjacentes a esse juízo indiciário, designadamente vigilâncias, recolha de fotogramas de alguns dos veículos identificados, documentação atinente à identificação desses veículos, etc.
Dando pormenores da investigação em curso e dos indícios existentes, sustentados no despacho indeferido, incluindo registos de videovigilância nos locais onde alguns dos furtos foram cometidos, o Ministério Público requereu ao JI a emissão de mandados de busca domiciliária em relação aos veículos pesados e reboques que identificou e sobre os quais tinha elementos indiciários bastantes de estarem envolvidos nos furtos em investigação, dando detalhada descrição das provas indiciárias mobilizadas e da necessidade e utilidade investigatória das buscas.
Mais promoveu, com base na mesma e longa exposição, a emissão de mandados de busca domiciliária em relação a dois/duas suspeitas indiciariamente envolvidas na autoria dos furtos, ou no grupo que os levava a cabo, de modo concertado e com os objetivos económicos acima referidos.
Sobre a promoção efetuada, a Mma. JI proferiu despacho do qual destacamos o seguinte:
Entendeu que os veículos e reboques não integravam o conceito de domicílio e como tal o Ministério Público tinha e tem competência para as ordenar, pelo que recusou autorizar essas buscas.
Relativamente às buscas domiciliárias, em próprio sentido, entendeu que nada de concreto foi alegado ou consta dos autos que permitisse concluir haver indícios de que os objetos utilizados na prática dos ilícitos ou meios de prova pudessem estar guardados nos domicílios identificados, sendo mais provável que se encontrassem no interior dos veículos, pelo que também recusou autorizar essas buscas.
Vejamos.
As buscas, segundo o artigo 174.º e 177.º (quanto às domiciliárias) são meios de obtenção de prova, que consistem em inspecionar um local reservado ou não livremente acessível ao público, com o intuito de verificar se aí se encontram quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou se aí se encontra o arguido ou outra pessoa que deva ser detida.
Têm como fundamento a existência de indícios de que quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, ou de que aí se encontra o arguido ou outra pessoa que deva ser detida
Sobre o que sejam indícios que servem para fundamentar as buscas, a jurisprudência que a seguir destacamos pronuncia-se nos seguintes termos:
Ac. TRC de 18-11-2009, 329/09.2JALRA.C1CJ: “Para a realização de uma busca a lei processual penal exige a existência de «meros indícios», contrariamente com o que acontece para efeitos de acusação ou de pronúncia, em que são exigidos indícios suficientes, ou para aplicação de certas medidas de coação em que é necessária a existência de «fortes indícios».
Ac. TRC 22/02/2006, P. 33/06: “I- O conceito “indícios” tem, no C. P. Penal, uma natureza mais ou menos fluida consoante as fases processuais, indo da mera probabilidade, embora séria, até ao juízo de certeza; II- Os “indícios” exigidos para decretar uma busca não se traduzem em factos certos mas apenas em pressupostos desses factos.”.
Ac. TRC, de 15.2.2006, in CJ-XXXI-I-48 “Na falta de definição legal, por indício deve entender-se “uma indicação, sinal ou vestígio de algo”.
AC. TRE, de 20-1-2015, processo n.º 18/12.0GALLE.E1: “1 - Para a determinação ou justificação da realização de busca nos termos dos números 1 e 2 do artigo 174º do Código de Processo Penal, os indícios serão suficientes em função da situação de facto que se apresenta aos elementos policiais, exigindo uma apreciação imediatista sobre a razoabilidade das suspeitas, sobre a ocorrência e clara definição dos factos ilícitos e sobre a presença dos objetos que se pretendem investigar e apreender. 2 - A base desse raciocínio assenta, necessariamente, sobre os factos que constituem crime e foram presenciados e/ou são sabidos pelos elementos que efetuam a busca, não como eles se virão a provar posteriormente no processo, sim como eles razoavelmente se apresentam no momento em que se decide efetuar a busca.”
Ou ainda, quanto ao critério que deve sobrelevar na fundamentação das buscas:
Ac. TRL, de 18-5-2006, processo n.º 54/2006-9: “II – É ao MºPº que compete determinar quais as diligências que devem ser realizadas em ordem a descobrir e recolher as provas necessárias aos fins do inquérito, ainda que na realização de tais diligências seja assistido pelos órgãos de polícia criminal ou, quando a lei o determina, tenha que obter prévia autorização do Juiz de Instrução. III – É o critério da investigação, cujo dominus é o MºPº, que determina a razoabilidade das buscas e da seleção/escolha dos objetos apreendidos.”.
Do que vem exposto parece resultar evidente que não está em causa qualquer divergência sobre a existência de indícios em relação às buscas aos veículos pesados e reboques.
Os indícios que devem estar subjacentes à determinação das buscas aos veículos pesados e respetivos reboques têm sustentação real, efetiva e consequente, ou seja, não arbitrária, como parece ser também a posição do Mmo. JI.
A questão é a de saber se estão no âmbito da competência reservado do JI ou na que cabe, por exclusão, ao Ministério Público, conforme artigos supracitados.
Parece-nos que a sustentação de que os veículos pesados são, em termos práticos, equiparáveis a domicílio, atendendo à forma como são usados pelos respetivos condutores ou passageiros (neles dormem, por vezes comem, etc.) só foi verdadeiramente sustentada no recurso, que não na promoção indeferida.
Ainda assim, a questão permanece e julgamos que deve ser resolvida no sentido preconizado no despacho recorrido, i.e., não se tratam de buscas em “domicílio”.
Vejamos.
Os condutores de veículos de longo curso não habitam, residem ou têm como centro de vida privada, pessoal e/ou familiar um veículo, ainda que de longo curso, onde percorrem longas distâncias, em trabalho, por vários dias ou mesmo meses.
Mais correto será dizer que o veículo que conduzem, nessas circunstâncias, se não é o seu local de trabalho em termos jurídico-laborais, anda lá muito próximo, mas não coincide de todo com o centro da sua vida pessoal, familiar e social reservada ou privada, ainda que a coberto de um entendimento amplíssimo, como o que é aparentemente subscrito pelo recorrente.
Tratar-se-á mais corretamente de um espaço integrado e condicionado pela esfera profissional, mas não é o centro reservado do seu direito à intimidade, liberdade individual e familiar, bastante diverso daqueloutro.
Veja-se o Ac. do T. Constitucional, n.º 452/89, onde o conceito de domicilio, também identificado como “amplo”, corresponde a “…habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar…”, o que, ainda assim, não parece coincidir com o presumido conceito de domicílio subjacente ao recurso, que parece ser ainda “mais” amplo que o do aresto citado.
Afigura-se-nos que o conceito de domicílio haverá que estar em consonância também com a tutela penal que lhe é conferida e que, como é sabido, tem a devida ressonância constitucional enquanto mandato positivo de incriminação. Ora, o artigo 190.º do Código Penal protege a inviolabilidade do domicílio enquanto habitação de outrem, onde se centra a vida privada e não profissional (aspetos que, porém, hodiernamente nem sempre coincidem, v.g. devido ao teletrabalho) pelo que o conceito de domicílio deve ter um significado mais restrito que aquele que lhe pretende emprestar o recorrente.
Em qualquer caso, facto é que a intimidade da vida privada e o domicílio têm proteção autónoma, tanto na Constituição da República Portuguesa como no Código Penal e se nenhuma diferença houvesse seria redundante essa sua diferenciação…pelo que importa prosseguir na hermenêutica do conceito, que tem tanto de relevância factual, quanto normativa.
Na verdade, o artigo 177.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, reportando-se à busca domiciliária (domicilium, domus = casa), restringe o conceito à busca “em casa habitada ou numa sua dependência fechada” para a reservar à competência do juiz, seja para a ordenar, seja para a autorizar.
Nem em termos literais, nem em termos funcionais ou teleológicos, um veículo pesado de mercadorias de longo curso, ainda que diariamente usado pelo seu condutor como habitáculo onde dorme, quase vive e convive, pode equivaler a uma casa habitada.
Para se sustentar uma interpretação teleológica, ainda que garantística em extremo, como a que parece ser sustentada pelo Ministério Público recorrente, o que importaria demonstrar é que o veículo em causa constitui não só uma casa, mas uma habitação.
Enquanto casa, teria que ser um edifício, parte de edifício ou equivalente, que não é!
Enquanto habitação (que interessa ao que possa ser “equivalente”) – perdoe-se-nos o pleonasmo – uma casa ou equivalente terá que se destinar e servir de habitação, seja temporária ou permanente, principal ou secundária ou sua dependência.
Ainda que se faça prevalecer uma interpretação teleológica do conceito de domicílio que vá além da equivalência jurídica a “casa habitada”, parece-nos que o princípio da legalidade não permite que se possa prescindir do momento literal da interpretação, razão pela qual entendemos que no conceito de domicílio, enquanto casa habitada, não cabe como equivalente funcional, teleológico e muito menos literal o veículo pesado de mercadorias de longo curso.
Deste modo, a competência para ordenar as buscas nos veículos identificados cabe ao Ministério Público, nos termos da lei (artigo 174.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Não nos parece, assim que tenha andado mal, a Mma. JI ao indeferir as buscas promovidas.
c) Quanto às buscas domiciliárias propriamente ditas, que a Mma. JI indeferiu: não se nos afigura que o despacho recorrido tenha errado na avaliação dos factos indiciários e no direito a aplicado.
De facto, o despacho/promoção que requer as buscas aos veículos está abundantemente fundamentado sobre a existência de indícios que justificam essas buscas, a determinar, segundo deixámos exposto, pelo Ministério Público.
No entanto, quanto ao propósito e fundamentação das buscas domiciliárias propriamente ditas, i.e., em casa de habitação, a ter-se em conta o que acima referimos quanto ao que se deva entender por indícios, a promoção não tem a justificação bastante para demonstrar que nas residências das duas suspeitas identificadas existam objetos, sinais, vestígios, indicações de algo que importe ao objeto da investigação.
Não se quer com isto dizer que não possam existir. Porém, o inquérito e as diligências que o instruem e compõem não visam descobrir se algum crime foi cometido, mas sim se o crime formal ou indiciariamente imputado foi cometido.
Quais são afinal os factos cujos pressupostos deverão necessária, justificada e adequadamente implicar a necessidade e utilidade probatória da realização de buscas enquanto meio de obtenção da prova de um crime formal e indiciariamente imputado?
De onde se extrai a conclusão provável, verosímil e admissível de que os indícios se apresentam como sérios, por concretos, precisos, por certos e concordantes, por congruentes, no sentido de, com mais probabilidade que incerteza, serem as suspeitas portadoras ou possuidoras, nas respetivas habitações, de objetos relacionados com os crimes em investigação?
Não se sabe – pelo menos, por ora - com que fundamento se poderá concluir que as pessoas suspeitas não são excluídas, de todo, como agentes dos crimes em investigação e possuidoras, nas residências, de objetos relacionados com esses crimes.
As hipóteses indiciárias subjacentes à promoção das buscas e pressupostas na promoção indeferida não se pode dizer que representem um grau de plausibilidade superior ou pelo menos igual em relação a outras hipóteses que as possam contrariar. E não se pode dizer porque não estão demonstradas, com igual fundamento indiciário, devidamente exposto, se comparadas à promoção das buscas não domiciliárias.
Não é, pois, possível fazer adequado uso das máximas da experiência a partir dos factos verificados, presumidos, admitidos ou evidentes aos sentidos e à razão, para que a sua eventual fiabilidade seja confirmada pela verificação instrumental que as buscas representam.
A razão é simples: não estão demonstrados e expressos ou fundamentados de forma suficiente os factos que sustentam o juízo indiciário ou heurístico requerido à autorização das buscas domiciliária propriamente ditas.
Parece-nos, assim, que não havia razões bastantes para autorizar as buscas domiciliárias, por não estar ultrapassado o teste da verosimilhança das razões indiciárias subjacentes à sua promoção; vale por dizer, por não estar formado, demonstrado e expresso um juízo indiciário, segundo as regras da experiência, para vencer quaisquer eventuais contra-hipóteses.
Sem grandes dúvidas, esse juízo indiciário existe para a realização das buscas nos veículos, mas não está demonstrado quanto às buscas domiciliárias.
2.3. Conclusão:
Nos termos expostos, o recurso não nos parece dever merecer provimento.”
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Realizado o exame preliminar foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice as questões suscitadas pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduzem-se em saber se:
- se o despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia por virtude de o Mº Juiz não se ter pronunciado relativamente à promoção da atribuição de segredo de justiça nos autos;
- se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que autorize a realização das diligências requeridas.
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Apreciando
- Da invocada nulidade do despacho por omissão de pronúncia quanto à promovida aplicação do segredo de justiça.
Compulsados os autos verifica-se que o Mº Juiz, previamente à prolação do despacho de admissão do recurso, reconheceu a invocada omissão e correspondente nulidade e supriu-a, como claramente flui do despacho supra transcrito. (artigos 379.º, n.º 1, alínea c) , n.º 2, 410.º, n.º 3 e 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).
Mostra-se, assim, sanada a nulidade e, como referido pelo Exmº PGA no Parecer emitido, não se estando perante decisão recorrida que conheça, a final, do objeto do processo, sobre esse despacho abre-se nova instância de recurso e decai a presente, pelo que não há que conhecer da questão.

- Da pretendida realização das BUSCAS
Nos termos do artigo 174º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando houver indícios de que os objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca, dispondo o nº 3 do mesmo preceito legal que as revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.
As buscas reguladas nos artigos 174.° e ss do Código de Processo Penal, configuram meios de obtenção da prova, ou seja, os instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova, contendendo com direitos fundamentais dos cidadãos, com tutela constitucional, pelo que, apenas nos casos em que, após ponderação de interesses, se verifique que prevalece o da investigação criminal, é que aquelas poderão ser ordenadas.
Com efeito, atenta a especial proteção do domicílio de cada cidadão conferida pela Constituição da República Portuguesa, o legislador ordinário optou por estabelecer um regime especial para as buscas domiciliárias, exigindo a intervenção de um juiz, como verdadeiro garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, exigindo que seja ponderado, por um lado, o direito à inviolabilidade do domicílio que assiste a todos os cidadãos e, por outro, a eficiência da justiça criminal.
É assim que o artigo 32°, nº 8 da Constituição da República Portuguesa comina com nulidade todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão no domicilio, consagrando o art. 34°, nº 1, da mesma Lei Fundamental a inviolabilidade do domicílio.
E, da conjugação dos artigos 177º e 269º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, retira-se que é da competência exclusiva do juiz a autorização de busca domiciliária.
Decorre do supra exposto que apenas deverá ser autorizada a realização de uma busca domiciliária nos casos excecionais, em que se constate que tal meio de obtenção de prova é necessário para a descoberta da verdade material e desde que observado o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, enquanto critério fundamental para a decisão.
Nestes termos deve garantir-se que uma busca domiciliária requerida, para ser ordenada, deve ser idónea ou adequada à finalidade legal daquele meio de obtenção de prova, ou seja, possibilitar o acesso a objetos relacionados com um crime ou que possam servir para a prova do mesmo ou a detenção de arguido ou outra pessoa que deva ser detida, pressuposta que seja a existência de indícios da prática de um crime e de que os objetos ou pessoas a procurar se encontram no local visado pela diligência, ser necessária, exigível ou indispensável, no sentido de não ser concretamente adequado outro meio de prova ou de obtenção de prova que, sendo menos intrusivo para o titular do direito à inviolabilidade do domicílio em crise esteja na disponibilidade da entidade que preside à investigação, sem que do recurso à diligência probatória alternativa resulte prejuízo relevante para o interesse público na investigação e perseguição dos crimes, e ser proporcional em sentido restrito, o que depende de a violação do domicílio inerente à busca domiciliária não constituir sacrifício excessivo, face à gravidade do crime em investigação e da relevância probatória concreta da coisa a procurar. (cfr. Ac.do TRE, de 12 de setembro de 2017, ww.dgsi.pt).
Não basta, portanto, a mera suspeita de que o visado pode ter praticado um determinado crime, há que averiguar se foram já recolhidos indícios da prática de tal crime.
A materialização da suspeita ou dos indícios não tem de coincidir forçosamente com a existência prévia de prova mas com um estado de coisas que indique, em face das regras da experiência, que essa prova é possível, como seja uma queixa apresentada e devidamente circunstanciada, vigilância efetuada pelas entidades policiais que dê conhecimento de factos integradores de crime e possa posteriormente materializar-se em prova, testemunhos recolhidos informalmente que posteriormente se possam materializar em prova e obviamente meios de prova previamente produzidos. Ou seja, é perante a existência de uma suspeita consistente da prática de um crime que se pode e deve concluir pela necessidade de uma busca e que se pode concluir pela sua adequação e racionalidade.
Indício não é, pois, sinónimo de mera suspeita, tem que ser algo mais que esta, sob pena de não se conseguir evitar a proibição do excesso, tendo a suspeita que estar objetivada em indícios, em sinais que tenham um mínimo de consistência racionalmente demonstrada, de forma a suportarem a probabilidade da existência do crime que se pretende provar, a identificação do seu autor e a apreensão dos objetos com aquele relacionados. (cfr. neste sentido, Acs. do TRC de 03.03.2010 e 08.02.2017, www.dgsi.pt.)
Ora, no que concerne às buscas promovidas aos camiões de longo curso damos aqui por integralmente reproduzido, nesse particular, o bem fundamentado Parecer emitido pelo Exmº PGA, a que aderimos por integral concordância: “ Quanto às buscas promovidas aos camiões de longo curso e indeferidas pelo pelo JI, por ter entendido que o Ministério Público tinha legitimidade para as ordenar:
Dos elementos indiciários constantes dos autos em que o Ministério Público recorre resulta, em súmula e a nosso juízo:
O OPC que, no âmbito do inquérito onde foi apresentado recurso, investiga vários furtos de combustível, veio a identificar vários veículos pesados de mercadorias, uns com matriculas verdadeiras, pelo menos um com matricula falsa, de origem romena, que eram utilizados/usados nos furtos de combustível que haviam sido denunciados e objeto de diferentes NUIPC, sugerindo a emissão de mandados de busca e apreensão para essas viaturas (camiões e reboques) por haver suspeitas fundadas de que nelas se encontrariam os meios usados para a concreta subtração de combustível, sendo ainda importante as buscas e apreensão para ulterior realização de perícia, designadamente aos tacógrafos.
A par das buscas aos veículos e reboques, o OPC sugeriu a emissão de mandados de busca domiciliária e não domiciliária em relação a duas suspeitas envolvidas, estando em causa, pelo menos indiciariamente, uma atuação concertada de vários indivíduos, condutores ou não desses veículos, que através do furto de combustível se permitiam oferecer preços mais vantajosos no transporte internacional de mercadorias.
Na sustentação das suspeitas quanto à autoria e modus operandi o OPC relatou as diligências subjacentes a esse juízo indiciário, designadamente vigilâncias, recolha de fotogramas de alguns dos veículos identificados, documentação atinente à identificação desses veículos, etc.
Dando pormenores da investigação em curso e dos indícios existentes, sustentados no despacho indeferido, incluindo registos de videovigilância nos locais onde alguns dos furtos foram cometidos, o Ministério Público requereu ao JI a emissão de mandados de busca domiciliária em relação aos veículos pesados e reboques que identificou e sobre os quais tinha elementos indiciários bastantes de estarem envolvidos nos furtos em investigação, dando detalhada descrição das provas indiciárias mobilizadas e da necessidade e utilidade investigatória das buscas.
Mais promoveu, com base na mesma e longa exposição, a emissão de mandados de busca domiciliária em relação a dois/duas suspeitas indiciariamente envolvidas na autoria dos furtos, ou no grupo que os levava a cabo, de modo concertado e com os objetivos económicos acima referidos
Sobre a promoção efetuada, a Mma. JI proferiu despacho do qual destacamos o seguinte:
Entendeu que os veículos e reboques não integravam o conceito de domicílio e como tal o Ministério Público tinha e tem competência para as ordenar, pelo que recusou autorizar essas buscas.
Relativamente às buscas domiciliárias, em próprio sentido, entendeu que nada de concreto foi alegado ou consta dos autos que permitisse concluir haver indícios de que os objetos utilizados na prática dos ilícitos ou meios de prova pudessem estar guardados nos domicílios identificados, sendo mais provável que se encontrassem no interior dos veículos, pelo que também recusou autorizar essas buscas.
Vejamos.
As buscas, segundo o artigo 174.º e 177.º (quanto às domiciliárias) são meios de obtenção de prova, que consistem em inspecionar um local reservado ou não livremente acessível ao público, com o intuito de verificar se aí se encontram quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou se aí se encontra o arguido ou outra pessoa que deva ser detida.
Têm como fundamento a existência de indícios de que quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, ou de que aí se encontra o arguido ou outra pessoa que deva ser detida
Sobre o que sejam indícios que servem para fundamentar as buscas, a jurisprudência que a seguir destacamos pronuncia-se nos seguintes termos:
Ac. TRC de 18-11-2009, 329/09.2JALRA.C1CJ: “Para a realização de uma busca a lei processual penal exige a existência de «meros indícios», contrariamente com o que acontece para efeitos de acusação ou de pronúncia, em que são exigidos indícios suficientes, ou para aplicação de certas medidas de coação em que é necessária a existência de «fortes indícios».
Ac. TRC 22/02/2006, P. 33/06: “I- O conceito “indícios” tem, no C. P. Penal, uma natureza mais ou menos fluida consoante as fases processuais, indo da mera probabilidade, embora séria, até ao juízo de certeza; II- Os “indícios” exigidos para decretar uma busca não se traduzem em factos certos mas apenas em pressupostos desses factos.”.
Ac. TRC, de 15.2.2006, in CJ-XXXI-I-48 “Na falta de definição legal, por indício deve entender-se “uma indicação, sinal ou vestígio de algo”.
AC. TRE, de 20-1-2015, processo n.º 18/12.0GALLE.E1: “1 - Para a determinação ou justificação da realização de busca nos termos dos números 1 e 2 do artigo 174º do Código de Processo Penal, os indícios serão suficientes em função da situação de facto que se apresenta aos elementos policiais, exigindo uma apreciação imediatista sobre a razoabilidade das suspeitas, sobre a ocorrência e clara definição dos factos ilícitos e sobre a presença dos objetos que se pretendem investigar e apreender. 2 - A base desse raciocínio assenta, necessariamente, sobre os factos que constituem crime e foram presenciados e/ou são sabidos pelos elementos que efetuam a busca, não como eles se virão a provar posteriormente no processo, sim como eles razoavelmente se apresentam no momento em que se decide efetuar a busca.”
Ou ainda, quanto ao critério que deve sobrelevar na fundamentação das BUSCAS:
Ac. TRL, de 18-5-2006, proc. n.º 54/2006-9: “II – É ao MºPº que compete determinar quais as diligências que devem ser realizadas em ordem a descobrir e recolher as provas necessárias aos fins do inquérito, ainda que na realização de tais diligências seja assistido pelos órgãos de polícia criminal ou, quando a lei o determina, tenha que obter prévia autorização do Juiz de Instrução. III – É o critério da investigação, cujo dominus é o MºPº, que determina a razoabilidade das BUSCAS e da seleção/escolha dos objetos apreendidos.”.
Do que vem exposto parece resultar evidente que não está em causa qualquer divergência sobre a existência de indícios em relação às buscas aos veículos pesados e reboques.
Os indícios que devem estar subjacentes à determinação das buscas aos veículos pesados e respetivos reboques têm sustentação real, efetiva e consequente, ou seja, não arbitrária, como parece ser também a posição do Mmo. JI.
A questão é a de saber se estão no âmbito da competência reservado do JI ou na que cabe, por exclusão, ao Ministério Público, conforme artigos supracitados.
Parece-nos que a sustentação de que os veículos pesados são, em termos práticos, equiparáveis a domicílio, atendendo à forma como são usados pelos respetivos condutores ou passageiros (neles dormem, por vezes comem, etc.) só foi verdadeiramente sustentada no recurso, que não na promoção indeferida.
Ainda assim, a questão permanece e julgamos que deve ser resolvida no sentido preconizado no despacho recorrido, i.e., não se tratam de buscas em “domicílio”.
Vejamos.
Os condutores de veículos de longo curso não habitam, residem ou têm como centro de vida privada, pessoal e/ou familiar um veículo, ainda que de longo curso, onde percorrem longas distâncias, em trabalho, por vários dias ou mesmo meses.
Mais correto será dizer que o veículo que conduzem, nessas circunstâncias, se não é o seu local de trabalho em termos jurídico-laborais, anda lá muito próximo, mas não coincide de todo com o centro da sua vida pessoal, familiar e social reservada ou privada, ainda que a coberto de um entendimento amplíssimo, como o que é aparentemente subscrito pelo recorrente.
Tratar-se-á mais corretamente de um espaço integrado e condicionado pela esfera profissional, mas não é o centro reservado do seu direito à intimidade, liberdade individual e familiar, bastante diverso daqueloutro.
Veja-se o Ac. do T. Constitucional, n.º 452/89, onde o conceito de domicílio, também identificado como “amplo”, corresponde a “…habitação humana, aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar..”, o que, ainda assim, não parece coincidir com o presumido conceito de domicílio subjacente ao recurso, que parece ser ainda “mais” amplo que o do aresto citado.
Afigura-se-nos que o conceito de domicílio haverá que estar em consonância também com a tutela penal que lhe é conferida e que, como é sabido, tem a devida ressonância constitucional enquanto mandato positivo de incriminação. Ora, o artigo 190.º do Código Penal protege a inviolabilidade do domicílio enquanto habitação de outrem, onde se centra a vida privada e não profissional (aspetos que, porém, hodiernamente nem sempre coincidem, v.g. devido ao teletrabalho) pelo que o conceito de domicílio deve ter um significado mais restrito que aquele que lhe pretende emprestar o recorrente.
Em qualquer caso, facto é que a intimidade da vida privada e o domicílio têm proteção autónoma, tanto na Constituição da República Portuguesa como no Código Penal e se nenhuma diferença houvesse seria redundante essa sua diferenciação…pelo que importa prosseguir na hermenêutica do conceito, que tem tanto de relevância factual, quanto normativa.
Na verdade, o artigo 177.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, reportando-se à busca domiciliária (domicilium, domus = casa), restringe o conceito à busca “em casa habitada ou numa sua dependência fechada” para a reservar à competência do juiz, seja para a ordenar, seja para a autorizar.
Nem em termos literais, nem em termos funcionais ou teleológicos, um veículo pesado de mercadorias de longo curso, ainda que diariamente usado pelo seu condutor como habitáculo onde dorme, quase vive e convive, pode equivaler a uma casa habitada.
Para se sustentar uma interpretação teleológica, ainda que garantística em extremo, como a que parece ser sustentada pelo Ministério Público recorrente, o que importaria demonstrar é que o veículo em causa constitui não só uma casa, mas uma habitação.
Enquanto casa, teria que ser um edifício, parte de edifício ou equivalente, que não é!
Enquanto habitação (que interessa ao que possa ser “equivalente”) – perdoe-se-nos o pleonasmo – uma casa ou equivalente terá que se destinar e servir de habitação, seja temporária ou permanente, principal ou secundária ou sua dependência.
Ainda que se faça prevalecer uma interpretação teleológica do conceito de domicílio que vá além da equivalência jurídica a “casa habitada”, parece-nos que o princípio da legalidade não permite que se possa prescindir do momento literal da interpretação, razão pela qual entendemos que no conceito de domicílio, enquanto casa habitada, não cabe como equivalente funcional, teleológico e muito menos literal o veículo pesado de mercadorias de longo curso.
Deste modo, a competência para ordenar as buscas nos veículos identificados cabe ao Ministério Público, nos termos da lei (artigo 174.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Não nos parece, assim que tenha andado mal, a Mma. JI ao indeferir as buscas promovidas.”

- No que concerne às buscas domiciliárias
Como plasmado no despacho recorrido “ (…) De acordo com os relatórios do OPC juntos e com o requerimento do Ministério Público os referidos suspeitos, de nacionalidade (…), serão condutores de veículos pesados e reboques provenientes da (…) e autores de parte dos furtos de combustível em investigação, integrando um grupo/associação de indivíduos que fazem desta conduta ilícita o seu modo de vida. Tudo indica que os meios para consumação dos ilícitos se encontram no interior dos veículos identificados nos autos.
Quanto à residência dos suspeitos nada de concreto consta dos autos que nos permita concluir pela existência de indícios suficientes de que os objetos utilizados na prática dos ilícitos em investigação ou meios de prova da sua prática possam estar guardados nos domicílios identificados. Como se referiu, dos referidos indícios, resulta antes mais provável que tais objetos se encontram no interior dos referidos veículos.”
Ora, acarretando as buscas a compressão / restrição de direitos fundamentais consagrados na Constituição da República, não pode deixar de se observar o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, a mencionada restrição de direitos fundamentais deve estar expressamente prevista na Constituição, deve salvaguardar outros direitos ou interesses também aí protegidos, deve limitar-se ao estritamente necessário, ser proporcional e adequada e não pode conduzir à destruição do direito fundamental.
As normas dos artigos 174º, nº2, 176º e 177º do Código de Processo Penal são a exceção consentida pelo art. 34º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, na articulação dos direitos fundamentais afetados com a busca com o interesse processual de concretização de perseguição criminal, desde que se registe respeito pelo disposto no nº 2 do artigo 18º da Lei Fundamental.
Na aferição deste critério, na ponderação de interesses, o tribunal tem que criar uma convicção, tem de acreditar que há razões para crer que tal diligência é necessária, adequada e proporcional, o que, no caso, não ocorreu, pois que a diligência requerida, face aos elementos disponíveis nos autos, está claramente aquém do patamar mínimo que suportaria as exigências também constitucionais de adequação e necessidade, sendo certo que o recorrente optou por requerer uma solução que, na ponderação concreta que no caso se impõe efetuar, extravasa o âmbito consentido por uma restrição justificada do direito à inviolabilidade do domicilio.
Termos em que não merece censura a decisão recorrida.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- não conhecer da questão da invocada nulidade do despacho por omissão de pronúncia quanto à promoção de aplicação do segredo de justiça, por se mostrar sanada;
- no mais, negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida.
- Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 10 de maio de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
Gilberto da Cunha