Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
48/12.2YREVR
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
LIBERDADE DE OPINIÃO E DE EXPRESSÃO
ASILO POLÍTICO
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO
Sumário:
1. A liberdade de opinião e de expressão, contemplada no art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, não é um direito absoluto, que não deva conter limites, mormente, ao contender com outros direitos individuais plenamente dignos de protecção, como sejam a dignidade da pessoa humana, a integridade moral, o bom nome e reputação, a liberdade (de consciência, de religião e de culto) e a segurança e, por isso, com a exigível dignidade perante actos, designadamente, e em concreto, de propaganda, que se consubstanciem em incitamento à violência, à discriminação e ao ódio.

2. Não compete ao tribunal da Relação apreciar pedido de asilo político formulado no âmbito da oposição à execução do MDE.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Em cumprimento de pedido de detenção emitido por autoridade judicial da Alemanha, inserida no Sistema de Informação de Shengen, procedeu-se à detenção, em 11.04.2012, ao abrigo do disposto no art. 4.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 65/2003, de 23.08 (que aprovou o regime jurídico do mandado de detenção europeu em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho da União Europeia, de 13.06), do cidadão Gerhard, de nacionalidade alemã, aí devidamente identificado.

Tal pedido, conforme do mesmo se alcançava, reportava-se a mandado emitido pelo Tribunal Regional de Nuremberg-Furth, na Alemanha, tendo por finalidade o cumprimento, por aquele cidadão, da pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em que havia sido condenado, por Agitação criminal contra segmentos da população, insultando comunidades religiosas, difamação pública qualificada/Agravada do Estado, que coincide com o insulto (=ofensa/afronta), difamação pública Qualificada/Agravada do Estado, que coincide com o insulto, difamação pública qualificada/agravada do Estado, que coincide com a Agitação criminal contra segmentos da população.

Em 12.04.2012, teve lugar a audição do detido, nos termos do art. 18.º da Lei n.º 65/2003, tendo o mesmo sido assistido por defensor e com a presença de intérprete, então nomeados.

Nessa mesma data, antes da audição, veio a ser junto o mandado de detenção europeu (MDE), concluindo-se que foi emitido por aquele Tribunal, na Alemanha, para cumprimento daquela pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, a que é descontado o período de 85 (oitenta e cinco) dias de prisão preventiva, decorrente de condenação por sentença aí proferida em 06.04.2005, pela prática de um total de 32 infracções, qualificadas como de difamação do Estado, racismo e xenofobia, insulto de comunidades religiosas, difamação agravada do Estado e afronta agravada, p. e p., como do mesmo consta, pelo parágrafo 90-a, partes 1 e 3, pelo parágrafo 130, parte 1, n.ºs 1 e 2, e parte 3, pelo parágrafo 166, parte 2, pelo parágrafo 185 e pelos parágrafos 52, 53, 92-b, frase 1, n.º 1, do Código Penal Alemão.

Teve por fundamento, como aí consta também, que:

O condenado Gerhard, nacional-socialista e, segundo a sua própria declaração, “Funcionário do Reich Alemão”, fez declarações em vários artigos na internet e no âmbito de um discurso público no período do dia 8 de Maio de 2002 e o dia 11 de Janeiro de 2004 difamando a República Federal da Alemanha, fazendo propaganda contra judeus e estrangeiros afrontando outras pessoas:

Ele considera o Terceiro Reich como ainda existente e declara a República Federal da Alemanha como uma “construção dos ocupantes” e um “regime de vassalos” dos Estados Vencedores da Segunda Guerra Mundial. A República Federal da Alemanha era dedicada à decadência e contra a lei internacional; ele desmente os crimes do Terceiro Reich contra a população judeia isto é ele minimiza­-a e fala da maior e mais profitável mentira na história da raça humana; no que diz respeito aos estrangeiros, ele utiliza palavras como “negro impertinente”, “misturação das raças"”e “terror multi-cultural”; acusou uma procuradora da República da alta traição e da prevaricação.

Transcrevendo, ainda, o mandado:

- Quanto às referidas infracções, a duração máxima da pena respectiva é de:
a) 3 anos (difamação do Estado e dos seus símbolos)
b) 5 anos (Volksverhetzung) - em tradução do Relator, incitamento ao ódio e violência da população
c) 3 anos (insulto de comunidades religiosas)
d) 1 ano (afronta)

- No tocante às aludidas disposições legais:

§ 90 a difamação do Estado e dos seus símbolos:

(1) Quem (§ 11, par. 3)
1. afronte a República Federal da Alemanha ou um dos seus estados federais ou a sua ordem constitucional ou a faz desdenhoso de uma maneira malévola ou

2. difame as cores, a bandeira, o brasão ou o hino da República Federal da Alemanha ou de um dos seus estados federados, numa reunião ou pela difusão de escritos, é penalizado a cinco anos de prisão ou a pagar uma multa.

(3) A pena é uma pena de prisão se o autor se empenha com o seu delito por engano contra a existência da República Federal da Alemanha ou contra os princípios constitucionais.

§ 130 Volksverhetzung (incitamento ao ódio e violência da população)

(1) Quem, de qualquer maneira adequada para perturbar a paz pública,

1. incite ao ódio contra partes da população ou a métodos de violência ou de arbitrariedade ou

2. ataque a dignidade humana de outras pessoas difamando, fazendo desdenhoso de uma maneira malévola ou caluniando partes da população, é penalizado a uma pena de prisão entra 3 meses e 5 anos.

(3) É penalizado a pagar uma multa ou a uma pena de prisão de até cinco anos, quem aceite, desminta ou minimize um ato cometido sob o regime do nacional-socialismo de uma maneira designada no § 6, par. 1 do Võlkerstrafgesetzbuch – em tradução do Relator, Código Penal - e adequada para perturbar a paz pública.

§ 166 Insulto de confissões, comunidades religiosas e uniões de concepções do mundo

(1) Quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte o conteúdo de uma confissão religiosa ou uma concepção do mundo de outras pessoas de uma maneira adequada a perturbar a paz pública é penalizado a uma pena de prisão de até três anos ou a pagar uma multa.

(2) Também penalizado é quem, pela distribuição de escritos (§ 11, par. 3), insulte uma Igreja existente no interior ou o conteúdo de um outro grupo religioso ou de uma concepção do mundo, as suas instituições ou costumes de uma maneira adequada a perturbar a paz pública.

§ 185 Afronta

A afronta é penalizada com uma pena de prisão de até um ano ou com o pagamento de uma multa se a afronta é feita por meio de vias de facto.

- Relativamente às garantias (art. 13.º da Lei n.º 65/2003):

Detalhes sobre a ausência do condenado: O condenado foi convidado ordenadamente para as datas da audiência e ele participou em 17 dias da audiência principal; fugiu ao processo restante resultando no fato que os últimos dois dias do processo, inclusive a publicação da sentença, tiveram lugar na sua ausência, mas na presença do seu advogado de defesa.

O detido declarou, nessa audição, não consentir na sua entrega ao Estado requerente e não renunciar à regra da especialidade.

Pelo seu ilustre defensor foi requerido que lhe fosse concedido prazo para deduzir oposição.

Proferiu-se despacho, validando, por legal, a detenção, e mantendo-a, tendo sido concedido o prazo de dez dias para oposição, nos termos e para os efeitos do art. 21.º, n.º 4, da Lei n.º 65/2003.

Nesse prazo, constituiu mandatário, através de procuração que juntou, vindo a requerer, por isso, a prorrogação do mesmo e por dez dias, o que lhe foi concedido.

Não obstante, no prazo inicialmente concedido, veio o seu defensor nomeado a deduzir oposição, no essencial, nos seguintes termos:

Acontece ter o mesmo declarado e reafirmar “que não consente numa sua entrega ao estado requerente e que não renuncia à regra da especialidade”, por, afirmou e reafirma, “não haver liberdade de expressão na Alemanha” e “sendo perseguido politicamente”; assim, invocando o artigo 19º dos Direitos Humanos, e os demais aplicáveis ao seu caso, requer que lhe seja concedido o Asilo Político, pois está a viver há seis anos em Portugal, estando perfeitamente integrado, por se sentir bem aqui, não existindo perigo de fuga, e até por não possuir meios para se ausentar.

O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do prosseguimento dos autos e de prolação de decisão de deferimento do pedido com a entrega do requerido ao Estado emitente.

Já em 31.05.2012 e, assim, bem depois de decorrida aquela prorrogação de prazo para oposição, o ilustre mandatário apresentou requerimento, no essencial, referindo:

1 - O arguido foi sentenciado numa pena de trinta e três meses de prisão efectiva por, alegadamente, ter cometido as infracções em foi condenado.

2 - Porém, requereu a reapreciação da prova por terem surgido dados novos, veiculados pela Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas uma vez que, segundo esta Comissão, os factos praticados pelo arguido relacionam-se com a História, pelo que podem e devem ser objecto de debate e inserem-se na livre expressão do pensamento de cada um.

3 - E os países democráticos, refere o mesmo relatório daquela Comissão, não podem coarctar a livre expressão do pensamento e de opinião, sobretudo quanto aos temas históricos, antes devendo estimular e promover o debate sobre essas questões.

4 - O recurso foi, recentemente, apresentado, aguardando, o seu mandatário em Portugal, que o mesmo lhe seja enviado para o apresentar ao tribunal, após tradução e certificação.

5 - Assim, pode, o ora arguido, requerer que a sua extradição não tenha lugar, até ser proferida uma decisão sobre o recurso apresentado.

Pelo exposto, vem requerer, a V. Exa., se digne determinar que o detido permaneça em Portugal, até que seja proferida uma decisão sobre o recurso ora apresentado.

Afigurando-se outras diligências desnecessárias, foram os autos à conferência.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A referida Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, relativa ao MDE e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L 190, de 18.07.2002), foi um dos actos adoptados em aplicação do título VI do Tratado da União, nomeadamente, das alíneas a) e b) do seu art. 31.º e da alínea b) do n.º 2 do seu art. 34.º.

Considerou então o Conselho, tendo em conta a proposta da Comissão e o parecer do Parlamento Europeu, além do mais que:

- deveria ser abolido o processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado, bem como acelerados os processos de extradição relativos às pessoas suspeitas de terem praticado uma infracção;

- o objectivo de dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais;

- o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça;

- a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permitindo suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição;

- a substituição das relações de cooperação clássicas que até ao momento haviam prevalecido entre Estados-Membros por um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

O MDE previsto nessa Decisão-Quadro constituiu, pois, a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.

Mais se atentou em que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros.

Foi, pois, em cumprimento dessa mesma Decisão-Quadro que a mencionada Lei n.º 65/2003 (publicada no D.R. I Série-A , n.º 194, de 23.08), veio aprovar esse regime jurídico do MDE, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004, aplicando-se aos pedidos recebidos depois desta data com origem em Estados-membros que tenham optado pela aplicação imediata daquela (seu art. 40.º).

Na definição legal dada pelo art. 1.º da Lei n.º 65/2003, O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, sendo executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma Lei e na referida Decisão-Quadro.

Esta última não define o princípio do reconhecimento mútuo, tal como aquela Lei não o faz, mas, em geral, não sofre dúvida que ele assenta na confiança mútua que pressupõe compreensão, impondo às autoridades de um Estado que aceitem reconhecer os mesmos efeitos às decisões estrangeiras que às decisões nacionais, apesar das diferenças que oponham as ordens jurídicas em causa (v. Manuel Guedes Valente, ”Do Mandado de Detenção Europeu”, Almedina, 2006, pág. 83, citando Inês Fernandes Godinho, em Trabalho de Mestrado em Direito apresentado em 2003/2004, na FDUC, na cadeira de Processo Penal, sob a regência de Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção Europeu e a «Nova Criminalidade»: A Definição da Definição ou o Pleonasmo do Sentido, pág. 14).

Ainda, citando Daniel Flore, Anabela Rodrigues explicitou, em “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, ano 13, n.º 1, pág. 33, que desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde ela procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, significando que as autoridades competentes do Estado-Membro do território no qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente desse Estado.

Tal princípio de confiança subjacente ao reconhecimento mútuo, ligado ainda a escopos de simplicidade e de celeridade, só através da ausência de exigência absoluta da dupla incriminação (no Estado membro de emissão e no Estado membro de execução) poderia ser concretizado, motivo por que se elencou, no art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, identicamente ao que consta da Decisão-Quadro, um catálogo de infracções relativamente às quais se aboliu o controlo da dupla incriminação desde que puníveis com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos.

No respeitante a infracções aí não previstas, o legislador português parece ter, contudo, optado por sujeitá-las ao princípio da dupla incriminação (n.º 3 do mesmo art. 2.º).

Na esteira, ainda, da Decisão-Quadro enveredou-se por uma solução de compromisso entre a abolição geral da dupla incriminação e a reserva da soberania dos Estados, mediante a previsão de causas facultativas de recusa de execução do MDE, bem como de determinadas garantias que, em casos especiais, devem ser fornecidas pelo Estado membro de emissão, como decorre do disposto nos arts. 12.º e 13.º da Lei n.º 65/2003.

Optou-se, pois, por uma abolição relativa da dupla incriminação, que não afectasse essa reserva de soberania e que correspondesse aos desideratos de preocupação comum da União.

Por seu lado, a pessoa entregue em cumprimento de um MDE não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do MDE, nos termos do art. 7.º da Lei n.º 65/2003, o que consubstancia o denominado princípio da especialidade, embora essa pessoa possa renunciar a essa regra e nos moldes que são definidos no n.º 3 do mesmo preceito legal.

O MDE relativo a Gerhard foi emitido com observância dos legais requisitos do art. 3.º da Lei n.º 65/2003, para efeitos do cumprimento da pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, à qual será descontado o aludido período de 85 dias de prisão preventiva, pelas infracções que ficaram referidas, por um lado, inseridas no n.º 2 do art. 2.º da mesma Lei, como reconduzindo-se a racismo e xenofobia (sua alínea r) e puníveis com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferir a 3 anos e, por outro, igualmente puníveis pela lei portuguesa, conforme arts. 180.º, 182.º e 184.º, 240.º, n.º 2, alínea b), 308.º, alínea b), e 332.º, n.º 1, do Código Penal, de harmonia com o n.º 3 do mesmo preceito legal.

Manifestada a sua ausência de consentimento na entrega ao Estado requerente e a sua não renúncia à regra da especialidade, a oposição apresentada em tempo fundamenta-se, no essencial, nas alegadas circunstâncias de ausência de liberdade de expressão, de ser perseguido politicamente, de preterição do art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e de que lhe deva ser concedido o asilo político, encontrando-se a viver em Portugal há seis anos e integrado.

Por seu turno, a “recente” oposição foi manifestamente apresentada para além do prazo para o efeito, sem que tenha sido suscitado justo impedimento.

Analisando:

Acerca da invocada liberdade de expressão, que, em termos amplos, surge efectivamente contemplada naquele art. 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (adoptada e proclamada pela Assembleia Geral na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948 e publicada no D. R. I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros), segundo o qual Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão, não se desconhece o seu relevo como garantia do cidadão e tendencialmente com um âmbito de protecção acrescido, sem que, porém, tal signifique que não deva conter limites, mormente, ao contender com outros direitos individuais plenamente dignos de protecção, como sejam a dignidade da pessoa humana, a integridade moral, o bom nome e reputação, a liberdade (de consciência, de religião e de culto) e a segurança e, por isso, com a exigível dignidade perante actos, designadamente, e em concreto, de propaganda, que se consubstanciem em incitamento à violência, à discriminação e ao ódio.

A situação “sub judice”, perante o constante do MDE, não pode, pois, ser vista da forma simplista como o requerido quer fazer crer, não resultando minimamente que a emissão do mesmo tenha sido determinada estritamente por motivos políticos, já que não está apenas em causa a formulação de opiniões, mas também a de juízos perfeitamente direccionados e com objectivos que não se restringem à discussão pública e esclarecida.

Relativamente à permanência do requerido em Portugal, não comprova que seja real ou, o que é mais importante, que efectivamente resida no País de modo válido e regular, designadamente de acordo com os imperativos estabelecidos pela Lei n.º 23/2007, de 04.07 (que aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional) e, ainda, muito menos, que esteja inserido de modo a que a quebra de laços com o País, desencadeada com a sua entrega ao Estado requerente, tenha de ser ponderada.

No tocante à preconizada concessão de asilo político, não cabe a este Tribunal apreciá-la, porquanto não é matéria da sua competência, nem se trata de assunto que se incluísse no objecto do MDE.

Na verdade, como decorre da Lei n.º 27/2008, de 30.06 (estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária, transpondo para a ordem jurídica interna as Directivas n.ºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de Abril, e 2005/85/CE, do Conselho, de 1 de Dezembro), o pedido de asilo deve ser apresentado ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ou a qualquer outra autoridade policial (seu art. 13.º, n.º 1), competindo a decisão ao director nacional desses Serviços (seu art. 20.º, n.º 1), sem prejuízo do conhecimento e intervenção do representante do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e do Conselho Português para os Refugiados (seus arts. 13.º, n.º 3, e 20.º, n.º 3) e da susceptibilidade de impugnação judicial (seu art. 22.º, n.º 1).

A tanto acresce que, não tendo sido comprovada a apresentação de qualquer pedido de asilo, inexiste fundamento para a suspensão da decisão a proferir nestes autos (v. art. 48.º, n.º 2, da mesma Lei n.º 27/2008).

Por sua vez, conforme referido, a “recente” oposição é intempestiva.

Não obstante, algumas considerações acerca do alegado aqui se deixam.

Tem subjacente a perspectiva – ainda que não comprovada – de que o requerido apresentara pedido de reapreciação da prova, por terem surgido factos novos, alegadamente suportados por orientações da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

Ora, como consta do MDE, à sentença foi conferida a força executiva inerente, sendo que o requerido esteve presente em grande parte do julgamento, ausentando-se, contudo, nas duas últimas sessões, incluindo aquela em que foi lida essa sentença, na presença do seu advogado.

Assim, não foi propriamente julgado na sua ausência, mas, sim e apenas, não foi notificado pessoalmente da decisão, devido a não ter sido possível a notificação para essa sessão.

A questão prende-se com as garantias que têm de ser respeitadas, previstas no art. 13.º da Lei n.º 65/2003, ou seja, de que, no que aqui releva, segundo a sua alínea a), Quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência, só será proferida decisão de entrega se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes de que é assegurada à pessoa procurada a possibilidade de interpor recurso ou de requerer novo julgamento no Estado membro da emissão e de estar presente no julgamento.

Se, identicamente, era já esta a previsão do art. 5.º, n.º 1, da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, as questões subjacentes à defesa das garantias processuais de quem não esteve presente no julgamento, sem pôr em causa o princípio do reconhecimento mútuo, têm merecido reforçada atenção, como resulta da Decisão-Quadro n.º 2009/299/JAI do Conselho (publicada no Jornal Oficial L 81/24, de 20.03.2009), através da qual, designadamente, aquele n.º 1 do art. 5º daquela Decisão foi suprimido e, ainda, foi aditado a esta o art. 4.º-A, prevendo, no que ao caso interessa, que:

1. A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado-Membro de emissão:

d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:

i) será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial,
e
ii) será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.

Aliás, de acordo com o seu preâmbulo, há que realçar:

(1) O direito da pessoa acusada de estar presente no julgamento está incluído no direito a um processo equitativo consignado no artigo 6.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, com a interpretação que lhe é dada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O Tribunal declarou também que o direito de a pessoa acusada estar presente no julgamento não é absoluto e que, em determinadas condições, ela pode renunciar por sua livre vontade, expressa ou implicitamente, mas de forma inequívoca, a esse direito.

(2) As várias decisões-quadro relativas à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais transitadas em julgado não abordam de uma forma coerente a questão das decisões proferidas na sequência de um julgamento em que o arguido não tenha estado presente. Esta diversidade poderá dificultar o trabalho dos profissionais e prejudicar a cooperação judiciária.

(4) É, por conseguinte, necessário prever motivos comuns claros para o não reconhecimento das decisões proferidas na sequência de um julgamento em que o arguido não tenha estado presente. A presente decisão-quadro tem por objectivo precisar esses motivos comuns para permitir à autoridade de execução executar a decisão não obstante a não comparência da pessoa no julgamento, no pleno respeito dos direitos de defesa. A presente decisão-quadro não tem por objectivo regular as formas e os métodos, incluindo os requisitos processuais, utilizados para obter os resultados nela especificados, pois tal é matéria de direito nacional dos Estados-Membros.

(6) As disposições da presente decisão-quadro que alteram outras decisões-quadro estabelecem as condições em que não devem ser recusados o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida na sequência de um julgamento no qual a pessoa não tenha estado presente. As condições são alternativas; quando uma delas se encontra preenchida, a autoridade de emissão, ao preencher a secção pertinente do mandado de detenção europeu ou da certidão prevista nas outras decisões quadro, garante que os requisitos foram ou serão preenchidos, o que deveria ser suficiente para efeitos de execução da decisão com base no princípio do reconhecimento mútuo.

(11) As soluções comuns para os motivos de não reconhecimento previstos nas decisões-quadro em vigor aplicáveis deverão ter em conta a diversidade de situações no que respeita ao direito da pessoa de requerer um novo julgamento ou de interpor recurso. Esse novo julgamento ou recurso tem por objectivo garantir os direitos da defesa e caracteriza-se pelos seguintes elementos: a pessoa em causa tem o direito de estar presente, o mérito da causa, incluindo novas provas, será (re)apreciado e o processo poderá conduzir a uma decisão distinta da inicial.

(12) O direito a novo julgamento ou a recurso da decisão deverá ser garantido quando a decisão já tenha sido notificada, bem como, no caso do mandado de detenção europeu, quando ainda não tiver sido notificada, sendo, no entanto, notificada sem demora após a entrega. É esse o caso quando as autoridades não tenham conseguido contactar a pessoa, nomeadamente por esta ter tentado subtrair-se à acção da justiça.

(14) A presente decisão-quadro limita-se à definição dos motivos de não reconhecimento nos instrumentos relativos à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo. Por conseguinte, disposições como as relativas ao direito a novo julgamento têm um âmbito limitado à definição desses motivos de não reconhecimento. Não têm por objecto harmonizar as legislações nacionais. A presente decisão-quadro não prejudica os futuros instrumentos da União Europeia destinados a aproximar as legislações dos Estados-Membros no domínio do direito penal.

(15) Os motivos de não reconhecimento são facultativos. Todavia, o poder discricionário dos Estados-Membros na transposição destes motivos para o direito nacional rege-se pelo direito a um julgamento equitativo, tendo simultaneamente em conta o objectivo global da presente decisão quadro de reforçar os direitos processuais das pessoas e de facilitar a cooperação judiciária em matéria penal.

Em concreto, o MDE é relativamente omisso na concretização dessas garantias, apenas aludindo a que são as garantias legais após a sua entrega às autoridades judiciárias, o que, todavia, logicamente interpretado e considerando que, como se acentuou, nem mesmo de um julgamento na ausência se tratou, tem de ser entendido como a susceptibilidade de reapreciação, o que, aliás, se coaduna com o ora alegado de que isso mesmo foi agora suscitado.

Se assim é, não se vê obstáculo válido a que se tenham por satisfeitas as necessárias garantias, caso venha a ser deferida a entrega, dado que, também, segundo o disposto no n.º 3 daquele art. 4.º-A da Decisão-Quadro n.º 2009/299/JAI do Conselho, a pendência de recurso (ou o requerimento de novo julgamento) no Estado requerente não consubstancia fundamento para recusar (ou dificultar) a entrega, sendo que, nesse caso, os pressupostos da manutenção da detenção são apreciados por esse mesmo Estado.

Já se vê, pois, que a pretensão de que a entrega, por essa razão se não verifique, não tem suporte legal.

Do que ficou explicitado, resulta, então, que, não se suscitando dúvida quanto ao âmbito da aplicação do MDE, que é legal (art. 2.º da Lei n.º 65/2003), não se divisa, também, causa de recusa obrigatória da sua execução (art. 11.º da mesma Lei).

E, no que tange às causas de recusa facultativa, identicamente, como referido, não é viável aplicação da alínea g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, segundo a qual a execução do MDE pode ser recusada quando A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa, assente numa apreciação do Estado de execução, “in casu” deste Tribunal da Relação, competente nos termos do art. 15.º da mesma Lei, de modo a perpetrar um juízo de hermenêutica e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos e em conflito, mas, inevitavelmente, manifestação de certa reserva de soberania do Estado Português integrante da defesa dos cidadãos seus nacionais ou que com ele tenham uma relação forte e duradoura.

Conforme Manuel Guedes Valente, ob. cit., pág. 93, citando em parte Anabela Miranda Rodrigues, «Registe-se que, na concepção do reconhecimento mútuo que se concretiza no mandado de detenção europeu – em que o Estado de execução aceita os efeitos jurídicos da decisão nos termos em que se processa no Estado de emissão, com a abolição da dupla incriminação -, o quadro da confiança mútua ganha “pleno relevo” e surge como que “um pressuposto indispensável da realização daquele princípio”, que só pode funcionar se os Estados-Membros confiarem “que os seus sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a qualidade suficiente às decisões” de autoridades competentes de outro Estado-Membro e executadas nos seus territórios nacionais. ».

Ainda, o mesmo Autor, ob. cit., pág. 241 (citando Inês Godinho, trabalho cit.), que os motivos de não execução facultativa não podem transformar-se em motivos obrigatórios, sob pena de se frustrar o espírito da Decisão-Quadro – de reconhecimento mútuo, de confiança, de abolição de exigências próprias do processo de extradição (a dupla incriminação), de liberdade, de segurança, de justiça, de celeridade e de simplicidade no espaço da União.

As dúvidas nesse âmbito têm de ser resolvidas por referência, “prima facie”, à Decisão-Quadro, sem a desvirtuar e sem pôr em crise a recepção das normas de direito emanadas da União Europeia (v. art. 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), a que acresce a circunstância, expressa, de que a Lei n.º 65/2003 surgiu em cumprimento da Decisão-Quadro.

Assim, qualquer interpretação das normas terá de ser feita de acordo com o “princípio da interpretação conforme” (v. acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 16.06.2005, proferido no proc. n.º C-105/03, acessível em dgsi.pt/portal para o direito da união europeia).

Neste, pode ler-se, O carácter vinculativo das decisões-quadro adoptadas com fundamento no título VI do Tratado da União Europeia, consagrado à cooperação policial e judiciária em matéria penal, está formulado em termos idênticos aos do artigo 249.°, terceiro parágrafo, CE, no que respeita às directivas. Cria, para as autoridades nacionais, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional. Desta forma, ao aplicar o direito interno, o órgão jurisdicional chamado a proceder à sua interpretação é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e das finalidades da decisão-quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última e de se conformar, assim, com o artigo 34.°, n.° 2, alínea b), UE».

As razões apresentadas pelo oponente não suportam outro entendimento senão o de que não têm virtualidade para obviar à execução do MDE.

Inexiste motivo para não a deferir.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- deferir a execução do mandado de detenção europeu para entrega do cidadão Gerhard às competentes autoridades judiciárias da Alemanha, para efeitos de cumprimento da pena fixada, pelos factos e infracções que a motivaram.

Sem custas, por não serem devidas.

Notifique-se em conformidade com o art. 28.º da Lei n.º 65/2003.

Após trânsito, emitam-se mandados de desligamento e entrega (art. 29.º da mesma Lei).

Processado e revisto pelo Relator.

Évora, 5 de Junho de 2012
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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)